A formação discursiva da Medicina de Família e Comunidade no Brasil

Discursive formation of Family and Community Medicine

Henrique Sater de Andrade Márcia Guimarães de Mello Alves Sergio Resende Carvalho Aluísio Gomes da Silva JúniorSobre os autores

Resumo

Realizamos uma análise crítica sobre a formação discursiva da Medicina de Família e Comunidade (MFC). A MFC é pensada como uma prática atravessada por relações políticas e sociais e que se produz historicamente enquanto uma formação discursiva, através de um jogo complexo e aberto entre os diversos atores, que compreendem, formulam e disputam o formato e o sentido dessa prática. Investigamos essa formação com base em revisão bibliográfica e análise do discurso de documentos que descrevem a emergência da MFC e de entrevistas com personagens ligados diretamente a ela. Pudemos identificar que a formação discursiva da MFC é atravessada pelas histórias da prática médica generalista, familiar e comunitária; da estruturação da Atenção Primária em Saúde; dos programas de Medicina Comunitária; e da formação da Saúde Coletiva no Brasil. Além disso, encontra-se atrelada ao campo científico da medicina generalista e familiar internacional e a sua afirmação como especialidade médica. Enquanto sociedade científica, vem apresentando dubiedades no que se refere às pautas históricas do movimento sanitário e na defesa de um sistema de saúde público, universal e antiprivatista. No entanto, para evitar cristalizações institucionais, entendemos ser necessário pensar a MFC como um campo heterogêneo e sem uma história única.

Palavras-chave:
Medicina de Família e Comunidade; Atenção Primária à Saúde; Medicina Comunitária; Saúde Coletiva

Abstract

We performed a critical analysis on the discursive formation of Family and Community Medicine (FCM). FCM is thought of as a practice crossed by political and social relations that takes place historically as a discursive formation, through a complex and open game between the various actors, who understand, formulate and dispute the format and meaning of this practice. We investigated this training based on bibliographic review and discourse analysis of documents that describe the emergence of FCM and interviews with individuals directly linked to it. We were able to identify that the discursive formation of the FCM is traversed by the histories of general medical practice, family and community; the structuring of Primary Health Care; of Community Medicine programs; and the formation of Collective Health in Brazil. In addition, it is linked to the scientific field of general medicine and international family and its affirmation as a medical specialty. As a scientific society, it has been presenting doubts regarding the historical guidelines of the health movement and the defense of a public, universal and anti-privatization health system. However, in order to avoid institutional crystallization, we believe it is necessary to think of FCM as a heterogeneous field and without a single history.

Keywords:
Family and Community Medicine; Primary Health Care; Community Medicine; Collective Health

A Medicina de Família e Comunidade como prática e como formação discursiva

A Medicina de Família e Comunidade (MFC) vem emergindo, em especial nas últimas décadas, como um campo discursivo relevante na organização dos modelos de atenção à saúde no Brasil (FALK, 2004FALK, J. W. A medicina de família e comunidade e sua entidade nacional: histórico e perspectivas. Rev Bras Med Fam Com, v. 1, n. 1, p. 5-10, 2004.; ANDERSON et al., 2005ANDERSON, M. I. P.; GUSSO, G.; CASTRO FILHO, E. D. Medicina de Família e Comunidade: especialistas em integralidade. Revista APS, v. 8, n. 1, p. 61-67, 2005.; TRINDADE & BATISTA, 2016TRINDADE, T. G.; BATISTA, S. R. Medicina de Família e Comunidade: agora mais do que nunca! Ciênc. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 21, n. 9, p. 2667-2669, set. 2016.). A partir de suas singularidades históricas na organização dos serviços de saúde, esta prática e especialidade médica recebe distintas adjetivações em outros países: “geral e familiar”, “familiar e comunitária”, “geral e integral”, “familiar”, “generalista”, “comunitária”.

Os “médicos de família” marcam presença no imaginário social de várias épocas e costumam estar associados a uma prática menos tecnológica e mais interpessoal (BONET, 2014BONET, O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina de família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.). Nos dias de hoje, estão no cotidiano de diversos serviços primários e públicos de saúde, atendendo populações historicamente marginalizadas. Tem atuado também no setor suplementar de saúde,11Médicos de família passam a fazer atendimento particular personalizado - 28/01/2015 - Equilíbrio e Saúde - Folha de S. Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2015/01/1581446-medicos-de-familia-passam-a-fazer-atendimento-particular-personalizado.shtml>. Acesso em: 5 jul. 2017. sendo publicamente defendidos por grandes planos de saúde como um modelo de formação e atenção mais racional, qualificado e custo-efetivo.22Saúde grátis para todos? Disponível em: < https://www.uol/economia/especiais/entrevista-uol-lideres-orestes-pullin-unimed-do-brasil.htm#saude-gratis-para-todos>. Acesso em: 10 mai. 2017. Orestes Pullin, presidente da Unimed do Brasil, afirma que sua instituição está “criando o médico de atenção primária porque não existe isso no país. Então, nós estamos estimulando para que as residências [cursos] de atenção primária à saúde ou de médico de família no Brasil realmente formem profissionais”.

Pretendemos aqui refletir criticamente sobre a formação discursiva da MFC no Brasil. Procuramos descrever e analisar a emergência dessa formação, a partir das histórias da prática médica generalista, familiar e comunitária; da estruturação da Atenção Primária em Saúde; dos programas de Medicina Comunitária; e do campo da Saúde Coletiva.

A MFC será pensada não como um conjunto dado e objetivo de fatos, mas como uma prática atravessada por relações políticas e sociais, produzidas ao longo de inúmeros e diferentes planos sociais, com distintas histórias e condições de aparecimento. Afasta-se assim da ideia de uma medicina que possua, a priori, uma essência política (com determinado exercício de poder intrínseco a ela), ontológica (existindo em si mesma) ou epistemológica (com um modelo científico único) (FOUCAULT, 1963FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1963.; ROSE, 1994ROSE, N. Medicine, history and the present. In: PORTER, R.; JONES, C. (Orgs.). Reassessing Foucault. London: Routledge, 1994, p. 48-72.; CARVALHO et al., 2015CARVALHO, S. R. et al. Medicalização: uma crítica (im)pertinente? Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 25, n. 4, p. 1251-1269, dez. 2015.).

Além disso, partimos da ideia de que a MFC se constitui através de um complexo jogo entre os diversos atores que compreendem, formulam e disputam o formato e o sentido de suas práticas. Ao descrever, entre uma série de enunciados, um sistema de dispersão e regularidade entre os objetos e seus domínios, os tipos de enunciação, os conceitos e as escolhas temáticas, podemos observar a MFC enquanto uma formação discursiva (FOUCAULT, 2008_____. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2008.).

Nesse processo, são produzidas práticas discursivas, aqui entendidas não como simplesmente “modos de fabricação” do discurso, mas tomando corpo “no conjunto de técnicas, de instituições, dos esquemas de comportamento, dos tipos de transmissão e difusão, nas formas pedagógicas que, por sua vez, as impõem e as mantém” (FOUCAULT, 1997_____. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar, 1997., p. 23).

Percurso de investigação

Realizamos uma revisão bibliográfica sobre a emergência da MFC no Brasil. Para isso, foram selecionados artigos que se referiam à análise histórica dos conceitos e práticas definidos como essenciais à especialidade, documentos oficiais da MFC brasileira (incluindo o Tratado Brasileiro de MFC, a Revista Brasileira de MFC e o portal da SBMFC) e da medicina generalista e familiar pelo mundo.

Além disso, realizamos 10 (dez) entrevistas33A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), pelo Parecer Consubstanciado nº 1.546.334. semiestruturadas com diferentes atores sociais que julgamos constituírem um conjunto de sujeitos representativos de importantes correntes de pensamento sobre esta problemática no Brasil. Utilizamos a entrevista como instrumento de uma perspectiva qualitativa de conversa, diferenciando-a de uma simples "coleta" de dados predeterminados. As entrevistas tinham como objetivo encontros dialógicos e reflexivos, procurando problematizar posições pessoais e visões institucionais dos entrevistados (DENZIN; LINCOLN, 2000DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. Handbook of Qualitative Research. Thousand Oaks: Sage, 2000.).

Incluímos no escopo do trabalho de campo: médicos de família e comunidade, com histórico de atuação na direção da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC); médicos com passagem pelo Ministério da Saúde no campo da Atenção Básica e pesquisadores sobre APS, vinculados ao campo da Saúde Coletiva. Por entender a MFC como um campo discursivo heterogêneo, procuramos incluir membros representativos de parte dessas diferentes histórias:

a) a região Sul, com a experiência pioneira do Centro de Saúde Escola Murialdo e o Grupo Hospitalar Conceição, no Rio Grande do Sul, e experiências mais recentes em Florianópolis e Curitiba;

b) o estado de São Paulo (incluindo a região de Campinas), com formulações e arranjos determinantes na construção do SUS no eixo da APS;

c) o estado do Rio de Janeiro, que teve o pioneirismo da Medicina Integral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e conta hoje com o maior programa brasileiro de Residência em MFC, vinculado à Prefeitura do município do Rio de Janeiro;

d) diferentes estados do Nordeste, com destaque para a presença atual da presidência da SBMFC sediada no Rio Grande do Norte e parte dos integrantes do Ministério da Saúde nos últimos anos, com histórico de formação e estruturação de residências em MFC em estados como Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Sergipe, entre outros.

O ritmo, a extensão e o rumo da conversa entre entrevistado e pesquisador foram produzidos pela singularidade de cada encontro. Admitindo a impossibilidade de atores “desinteressados” e “neutros” nesse percurso, analisamos um material produzido por múltiplos atravessamentos éticos, políticos e afetivos que transcorreram a pesquisa. Inclui-se aqui a própria não neutralidade dos pesquisadores, diretamente implicados na produção discursiva do campo da APS, da Saúde Coletiva e nas lutas pelo direito à saúde pública e, portanto, com um viés crítico ao setor suplementar e à privatização da saúde no país.

Buscamos observar o campo da MFC no feixe de relações que o discurso deve efetuar para poder falar e agir. São estas relações discursivas que determinam a possibilidade e a forma de falar, analisar, classificar seus objetos e de produzir práticas (FOUCAULT, 2008_____. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2008.). Coexistem nelas vozes dissonantes que refletem a existência de múltiplos atores e projetos no campo discursivo em análise. Vozes às vezes vistas como “estranhas” à MFC e que rompam com um discurso único e homogêneo, um sistema fechado e estável e uma história única e visível.

Definição da prática da MFC como especialidade médica

O documento “A Definição Europeia de Medicina Geral e Familiar” faz uma síntese de diferentes vertentes referentes às atribuições contemporâneas da especialidade:

Os médicos de família são especialistas formados nos princípios da Disciplina. São médicos personalizados, responsáveis principalmente pela prestação de cuidados abrangentes e continuados a todos os indivíduos que os procuram, independentemente da idade, sexo ou afecção. Prestam cuidados a indivíduos no contexto familiar, comunitário e cultural dos mesmos, respeitando sempre a sua autonomia. Reconhecem ter também uma responsabilidade profissional pela sua comunidade. Ao negociarem os planos de ação com os seus pacientes, integram fatores físicos, psicológicos, sociais, culturais e existenciais, recorrendo ao conhecimento e à confiança resultante dos contatos repetidos. Os médicos de família desempenham o seu papel profissional promovendo a saúde, prevenindo a doença e prestando cuidados curativos, de acompanhamento e paliativos. Fazem-no quer diretamente, quer através dos serviços de outros, consoante as necessidades de saúde e os recursos disponíveis na comunidade que servem, auxiliando o paciente, sempre que necessário, no acesso a esses serviços. Devem ainda responsabilizar-se pelo desenvolvimento e manutenção das suas aptidões, valores e equilíbrio pessoais, como base para a prestação de cuidados efetivos e seguros (WONCA, 2002, p. 22).

Temos, aqui, uma definição bastante abrangente e, ao mesmo tempo, delimitada das atribuições dessa prática, construída a partir de diretrizes preconizadas pela WONCA (Organização Mundial de Médicos de Família) e utilizada tanto em documentos oficiais da Sociedade Brasileira de MFC quanto no Tratado da especialidade no Brasil (GUSSO; LOPES, 2012). Afirma-se a especialidade como uma disciplina médica portadora de princípios determinados e a incorporação do contexto familiar, comunitário e cultural como central no processo de atuação, vinculada aos debates contemporâneos sobre a atuação médica no âmbito da APS e da constituição internacional da especialidade.

Prática médica generalista, familiar e comunitária

Para se refletir sobre a formação discursiva da MFC, é preciso analisar a história das práticas da medicina no âmbito familiar, doméstico e comunitário, antes da própria emergência da especialidade médica enquanto tal. Na literatura da história europeia da medicina (PORTER, 2001PORTER, R. História Ilustrada da Medicina - Cambridge. Rio de Janeiro: Revinter, 2001.), há a localização a partir do século XVIII do movimento dos “clínicos gerais”. Em contraposição ao ceticismo da terapêutica niilista - doutrina que afirmava que conhecer as doenças seria mais importante que tratá-las -, insistiam na necessidade da medicina “tratar pessoas e não doenças”, estando próximos aos indivíduos doentes, nas suas casas, próximos a sua família, durante o período da doença. Em 1882, um professor de medicina em Viena afirmava em uma de suas aulas inaugurais: "Vou repetir mais uma vez, medicina é sobre tratar pessoas doentes e não doenças" (PORTER, 2001, p. 143). Esse enunciado está presente em distintas formulações do campo discursivo da MFC no Brasil e no mundo. McWhinney (1993), por exemplo, afirma que “nós [médicos de família] conhecemos pessoas antes de conhecermos que enfermidades elas possuem” (p. 433, tradução livre).

Esta proposição é uma das bases principais para a elaboração de um dos pilares da prática clínica da MFC: o Método Clínico Centrado na Pessoa (STEWART et. al., 2010STEWART, M. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre: Artmed, 2010.). A proposição sobre a importância de tratar as pessoas como sujeitos dotados de autonomia e dimensões para além da racionalidade biomédica também está presente junto a inúmeras propostas de cuidado e clínica gestadas no interior da Saúde Coletiva, a partir dos anos 1990 no Brasil (CARVALHO, 2005CARVALHO, S. R. Saúde Coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec, 2005.).

Jewson (2009JEWSON, N. D. The disappearance of the sick-man from medical cosmology, 1770-1870. International Journal of Epidemiology, v. 38, n. 3, p. 622-633, 1 jun. 2009.), ao analisar o discurso e as práticas dos médicos europeus entre 1770 e 1870, identificou três cosmologias médicas (formas de circunscrever e definir o universo do discurso médico): a de cabeceira (Bedside), a Hospitalar e a Laboratorial. A Bedside Medicine era composta por uma diversidade caótica de escolas de pensamento, com uma definição de campo difusa e problemática e fronteiras disciplinares fracas e amorfas. Antes da emergência da Medicina Hospitalar, a pessoa do paciente, com todos os seus aspectos, seguia sendo o ponto focal do conhecimento médico, e a experiência subjetiva do homem doente era a base de construção das entidades patológicas da teoria médica. Com tal base, construía-se um sujeito indivisível e individual, sem uma separação entre lesão orgânica e percepção do doente.

Foi com a emergência da Medicina Hospitalar e depois da Laboratorial que a intervenção médica foi profundamente reformatada, deslocando-se para uma cosmologia orientada não no paciente, mas em um “objeto doente”, inanimado e orgânico. O autor chama esse deslocamento de “desaparecimento do homem doente” (JEWSON, 2009JEWSON, N. D. The disappearance of the sick-man from medical cosmology, 1770-1870. International Journal of Epidemiology, v. 38, n. 3, p. 622-633, 1 jun. 2009.).

Mais tarde, com o início do século XX, temos um aprofundamento da industrialização e da urbanização e a ascensão de doenças “sociais” como a tuberculose, as doenças sexualmente transmissíveis e outros surtos epidêmicos. Inicia-se, assim, uma preocupação maior do Estado com a atuação médica, diretamente no espaço social, junto aos indivíduos, suas famílias, em suas casas. A medicina passa cada vez mais a tomar como objeto a população e menos os corpos individuais dos pacientes, monitorando o aparecimento de doenças e incorporando práticas sanitárias.

É nesse contexto que avança a estruturação de serviços primários de saúde e, posteriormente, a consolidação da Atenção Primária em Saúde como um nível de atenção na organização de sistemas nacionais de saúde. Esse processo é fundamental para a expansão e formatação da prática médica generalista, familiar e comunitária, tal qual conhecemos hoje (CARVALHO et al., 2016CARVALHO, S. R. et al. Paradigmas médicos e Atenção Primária à Saúde: vigilância da população e/ou produção de vida? Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 20, n. 58, p. 531-535, set. 2016.).

A formação discursiva da especialidade referente à prática generalista, familiar e comunitária

Os documentos biográficos da prática médica generalista, familiar e comunitária no Brasil (FALK, 2004FALK, J. W. A medicina de família e comunidade e sua entidade nacional: histórico e perspectivas. Rev Bras Med Fam Com, v. 1, n. 1, p. 5-10, 2004.; ANDERSON et al., 2005ANDERSON, M. I. P.; GUSSO, G.; CASTRO FILHO, E. D. Medicina de Família e Comunidade: especialistas em integralidade. Revista APS, v. 8, n. 1, p. 61-67, 2005.; OLIVEIRA, 2007OLIVEIRA, V. DE A. Medicina de família e comunidade: discussões sobre uma especialidade médica. 2007. 116 p. Dissertação (Mestrado) - Pós-Graduação em Saúde Pública, Universidade Federal de Minas Gerais, 2007.; LOPES, 2009LOPES, J. M. C. História da medicina de família e comunidade. In: Manual da oficina para capacitar preceptores em medicina de família e comunidade. Florianópolis: Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 2009 p. 35-40.; OLIVEIRA et al., 2014) e no mundo (PORTER, 2001PORTER, R. História Ilustrada da Medicina - Cambridge. Rio de Janeiro: Revinter, 2001.; GUTIERREZ; SHEID, 2002GUTIERREZ, C.; SCHEID, P. The history of family medicine and its impact in US health care delivery. In: PRIMARY CARE SYMPOSIUM. 2002, São Diego, Califórnia. Anais eletrônicos… São Diego, Califórnia: University of California 2002 v. 29. Disponível em: <http://www.aafpfoundation.org/online/etc/medialib/found/documents/programs/chfm/foundationgutierrezpaper.Par.0001.File.tmp/foundation-gutierrezpaper.pdf>. Acesso em: 3 set 2016.
http://www.aafpfoundation.org/online/etc...
) indicam a institucionalização da MFC enquanto especialidade médica, a partir da segunda metade do século XX.

Vale ressaltar que a constituição da APS, em especial a partir do início do século XX, institucionalizou, em diferentes modelos assistenciais, a prática médica generalista, ainda que não diretamente a formação da especialidade médica enquanto tal. Podemos citar, por exemplo, a figura central dos GPs - General Practitioners - na estruturação do sistema de saúde britânico, presentes desde o Relatório Dawson, de 1920.

Uma revisão histórica da medicina de família (“family medicine”) nos EUA (GUTIERREZ; SHEID, 2002GUTIERREZ, C.; SCHEID, P. The history of family medicine and its impact in US health care delivery. In: PRIMARY CARE SYMPOSIUM. 2002, São Diego, Califórnia. Anais eletrônicos… São Diego, Califórnia: University of California 2002 v. 29. Disponível em: <http://www.aafpfoundation.org/online/etc/medialib/found/documents/programs/chfm/foundationgutierrezpaper.Par.0001.File.tmp/foundation-gutierrezpaper.pdf>. Acesso em: 3 set 2016.
http://www.aafpfoundation.org/online/etc...
) afirma que a primeira menção oficial do termo como especialidade médica foi encontrada em três relatórios distintos do ano de 1966, respondendo à crescente superespecialização médica da época e encomendados por associações médicas e governamentais. Um deles caracterizava o médico de família como um médico que teria “como foco não órgãos individuais e sistemas, mas o homem como um todo, que vive num cenário complexo... e sabe que o diagnóstico e o tratamento de uma parte apenas frequentemente negligenciam fatores causais maiores e oportunidades terapêuticas” (1966, p. 9, tradução livre).

A emergência da MFC enquanto especialidade no Brasil se dá especialmente a partir da década de 1970, quando os programas de Medicina Comunitária (MC) tomam corpo, formulados e executados por profissionais de diferentes especialidades, como Clínica Médica, Medicina Interna, Psiquiatria, Pediatria, e também de dentro dos departamentos de Medicina Preventiva e Social.

As primeiras residências foram criadas em 1976, com o nome de Medicina Geral e Comunitária, denominação da especialidade no país até 2001, ano de alteração para seu nome atual (MFC), por decisão dos membros da Sociedade Brasileira de MFC, entidade fundada em 1981 (FALK, 2004FALK, J. W. A medicina de família e comunidade e sua entidade nacional: histórico e perspectivas. Rev Bras Med Fam Com, v. 1, n. 1, p. 5-10, 2004.). Para confirmar o novo nome da especialidade, foi realizada uma eleição por e-mail em dois turnos, com a presença de 53 dos 120 médicos que integravam uma lista de discussão nacional. Entre abril e maio de 2001, foi decidido que seria batizada Medicina de Família e Comunidade.

Bonet (2014BONET, O. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina de família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.) afirma que tal batismo tomou proporções de um “rito de consagração”, um processo que delimitou “um antes e um depois” essencial aos rituais de passagem e contribuiu para a especialidade ganhar “peso social” e converter-se em “interlocutora e porta-voz de sua categoria profissional” (p. 188).

Interessante notar que essa decisão tardia ainda é alvo de tensões entre diferentes atores da MFC no Brasil. Um dos entrevistados conta que “queriam formar essa residência em medicina comunitária, não era medicina de família, esse nome [medicina de família] é abominável” (E1); outro, ao se referir na entrevista à MFC, a cada momento utilizava uma nomenclatura diferente, até que em um momento da entrevista, chegou a gargalhar diante da dificuldade em acertar o nome decidido em 2001: “é o médico da atenção primária. A medicina de saúde da família. Família e comunitária. O nome que tiver” (E4).

Há, nesse processo de decisão do nome, a necessidade de diferenciação explícita dos campos da Medicina Preventiva e Social e da Medicina Comunitária, tensão importante na formação do campo da Saúde Coletiva (SC) no Brasil. Ainda que com influências e formação distintas, ambos propunham caminhos alternativos entre si para a organização da assistência em saúde, em resposta ao modelo hegemônico centrado no cuidado hospitalar, ineficiente e incapaz de responder às iniquidades sociais (CARVALHO, 2005CARVALHO, S. R. Saúde Coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec, 2005.).

A MC inicia-se nos Estados Unidos a partir da década de 1960, como resposta à lacuna da organização dos serviços assistenciais entre a medicina empresarial e a pública, atuando em uma população que era pouco atingida pelo mercado e desassistida por programas estatais prévios. Tinha como uma das principais justificativas a “integração” dos marginalizados da sociedade em “comunidades”, articuladas em um sistema específico de normas com unidade e coesão, aspiração da sociologia funcionalista de Talcott Parsons (DONNANGELO, 1976; PAIM, 1976PAIM, J. S. Medicina comunitária: introdução a uma análise crítica. Saúde debate, v. 1, p. 9-12, 1976.).

Podemos caracterizar a MC a partir de um conjunto de elementos: 1) coletivismo restrito - reduzindo a clínica a uma comunidade local, onde haveria uma dinâmica própria, distinta da sociedade como um todo, e um consenso integrado de interesses; 2) integração de atividades de promoção, prevenção e cura, a grupos entendidos como “vulneráveis e de risco”; 3) desconcentração de recursos; 4) hierarquização do acesso a partir de um nível primário, sem pressupor necessariamente a organização de uma rede de serviços; 5) adequação de tecnologias acessíveis e disponíveis; 6) inclusão de práticas médicas “alternativas” - a partir de distintas racionalidades, além da biomédica; 7) utilização de equipe de saúde multiprofissional e 8) participação comunitária (SILVA JÚNIOR, 1998SILVA JÚNIOR, A. G. Modelos tecnoassistenciais em saúde: o debate do campo da Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec, 1998.).

Citamos alguns dos marcos da história da MC no Brasil na década de 1970:

  1. em 1972, o Laboratório de Estudos de Medicina Comunitária, criado na Unicamp, elabora o programa do Centro de Saúde-Escola de Paulínia, para a implantação de um “sistema de atenção materno-infantil, clínica de família e medicina comunitária” (MELLO, 1979MELLO, A. R. Medicina comunitária em Campinas e suas múltiplas dimensões: um estudo de caso. 1979. 122 p. Dissertação (Mestrado) - Pós-Graduação em Ciências Sociais, UNICAMP, Campinas, 1979.);

  2. em 1974, é criado o projeto de um Sistema de Saúde Comunitária, no Centro de Saúde Murialdo (Porto Alegre - RS), e dois anos após o programa de Residência em Medicina Geral e Comunitária (BUSNELLO, 1977BUSNELLO, E. O projeto do Sistema de Saúde Comunitária - Unidade Sanitária Murialdo. Porto Alegre, 1977.; FALK, 2004FALK, J. W. A medicina de família e comunidade e sua entidade nacional: histórico e perspectivas. Rev Bras Med Fam Com, v. 1, n. 1, p. 5-10, 2004.);

  3. em 1975, implanta-se o Projeto Montes Claros no Vale do Jequitinhonha, que tinha como base a atuação comunitária em saúde (TEIXEIRA, 1985TEIXEIRA, S. M. F. (Org.). Projeto Montes Claros: a utopia revisitada. Rio de Janeiro: Abrasco, 1985.);

  4. em 1976, implementa-se o subprograma de internato e residência em Medicina Geral e Comunitária em Hospital Regional Rural do Programa de Saúde Comunitária do Projeto Vitória, da Universidade Federal de Pernambuco, em Vitória de Santo Antão, próximo a Recife/PE - extinto em 1983;

  5. em 1976, é iniciado o Serviço de Medicina Integral da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que teve uma atuação em uma área de Nova Iguaçu (RJ), e a criação, no mesmo ano, da Residência em Medicina Geral e Comunitária (MGC) (NORONHA, 1977NORONHA, J. C. et al. Transformações de um ambulatório de medicina integral com vistas a um programa de atenção médica primária: a experiência do Hospital de Clínicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Revista de Saúde Pública. São Paulo, v. 11, n. 4, p. 429-443, dez. 1977.);

  6. em 1977, o Departamento de Medicina Preventiva e a disciplina de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP organizam o Seminário “Medicina Comunitária e Ensino”, sob o patrocínio do convênio Kellogg/USP-Pediatria;

  7. em 1978, inicia-se a Residência em Medicina Geral e Comunitária em Mariana (MG) (SÓL, 2011SÓL, N. A. A. A medicina geral comunitária no Brasil: uma análise institucional sócio-histórica de sua trajetória enfocando programas específicos. 2011. 252 p. Tese (Doutorado) - Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.).

Tais programas experimentais apresentavam uma série de contradições. Por um lado, foram financiadas por organizações dos países centrais (por exemplo, a Fundação Kellogg e Ford), diretamente apoiadas pelo governo americano, e carregavam nelas concepções focalizadas e restritas dos serviços de saúde e elementos do modelo liberal da prática médica, o que resultou em críticas profundas do movimento sanitário latino-americano.

Ao mesmo tempo, em um contexto em que tomava corpo, uma série de lutas políticas contrárias à ditadura civil-empresarial-militar, incluindo a clandestinidade e a luta armada, uma quantidade expressiva de profissionais optaram por atuar como médicos em tais programas, formando uma geração de médicos denominados “generalistas”.

Assim, é preciso observar como a história da MFC se correlaciona com a do movimento sanitário, da formação da Saúde Coletiva e que relações podem ser estabelecidas entre essas experiências e essas relações no discurso atual da especialidade.

Relações discursivas entre a MFC e a Saúde Coletiva

Como já dito, pensamos a MFC a partir das relações discursivas que ela estabelece tanto para produzir sua própria identidade, como para se relacionar com outros campos de enunciação.

No que tange à MC, ao comentar sobre a relação histórica da MFC com esses programas, a caracterização das escolhas dos médicos ao ingressarem nesses como uma opção declaradamente política e de esquerda foi comum nas entrevistas. Um médico de família entrevistado ilustra essa militância:

A gente trabalhou com a igreja, a gente publicou apostilas, cadernos de educação popular com a igreja em 1980, então tem um monte de coisa, essa linha que a gente trabalhava. Consequentemente, uma linha francamente antiditadura militar e ideológica. Para nós, a medicina comunitária era uma opção ideológica (E1).

Em outro momento, outro entrevistado afirma que, ao atuar nos programas de MC, “teve gente [que] aproveitou isso pra fazer política, ia lá conscientizar o povo, organizar abaixo-assinado” (E4). Outro afirmou, no mesmo sentido, que os médicos iam para atuar na atenção primária, “mas também pra fazer um conjunto de ações com aquelas populações, estar junto com elas, com as classes populares...” (E6).

Era uma situação paradoxal: parte dessa atuação “ideológica” incluía uma crítica profunda ao próprio modelo restrito e focalizado dos programas de MC, que não pressupunham a constituição de um sistema universal e público de saúde. Além disso, havia diversos atores que participavam diretamente das experiências e, ao mesmo tempo, eram críticos às instituições que financiavam as atividades. Isso gerou uma série de embates no interior dos programas. Por exemplo, um dos entrevistados diz:

A gente aprendeu nessa época que a Medicina Comunitária tinha nascido dos guetos dos Estados Unidos, para atender a população pobre e a gente não defendia isso [...] O diretor da Residência de Medicina Geral e Comunitária [de Murialdo] queria abrir consultórios de Medicina Comunitária, eu digo “consultório coisa nenhuma, nós estamos tentando construir um sistema de saúde, queremos o SUS e não consultório” (E1).

Essa disputa do “comunitário”, como instrumento de conscientização política e transformação social, aparece mais de uma vez nas falas analisadas. Num sentido oposto, um dos médicos de família entrevistados chega a assegurar:

Eu não sou o cara que vai lá mudar os determinantes sociais. É a política que me colocou lá que vai. E nisso, eu acho que tem alguma confusão, tem pessoas que acreditam que a gente consiga... é uma visão bastante utópica, idílica, um pouco naive [ingênua], assim, um pouco inocente (E2).

O mesmo entrevistado, ao ser indagado qual seria o sentido do “comunitário”, na sua perspectiva, afirma que “na verdade, o comunitário é quando você é o médico de referência daquela região, daquela comunidade, tem que estar atento pra questões epidemiológicas que surjam ali...” (E2).

Os dois últimos trechos citados dialogam diretamente com os anseios de parte dos médicos recém-formados, que ainda optam pela MFC num sentido ético e político de transformação do status quo. Para esse entrevistado, tal decisão foi qualificada como “ingênua”. O que está pressuposto nesse juízo de valor é a delimitação explícita entre uma política normativa já instituída e uma atuação clínica restrita, subordinada à primeira. Nesse discurso, a dimensão comunitária da prática da MFC é reduzida a um mero instrumento epidemiológico de análise do território e da população. Em outras palavras, seriam as políticas instituídas que poderiam transformar a sociedade; a atuação clínica representaria apenas um aspecto técnico dessas políticas e o componente territorial da MFC responderia essencialmente à dimensão de análise populacional.

A própria atuação nos determinantes sociais foi motivo de uma resposta irônica de um dos entrevistados: “você deixa de ser médico e vai... sei lá, tá tendo muito acidente de trânsito na comunidade, então o que você tem que fazer é consertar as placas de trânsito” (E5). O mesmo entrevistado, ao ser questionado sobre a dimensão comunitária da MFC, responde que:

A questão de ser comunitária é a parte boa, não tem problema. É a parte assistencial que acontecia lá na comunidade que era muito boicotado. Os sanitaristas diziam que era perda de tempo atender as pessoas, porque o que importava era a população. Você olhar o todo. E aí foi fugindo muito do consultório (E5).

Aí aparece uma das principais tensões entre o campo contemporâneo da MFC e da Saúde Coletiva. Mais do que os diferentes significados que o “comunitário” assume nos discursos em análise, é comum ouvir tanto nas entrevistas quanto em conversas com médicos de família que a principal diferença entre a MFC e a Saúde Coletiva seria que a primeira teria como aspecto central a clínica individual e a segunda seria referente às práticas populacionais, de planejamento e gestão. Um dos entrevistados afirmou que a MFC, por ficar atrelada à SC, padecia do problema de que “muita gente acabava fazendo medicina de família por não ser muito afeito à clínica, a ser bom clínico” (E2).

Essa crítica não foi exclusiva dos médicos vinculados ao campo atual da MFC. Um dos pesquisadores da Saúde Coletiva entrevistados afirmou que “a SC desvalorizou a clínica. E valorizou muito a promoção de saúde, a transformação social, a cidadania” (E4). Parte dessa desvalorização da clínica de fato estava presente em parte do pensamento sanitário que entendia a saúde populacional atrelada ao desenvolvimento econômico e à racionalização estatal das práticas sanitárias, desconsiderando as singularidades das práticas clínicas (MERHY, 1987MERHY, E. E. O Capitalismo e a Saúde Pública. Papirus: São Paulo, 1987.).

No entanto, é possível observar formulações críticas ao pensamento sanitário, por exemplo, em experiências como o LAPA (Laboratório de Planejamento e Administração em Saúde) e da corrente Em Defesa da Vida, sediados na UNICAMP e com importante irradiação nacional. Criticando o distanciamento entre gestão e clínica de modelos assistenciais propostos por outros formuladores, em especial no âmbito da APS, tais formulações influenciaram uma geração de profissionais de saúde, gestores e pesquisadores no campo da saúde, problematizando os processos tradicionais de gestão da clínica e do cuidado (CARVALHO, 2005CARVALHO, S. R. Saúde Coletiva e promoção da saúde: sujeito e mudança. São Paulo: Hucitec, 2005.).

Além de tornar possíveis proposições inovadoras, como o método Paideia, a Clínica Ampliada e a Micropolítica do Trabalho e o Cuidado em Saúde, esse movimento também trouxe à tona a necessidade de pensar diretamente a atuação clínica e a formação médica (e em saúde, em geral) na APS como um todo e, posteriormente, no interior da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Nesse sentido, influenciou uma série de gestores do Ministério da Saúde, que impulsionaram, direta ou indiretamente, o processo de inserção e consolidação da MFC, no âmbito da Atenção Básica.

Entretanto, não observamos um diálogo potente entre as formulações sobre clínica e gestão na APS no interior da SC e da MFC nos dias de hoje. É raro, inclusive, encontrar referências a autores mais vinculados à SC nos textos acadêmicos da MFC, e vice-versa. A lamentável ausência desse diálogo reforça uma tendência de isolacionismo e autossuficiência da produção de conhecimento contemporâneos, visível em ambos os campos.

Tal distanciamento nos motivou a investigar como MFC e a SC enxergam essa relação, a partir das entrevistas realizadas. Um dos entrevistados vinculados à SBMFC afirmou que “a Saúde Coletiva sempre tentou pautar a MFC dizendo que a gente tinha que cuidar de populações e na verdade nosso foco são as pessoas, não são nem as doenças nem as populações” (E5). O mesmo entrevistado diz que a MFC “patinou muito tempo”, mas agora “está mais livre pra traçar os seus próprios caminhos” (E5). Acusa-se aqui a SC de historicamente tentar subjugar a MFC e comemora-se, enfim, uma libertação desta em relação àquela.

Num outro extremo, houve médicos de família e comunidade que colocaram a MFC como “filha” e “herdeira legítima” da SC. Foi possível ouvir de um deles que “A SC, a meu juízo, gerou a MFC [...] A Saúde Coletiva é pai da Medicina de Família e Comunidade” (E1). A ideia de paternidade aqui comparece de forma inusitada, se pensada ao lado do discurso que afirmou que a MFC estaria finalmente livre para traçar seus próprios caminhos.

Um pesquisador da SC afirmou que “A SC tem que ser campo de todas as profissões e especialidades. Umas mais que as outras. A mais é a MFC” (E4). Reitera-se, aqui, o papel que caberia à SC de estar presente de forma ativa na formação e nas práticas familiares e comunitárias e na constituição do campo discursivo da MFC.

Situando-se num meio termo, houve também a afirmação da relação entre MFC e SC como fraterna. Uma entrevistada vinculada à SBMFC afirmou que elas seriam “coirmãs”, situando a MFC “na interface entre a Medicina Interna, Clínica e a Saúde Coletiva. A MFC trata das questões da coletividade, mas da perspectiva da clínica da pessoa”. E terminou dizendo que considerava “o campo da SC fundamental, estratégico e extremamente necessário. Ele não se opõe e nem prescinde da MFC. Talvez a SC seja muito mais abrangente” (E3).

Outros dois entrevistados, médicos com passagem pelo Ministério da Saúde diretamente na gestão da Atenção Básica, reconhecem as diferenças entre os campos, e afirmam a necessidade de a SC apoiar a MFC a pensar o sistema de saúde e o seu próprio processo de trabalho, “em especial pra ampliar a capacidade do MFC de organizar seu processo de trabalho, de planejar no espaço que tá inserido em seu serviço e pra poder fazer intervenções coletivas além de trazer epidemiologia clínica” (E6).

A relação entre os dois campos suscitou por parte dos entrevistados um interessante deslocamento. Durante a pergunta, a MFC foi caracterizada diversas vezes como um campo clínico e científico pertencente à APS, distanciando-a de uma Saúde Coletiva, vista como um campo de formulações políticas e administrativas, ainda que não a descartando necessariamente.

O futuro (em aberto) da MFC no Brasil

Nas entrevistas realizadas, foi comum a identificação da MFC enquanto “a” especialista em APS. Um entrevistado afirmou que o médico de família é central “desde que se entenda dentro do sistema público de saúde, onde a atenção básica é ordenadora e tem papel fundamental na rede” (E8). Essa ideia de “especialista” em APS aparece com frequência no campo discursivo da MFC (ANDERSON et al, 2005ANDERSON, M. I. P.; GUSSO, G.; CASTRO FILHO, E. D. Medicina de Família e Comunidade: especialistas em integralidade. Revista APS, v. 8, n. 1, p. 61-67, 2005.).

É precisamente no centro dessa formulação que julgamos estar um dos “nós” dessa trama discursiva. A apropriação da APS, enquanto campo privilegiado de enunciação e especialidade, é uma das manifestações mais visíveis da identidade atual da MFC. Quando a MFC se afirma como “A” especialista em APS, parece-nos que o termo “especialista” não se refere apenas à profissão médica e suas diferentes especialidades, mas como a “expert” sobre APS no campo da saúde. E, portanto, portador de uma legitimidade diferenciada de qualquer outra formação em saúde, para formular e executar políticas nesse âmbito.

Interessante que ao mesmo tempo que traça esse caminho, especialmente no plano político, afirma como seu principal diferencial em relação à SC seu arcabouço clínico e científico. Paradoxalmente, a própria separação entre clínica e política, temática fundamental à constituição da SC, aparece como um instrumento político para não transparecer enquanto tal e assumir as vestes de um campo prático e científico. Ou seja, quando a MFC aparece enquanto uma sociedade científica autônoma e com uma história absolutamente única, distinta da que formou a SC, e conectada ao ideário internacional de APS, ela pretende assumir a figura de uma formação discursiva independente e capaz de apontar sozinha caminhos para a organização de serviços de saúde no Brasil (GUSSO et al. 2015GUSSO, G. D. F. et al. Bases para um Novo Sanitarismo. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, v. 10, n. 36, 30 set. 2015.).

Nesse percurso, vem apresentando dubiedades no que se refere às pautas históricas do movimento sanitário e na defesa de um sistema de saúde público, universal e antiprivatista. Isso também se revela quando a especialidade se incorpora ao sistema suplementar, reforçando a dimensão liberal do trabalho médico e construindo-se à margem de um sistema público de saúde e de uma APS qualificada. Daí a necessidade de observarmos a emergência histórica do campo discursivo da MFC a partir de suas interseções com a formação da SC, particularmente no que tange às experiências de Medicina Comunitária e ao desenvolvimento da prática médica familiar e comunitária e dos serviços primários de saúde pelo mundo e no Brasil.

Pensar a complexa formação discursiva da Medicina de Família e Comunidade - ora desconhecida ora omitida - pode nos ajudar a reposicionar o debate, evidenciar suas tensões e heterogeneidades e evitar cristalizações institucionais, ancoradas em associações e entidades. Num contexto de retrocessos ao processo de universalização e qualificação do direito à saúde no país, essa análise crítica pode nos ajudar a produzir caminhos potentes para a produção de práticas clínicas que defendam, fortaleçam e qualifiquem a Atenção Primária e o SUS.44H. S. de Andrade, M. G. de M. Alves, S. R. Carvalho e A. G. Silva Júnior foram igualmente responsáveis pela coleta dos dados, redação, revisão e formatação do artigo.

Referências

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  • 1
    Médicos de família passam a fazer atendimento particular personalizado - 28/01/2015 - Equilíbrio e Saúde - Folha de S. Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2015/01/1581446-medicos-de-familia-passam-a-fazer-atendimento-particular-personalizado.shtml>. Acesso em: 5 jul. 2017.

  • 2
    Saúde grátis para todos? Disponível em: < https://www.uol/economia/especiais/entrevista-uol-lideres-orestes-pullin-unimed-do-brasil.htm#saude-gratis-para-todos>. Acesso em: 10 mai. 2017. Orestes Pullin, presidente da Unimed do Brasil, afirma que sua instituição está “criando o médico de atenção primária porque não existe isso no país. Então, nós estamos estimulando para que as residências [cursos] de atenção primária à saúde ou de médico de família no Brasil realmente formem profissionais”.

  • 3
    A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), pelo Parecer Consubstanciado nº 1.546.334.

  • 4
    H. S. de Andrade, M. G. de M. Alves, S. R. Carvalho e A. G. Silva Júnior foram igualmente responsáveis pela coleta dos dados, redação, revisão e formatação do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2018

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2017
  • Revisado
    19 Maio 2018
  • Aceito
    22 Jun 2018
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