O dia em que a vida parou. Expressões da colonialidade em tempos de pandemia

FLÁVIA SOUZA Sobre o autor

O dia 16 de março de 2020 fica marcado, pelo menos para o povo carioca, como o dia em que o tempo entra em suspensão. A vida parou em uma das cidades mais solares do Brasil. Escolas, universidades, comércio não essencial suspenderam suas atividades, pelo período inicial de 15 dias. A tentativa era de frear o espectro da morte causada por um vírus novo que se aproximava e ameaçava entrar em um curso frenético e incessantemente cruel de adoecimento e morte em massa.

Havia meses que assistíamos ao estrago causado pelo espectro em seu percurso mortal pela China, Coreia do Sul e no continente europeu. As notícias de quinhentas, seiscentas, setecentas mil mortes por dia causava-nos o assombro e a automática previsão do impacto da doença em terras tupiniquins. Nós paramos. Nós paramos? Não. O “nós”, refiro-me a uma pequena parcela privilegiada da força de trabalho que teve condições de manter suas funções de maneira remota, pois encontram-se entre a classe mais escolarizada e qualificada.

Neste pequeno ensaio, gostaria de refletir sobre aspectos da colonialidade no cenário atual de pandemia do novo coronavírus. Pode-se dizer que a colonialidade do poder tem nos moldado desde quando, no plano jurídico-político, nos tornamos nação brasileira. Aníbal Quijano cunhou esse conceito no final dos anos de 1980, início dos anos de 1990, e refere-se ao padrão mundial de produção capitalista que está sustentado na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo (QUIJANO, 2009QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. cap. 2, p. 73-118., p. 73). Segundo Quijano, a construção da ideia de raça legitimou relações de dominação e impôs à população negra a condição de força de trabalho superexplorada - consolidada no período escravocrata.

Essa estrutura instituída pelo colonialismo e perpetuada pela colonialidade nos deixou o legado, enquanto população negra brasileira, do não acesso a direitos sociais básicos como educação, saúde e trabalho digno. É correto dizer que alguns de nós, povo negro, conseguimos certa emancipação no plano individual. Eu, nesse momento, tenho a possibilidade de me retirar do mundo porque os brancos já não podem mais me matar de fome. Entretanto, essa realidade é muito diferente da maioria da população negra deste país, sobretudo as mulheres negras. São elas, chefes de família, que saem à rua pela manhã para trabalhar e para comprar o feijão que alimentará seus filhos à noite. Mas o que fazer diante da ameaça de um vírus mortal que exige que nos resguardemos em casa para evitarmos o risco da contaminação, sendo que na maioria das vezes são as mulheres responsáveis pelo sustento de toda uma família? Nessa urgência em alimentar os seus, as mulheres-mães, como força de trabalho superexplorada, se jogam à própria sorte, restando apenas pedir aos orixás que as protejam.

A história que narro a seguir considero uma das expressões mais claras da colonialidade. Em meio à atual conjuntura da pandemia da Covid-19, assistimos, através de nossos televisores de 56 polegadas e aconchegados em nossos sofás retráteis, ao primeiro caso de morte por Covid-19 notificado no estado do Rio de Janeiro.

Uma mulher, negra, empregada doméstica que estava trabalhando na casa dos patrões no Alto Leblon (Zona Sul do Rio de Janeiro) e contraiu o vírus da patroa que acabara de chegar de uma viagem à Europa. A patroa não fez o isolamento social de 14 dias recomendado por especialistas, para que se evitasse a transmissão da doença. Ela continuou com os empregados em casa, servindo-a enquanto transmitia o vírus. O problema é que a empregada, além de ter 63 anos, possuía comorbidades importantes, o que fez com que a doença se agravasse ainda mais rápido. Após alguns dias ela foi internada em um hospital público na cidade onde morava, Miguel Pereira, a 120 km do seu local de trabalho.

Fiquei algum tempo pensando que se a patroa tivesse custeado a internação daquela senhora em um hospital da rede privada, em que teria tido acesso mais rápido ao teste, talvez ela tivesse sobrevivido. O caso é que mesmo tendo trabalhado por mais de 20 anos para aquela família, sua vida tinha tão pouco valor para aquelas pessoas que quando os patrões descobriram que a empregada estava doente, mandaram-na embora para casa, sem querer saber se ela teria condições de tratamento adequado.

Depois de intensa pesquisa, consegui saber o nome dessa senhora que veio a falecer por conta da doença. Ela se chamava Cleonice Gonçalves, mas somente descobri seu nome depois que achei um vídeo de uma matéria que passou na televisão, em que seu sobrinho contava a história em detalhes. Nas matérias dos jornais não havia menção ao nome, mas sua profissão e idade apareceram como nomeadores. ‘’Empregada doméstica de 63 anos morre vítima do novo coronavírus.’’ O mais assustador é que os parentes de dona Cleonice disseram aos jornais que ela não sabia que a patroa havia sido infectada pela doença em ocasião de recente viagem à Itália (MELO, 2020MELO, M. L. Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou o coronavírus da patroa no Leblon. Notícias Uol, Rio de Janeiro, 17 mar. 2020. Rio, p. 1-2. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-coronavirus-da-patroa.htm>. Acesso em: 18 abr. 2020.
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).

Achille Mbembe (2020b______. Pandemia democratizou o poder de matar, diz autor da teoria da necropolítica. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 mar. 2020b. Mundo, p. 1-2. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml>. Acesso em: 18 abr. 2020.
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), em entrevista para a Folha de São Paulo, disse que ‘’A pandemia democratizou o poder de matar’’. Segundo o filósofo camaronês, o corpo de cada um, ricos e pobres, negros ou brancos, tornou-se uma arma letal com igual poder de causar a morte. Todavia, é importante ressaltar que a maior probabilidade de morte ainda tem gênero, raça, classe e território. A história de transmissão da doença que matou a dona Cleonice demonstra de maneira cabal quais são e onde estão localizados os corpos que são mais suscetíveis a morrer.

Em outras palavras, a colonialidade tem tido seus desdobramentos. Temos vislumbrado o conceito de Aníbal Quijano - colonialidade do poder - diariamente, pois, atualmente sofremos com o desabastecimento de insumos de saúde. De equipamentos de proteção individual (EPIs) a medicamentos e testes diagnósticos, a China tem concentrado suas vendas para a Europa e Estados Unidos. Sendo assim, por aqui não chegam testes para toda a população, tampouco EPIs em quantidade suficiente para os trabalhadores da saúde.

A colonialidade também instituiu desigualdades abissais no mesmo espaço territorial, e isso faz com que a propagação da doença e o número de mortes se expressem de maneira bem distintas dentro de um mesmo espaço demográfico. Isso quer dizer que existem regiões no Rio de Janeiro em que a probabilidade de morte cresce em relação a outras regiões em que as chances de morrer por Covid-19 são bem menores. O acesso a direitos básicos - que fazem total diferença na letalidade da doença - como água, moradia e uma rede de saúde minimamente estruturada, está ausente para uma grande parte da população do Rio de Janeiro, fazendo com que as chances de não se contaminar ou até mesmo de sobreviver à doença sejam muito pequenas em determinadas regiões da cidade.

A região da Baixada Fluminense, por exemplo, que é o lugar de onde estou olhando o desenrolar da epidemia do coronavírus, apesar de 75% dos domicílios terem acesso a água encanada, não significa efetivamente que as pessoas tenham água em suas casas (SIMPÓSIO, 2014). São históricas a falta e as manobras de água realizadas na região, ou seja, é comum os moradores receberem água apenas 1 a 2 vezes por semana. Isso dificulta a implementação das medidas de prevenção e controle da doença especificamente nas localidades em que o acesso à água é muito dificultado.

Com relação aos leitos hospitalares, o Consórcio Intermunicipal de Saúde da Baixada Fluminense (Cisbaf) fez um levantamento em 2018, em que demonstrou um cenário dramático. De acordo com o consórcio, baseado em dados do Ministério da Saúde, a região tem um déficit de 7 mil leitos hospitalares (CRUZ, 2018CRUZ, C. Baixada Fluminense tem déficit de 7 mil leitos hospitalares, afirma Consórcio Intermunicipal de Saúde. Jornal Extra, Rio de Janeiro, 2 ago. 2018. Baixada, p. 1-2. Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/rio/baixada-fluminense-tem-deficit-de-sete-mil-leitos-hospitalares-afirma-consorcio-intermunicipal-de-saude-22941122.html>. Acesso em: 18 abr. 2020.
https://extra.globo.com/noticias/rio/bai...
). Com uma população de aproximadamente 4 milhões de habitantes, e com apenas três grandes hospitais de referência, temos apenas 0,6 leito para cada mil habitantes. Se compararmos a estrutura da Baixada Fluminense com a da rede de saúde do município do Rio de Janeiro, que possui 17 grandes unidades hospitalares para atender 6 milhões de habitantes, a conta fecha em 1,5 leito para mil habitantes.

Quanto à distribuição de respiradores pulmonares - equipamento imprescindível para a sobrevivência de pacientes graves com Covid-19 -, segundo dados do DataSus na Macrorregião de Saúde II, que engloba os municípios da Baixada Fluminense, existem 699 aparelhos, incluindo rede pública e privada. Já no município do Rio de Janeiro, existem 4.327 respiradores pulmonares em sua rede de saúde.22Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?cnes/cnv/equipoRJ.def>.

Não obstante, ao utilizar o descritor ‘’estabelecimentos com equipamentos do SUS’’ no banco de dados do DataSus, a quantidade total de respiradores é a seguinte: o estado do Rio de Janeiro tem o total de 451 aparelhos. O município do Rio de Janeiro possui 132 ventiladores pulmonares, e a região da Baixada Fluminense totaliza apenas 73 respiradores distribuídos nos hospitais da rede pública de saúde.33Disponível em: < http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?cnes/cnv/equiporj.def>. Ou seja, são 73 respiradores para atender a 13 municípios que compõem a região da Baixada Fluminense e aproximadamente 4 milhões de pessoas. A garantia do ‘’direito à respiração’’, em caso de agravamento da doença pelo Covid-19 para os moradores da Baixada Fluminense, fica muito mais difícil de ser assegurado.

É importante expor esses dados ao debate, pois assim vislumbramos o quanto há localidades no Brasil em que as condições de sobrevivência frente a uma doença, que depende de acesso a leitos de UTI, respiradores pulmonares, medidas profiláticas como lavagem das mãos, medidas relativamente simples, não são possíveis de serem tomadas/acessadas pelo conjunto da população. De todo modo, o atual momento nos sinaliza, na minha opinião, uma profunda mudança na lógica de mundo. Talvez tenhamos chegado ao momento em que uma parte da humanidade, que durante séculos condenou a outra parte à morte, tenha que se haver com sua iminente finitude. Achille Mbembe, em recente artigo, faz-nos a seguinte advertência:

[...] em breve, contudo, não será mais possível delegar a própria morte a outras pessoas. Elas não morrerão mais em nosso lugar. Seremos simplesmente, condenados a assumir, sem mediação, nosso próprio falecimento (MBEMBE, 2020aMBEMBE, A. O direito universal à respiração. N-1 edições, São Paulo, p. 1-10, 30 mar. 2020a. Disponível em: <https://n-1edicoes.org/020>. Acesso em: 19 abr. 2020.
https://n-1edicoes.org/020...
).

Como assinalam Castro-Gomez e Grosfoguel (2007), a tríade modernidade-colonialidade-descolonialidade nos auxilia na compreensão da transição do colonialismo moderno à colonialidade global, processo que certamente transformou as formas de dominação derivadas da modernidade, mas não modificou efetivamente a estrutura das relações centro-periferia em escala mundial.

Em outras palavras, o mito da modernidade que consolidou a Europa como o ‘’centro’’ e as Américas como a ‘’periferia’’ também nos trouxe uma lógica de organização de mundo que para nós, sujeitos colonizados, significou a condenação à morte. Pois, o colonialismo nos impôs a degradação da natureza, o genocídio do povo indígena, a escravização e morte dos negros em diáspora. E a colonialidade assegurou que essa estrutura se perpetuasse aos dias atuais promovendo a manutenção da estrutura de sociedade introjetada há mais de 500 anos. Hoje, a depredação dos nossos recursos naturais continua em marcha acelerada, ainda com a justificativa ‘’do desenvolvimento’’, mas sob os contornos da expansão do agronegócio. Levando a destruição de enormes áreas de preservação ambiental e ao assassínio de nossos povos indígenas. É como se fosse um eterno ciclo de destruição e morte no qual estamos enredados e de que jamais conseguiremos sair.

Retomando Mbembe, talvez tenhamos chegado mesmo ao momento da prestação de contas. Não existe mais a possibilidade de alguns empurrarem outros para morrerem em seu lugar. Vivemos todos em suspensão porque, hoje, a ameaça está à espreita.

Referências

  • 2
    Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?cnes/cnv/equipoRJ.def>.
  • 3
    Disponível em: < http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?cnes/cnv/equiporj.def>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    21 Abr 2020
  • Aceito
    24 Abr 2020
  • Revisado
    26 Abr 2020
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