Repercussões da pandemia na saúde das crianças brasileiras para além da Covid-19

Aisiane Cedraz Morais Juliana de Oliveira Freitas Miranda Sobre os autores

O mundo contemporâneo tem experimentado, nos últimos meses, um contexto de pandemia provocado pelo vírus SARS-CoV-2 que surgiu na cidade de Wuhan, China, no final de dezembro de 2019 (ZHU et al., 2020ZHU N. et al. A Novel Coronavirus from Patients with Pneumonia in China, 2019. The New England Journal of Medicine, v. 382, n. 8, p. 727-733, 2020. DOI: 10.1056/NEJMoa2001017. Available at: https://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMoa2001017. Retrieved: 21 May 2020.
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). Os primeiros casos foram referidos como um surto de pneumonia de origem desconhecida que poderia cursar com uma síndrome respiratória aguda grave. Logo foi confirmado que se tratava de uma doença infectocontagiosa causada por um novo tipo de coronavírus (ZHU et al., 2020; LU et al., 2020LU, R. et al. Genomic characterisation and epidemiology of 2019 novel coronavirus: implications for virus origins and receptor binding. Lancet, v. 395, n. 8, p. 565-574, 2020. DOI: 10.1016/ S0140-6736(20)30251-8. Available at: <https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(20)30251-8.pdf>. Retrieved: 21 May 2020.
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).

As maiores taxas de letalidade da doença causada pelo SARS-CoV-2, a Corona Virus Disease 2019 (Covid-19), têm sido majoritariamente associadas a pacientes idosos ou à presença de comorbidades que potencializam um estado grave da doença. O espectro clínico da infecção humana ainda não está completamente estabelecido, assim como não é possível determinar fielmente seu padrão de letalidade, mortalidade, infectividade e transmissibilidade (BRASIL, 2020a). Entretanto, a partir dos estudos sobre a Covid-19 na faixa etária pediátrica, é consenso afirmar que, na grande maioria das crianças, a doença tem se apresentado de forma assintomática ou com sintomas leves a moderados (VILELAS, 2020VILELAS, J.M.S. O novo coronavírus e o risco para a saúde das crianças. Rev. Latino-Am. Enfermagem [online]. 2020, vol.28, e3320. Available at: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692020000100202&lng=en&nrm=iso>. Epub Apr 22, 2020. ISSN 1518-8345. https://doi.org/10.1590/1518-8345.0000.3320. Retrieved: 27 May 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; DONG et al., 2020DONG, Y. et al. Epidemiological characteristics of 2143 pediatric patients with 2019 coronavirus disease in China. Pediatrics. 2020. DOI: 10.1542/peds.2020-0702. Available at: https://pediatrics.aappublications.org/content/pediatrics/early/2020/03/16/peds.2020-0702.full.pdf. Retrieved 20 June 2020.
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; REHMAN et al., 2020REHMAN, S. et al. Current scenario of COVID-19 in pediatric age group and physiology of immune and thymus response. Saudi Journal of Biological Sciences, 2020. Available at: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1319562X20301923. DOI: https://doi.org/10.1016/j.sjbs.2020.05.024. Retrieved 20 June 2020.
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).

Embora as crianças não apresentem maior risco para a forma grave da Covid-19, a pandemia traz repercussões importantes para as diferentes infâncias brasileiras, com consequências não intencionais para a saúde e o bem-estar dessa população, especialmente as de maior vulnerabilidade social e as que possuem doenças crônicas e/ou condições especiais.

Neste texto, propomos uma reflexão sobre as repercussões da pandemia na saúde das crianças brasileiras, avançando um pouco além dos aspectos clínicos da doença. Destacamos, porém, que não será possível esgotar essa discussão, visto que esses impactos se comportarão de modo diferente em cada infância, considerando suas particularidades e o contexto em que vivem.

A chegada do novo vírus colocou à prova como cada país está enfrentando a pandemia, quais recursos de saúde está utilizando para contê-la, bem como quais estratégias está adotando para cuidar das pessoas acometidas. Para Werneck e Carvalho (2020WERNECK, G. L.; CARVALHO, M. S. A pandemia de COVID-19 no Brasil: crônica de uma crise sanitária anunciada. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 5, p. e00068820, 2020. Available at: <http://cadernos.ensp.fiocruz.br/csp/artigo/1036/a-pandemia-de-covid-19-no-brasil-cronica-de-uma-crise-sanitaria-anunciada>. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00068820. Retrieved: 27 May 2020.
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), no Brasil os desafios são ainda maiores, considerando o contexto de desigualdade social, com populações vivendo em condições precárias de habitação e saneamento, sem acesso sistemático à água e em situação de aglomeração.

O Brasil, assim como todos os países que vivenciam a pandemia, tem adotado medidas para conter a disseminação do vírus e evitar que o sistema de saúde entre em colapso devido ao crescimento exponencial dos casos. Dentre as principais medidas de precaução estão o isolamento de cidades, o fechamento de estabelecimentos, inclusive escolas, e a suspensão de funcionamento do transporte coletivo, com a adoção de diferentes protocolos a depender de cada região (VENTURA; AITH; RACHED, 2020VENTURA, D. F. L.; AITH, F. M. A.; RACHED, D. H. A emergência do novo coronavírus e a “lei de quarentena” no Brasil. Revista Direito e Práxis. Ahead of print, Rio de Janeiro, 2020. DOI: 10.1590/2179-8966/2020/49180. Available at: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/49180/32876>. Retrieved: 26 May 2020.
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).

Wong et al. (2020WONG, C. A. et al. Mitigating the impacts of the COVID-19 pandemic response on at-risk children. Pediatrics, 2020. Available at: https://pediatrics.aappublications.org/content/pediatrics/early/2020/04/17/peds.2020-0973.full.pdf. doi: 10.1542/peds.2020-0973. Retrieved: 26 May 2020.
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) destacam que a suspensão das atividades presenciais nas escolas, o distanciamento social, a redução de serviços de saúde (p. ex., cancelamento de consultas não urgentes) e mensagens onipresentes de saúde pública são algumas das medidas destinadas a retardar a contaminação pela Covid-19. Em particular, as crianças de famílias com baixo nível socioeconômico apresentam, provavelmente, maior risco para novos ou agravantes problemas, ressaltando o papel crítico das estratégias de mitigação de risco para essas famílias.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2020) destaca os efeitos indiretos da pandemia para as infâncias ao estimar que: 1,8 bilhão (77%) dos 2,35 bilhões das crianças menores de 18 anos em todo o mundo viviam em um dos 132 países com políticas de permanência em casa desde o início de maio; em 177 países, quase 1,3 bilhão de estudantes (mais de 72%) estão fora das escolas devido ao seu fechamento; 40% da população mundial não consegue lavar as mãos com água e sabão em casa; e ainda mais de 117 milhões de crianças em 37 países podem perder a vacinação contra o sarampo no primeiro semestre de 2020, pois a pandemia prejudicou as campanhas de imunização, seja pela ausência destas ou pela baixa procura às unidades básicas de saúde.

O UNICEF (2020) destaca ainda a interferência negativa da pandemia no padrão alimentar das crianças, considerando que, em 143 países, quase 370 milhões de crianças normalmente dependem de refeições escolares para obter uma fonte confiável de nutrição diária, e agora precisam procurar outras fontes de alimentação enquanto as escolas estiverem fechadas. Reportando os dados do UNICEF para a realidade brasileira, segundo o Censo Escolar de 2019 (BRASIL, 2020b), o Brasil tem quase 39 milhões de crianças e adolescentes matriculados na rede pública da educação básica, que podem depender da refeição escolar para complementar ou garantir a alimentação diária, comprometida pela suspensão das aulas nesse momento.

A pandemia ainda pode expor as crianças brasileiras, de forma desigual, a um maior risco de morbimortalidade por doenças evitáveis, uma vez que a descontinuidade da vacinação rotineira pode aumentar a suscetibilidade e a probabilidade de surtos de doenças evitáveis por vacinas, a exemplo do sarampo, influenza, dentre outras doenças imunopreviníveis (SBIM, 2020). Além disso, a ausência de uma alimentação diária saudável pode aumentar os casos de desnutrição.

Desse modo, estratégias de mitigação de riscos durante as medidas de distanciamento social precisam ser adotadas. Cada país deve avaliar seus riscos epidemiológicos, assim como oferecer condições estruturais no seu sistema de saúde para realizar a vacinação de forma segura (SBIM, 2020), e garantir também a alimentação das crianças durante o afastamento da rede pública escolar (BRASIL, 2020b).

Ainda sobre os impactos da suspensão das atividades escolares, é preciso refletir sobre as dificuldades em oferecer atividades remotas a crianças e adolescentes estudantes da rede pública de ensino. Em muitas localidades do Brasil, existe um abismo entre a qualidade do ensino público e privado, além da falta de acesso à internet, situações que ficaram evidentes nesse momento. Enquanto as escolas privadas têm ofertado o ensino remoto aos seus alunos para garantir o mínimo acesso à educação durante pandemia, os alunos de escolas públicas de muitos estados brasileiros continuam sem aulas desde o início das medidas de distanciamento social.

Embora os benefícios do distanciamento social estejam bem estabelecidos por reduzir o risco de transmissão do SARS-CoV-2, essas medidas podem trazer mais consequências danosas à saúde das crianças.

Dentre as reações emocionais e alterações comportamentais frequentemente apresentadas pelas crianças durante a pandemia, Marin et al. (2020MARIN, A. et al. Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia COVID-19: crianças na pandemia COVID-19. Rio de Janeiro: Fiocruz/CEPEDES, 2020. 20 p. Available at: <https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/41713/2/crianc%cc%a7as_pandemia.pdf>. Retrieved: 26 Oct 2020.
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) destacam as dificuldades de concentração, irritabilidade, medo, inquietação, tédio, sensação de solidão, alterações no padrão de sono e alimentação, as quais são manifestações esperadas dentro do contexto atual. Assim, reforça-se a importância de compreender o cenário social e familiar de cada criança para atendê-la adequadamente diante das suas necessidades individuais.

E ainda, relatos de aumento da violência doméstica após ordens de quarentena na China revelaram os riscos do isolamento para a violência interpessoal. Uma revisão do impacto psicológico da quarentena publicada no The Lancet (ROBERTON et al., 2020ROBERTON, T. et al. Early estimates of the indirect effects of the COVID-19 pandemic on maternal and child mortality in low-income and middle-income countries: a modelling study. The Lancet Glob Health. 2020 doi: 10.1016/S2214-109X(20)30229-1. Available at https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7217645/ Retrieved: 25 jun. 2020.
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) indicou aumento da raiva, confusão e sintomas de estresse pós-traumático, bem como evidências de aumento do uso de substâncias nas pessoas sujeitas a quarentena. Esses tipos de emoções desreguladas e o uso de substâncias podem aumentar o comportamento violento, especialmente dentro da família.

Com o distanciamento social, o aumento do tempo de convivência e das tensões nas relações interpessoais são fatores que, segundo Marques et al. (2020MARQUES, E. S. et al. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações e formas de enfrentamento. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 4, p. e00074420, 2020. Available at: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X2020000400505&lng=en&nrm=iso>. https://doi.org/10.1590/0102-311x00074420. Retrieved: 26 Oct 2020.
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), podem tornar mais frequentes os episódios de violência contra crianças e adolescentes nesse período. Ainda, Roberton et al. (2020ROBERTON, T. et al. Early estimates of the indirect effects of the COVID-19 pandemic on maternal and child mortality in low-income and middle-income countries: a modelling study. The Lancet Glob Health. 2020 doi: 10.1016/S2214-109X(20)30229-1. Available at https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7217645/ Retrieved: 25 jun. 2020.
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) referem que a exposição das crianças à violência por parceiro íntimo, testemunhada diretamente ou ouvida, é prejudicial e pode levar ao transtorno de estresse pós-traumático e a outros problemas emocionais e comportamentais. Em circunstâncias típicas (isto é, não-pandêmicas), as taxas de maus-tratos infantis são alarmantes.

A partir do exposto, a pandemia da Covid-19 descortina uma crise de direitos às crianças que, para garantir a vida em condições por vezes mínimas, nega o direito de ir e vir, o acesso aos serviços de saúde, à educação, à alimentação, à sociabilidade, à cultura e, em algumas situações, o direito da convivência familiar, todos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente como direitos essenciais (BRASIL, 2017).

Esperamos que a superação dessa pandemia, na medida em que ela expõe tão claramente tantas desigualdades, possa não só expor a susceptibilidade dos vulneráveis, mas sobretudo demandar políticas públicas para reparação e mitigação dos riscos.11 A. C. Morais e J. O. F. Miranda foram igualmente responsáveis pela concepção, redação do texto e aprovação final da versão a ser publicada.

Referências bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2020
  • Aceito
    17 Nov 2020
  • Revisado
    15 Jan 2021
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