Centros de Atenção Psicossocial e o perfil dos casos com transtorno global do desenvolvimento no Brasil, 2014 - 2017

Jeane Tomazelli Conceição Fernandes Sobre os autores

Resumo

O estudo descreve o perfil de crianças e adolescentes com transtorno do desenvolvimento global (TGD) atendidas nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e profissionais destes estabelecimentos no Brasil e regiões. Utiliza dados do Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS) e do Sistema Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES) de 2014-2017. Relacionou-se deterministicamente as bases SIA/SUS e SCNES, usando o número do estabelecimento, os casos de TGD foram individualizados utilizando a variável cartão SUS codificada. Foram registrados 18.852 diagnósticos de TGD nos CAPS, a maioria por demanda espontânea, 73,2% realizadas em CAPSi, 50,3% na faixa etária de 1-6 anos, 80% do sexo masculino e maiores proporções de casos femininos a partir de 13 anos (p<0,001). Em 54,3% dos diagnósticos não foi especificado o tipo de TGD, sendo o autismo o mais frequente (27,2%) dentre os especificados. As equipes profissionais variaram segundo tipo de CAPS. Procedimentos de práticas comunicativas e reabilitação psicossocial foram pouco expressivas (10,3%). Conclui-se pela necessidade de estudos para esclarecer a alta demanda espontânea, os atendimentos fora do CAPSi e de se estabelecer parâmetros para avaliar se os procedimentos estão adequados ao projeto terapêutico permitindo monitorar e avaliar o atendimento às pessoas com TGD.

Palavras-chave:
Deficiências do Desenvolvimento; Transtorno do Espectro Autista; Serviços de Saúde Mental; Sistema Único de Saúde; Epidemiologia Descritiva

Introdução

Os transtornos neuropsiquiátricos representam a principal fonte de carga de doença dentre as doenças crônicas não transmissíveis (SCHMIDT , 2011SCHMIDT, M. I. et al. Chronic non-communicable diseases in Brazil: burden and current challenges. The Lancet, v. 377, n. 9781, p. 1949-1961, jun. 2011.). Em crianças, os transtornos do neurodesenvolvimento infantil constituem o distúrbio neurológico mais frequente, com taxas entre 60-70 por 10.000 (FOMBONNE, 2009FOMBONNE, E. Epidemiology of Pervasive Developmental Disorders. Pedriatic Research, v. 65, n. 6, p. 591-598, 2009.).

No Brasil, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) é o sistema de classificação adotado no Sistema Único de Saúde (SUS) e utiliza a terminologia transtorno global do desenvolvimento (TGD) para referir os distúrbios do neurodesenvolvimento (OMS, 1996). Por outro lado, a comunidade científica vem adotando, atualmente, a designação Transtorno do Espectro Autista (TEA) para designar três condições do TGD mais semelhantes, que foram incorporadas no DSM-5 (FERREIRA, 2013FERREIRA, C. M. B. Nova edição de manual aumenta número de transtornos mentais. Ciência e Cultura, v. 65, n. 4, p. 16-17, 2013.) e, recentemente, no CID-XI (WHO, 2018): transtorno autista, transtorno de Asperger e o TGD/transtorno invasivo do desenvolvimento sem outra especificação (PAULA, , 2017PAULA, C. F. et al. Conceituação do transtorno do Espectro Autista: definição e epidemiologia. In: Autismo. Avaliação Psicológica e Neuropsicológica. São Paulo: Hogefre, 2017.; LYRA , 2017LYRA, L. et al. What do Cochrane systematic reviews say about interventions for autism spectrum disorders? Sao Paulo Medical Journal, v. 135, n. 2, p. 192-201, abr. 2017.). O DSM-5 incorporou o TEA ao grupo dos transtornos do neurodesenvolvimento nos quais, além do atraso ou interrupção do processo normal de desenvolvimento, existe também uma manifestação clínica atípica e prejudicial do mesmo, afetando um conjunto de funções psíquicas (BRASIL , 2014a).

Considerando que o diagnóstico de TEA ocorre no início do desenvolvimento infantil e dura toda a vida (PAULA, , 2011aPAULA, C. S. et al. Autism in Brazil - perspectives from science and society. Rev Assoc Med Bras, v. 57, n. 1, p. 2-5, 2011a.; YANG , 2018YANG, J. et al. Peptidome Analysis Reveals Novel Serum Biomarkers for Children with Autism Spectrum Disorder in China. PROTEOMICS - Clinical Applications, v. 12, n. 5, p. 1700164, set. 2018.), é extremamente importante um diagnóstico acurado, precoce e com garantia de acesso às terapias que auxiliem no desenvolvimento das habilidades, assegurando autonomia e qualidade de vida ao indivíduo, dentro de suas possibilidades. Portanto, estimar a carga de doença do transtorno autista e de outros transtornos é fundamental para direcionar políticas e ações de saúde pública que propiciem as adequadas intervenções e suporte a estas pessoas (BAXTER , 2015BAXTER, A. J. et al. The epidemiology and global burden of autism spectrum disorders. Psychological Medicine, v. 45, n. 3, p. 601-613, fev. 2015.).

Porém, estimar a prevalência do autismo é um desafio, dada as diferenças metodológica dos estudos, o critério de elegibilidade de casos (captação de casos com e sem prévio sinal de alerta), a padronização dos instrumentos utilizados segundo as populações específicas e a própria definição de caso (FOMBONNE, 2018). A complexidade do diagnóstico acurado e das estimativas de ocorrência da doença foi observada por Baxter, que encontrou diferença nas estimativas de prevalência segundo a fonte dos dados dos casos e o manual de classificação adotado, sendo maior a estimativa do transtorno autista quando utilizada a CID-10 ou DSM-IV comparada às versões anteriores (BAXTER , 2015BAXTER, A. J. et al. The epidemiology and global burden of autism spectrum disorders. Psychological Medicine, v. 45, n. 3, p. 601-613, fev. 2015.).

A expressão dos sintomas do TEA pode apresentar grande variabilidade, sendo possível identificar crianças com baixo e alto grau de funcionamento (KLIN, 2006KLIN, A. Austismo e Síndrome de Asperger: uma visão geral. Rev Bras Psiquiatr, v. 28, n. Supl I, p. S3-11, 2006.). O diagnóstico é eminentemente clínico (PAULA , 2017PAULA, C. F. et al. Conceituação do transtorno do Espectro Autista: definição e epidemiologia. In: Autismo. Avaliação Psicológica e Neuropsicológica. São Paulo: Hogefre, 2017.; TAMANAHA , 2013TAMANAHA, A. C. et al. Protocolo do Estado de São Paulo de Diagnóstico Tratamento e Encaminhamento de Pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA). São Paulo: SEDPcD, 2013. Available at:<http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br)>.
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), feito a partir de aspectos comportamentais. A avaliação deve ser realizada por um grupo de profissionais com expertise em áreas distintas, de modo a favorecer uma compreensão multidisciplinar e intervenções mais adequadas (KLIN et al., 2005). A avaliação deve incluir anamnese detalhada, avaliações psicológicas e de desenvolvimento, bem como mensuração de habilidades adaptativas. A avaliação da comunicação, verbal e não verbal, é especialmente importante, cabendo a diferenciação com o transtorno do desenvolvimento da linguagem (KLIN, 2006). A avaliação neuropsicológica será importante na avaliação da inteligência - distinguindo, assim, déficit intelectual de TEA (PEDERSEN , 2017PEDERSEN, A. L. et al. DSM Criteria that Best Differentiate Intellectual Disability from Autism Spectrum Disorder. Child Psychiatry & Human Development, v. 48, n. 4, p. 537-545, ago. 2017.) - e na mensuração da gravidade dos sintomas no espectro, mediante identificação de déficit cognitivo associado e níveis de desatenção mais graves. O diagnóstico acurado inclui também avaliações do desenvolvimento, da interação social, da comunicação e das habilidades adaptativas (KLIN, 2006).

Instrumentos estruturados foram desenvolvidos para subsidiar o diagnóstico clínico, auxiliando na avaliação da hipótese diagnóstica e na mensuração do grau de comprometimento (HAASE; JÚLIO-COSTA, 2018LI, G. et al. Early Diagnosis of Autism Disease by Multi-channel CNNs. In: SHI, Y.; SUK, H.-I.; LIU, M. (Org.). Machine Learning in Medical Imaging. Cham: Springer International Publishing, 2018. v. 11046. p. 303-309. Available at:<http://link.springer.com/10.1007/978-3-030-00919-9_35>. Acesso em: 11 fev. 2019.
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). Tais instrumentos são considerados importantes, dadas as variações do quadro clínico, próprias do desenvolvimento e de tratamentos prévios realizados, além da diversidade na formação das diferentes categorias profissionais que lidam com estas crianças em nosso país (PAULA , 2017PAULA, C. F. et al. Conceituação do transtorno do Espectro Autista: definição e epidemiologia. In: Autismo. Avaliação Psicológica e Neuropsicológica. São Paulo: Hogefre, 2017.) e, ainda, devido à existência de modelos teóricos concorrentes (BRASIL, 2015; OLIVEIRA , 2017OLIVEIRA, B. D. C. et al. Políticas para o autismo no Brasil: entre a atenção psicossocial e a reabilitação1. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 27, n. 3, p. 707-726, jul. 2017.).

Na atenção especializada do Sistema Único de Saúde, indivíduos com TGD são atendidos em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e nos pontos de Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (BRASIL, 2014a; BRASIL, 2015; BRASIL, 2011). Esta rede tem como objetivo criar, ampliar e articular pontos de atenção à saúde para pessoas com algum tipo de transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de drogas, além de monitorar e avaliar a qualidade dos serviços por meio de indicadores de efetividade e resolutividade da atenção. Dentre suas diretrizes estão a garantia do acesso e a qualidade dos serviços, com cuidado integral e multiprofissional. Já a reabilitação social e a reinserção do indivíduo com transtorno mental ou necessidades decorrentes do uso de álcool ou outras drogas constituem alguns de seus objetivos específicos (BRASIL, 2014a; BRASIL, 2011).

Os CAPS possuem três modalidades, CAPS I, II e III, todas com a mesma função no atendimento em saúde mental, mas com diferenças no porte/complexidade, abrangência populacional e turnos de funcionamento (BRASIL, 2002). Eles estão organizados da seguinte forma (BRASIL, 2011): CAPS I , CAPS II, CAPS III, CAPS AD (álcool e drogas), CAPS AD III e CAPSi (infanto-juvenil).

O CAPSi é o único específico para crianças e adolescentes (BRASIL, 2011). Com exceção do CAPSi, que admite casos até a idade de 25 anos e os CAPS AD e CAPS AD III que admitem casos a partir de seis anos de idade, todos CAPS podem realizar procedimentos em pessoas de 0 a 110 anos (BRASIL, 2013).

Em todos os CAPS, a equipe multiprofissional possui entre três e cinco integrantes, sendo composta por um médico, um enfermeiro e um conjunto de outros profissionais de nível superior que, dependendo do tipo de CAPS, podem ser psicólogo, terapeuta ocupacional, assistente social ou outro necessário ao projeto terapêutico (BRASIL, 2002). O Ministério da Saúde destaca que no tratamento de pessoas com TEA, os profissionais e a equipe de referência para o cuidado devem preservar a singularidade do sujeito, construindo e fortalecendo o vínculo com o paciente e com a família (BRASIL, 2014a). A equipe multiprofissional é um componente importante na avaliação e acompanhamento de portadores de TEA (KLIN , 2005KLIN, A. et al. Clinical evaluation in autism spectrum disorders: psychological assessment within atransdisciplinary framework. In: Volkmar F, Paul R, Klin A, Cohen D,editors. Handbook of Autism and Pervasive Developmental Disorders. 3. ed. New York: Wiley, 2005. v. 2.; BRASIL, 2015; BRASIL, 2014b), fundamental ao projeto terapêutico, devendo ser composta, minimamente, por psiquiatra e/ou neurologista e/ou pediatra, psicólogo e fonoaudiólogo (BRASIL, 2014b).

Um estudo que avaliou a utilização de serviços de saúde por estudantes de escola pública com TEA em quatro regiões do país referiu baixa utilização em consultas com psicólogo, neurologista e psiquiatra (PARASMO; LOWENTHAL; PAULA, 2015PARASMO, B.; LOWENTHAL, R.; PAULA, C. S. Autism spectrum disorders: prevalence and service use in four Brazilian regions. International Conference os Autism in Adult Life: Science, Society and Reality. São Paulo. Archives of Clinical Psychiatry, v. 42, n. Supplement 1, 2015. Available at:<http://docplayer.net/1704074-International-conference-of-autism-in-adult-life-science-society-and-reality-archives-of-revista-de-psiquiatria-clinica.html>.
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). Outro estudo descreveu o perfil de uso dos CAPSi por crianças e adolescentes durante o período de 2008 a 1012, a partir dos procedimentos registrados nas Autorizações de Procedimentos de Alta Complexidade (APAC), analisando os diagnósticos mais frequentes, de acordo com a CID-10, sexo e idade (CEBALLOS , 2019CEBALLOS, G. Y. et al. Child and Adolescent Psychosocial Care Center service use profile in Brazil: 2008 to 2012. Brazilian Journal of Psychiatry, v. 41, n. 2, p. 138-147, abr. 2019.). Enquanto o primeiro estudo buscou identificar a adesão de estudantes com TEA ao acompanhamento especializado, o segundo traça o perfil das crianças e adolescentes atendidas no único tipo de CAPS específico para elas.

Considerando que o transtorno do neurodesenvolvimento infantil representa uma doença crônica, que exige identificação precoce e acompanhamento especializado de forma a prover o desenvolvimento das habilidades e da autonomia (dentro das possibilidades individuais), a existência de centros de atenção especializadas para atender pessoas com este transtorno e considerando, ainda, a necessidade de uma equipe de profissionais especializados, o objetivo deste estudo é descrever o perfil de crianças e adolescentes com transtorno do desenvolvimento global atendidas nos Centros de Atenção Psicossocial e de sua produção de atendimento, assim como o perfil dos profissionais destes estabelecimentos no Brasil e regiões, no período de 2014 a 2017.

Métodos

Se trata de um estudo descritivo, ecológico, com dados secundários das informações do Registro de Ações Ambulatoriais (RAAS) do Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS) e do Sistema Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES), disponíveis no sítio do Departamento de Informática do SUS (Datasus) (www.datasus.gov.br), no período de 2014 a 2017, para o Brasil. O período de estudo foi definido considerando-se que os procedimentos passaram a ser lançados na RASS a partir de 2013 (BRASIL, 2013) e que 2017 foi o último ano disponível no momento do início do estudo.

Do SCNES, foram selecionados os estabelecimentos de saúde com os seguintes códigos de habilitações: 0616 (CAPS 1), 0617 (CAPS II), 0618 (CAPS III), 0619 (CAPS AD), 0620 (CAPSI) e 0631 (CAPS AD III); e o número de profissionais das categorias psicólogo (clínico, social, neuropsicólogo), fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional. A seleção destas categorias profissionais se justificou pelo fato delas fazerem parte das possíveis categorias necessárias a compor o projeto terapêutico junto com médico e enfermeiro (BRASIL, 2002). Foi verificado o número de profissionais por tipo de habilitação no CAPS, por ano no Brasil e regiões.

Do SIA/SUS foram selecionados os procedimentos realizados cuja CID-10 principal informada era TGD (F84). Através da variável Cartão Nacional de Saúde (CNS) codificada, foram individualizados os casos atendidos no período de 2014 a 2017. Obteve-se então o número de casos atendidos por ano e por tipo de CAPS.

A base de dados com as informações dos casos atendidos foi relacionada deterministicamente com a base do SCNES, utilizando-se como chave relacionamento a variável Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), produzindo, desta maneira, uma nova base de dados contendo apenas os serviços habilitados que informaram atendimento de pessoas com TGD. Destes, um CAPS AD, da região Sudeste, informou um único caso, na faixa etária de 13 a 19 anos, e foi excluído dos resultados.

Foram estudadas as variáveis: CNES do estabelecimento de saúde, ano de atendimento (informação gerada a partir da data de atendimento), faixa etária, em anos (menor de 1; 1-6; 7-12; 13-19; e 20 ou mais), sexo (masculino, feminino), raça/cor (branca, preta, parda, amarela, indígena), diagnóstico (obtida pela CID principal), origem do paciente (demanda espontânea, atenção básica, serviço de urgência, outros CAPS, hospital dia, hospital psiquiátrico), procedimentos realizados, UF e região de residência, habilitação do estabelecimento de saúde (CAPS I; CAPS II; CAPS III; CAPSi; CAPS AD; CAPS AD III), UF e região do estabelecimento de saúde e profissionais (psicólogo - clínico, social, neuropsicólogo; fonoaudiólogo; terapeuta ocupacional).

As informações foram avaliadas e descritas comparativamente entre as regiões do País. Foi aplicado o teste qui-quadrado de tendência (ROSNER, 2016ROSNER, B. Fundamentals of biostatistics. 8th edition ed. Boston, MA: Cengage Learning, 2016.) para avaliar se a diferença na proporção das faixas etárias do sexo feminino foi significativa.

O download das bases de dados foi realizado em abril de 2018. Para análise dos dados foi utilizado o programa R (R CORE TEAM, 2013). O estudo isenta-se de ser submetido ao comitê de ética por utilizar dados secundários de acesso irrestrito.

Resultados

No período de 2014 a 2017, foram registrados 18.852 casos com diagnóstico de TGD atendidos nos CAPS do Brasil. A maioria dos diagnósticos ocorreu na faixa etária de 1-6 anos (50,3%), para pessoas do sexo masculino (80%). Em 54,3% dos casos não foi especificada a CID do tipo de TGD, sendo o autismo infantil (27,2%) o tipo mais frequente dentre os especificados. A raça/cor mais frequente foi a parda (31%), seguida da branca (25,4%). Em relação à origem do paciente, a maioria (51,3%) tinha registro de demanda espontânea ao Centro de Atenção Psicossocial, seguida de encaminhamento originado pela atenção básica (43,2%) - Tabela 1.

Tabela 1
Características dos casos com diagnóstico principal de transtorno global do desenvolvimento. Brasil, 2014-2017

O total de CAPS estudado foi 1.178, sendo 620 (52,6%) CAPS I, 277 (23,5%) CAPS II, 221 (18,8%) CAPSi, 58 (4,9%) CAPS III e dois (0,2%) CAPS AD III. Este padrão de distribuição proporcional se repetiu entre as regiões, exceto na região Sul, onde a proporção de CAPSi (24,7%) foi maior que a de CAPS II (22,9%), correspondendo respectivamente a 42 e 39 estabelecimentos. Comparando a distribuição dos 221 CAPSi entre as regiões, a com maior proporção foi a Sudeste (28,1%) e a menor foi a Norte (6,0%), com 115 e 6 estabelecimentos cada - dados não apresentados.

O tipo de CAPS com registro de maior atendimento de casos com TGD foi o CAPSi (73,2%), seguido do CAPS I (16,4%), verificando-se o aumento do número de casos atendidos ao longo dos anos de estudo. Dos 18.852 casos com diagnóstico de TGD, 13.799 foram atendidos nos 221 CAPSi, o que corresponde a uma razão de 62 casos/CAPSi no período de três anos. As regiões Sudeste e Nordeste registraram maiores proporções de número de casos, 53,0% e 27,3%, respectivamente - Tabela 1.

No cenário Brasil, o CAPS I apresentou a maior parte dos casos (68%) atendidos na faixa etária de 1-12 anos, panorama semelhante aos das regiões Norte, Nordeste e Sudeste. No CAPS II, a faixa etária mais frequente (40%) foi a de 20 anos ou mais, mesmo padrão observado nas demais regiões, exceto na região Norte. O CAPSi apresentou mais da metade (57,1%) dos atendimentos na faixa etária de 1-6 anos, padrão seguido pelas regiões do país, à exceção das regiões Norte e Sul. Na faixa etária de 1-12 anos, a proporção foi de 86,8% no país, variando de 85,1% na região Sudeste a 90,9% no Nordeste. O CAPS AD III apresentou registro de atendimento dos casos de TDG apenas nas regiões Sudeste e Sul (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição dos casos com diagnóstico principal de transtorno global do desenvolvimento por tipo de Centro de Atenção Psicossocial¹ e faixa etária, Brasil e grandes regiões, 2014-2017.

A proporção de diagnósticos de TGD ficou em torno de 80% para o sexo masculino e 20% para o feminino no Brasil, com pouca variação ao longo dos anos e entre as regiões. Este percentual, no ano de 2017, variou de 77,1% na região Norte a 85,4% na região Centro-Oeste. A menor proporção para o sexo masculino (76,9%) e maior para o sexo feminino (23,1%) foram registradas na região Sul, em 2014. Observou-se, ainda, que maiores proporções para o sexo feminino ocorreram mais frequentemente na faixa etária acima de 13 anos (p<0,001) (Tabela 3).

Tabela 3
Distribuição dos casos com diagnóstico principal de transtorno global do desenvolvimento por faixa etária, sexo e ano primeiro atendimento no Centro de Atenção Psicossocial, Brasil e grandes regiões, 2014-2017.

Dentre as categorias profissionais estudadas, observou-se que os profissionais que predominam nos CAPS são o Terapeuta Ocupacional e o Psicólogo Clínico. Além disso, não há registro de informação de Neuropsicólogo em nenhum tipo de CAPS. O Psicólogo Social é pouco frequente, sendo inexistente em alguns tipos de CAPS e regiões. O CAPS AD III apresentou menos categorias profissionais, com ausência de todas as categorias estudadas nas regiões Sul e Centro-Oeste, exceto o psicólogo clínico, presente na região Sul (Tabela 4).

Tabela 4
Distribuição dos profissionais por tipo de habilitação do Centro de Atenção Psicossocial que informaram atendimento transtorno global do desenvolvimento, Brasil e grandes regiões, 2014-2017.

Os procedimentos realizados nos CAPS para os pacientes com diagnóstico de TGD foram, em sua maioria (63%), do tipo “atendimento em grupo de paciente” e “atendimento individual de paciente”, enquanto as “práticas comunicativas” e as ações de reabilitação psicossocial somaram, juntas, pouco mais de 10% do total de procedimentos (Tabela 5). A razão entre total de procedimentos pelo número de casos tratados, por tipo de habilitação no período, mostra que há, no geral, uma razão 26,5 procedimentos/caso (499.547/18.852). O CAPSi apresentou a segunda maior razão, 31,0 procedimentos/caso (427.893/13.799), logo após o CAPS AD III, 66,2 (14.101/213) - dados apresentados nas Tabelas 1 e 5.

Tabela 5
Procedimentos realizados por tipo de habilitação do Centro de Habilitação Psicossocial, Brasil e grandes regiões, 2014-2017

Discussão

Os diagnósticos de TGD nos CAPS aumentaram ao longo do período avaliado, com predominância de ocorrência em pessoas do sexo masculino, o que está de acordo com a literatura (FOMBONNE, 2009FOMBONNE, E. Epidemiology of Pervasive Developmental Disorders. Pedriatic Research, v. 65, n. 6, p. 591-598, 2009.; PAULA , 2011bPAULA, C. S. et al. Brief Report: Prevalence of Pervasive Developmental Disorder in Brazil: A Pilot Study. Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 41, n. 12, p. 1738-1742, dez. 2011b.), e em todas as faixas etárias e regiões. Apesar do estudo de Ceballos (CEBALLOS , 2019CEBALLOS, G. Y. et al. Child and Adolescent Psychosocial Care Center service use profile in Brazil: 2008 to 2012. Brazilian Journal of Psychiatry, v. 41, n. 2, p. 138-147, abr. 2019.) ter estudado o perfil de crianças e adolescentes atendidos no CAPSi no período 2008 a 2012, sendo metodologicamente diferente do presente artigo, que individualizou os casos e caracterizou o atendimento dos casos de TGD em todos os CAPS, ambos encontram uma maior proporção no sexo masculino e um aumento do número de consultas em meninas em idades mais avançadas.

Destaca-se que o maior número de casos registrados não implica necessariamente no aumento da prevalência destes transtornos. Diversos fatores têm sido atribuídos ao aumento da prevalência do TDG e ao TEA, como o acesso aos serviços, critérios diagnósticos e mudanças do mesmo ao longo do tempo, método de identificação de casos, conscientização sobre a doença, diagnóstico precoce e tamanhos amostrais dos estudos (FOMBONNE, 2009FOMBONNE, E. Epidemiology of Pervasive Developmental Disorders. Pedriatic Research, v. 65, n. 6, p. 591-598, 2009.;PAULA , 2011aPAULA, C. S. et al. Autism in Brazil - perspectives from science and society. Rev Assoc Med Bras, v. 57, n. 1, p. 2-5, 2011a.). Entretanto, é necessário cautela ao avaliar este aumento, dadas as definições de caso e metodologias adotadas nos estudos (FOMBONNE, 2018). Ademais, Baxter (BAXTER , 2015BAXTER, A. J. et al. The epidemiology and global burden of autism spectrum disorders. Psychological Medicine, v. 45, n. 3, p. 601-613, fev. 2015.) comparando a estimativa de carga do autismo e de outros transtornos do espectro autista, seguindo a descrição da CID-10 e DSM-IV, para 1990 e 2010, não encontrou, para ambos, aumento na prevalência: em 2010 a prevalência do autismo foi 2,4 por 1000 e de outros transtornos do espectro foi de 5,1 por 1000. Elsabbach e colaboradores sugerem que as estimativas de prevalência de TEA tem aumentado no decorrer do tempo, sendo a mediana em torno de 62 por 10.000 (ELSABBAGH , 2012ELSABBAGH, M. et al. Global Prevalence of Autism and Other Pervasive Developmental Disorders: Global epidemiology of autism. Autism Research, v. 5, n. 3, p. 160-179, jun. 2012.). Todavia, além deste estudo ser anterior ao de Baxter (BAXTER et al., 2015), há ainda a ressalva feita pela própria autora de que o aumento observado possivelmente é reflexo da ampliação do conceito do transtorno.

Dentre os diagnósticos de TGD, o autismo infantil foi o mais frequente. Todavia, mais da metade dos diagnósticos de TGD não foram classificados. Chama a atenção o número de diagnósticos de TGD em crianças com menos de um ano de idade. Ainda que a intervenção precoce dos casos diagnosticados melhore o prognóstico e que a literatura aponte que seja possível identificar sinais de TEA antes de 12 meses (TAMANAHA , 2013TAMANAHA, A. C. et al. Protocolo do Estado de São Paulo de Diagnóstico Tratamento e Encaminhamento de Pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA). São Paulo: SEDPcD, 2013. Available at:<http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br)>.
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; OZONOFF , 2010OZONOFF, S. et al. A Prospective Study of the Emergence of Early Behavioral Signs of Autism. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, v. 49, n. 3, p. 256- 66.e1-2, mar. 2010.; LI , 2018LI, G. et al. Early Diagnosis of Autism Disease by Multi-channel CNNs. In: SHI, Y.; SUK, H.-I.; LIU, M. (Org.). Machine Learning in Medical Imaging. Cham: Springer International Publishing, 2018. v. 11046. p. 303-309. Available at:<http://link.springer.com/10.1007/978-3-030-00919-9_35>. Acesso em: 11 fev. 2019.
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; BOSL; TAGER-FLUSBERG; NELSON, 2018BOSL, W. J.; TAGER-FLUSBERG, H.; NELSON, C. A. EEG Analytics for Early Detection of Autism Spectrum Disorder: A data-driven approach. Scientific Reports, v. 8, n. 1, dez. 2018. Available at:<http://www.nature.com/articles/s41598-018-24318-x>. Acesso em: 11 fev. 2019.
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), este resultado pode estar associado à qualidade do registro da informação. A proporção de TGD não classificados e a proporção de casos em pacientes com menos de 12 meses podem sinalizar também potenciais erros de diagnóstico, uma dificuldade do profissional em estabelecer o diagnóstico correto, além de potencial problema no cuidado. Cabe ainda ponderar sobre a utilização no SUS da classificação CID-10 em concorrência com a prática do DSM-5, o que traz questões relevantes sobre a precisão na equivalência de classificação dos transtornos e a possível dificuldade do profissional em diagnosticar.

A proporção de casos entre meninos e meninas encontrada no país e nas regiões segue o referido na literatura, no qual essa proporção é de 4:1 (MAIA , 2018MAIA, F. A. et al. Transtorno do espectro do autismo e idade dos genitores: estudo de caso-controle no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 34, n. 8, 20 ago. 2018. Available at:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2018000805006&lng=pt&tlng=pt>. Acesso em: 21 jun. 2019.
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; PAULA , 2011bPAULA, C. S. et al. Brief Report: Prevalence of Pervasive Developmental Disorder in Brazil: A Pilot Study. Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 41, n. 12, p. 1738-1742, dez. 2011b.; CHRISTENSEN , 2016CHRISTENSEN, D. L. et al. Prevalence and Characteristics of Autism Spectrum Disorder Among Children Aged 8 Years - Autism and Developmental Disabilities Monitoring Network, 11 Sites, United States, 2012. MMWR. Surveillance Summaries, v. 65, n. 3, p. 1-23, 1 abr. 2016.). Em meninos, a faixa etária com diagnóstico mais frequente foi a de 1-6 anos, porém com diferenças quando avaliada segundo o tipo de habilitação do CAPS. O estudo mostrou que a partir dos 13 anos, de forma geral, pessoas do sexo feminino apresentaram uma proporção maior de diagnósticos comparadas a idades mais novas e que a tendência de crescimento foi significativa. Este achado sinaliza para um diagnóstico possivelmente mais tardio para as meninas e necessita de estudos mais detalhados. Uma possível hipótese para este achado pode ser um comportamento social mais retraído esperado para crianças do sexo feminino, o que por sua vez conduziria a um diagnóstico tardio, por ocasião da adolescência. O estudo de Ceballos (CEBALLOS , 2019CEBALLOS, G. Y. et al. Child and Adolescent Psychosocial Care Center service use profile in Brazil: 2008 to 2012. Brazilian Journal of Psychiatry, v. 41, n. 2, p. 138-147, abr. 2019.) detectou transtornos em meninas em idades mais velhas, mas estas tenderiam a apresentar transtornos principalmente de ansiedade e depressão. A elevada proporção de TGD não especificada impossibilita saber se os diagnósticos “outros transtornos globais e não especificados do desenvolvimento” poderiam ganhar mais expressão.

A alta proporção de demanda espontânea pela busca do serviço encontrada no estudo é corroborada nos achados de Felix e Santos (FÉLIX; SANTOS, 2016FÉLIX, L. B.; SANTOS, M. F. S. Infância e Atenção Psicossocial. ECOS, v. 6, n. 1, p. 36-50, 2016.) e traz questões relativas à organização da rede de atenção, já que seria esperado um referenciamento predominantemente oriundo da atenção básica. Este aspecto torna-se altamente relevante, visto que é necessária uma avaliação da funcionalidade da pessoa, de forma a estabelecer as intervenções apropriadas e o nível hierárquico da rede de serviços do SUS que contemple esta necessidade (TAMANAHA , 2013TAMANAHA, A. C. et al. Protocolo do Estado de São Paulo de Diagnóstico Tratamento e Encaminhamento de Pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA). São Paulo: SEDPcD, 2013. Available at:<http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br)>.
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). Uma possível explicação seria a de que estas crianças estariam sendo diagnosticadas em consulta particular e buscariam a continuidade do cuidado dentro dos CAPS. Essa hipótese, contudo, precisa ser avaliada em novos estudos. Também foi expressiva a proporção de pacientes cuja origem foi a atenção básica, achado esperado considerando que esta é a principal porta de entrada no SUS e ordenadora da atenção (BRASIL, 2015).

O estudo mostrou que dentre as categorias profissionais existentes, as mais frequentes foram o Terapeuta Ocupacional e o Psicólogo Clínico, e no CAPSi, também o Fonoaudiólogo, sendo este último importante para o diagnóstico diferencial dos transtornos de linguagem. Considerando que foram incluídos apenas os CAPS com informação de atendimento de crianças e adolescentes com diagnóstico de TGD, o estudo suscita questões sobre a adequação dos procedimentos realizados e a suficiência e diversidade de profissionais necessários ao projeto terapêutico. Apesar da maioria dos pacientes com TGD serem atendidos no CAPSi, 26,8% estão sob cuidados de outros tipos de CAPS, o que não seria esperado, já que não são específicos para crianças e possuem um quadro diferenciado de profissionais, informação relevante, considerando-se que a equipe multiprofissional é importante para o diagnóstico mais acurado (KLIN , 2005KLIN, A. et al. Clinical evaluation in autism spectrum disorders: psychological assessment within atransdisciplinary framework. In: Volkmar F, Paul R, Klin A, Cohen D,editors. Handbook of Autism and Pervasive Developmental Disorders. 3. ed. New York: Wiley, 2005. v. 2.) e qualifica todo o acompanhamento do paciente. Cabe destacar que os profissionais não são exclusivos para portadores destes transtornos, sendo o atendimento compartilhado com transtornos de outras naturezas. O atendimento de crianças e adolescentes com TGD fora do CAPSi pode refletir problemas de referenciamento bem como logística de acesso entre município de residência e local do atendimento. Um mapeamento destes fluxos não foi previsto no estudo, mas é uma análise que deve ser explorada. O atendimento dos casos de TGD no CAPS AD III e somente nas regiões Sudeste e Sul é um achado que merece estudo local para elucidar este cenário.

Dentre as especialidades profissionais, é necessário estudos que avaliem se o enfoque clínico da prática contempla a abrangência necessária à avaliação das funcionalidades cognitivas do TGD e se o plano terapêutico tem sido coerente em relação aos procedimentos informados no SUS. As intervenções de tratamento utilizadas fazem parte de uma discussão atual baseada em evidência sobre quais seriam as mais adequadas (LINDGREN; DOOBAY, 2011LINDGREN, S.; DOOBAY, A. Evidence-Based Interventions for Autism Spectrum Disorders. . [S.l.]: The University of Iowa, 2011.; DDMDMH, [S.d.]). Embora sejam apontadas as intervenções de base comportamental com uma evidência mais forte (LINDGREN; DOOBAY, 2011), também é posto que a falta de rigor metodológico dos estudos pode comprometer estas análises (DDMDMH, [S.d.]). Um estudo das revisões sistemáticas Cochrane sobre intervenções para TEA mostrou que estas carecem de qualidade na evidência, mas que ainda assim, revisões com baixo e muito baixo nível de evidência indicam que intervenções comportamentais precoces, acupuntura, musicoterapia, intervenções precoces mediada pelos pais, grupos de habilidades social e o modelo cognitivo da teoria da mente parecem ter algum benefício nestes pacientes com a vantagem de não estarem associados a nenhum efeito adverso (LYRA , 2017LYRA, L. et al. What do Cochrane systematic reviews say about interventions for autism spectrum disorders? Sao Paulo Medical Journal, v. 135, n. 2, p. 192-201, abr. 2017.).

Os procedimentos ambulatoriais realizados nos CAPS para estes pacientes apresentaram uma concentração de “atendimento em grupo de paciente” e “atendimento individual de paciente”. A baixa proporção de procedimentos de reabilitação pode estar associada a concepções teóricas diferentes que perpassam a política pública para o autismo no Brasil, com diferentes diretrizes de cuidado: o reconhecimento do autismo como um transtorno mental é inerente ao campo de cuidados da atenção psicossocial, por outro lado, a concepção do autismo como uma deficiência leva a um modelo propositivo de tratamento através da reabilitação (OLIVEIRA , 2017OLIVEIRA, B. D. C. et al. Políticas para o autismo no Brasil: entre a atenção psicossocial e a reabilitação1. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 27, n. 3, p. 707-726, jul. 2017.). Assim, a falta de consenso entre a concepção destes modelos pode, em parte, explicar a baixa proporção de procedimentos de reabilitação. Porém, apenas uma avaliação num nível local possibilitaria esclarecer este cenário, considerando-se que as metodologias terapêuticas não são estabelecidas como protocolos de tratamento. Cabe ainda ponderar se o rol de procedimentos descritos na tabela de procedimentos do SUS é suficiente para os cuidados necessários a estes pacientes, pois, diante da escassez de opções, outras atividades poderiam estar sendo lançadas como atendimentos em grupo ou individual. Soma-se a isto as intervenções apontadas na revisões sistemáticas Cochrane que não fazem parte do rol dos procedimentos impossibilitando mensurar se estas práticas são realizadas nestes espaços (LYRA , 2017LYRA, L. et al. What do Cochrane systematic reviews say about interventions for autism spectrum disorders? Sao Paulo Medical Journal, v. 135, n. 2, p. 192-201, abr. 2017.).

O desequilíbrio identificado entre as categorias profissionais que estão nestes serviços também pode parcialmente explicar a baixa proporção de alguns procedimentos, o que pode refletir no plano terapêutico. Apesar do reconhecimento da importância do trabalho multidisciplinar (KLIN , 2005KLIN, A. et al. Clinical evaluation in autism spectrum disorders: psychological assessment within atransdisciplinary framework. In: Volkmar F, Paul R, Klin A, Cohen D,editors. Handbook of Autism and Pervasive Developmental Disorders. 3. ed. New York: Wiley, 2005. v. 2.; BRASIL, 2014b; BRASIL, 2015), a ausência de critérios explícitos e de metodologias terapêuticas (OLIVEIRA , 2017OLIVEIRA, B. D. C. et al. Políticas para o autismo no Brasil: entre a atenção psicossocial e a reabilitação1. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 27, n. 3, p. 707-726, jul. 2017.) possivelmente se reflete nos procedimentos ofertados no SUS.

Vale ressaltar que este estudo é inédito pois utiliza as informações dos Registro de Ações Ambulatoriais e do SCNES para discutir perfil de crianças e adolescentes com transtorno do desenvolvimento global atendidas nos CAPS, por número de casos, tipo de CAPS, composição de equipes profissionais e procedimentos ofertados. O estudo traz também a necessidade de se discutir o atendimento nos CAPS, sob a perspectiva de se oferecer um trabalho multiprofissional, e de monitorar e avaliar como isto se reflete nos procedimentos informados no SUS. A carência de profissionais especialistas na rede, a conduta inapropriada quanto à avaliação, ao diagnóstico e ao encaminhamento para o tratamento pode ser compreendida como barreiras de acesso ao tratamento da criança (FÉLIX; SANTOS, 2016FÉLIX, L. B.; SANTOS, M. F. S. Infância e Atenção Psicossocial. ECOS, v. 6, n. 1, p. 36-50, 2016.). Por fim, espera-se que este estudo estimule a utilização do banco de dados da atenção psicossocial para fins de estudo e como apoio a gestão.

Conclusão

O atendimento de crianças e adolescentes com TGD deve ser realizado no CAPSi, o qual prevê equipe multiprofissional, importante para qualificar o diagnóstico e prover um plano terapêutico adequado. São necessários estudos que busquem esclarecer o motivo de algumas crianças e adolescentes com TGD estarem sendo atendidas em outros tipos de CAPS bem como a predominância da demanda espontânea por estes serviços, o grande número de registros identificados em crianças menores de um ano e os porquês de um diagnóstico mais tardio em crianças do sexo feminino. Os procedimentos realizados apontam para a necessidade de estabelecer parâmetros que possibilitem avaliar se estes estão adequados a um plano terapêutico.

Monitorar e avaliar os procedimentos realizados nos CAPS é fundamental para discutir se as ações prestadas estão consoantes com as necessárias para o desenvolvimento da autonomia, reinserção social e a reabilitação dos pacientes com TGD.11 J.G. Tomazelli participou do delineamento do estudo, aquisição e da análise dos dados, redação e revisão crítica do texto. C.S. Fernandes participou da interpretação dos resultados e revisão crítica do texto. Todos os autores aprovaram a versão final, assumindo a responsabilidade por todos os aspectos do trabalho, no sentido de garantir que as questões relacionadas à exatidão ou à integridade de qualquer parte da obra sejam devidamente investigadas e resolvidas.

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  • 1
    J.G. Tomazelli participou do delineamento do estudo, aquisição e da análise dos dados, redação e revisão crítica do texto. C.S. Fernandes participou da interpretação dos resultados e revisão crítica do texto. Todos os autores aprovaram a versão final, assumindo a responsabilidade por todos os aspectos do trabalho, no sentido de garantir que as questões relacionadas à exatidão ou à integridade de qualquer parte da obra sejam devidamente investigadas e resolvidas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2019
  • Aceito
    16 Dez 2019
  • Revisado
    19 Maio 2021
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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