Residência Multiprofissional em Saúde: (trans)formação para o SUS em comunidades quilombolas

Multiprofessional Residency in Health: (trans) formation for SUS in quilombola communities

Vanessa Alves de Souza Idê Gomes Dantas Gurgel Paulette Cavancanti de Albuquerque Sobre os autores

Resumo

A inserção e atuação profissional, no Sistema Único de Saúde (SUS), suscita debates e reflexões a respeito da formação de profissionais. Dessa forma, uma das estratégias para a obtenção de formação para o SUS são as Residências Multiprofissionais em Saúde (RMS). Neste estudo, objetivamos analisar as transformações no cotidiano dos serviços de saúde com a inserção do programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família, com ênfase na saúde da população do campo (RMSFC). Trata-se de um estudo de caso, de natureza qualitativa, tendo como participantes os atores que compõem o quadrilátero da formação, através de entrevistas semiestruturadas. Utilizamos a análise Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), com o intuito de fazer o tratamento dos dados. Consideramos que esta pesquisa nos permitiu, ainda, visualizar as práticas e as transformações ocorridas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) após a inserção da RMSFC. Assim, temos informações importantes para refletir acerca de estratégias de formação de profissionais para trabalhar no SUS, especificamente no contexto da Saúde da População do Campo, contemplando comunidades quilombolas.

Palavras-chave:
Residências Multiprofissionais em Saúde; Produção de cuidado; Formação para o SUS; Quilombolas; Discurso do sujeito coletivo.

Abstract

The insertion and professional performance in the Unified Health System (SUS), raises debates and reflections regarding the training of healthcare professionals. Thus, one of the strategies for obtaining training for the SUS is the Multiprofessional Residencies in Health (RMS). In this study, we aim to analyze the changes in the daily lives of health services with the insertion of the Multiprofessional Residency Program in Family Health, with an emphasis on the health of the rural population (RMSFC). It is a case study, of a qualitative nature, having as participants the actors that compose the quadrilateral of the formation, through semi-structured interviews. We used the Collective Subject Discourse (CSD) analysis, in order to process the data. We believe that this research also allowed us to visualize the practices and changes that occurred in the Basic Health Units (UBS) after the insertion of the RMSFC. Thus, we have important information to reflect on strategies for training professionals to work in SUS, specifically in the context of the Health of the Population of the Countryside, contemplating quilombola communities.

Keywords:
Multiprofessional Residencies in Health; Care production; Training for SUS; Quilombolas; Collective subject discourse.

Introdução

A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 200, entre as competências do Sistema Único de Saúde (SUS), ordenar a formação de pessoas para o trabalho na atenção à saúde, o que foi ratificado posteriormente pela Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, cujo art. 27 destaca a formação de recursos humanos como necessidade e dever do SUS (BRASIL, 2003BRASIL. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2013.).

No âmbito das possibilidades de efetivar a formação para o SUS, temos as Residências Multiprofissionais de Saúde (RMS), que objetivam promover uma formação e/ou qualificação de profissionais para atuar nos serviços de saúde do SUS, por meio da integração ensino-serviço-comunidade, através das práticas da Educação Permanente em Saúde (EPS), como nos dizem Camargo e Medeiros (2016).

Ferreira (2019FERREIRA, L. et al. Educação Permanente em Saúde na atenção primária: uma revisão integrativa da literatura. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 120, p. 223-239, jan-mar. 2019.) apontam que os processos da EPS precisam acontecer de modo descentralizado, ascendente e transdisciplinar. Sempre embasados na aprendizagem significativa, para que as mudanças de estratégias, de organização e de prática da atenção à saúde se efetivem de forma participativa, a partir da problematização do processo de trabalho local.

Nesse viés, as Residências Multiprofissionais em Saúde são regulamentadas a partir da Lei n° 11.129, de 30 de junho de 2005, e são orientadas a se pautar pelos princípios e diretrizes do SUS e a considerar, prioritariamente, as necessidades das populações regionais e localmente constituídas (BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde. Câmara de Regulação do Trabalho em Saúde. Brasília: MS, 2006.). Dessa forma, viabilizam espaços de debate e articulação, o que valoriza o conhecimento e o reconhecimento de cada trabalhador, nas Unidades de produção de cuidado em saúde, buscando construir novos significados para o trabalho de cada profissional.

As RMS funcionam mediante a integração entre a Unidade de Ensino e a Unidade de Saúde, onde se materializa a produção de cuidado. Quando estão no ambiente de estudo, as pessoas em formação levam consigo as vivências e aprendizagens obtidas nas atividades profissionais, quando estão nas unidades de saúde, esses mesmos profissionais materializam, na produção dos atos de saúde, os aprendizados intensamente refletidos nos lugares acadêmicos (AGONIGI, 2019AGONIGI, R.C. et al. A produção do cuidado no cotidiano das Equipes de Saúde da Família. Revista Brasileira de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 71, (supl. 6), p. 2817-2824, 2018.). Nessa perspectiva, o Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família, com ênfase em Saúde da População do Campo (RMSFC), da Universidade de Pernambuco, surge na possibilidade de atuação com a população campesina, considerando suas necessidades de saúde específicas e singulares.

A RMSFC tem como principal objetivo a formação de profissionais de saúde para atuar e intervir junto às populações do campo, floresta e águas, articulando a formação clínica à luz da perspectiva da atenção integral à saúde, sintonizada com o cenário do SUS e suas políticas, observando a situação em que vivem esses grupos populacionais no que se refere ao acesso às ações e aos serviços de saúde (UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO, 2014UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO. Projeto sobre programa nacional de bolsas para residências multiprofissionais e em área profissional da saúde. Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família com Ênfase na Saúde da População do Campo. Recife, 2014. ).

O Programa organiza sua atuação em diferentes dispositivos da Rede de Atenção à Saúde (RAS), contemplando serviços de saúde no âmbito da gestão estadual, regional e municipal, nos equipamentos sociais e culturais do município e, principalmente, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) localizadas em duas cidades do agreste pernambucano: Caruaru - onde atua no cuidado à saúde no território de um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) - e Garanhuns cuja atuação está voltada para o cuidado em um território de comunidades quilombolas (UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO, 2014UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO. Projeto sobre programa nacional de bolsas para residências multiprofissionais e em área profissional da saúde. Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família com Ênfase na Saúde da População do Campo. Recife, 2014. ). Como se trata de uma residência multiprofissional em saúde, conta com profissionais das áreas de Educação Física, Enfermagem, Fisioterapia, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social, Saúde Coletiva, Farmácia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional. Anualmente, são abertas 20 vagas, distribuídas nas duas cidades.

Existem atividades teóricas, teórico-práticas e didáticas, interagindo de forma complementar, distribuídas em uma carga-horária de 60 horas semanais. Algumas atividades desenvolvidas são: o tempo aula - incluindo disciplinas básicas, seminários, estudos de caso, reuniões de núcleo de base, apresentação e discussão de casos clínicos (no cotidiano dos serviços de saúde ou nos espaços da instituição formadora), clube de revista, aulas expositivas, disciplinas optativas e atividades ético-culturais. (UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO, 2014UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO. Projeto sobre programa nacional de bolsas para residências multiprofissionais e em área profissional da saúde. Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família com Ênfase na Saúde da População do Campo. Recife, 2014. ).

Empiricamente, observam-se mudanças no cotidiano das unidades de saúde em decorrência da formação promovida pela RMSFC. Percebe-se também que tais práticas mobilizam, movimentam e mexem com os demais profissionais de saúde atuantes nas equipes de Estratégia de Saúde da Família, em que o programa de residência está inserido, remetendo a olhares novos e ampliados para o fenômeno que emerge das necessidades de saúde produzidas pelas populações assistidas.

As práticas desenvolvidas pela RMSFC têm facilitado, motivado e propiciado transformações nas atividades e na organização das UBSs. Estas transformações ocorrem, sobretudo, por meio da EPS, no instante em que novas reflexões são fomentadas e práticas já realizadas são reafirmadas ou ressignificadas.

Entretanto, estas observações requerem uma avaliação mais profunda. Desse modo, este artigo procura analisar as transformações no cotidiano dos serviços de saúde, com a inserção do programa de RMSFC para o fortalecimento e/ou construção da produção de cuidado em comunidades Quilombolas de Garanhuns em Pernambuco.

Método

Trata-se de um estudo de caso, com abordagem qualitativa, cuja seleção dos participantes considerou o quadrilátero da formação proposto por Ceccim e Feuerwerker (2004)CECCIN, R.; FEUERWERKER, L. C. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1; p 41-65, 2004. , que apontam os agentes envolvidos nos processos de Ensino (residentes), Gestão (gestores da Atenção Primária em Saúde), Atenção (Profissionais de saúde das UBSs/preceptores) e Controle Social (usuários das UBSs), contando com doze participantes.

Como método de coleta de dados, utilizamos a entrevista semiestruturada, a qual, de acordo com Minayo e Costa (2018MINAYO, M. C. S.; COSTA, A. P. Fundamentos Teóricos das Técnicas de Investigação Qualitativa. Revista Lusófona de Educação, São Paulo, v. 40, p. 139-153, 2018. ), trata-se de uma técnica flexível que permite ao participante da pesquisa expressar-se livremente, transitando até mesmo por questões que não estejam contempladas no roteiro de entrevista, a partir de perguntas que pudessem instigar as reflexões e falas.

As entrevistas foram realizadas em lugar neutro, de escolha dos participantes da pesquisa. Procuramos um lugar livre de interrupções e tivemos em torno de 30 minutos para cada entrevista. Demos possibilidade de fala aos participantes, bem como de silenciar, caso quisessem. Gravamos o áudio, mediante autorização deles e, em seguida, o transcrevemos na íntegra para posterior análise. Foram elaborados quatro roteiros, com questões norteadoras que atendessem às especificidades de cada representação das pessoas entrevistadas (gestores, preceptores, residentes e usuários ligados à RMSFC), para abordar as principais transformações ocorridas no cotidiano das UBSs a partir da inserção do programa.

A análise de Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) foi o método de escolha para o tratamento dos dados. De acordo com Lefèvre e Lefèvre (2012)LEFEVRE, A. M. C.; LEFEVRE, F. Discurso do Sujeito Coletivo: representações sociais e intervenções comunicativas. Texto e contexto enfermagem, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 502-507, abr./jun. 2014. , no momento da elaboração do DSC, valemo-nos de algumas figuras metodológicas que nos permitem visualizar pensamentos coletivos retratados nos depoimentos e opiniões individuais. Para os fins deste trabalho, utilizamos as seguintes:

  1. Expressões-chave - se constituem como partes do discurso que apresentam a essência do conteúdo do discurso;

  2. Ideias centrais - compreendemos como denominações ou expressões linguísticas que são condições para identificarmos sentidos construídos nas Expressões-Chaves, com o fito de que, assim, pudéssemos fazer as categorizações.

Segundo Spink (2000SPINK, Mary Jane. A ética na pesquisa social: da perspectiva prescritiva a interanimação dialógica. Revista Semestral da Faculdade de Psicologia da PUCRS. Rio Grande do Sul, v. 31, n 1, p. 7-22, jan/jul. 2000. ), cuidados éticos, impreterivelmente, precisam ser levados em conta para se realizar uma pesquisa. Para tanto, agimos conforme observância das Resoluções 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde. Desse modo, obtivemos aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), do Instituto Aggeu Magalhães, através do CAAE 15891819.5.0000.5190.

Resultados e Discussões

As percepções evidenciadas nos discursos construídos pelos sujeitos de nossa pesquisa evocam a maneira como a presença da RMSFC tem promovido transformações no cotidiano das UBSs. Isto pode ser evidenciado no DSC 1 - Gestores -, cuja ideia central foi a percepção sobre as transformações fomentadas pela RMSFC.

Fazer diagnóstico do território é um diferencial muito grande. Fora que também tem o trabalho nas escolas. É uma surpresa a potência das ações que os (as) residentes realizam. Solicitam melhorias para Unidade e consequentemente para a população. A gente vai ver que depois do residente o cenário é outro positivamente falando. Aumentado a resolutividade nas UBSs aonde eles trabalham. É o caso de lazer. Eles oportunizam cinema para essa população, que nunca viram nenhum filme. De forma lúdica trabalhando o processo saúde-doença-cuidado. Porque eles dão conta da situação. Então, para a população... Eu vou dizer uma coisa, se fizer uma pesquisa na população eu acho que eles estão muito satisfeitos. (DSC - Gestores).

Esse DSC 1 - Gestores - demonstra que, baseados nos indicadores de saúde propostos, há a percepção de que houve melhoria na resolutividade. Para Costa et al. (2014), por resolutividade compreende-se a devolutiva satisfatória que o serviço de saúde fornece ao usuário no instante em que existe a procura de atendimento a alguma necessidade de saúde. Destacamos que esta resposta não é necessariamente caracterizada como imediata, mas está relacionada ao processo de cuidar.

Para Vasconcelos (2020)VASCONCELOS, M. I. O. et al. Avaliação da resolutividade e efetividade da atenção primária à saúde: revisão integrativa de literatura. SANARE, Sobral, v. 17, n. 1, p. 65-73, jan-jun. 2018., a Atenção Primária em Saúde (APS) encena como uma estratégia basilar para aumentar a resolutividade dos serviços, através de possibilidades de redução das iniquidades presentes na saúde pública. A resolutividade, por sua vez, deve ser norteada pelos seguintes atributos: acesso; longitudinalidade; integralidade; e coordenação.

Concordamos com Facchini (2018FACCHINI, L. A. et al. Qualidade da Atenção Primária à Saúde no Brasil: avanços, desafios e perspectivas. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 42, Número Especial 1, p. 208-223, set. 2018.) quando nos convidam a refletir sobre o fato de a Atenção Básica ser a porta de entrada preferencial do SUS, mas vemos o acesso dificultado por problemas, como organização na UBS, acolhimento funcionando de forma inadequada - que pode funcionar como barreira ao acesso em alguns casos -, ausência de profissionais com formação adequada para o trabalho no SUS, dificuldades em dar seguimento ao processo de cuidado. Sabemos que existem muitos desafios quando tratamos sobre o acesso aos serviços de saúde em zona rural. Schmidt (2019)SCHIMITH, M. D. et al. Acessibilidade organizacional: barreiras na continuidade do cuidado na atenção primária à saúde. Revista de Enfermagem da UFSM, Santa Maria, v. 9, p. 1-17, 2019. nos diz que estas dificuldades também perpassam por situações, como profissionais de saúde com formação não condizente com o contexto de atuação, distanciamento geográfico no território, dificuldade para estabelecer espaços sociossanitários.

Acreditamos que as práticas desenvolvidas pelos profissionais da RMSFC, em conjunto com os profissionais na UBS, aliadas às ações em EPS, têm contribuído para a melhoria da resolutividade e do acesso a essas UBSs, mas compreendemos também que existe um longo caminho a percorrer para o estabelecimento dessas, sobretudo quando tratamos de comunidades quilombolas.

Destacamos, ainda, a importância das ações de Educação em saúde, as quais são empreendidas pela RMSFC, no instante em que chamam atenção para o fato de que todas as pessoas que vivem na comunidade são responsáveis por sua preservação, incentivando a revisão de alguns hábitos e práticas para o estabelecimento de compromisso com o destino dos resíduos produzidos.

Além disso, como retratam os gestores, em seu DSC 1 - Gestores -, é destacada a importância do lazer quando pensamos nas práticas de saúde. Para Werle (2018WERLE, V. Relações entre lazer e saúde em tempos de cultura somática. Revista Brasileira de Estudos do Lazer. Belo Horizonte, v. 5, n. 2, p. 20-32, maio-ago. 2018.), podemos pensar as relações entre lazer e saúde sob a perspectiva da qualidade de vida, da interação entre os (a) comunitários (a). Uma forma de proporcionar o lazer nas referidas comunidades foi a partir da realização do cineclube, que, no entendimento da gestão, facilita o acesso de pessoas que não conseguem ou não podem chegar a salas de cinema.

Aqui, vemos o reconhecimento da realização da territorialização como forma de transformação das práticas realizadas na UBS. Faria (2020FARIA, R. M. A territorialização da Atenção Básica à Saúde do Sistema Único de Saúde do Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 11, p. 4521-4530, 2020.) nos diz que uma das bases da ESF é que a Atenção Básica seja constituída com base na territorialização e seja voltada à população adscrita. Logo, é o local ideal para identificar fatores, situações e necessidades de saúde alinhados com o processo saúde-doença-cuidado.

O discurso construído a partir da fala dos preceptores nos fornece outros elementos para que possamos discutir as transformações ocorridas no cotidiano das UBSs. Vemos tal questão, no DCS 2 - Preceptores, elencado a seguir, cuja ideia central perpassa pelas percepções sobre as transformações fomentadas pela RMSFC:

As notificações aumentaram devido à busca ativa e à formação de vínculo. A comunicação em conjunto com outros setores. Intervenções com gestantes, sobre o planejamento familiar. E os grupos de Hiperdia a gente faz uma vez por mês. Dialogar com as pessoas sobre a questão do lixo, da questão da água, da conservação da água. E eu acho que aos pouquinhos a gente vai conseguindo, sim, mudar a visão, mudar essa questão do cuidado. A questão do tabagismo, por mais que a gente não consiga que eles cessem o uso do cigarro, mas eles diminuem, então já é uma redução de danos. Então há uma mudança significativa! A partir do momento que eles foram lá, criaram esse vínculo, ofertaram um serviço, aumentou muito a demanda, então eles contribuíram para o aumento da demanda lá. E na própria equipe a gente vê um movimento sim nos profissionais. A gente está muito acostumado naquelas nossas caixinhas, aí quando vem alguém que diz não, não precisa ser assim a gente se desestrutura um pouquinho, mas eu percebo sim esse movimento bem legal nas equipes e de como as equipes andam mais quando a residência está presente. Temos sanitarista! Foi a partir da residência que eu comecei a fazer estudos, projetos e pesquisas. E aí, foi a partir daí que eu comecei a ir para congressos. Então, isso deu um levante tanto na questão profissional, porque é uma conquista também profissional (DSC - Preceptores).

O DSC 2 - Preceptores - apresenta-nos uma das transformações surgidas com a presença da RMSFC que foi o aumento das notificações de violência. As fichas de notificação de violência estão colocadas nos serviços de saúde e emanam como um importante instrumento para o planejamento de ações visando à sua diminuição ou à erradicação.

Rodrigues et al. (2018) nos dizem que a violência é considerada um complexo problema de saúde pública com reverberações na qualidade de vida das pessoas e das sociedades. O termo se transmuta em ações humanas de indivíduos, grupos, classes ou nações que podem ocasionar a morte ou afetar a integridade física, moral, mental ou espiritual das pessoas.

Destacamos a maximização de ações intersetoriais. Vemos a realização de ações juntamente com o CRAS, com a Secretaria Municipal da Mulher, com os Centros de Atenção Psicossocial, com a Secretaria Municipal de Educação, entre outros. Para Silva e Tavares (2016SILVA, D. A. J; TAVARES, M. F. L. Ação intersetorial: potencialidades e dificuldades do trabalho em equipes da Estratégia Saúde da Família na cidade do Rio de Janeiro. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. 111, p. 193-205, out-dez 2016.), as ações intersetoriais, no âmbito da ESF, requerem articulação e planejamento do processo de trabalho. O diálogo intersetorial é uma tarefa complexa, pois é necessário entrelaçar visões diferentes para construir decisões no enfrentamento das situações-problemas, sendo uma estratégia eficaz para construção e reinvenção das práticas em saúde em comunidades quilombolas.

Os preceptores anunciam que a RMSFC tem provocado algumas modificações, as quais são consideradas bastante desafiadoras, que é o caso das ações de planejamento familiar. Quando tratamos de planejamento familiar, nos referimos ao acolhimento das demandas em saúde sexual e reprodutiva, às ofertas de informações e ao acompanhamento na UBS, bem como à oferta de métodos e técnicas para a concepção e a anticoncepção (BRASIL, 2010BRASIL. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.).

Consideramos que as ações de planejamento familiar destinadas à população de comunidades quilombolas devem levar em conta sua cultura, suas relações com os saberes que são repassados pelas gerações anteriores e o modo como as informações e protocolos acerca dessa temática podem contribuir para o alcance do objetivo esperado, que são “a promoção da igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres; a melhoria da saúde materna; o combate ao HIV/Aids, à malária e às outras doenças; e a redução da mortalidade infantil” (BRASIL, 2010, p. 9BRASIL. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.).

O discurso dos preceptores destaca o estabelecimento e o seguimento periódico dos grupos denominados com base no Programa Nacional de Hipertensão e Diabetes mellitus (HIPERDIA), o qual enseja promover cuidados para a população com Diabete Mellitus (DM) e Hipertensão Arterial (HA).

O HIPERDIA é uma ação de grande relevância para a comunidade quilombola, já que dados do Ministério da Saúde nos revelam que a HA acomete duas vezes mais indivíduos com ancestralidade negra (FURTADO ., 2014FURTADO, M. B. Cultura, identidade e subjetividade quilombola: uma leitura a partir da psicologia cultural. Psicologia e sociedade, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 106-115, 2014.).

Para Freitas (2011FREITAS, D. A. et al. Saúde e comunidades quilombolas: uma revisão da literatura. Revista CEFAC, Campinas, v. 13, n. 5, p. 937-943, set./out. 2011.), no instante em que pensamos na assistência e na atenção em saúde da população negra, é importante fazermos o recorte étnico/racial, pois nos permite a identificação de grupos populacionais mais suscetíveis a agravos à saúde, como a hipertensão arterial (HA), dando margem para intervenções acertadas.

É perceptível que as transformações empreendidas pela RMSFC são tangenciadas pelas ações de educação em saúde na comunidade e se trata de um processo de construção de conhecimentos em saúde com e para a população. Ademais, essas promovem a autonomia das pessoas em seu processo de cuidado em saúde, de acordo com suas necessidades (BRASIL, 2006BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde. Câmara de Regulação do Trabalho em Saúde. Brasília: MS, 2006.). Compreendemos, ainda, que, para que os profissionais desenvolvam educação em saúde na comunidade, é necessário que ocorram serviços na Educação Permanente em Saúde e na Educação continuada, conforme dizem Falkenberg et al. (2014).

Vemos emanar a Redução de Danos (RD) em relação ao tabagismo. Esta modalidade de intervenção atua sobre os problemas relacionados ao uso abusivo de drogas, de modo humanizado, sem culpabilizar, estigmatizar ou criminalizar o usuário, o qual é compreendido como um sujeito inserido num processo sócio-histórico-cultural, influenciando e sendo influenciado pelo meio onde está inserido, conforme nos dizem Marciel e Vargas (2015).

É válido ressaltar que, no instante da realização de ações de RD, faz-se necessário compreender que os estilos de vida e as formas de compreender o mundo estão intimamente ligados ao território e à identidade, constituindo um espaço social próprio, com formas singulares e simbólicas de transmissão de bens materiais e imateriais para a comunidade (BRASIL, 2004BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: 1988.. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2004.).

Outra situação que merece destaque em nosso debate é o aumento da demanda de jovens e adolescentes da comunidade procurando as UBSs onde a RMSFC está inserida. A abordagem ao jovem e ao adolescente deve ser humanizada e pautada em questões que são importantes para esse grupo populacional, como discussões sobre padrões e valores sociais historicamente construídos nas expectativas e dos papéis sociais que repercutem no crescimento e no desenvolvimento saudáveis (BRASIL, 2010BRASIL. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde , 2010.).

Uma das atividades que a RMSFC promove tem como público-alvo a população de estudantes que frequenta as escolas da comunidade. Acreditamos que estas ações contribuem para o aumento da procura por mais possibilidades de cuidado na UBS.

É referido, também, um movimento de reorganização do processo de trabalho, o qual mobiliza os profissionais da equipe da UBS e os residentes, a fim de que haja reorganização da assistência na UBS e na Rede de Atenção à Saúde. Destaca-se, ainda, a presença do sanitarista na RMSFC, que atua no SUS em questões sociais e políticas, com o planejamento e a avaliação de programas de saúde e com as práticas coletivas de proteção da saúde, sem prestar assistência individual, segundo Silva e Pinto (2018SILVA, F. S. et al. Descrições do processo saúde-doença-cuidado na perspectiva de usuários de um centro de atenção psicossocial. REFACS, v. 6, n. 4, p. 745-752, 2018.).

O discurso dos residentes destaca as transformações ocorridas em cada UBS, o que foi sistematizado no DSC 3 - Residentes -, com a ideia central: percepções sobre as transformações fomentadas pela RMSFC:

Acho que é ver pessoas se permitindo. Vê a gente se colocando, se questionando. Como ator ali social daquele processo. Isso desencadeia vários processos. Dos usuários terem a possibilidade de ter mais profissionais e ter resolubilidade. A gente aproveita que temos que fazer aqueles meses de campanha para estar reafirmando, por exemplo: novembro azul vai ter toda uma conversa, a gente vai falar sobre preconceito, sobre machismo, sobre discriminação. A gente também usa esses espaços para desconstruir alguns conceitos. Pensar a saúde do trabalhador. Em relação, por exemplo, a equipe da ESF a gente conseguiu realizar PICS com eles. Então a gente faz um cuidado e a gente tem um protocolo de auriculoterapia que a gente está aplicando nos profissionais que desejarem, para que eles tenham esse cuidado. (DSC - Residentes).

Este DSC 3 - Residentes - evidencia que uma das transformações que a RMSFC vem empreendendo é “ver as pessoas se permitindo”, tanto profissionais (residentes, preceptores e gestão) quanto usuários. Sabemos que, como seres humanos, os processos de mudança são partes constituintes de nossa construção subjetiva. Assim, a abertura para o novo é complexa e singular, com variações de pessoa para pessoa.

A mobilização para a mudança perpassa pelo querer da pessoa, e é necessário disponibilidade para isso. Em se tratando desse fazer saúde, em comunidades quilombolas, compreendemos que a cultura e a historicidade devem ser preservadas e respeitadas, mas podem se acrescentar ações que tragam melhoria na qualidade de vida e maximização das práticas e intervenções em saúde.

Castro (2019CASTRO, B. C. S. Direitos e deveres dos usuários do Sistema Único de Saúde: relato de experiência. Revista Família, Ciclos de Vida e Saúde no Contexto Social, Minas Gerais, v. 7, n. 1, p. 111-118, 2019.) nos mostram que devemos considerar e estimular a construção de autonomia como uma das finalidades do trabalho em saúde que tem importantes implicações políticas, epistemológicas e organizacionais. Ao passo que abraçar esta diretriz demanda uma reformulação tanto dos valores políticos quanto dos conceitos teóricos que orientam o processo de trabalho em saúde na Atenção Básica. Tal situação é exemplificada no instante em que é mencionado, no DSC 3 - Residentes -, que os meses temáticos, como Novembro Azul, para além da discussão sobre a saúde do homem do ponto de vista físico, também são debatidas temáticas, a exemplo do preconceito, do machismo e da discriminação.

Outra situação para dialogarmos é a importância que ancora realizar ações de cuidado voltadas para os profissionais de saúde das UBSs onde a RMSFC está inserida. De acordo com Faria (2017FARIA, S. S. Aspectos emocionais do luto e da morte em profissionais da equipe de saúde no contexto hospitalar. Psicologia Hospitalar, Maranhão, v. 15, n. 1, p. 44-66, 2017.), o cuidador - profissional de saúde - enfrenta as mais distintas situações e fatores em sua lida diária no ambiente de trabalho, que afetam sua integridade física, psíquica e emocional.

De acordo com Malta e Merhy (2010MALTA, D. C.; MERHY, E. E. O percurso da linha do cuidado sob a perspectiva das doenças crônicas não transmissíveis. Interface - Comunicação, saúde, educação , Botucatu, v.14, n.34, p. 593-605, jul./set. 2010.), as ações e intervenções em saúde ainda são consideravelmente centradas no modelo curativo-assistencialista, o qual, muitas vezes, não avalia a determinação social do processo saúde-doença, as relações com o ambiente e a subjetividade como relacionados ao processo saúde-doença-cuidado, dando maior ênfase às dimensões biológicas.

Concordamos com Breilh (2013BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública. Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellím, v. 31, n. 1, p. 13-27, dec. 2013.), quando ele atesta que as necessidades de saúde vão além das demandas puramente biológicas e devem ser consideradas, de modo coletivo e contextualizado, transpondo as práticas fomentadas de forma individual e isolada.

Lacaz (2013LACAZ, F. A. C. et al. Estratégia saúde da família e saúde do trabalhador: um diálogo possível? Interface - Comunicação, saúde, educação, Botucatu, v. 17, n. 44, p. 75-87, jan./mar. 2013. ) nos dizem que se faz necessário planejar e executar ações de atenção à saúde dos trabalhadores das equipes da ESF, sobretudo por estes lidarem com a superação dos limites diariamente em sua atuação, dado o grande contingente populacional presente na maioria dos territórios das UBSs. Na prática cotidiana, os residentes promovem ações, como realização de Práticas Integrativas e Complementares (PICS), com os profissionais da UBS, rodas de conversa sobre o processo de trabalho e disponibilidade para troca e escuta.

O DSC 4 - Usuários (as) -, mostrado a seguir, demonstra-nos a percepção destes sobre como a presença da RMSFC proporcionou transformações para o cotidiano das Unidades de Saúde onde está inserida, tendo como ideia central: percepções sobre as transformações fomentadas pela RMSFC.

Melhorou muito depois que chegou os residentes. Todos os dias eles estão aqui. A doença não avisa a hora. Melhorou 100%. Faz muita diferença. Não precisamos mais ir para outro lugar. O que eles podem ajudam. Eles marcam um dia para você vim (para a UBS) se você disser que não pode vir eles vão na sua casa. Eu gosto de receber eles na minha casa. Faço amizade com eles. Conheci e fui atendida também pelos últimos que passaram aqui. Eu fazia acompanhamento com eles também. Tinha Esmeralda, Rubi, Pérola. A gente também fica triste quando chega um grupo e depois sai, porque a gente se apega a eles (DSC - Usuários).

O DSC 4 - Usuários - mostra como a formação de vínculo entre profissionais e usuários (espaços intercessores) confere uma qualidade diferenciada às intervenções em saúde (trabalho vivo em ato), permitindo que as práticas em saúde estejam de acordo com as necessidades de saúde da população (produção de cuidado). O vínculo é uma das dimensões para a produção de cuidado proposta por Rios e Nascimento (2017RIOS, M. O.; NASCIMENTO, M. A. A. Produção do cuidado para resolubilidade da estratégia de saúde da família: saberes e dilemas. Revista de Enfermagem da UFPE, Recife, v. 11, Supl. 9, p. 3542-3550, set., 2017).

O estabelecimento do vínculo entre a equipe da ESF e os usuários é uma condição básica para a implementação do cuidado em território, pois lança o alicerce para os laços de confiança e corresponsabilidade no trabalho dos profissionais junto aos usuários (BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde. Câmara de Regulação do Trabalho em Saúde. Brasília: MS, 2006.). A identificação das residentes da turma anterior, Esmeralda, Rubi, Pérola (nomeadas neste estudo por pedras preciosas para preservarmos suas identidades), é uma das evidências deste vínculo.

Seixas (2019SEIXAS, C.T. et al. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface - Comunicação, saúde, educação , Botucatu, v. 21, n. 29, p. 1-14, 2019.) atestam que o vínculo é uma relação interpessoal estreita e, muitas vezes, duradoura entre o profissional de saúde e o usuário, permitindo um cuidado longitudinal, facilitando a continuidade, em que, regularmente, várias gerações da mesma família são cuidadas e/ou acompanhadas pelo mesmo profissional de saúde. Percebemos que foi mencionado que as pessoas estão compreendendo que o fazer saúde vai além da presença de um único profissional na unidade de saúde, o médico. Essa perspectiva reflete na mudança da forma de conceber a saúde que precisa transpor o modelo-curativo.

Silva (2018SILVA, V. O.; PINTO, I. C. M. Identidade do sanitarista no Brasil: percepções de estudantes e egressos de cursos de graduação em Saúde Pública/Coletiva. Interface - Comunicação, saúde, educação , Botucatu, v. 22, n. 65, p. 539-550, 2018.) nos revelam que o conhecimento sobre o processo saúde-doença-cuidado, em comunidades quilombolas, ainda é incipiente e carece ser problematizado e discutido. A atenção equânime em saúde, para esta população, precisa ser preconizada e factível. Deste modo, o planejamento dos serviços de saúde passa a ter o olhar contextualizado com as necessidades de saúde da população. As intervenções realizadas ancoram sob a égide da compreensão do cotidiano da comunidade e não somente como fruto de uma demanda descontextualizada com o território. Trata-se, pois, de conhecer para intervir. Assim, o acesso aos diferentes profissionais que compõem a RMSFC favorece o acesso aos cuidados em saúde, pois os usuários não precisam se deslocar para os centros urbanos para acessar serviços de acompanhamento psicológico, por exemplo, já que existe esse profissional presente na UBS, na comunidade e na casa das pessoas.

Com base em cada DCS construído, elaboramos um quadro síntese para evocar as principais colocações de cada representação do quadrilátero da formação, como forma de compreender a visão de cada representação, conforme quadro 1.

Quadro 1
Síntese das transformações fomentadas pela RMSFC

Considerações finais

Analisar as transformações no cotidiano dos serviços de saúde, com a inserção do programa de RMSFC, permitiu adentrar, descobrir e refletir sobre os modos de fazer saúde, os quais precisam estar necessariamente alinhados com o que é preconizado pelo SUS. Foi bastante relevante perceber como as diferentes percepções das pessoas que fazem parte do quadrilátero da formação podem ampliar a nossa visão sobre este processo. Cada pessoa apresenta sua fala a partir do lugar que ocupa.

A partir da fala dos(as) gestores(as), vemos a presença de elementos ligados ao alcance de indicadores, ao modo como a presença da residência reverbera na comunidade, com base em um acompanhamento que ocorre no nível da gestão e vai deslocando o olhar para as unidades de saúde através do monitoramento, do acompanhamento e da avaliação dos indicadores. Diante disso, percebeu-se, pela gestão da SMS, que o fato de essa residência estar concentrada nas comunidades quilombolas facilita o contato qualificado da população com profissionais de saúde de distintas áreas, participando ativamente do cotidiano da UBS, conhecendo e vivendo a dinâmica da comunidade.

Nos discursos produzidos pelos preceptores, percebemos a presença de elementos ligados às ações de saúde que são desenvolvidas, com uma visão voltada para a assistência ao a) usuário(a) e suas necessidades de saúde. Notamos que existe uma dinâmica diferente na Unidade de Saúde, que é propiciada pela presença de mais profissionais, os quais, além de uma presença quantitativa, conferem uma qualidade diferenciada ao trabalho, por serem profissionais em formação, impelidos ao compromisso com o SUS, procurando, dessa maneira, estratégias para lidar diariamente com as necessidades de saúde da população.

Os(as) residentes que vivenciam este processo de formação integram atividades práticas, teórico-práticas e teóricas. Destacamos que o trabalho interdisciplinar é compreendido como uma das bases para esta formação para o SUS. Esse modo de fazer e pensar saúde reverbera na equipe da ESF e também na comunidade, que nomeia a atividade da RMSFC como relevante para a UBS.

Já os(a) usuários(a) nos trazem a importância da criação de vínculos e a formação de espaços intercessores (mesmo que não tenham o conceito teórico deste termo internalizado). O fato de ter profissionais de diferentes áreas na UBS e também adentrando suas casas promove qualidade ao pensar o processo saúde-doença-cuidado.

Portanto, os discursos dos sujeitos permitem compreender como está acontecendo a formação para o SUS empreendida pela RMSFC, numa perspectiva que vai de encontro ao modelo médico-curativo e hegemônico, e que destaca a relevância da formação do vínculo entre os profissionais e a comunidade - característica fundamental para a criação de espaços intercessores -, com vistas ao fortalecimento e/ou à construção da produção de cuidado em comunidades Quilombolas de Garanhuns em Pernambuco. Esse processo não constitui uma tarefa simples, uma vez que é algo bastante complexo e precisa de tempo para amadurecer.11V. A. de Souza, I. G. D Gurgel e P. C. de Albuquerque: desenvolvimento da pesquisa, elaboração do manuscrito, concepção delineamento e redação do texto, análise e discussão dos resultados, revisão crítica e aprovação da versão final para publicação.

Referências

  • AGONIGI, R.C. et al A produção do cuidado no cotidiano das Equipes de Saúde da Família. Revista Brasileira de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 71, (supl. 6), p. 2817-2824, 2018.
  • BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: 1988.. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2004.
  • BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde. Câmara de Regulação do Trabalho em Saúde Brasília: MS, 2006.
  • BRASIL. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde sexual e saúde reprodutiva Brasília: Ministério da Saúde, 2010.
  • BRASIL. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde Brasília: Ministério da Saúde , 2010.
  • BRASIL. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2013.
  • BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública. Revista Facultad Nacional de Salud Pública, Medellím, v. 31, n. 1, p. 13-27, dec. 2013.
  • CASTRO, B. C. S. Direitos e deveres dos usuários do Sistema Único de Saúde: relato de experiência. Revista Família, Ciclos de Vida e Saúde no Contexto Social, Minas Gerais, v. 7, n. 1, p. 111-118, 2019.
  • CECCIN, R.; FEUERWERKER, L. C. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1; p 41-65, 2004.
  • FACCHINI, L. A. et al Qualidade da Atenção Primária à Saúde no Brasil: avanços, desafios e perspectivas. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 42, Número Especial 1, p. 208-223, set. 2018.
  • FARIA, R. M. A territorialização da Atenção Básica à Saúde do Sistema Único de Saúde do Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 11, p. 4521-4530, 2020.
  • FARIA, S. S. Aspectos emocionais do luto e da morte em profissionais da equipe de saúde no contexto hospitalar. Psicologia Hospitalar, Maranhão, v. 15, n. 1, p. 44-66, 2017.
  • FERREIRA, L. et al Educação Permanente em Saúde na atenção primária: uma revisão integrativa da literatura. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 120, p. 223-239, jan-mar. 2019.
  • FREITAS, D. A. et al Saúde e comunidades quilombolas: uma revisão da literatura. Revista CEFAC, Campinas, v. 13, n. 5, p. 937-943, set./out. 2011.
  • FURTADO, M. B. Cultura, identidade e subjetividade quilombola: uma leitura a partir da psicologia cultural. Psicologia e sociedade, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 106-115, 2014.
  • LACAZ, F. A. C. et al Estratégia saúde da família e saúde do trabalhador: um diálogo possível? Interface - Comunicação, saúde, educação, Botucatu, v. 17, n. 44, p. 75-87, jan./mar. 2013.
  • LEFEVRE, A. M. C.; LEFEVRE, F. Discurso do Sujeito Coletivo: representações sociais e intervenções comunicativas. Texto e contexto enfermagem, Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 502-507, abr./jun. 2014.
  • LEFEVRE, A. M. C.; LEFEVRE, F. Pesquisa de representação social. Um enfoque qualiquantitativo. Brasília (DF): Liberlivro, 2012.
  • MALTA, D. C.; MERHY, E. E. O percurso da linha do cuidado sob a perspectiva das doenças crônicas não transmissíveis. Interface - Comunicação, saúde, educação , Botucatu, v.14, n.34, p. 593-605, jul./set. 2010.
  • MINAYO, M. C. S.; COSTA, A. P. Fundamentos Teóricos das Técnicas de Investigação Qualitativa. Revista Lusófona de Educação, São Paulo, v. 40, p. 139-153, 2018.
  • RIOS, M. O.; NASCIMENTO, M. A. A. Produção do cuidado para resolubilidade da estratégia de saúde da família: saberes e dilemas. Revista de Enfermagem da UFPE, Recife, v. 11, Supl. 9, p. 3542-3550, set., 2017
  • SANTOS, R. C. A.; MIRANDA, F. A. N. Importância do vínculo entre profissional-usuário na estratégia de saúde da família. Revista Enfermagem UFSM, Santa Maria, v. 6, n. 3, p. 350-359, jul./set. 2016.
  • SCHIMITH, M. D. et al Acessibilidade organizacional: barreiras na continuidade do cuidado na atenção primária à saúde. Revista de Enfermagem da UFSM, Santa Maria, v. 9, p. 1-17, 2019.
  • SEIXAS, C.T. et al O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface - Comunicação, saúde, educação , Botucatu, v. 21, n. 29, p. 1-14, 2019.
  • SILVA, D. A. J; TAVARES, M. F. L. Ação intersetorial: potencialidades e dificuldades do trabalho em equipes da Estratégia Saúde da Família na cidade do Rio de Janeiro. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. 111, p. 193-205, out-dez 2016.
  • SILVA, F. S. et al Descrições do processo saúde-doença-cuidado na perspectiva de usuários de um centro de atenção psicossocial. REFACS, v. 6, n. 4, p. 745-752, 2018.
  • SILVA, V. O.; PINTO, I. C. M. Identidade do sanitarista no Brasil: percepções de estudantes e egressos de cursos de graduação em Saúde Pública/Coletiva. Interface - Comunicação, saúde, educação , Botucatu, v. 22, n. 65, p. 539-550, 2018.
  • SPINK, Mary Jane. A ética na pesquisa social: da perspectiva prescritiva a interanimação dialógica. Revista Semestral da Faculdade de Psicologia da PUCRS Rio Grande do Sul, v. 31, n 1, p. 7-22, jan/jul. 2000.
  • UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO. Projeto sobre programa nacional de bolsas para residências multiprofissionais e em área profissional da saúde. Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família com Ênfase na Saúde da População do Campo Recife, 2014.
  • VASCONCELOS, M. I. O. et al Avaliação da resolutividade e efetividade da atenção primária à saúde: revisão integrativa de literatura. SANARE, Sobral, v. 17, n. 1, p. 65-73, jan-jun. 2018.
  • WERLE, V. Relações entre lazer e saúde em tempos de cultura somática. Revista Brasileira de Estudos do Lazer Belo Horizonte, v. 5, n. 2, p. 20-32, maio-ago. 2018.

  • 1
    V. A. de Souza, I. G. D Gurgel e P. C. de Albuquerque: desenvolvimento da pesquisa, elaboração do manuscrito, concepção delineamento e redação do texto, análise e discussão dos resultados, revisão crítica e aprovação da versão final para publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2021
  • Revisado
    05 Set 2021
  • Aceito
    12 Nov 2021
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br