A vida cotidiana do neoliberalismo: os cuidados de saúde à população em situação de rua no Rio de Janeiro

The everyday life of neoliberalism: The provision of health care for unhoused people in Rio de Janeiro

João Nunes Cláudia Brito Sobre os autores

Resumo

O crescimento do neoliberalismo nas políticas sociais brasileiras vem resultando em retrocessos nos indicadores sociais, nas condições de trabalho e no desempenho dos serviços de saúde. Não obstante, sabe-se pouco sobre como o neoliberalismo age nas práticas concretas e relações de cuidado. Este artigo visa contribuir para a análise dos impactos da neoliberalização da saúde no Brasil, com foco na capilarização do neoliberalismo no cotidiano do cuidado, bem como pensar formas de resistência ao neoliberalismo na saúde. Partimos da crítica marxista e feminista da vida cotidiana, que considera a interdependência entre o global e o local nas políticas e práticas de saúde. Utilizamos resultados de pesquisa qualitativa sobre o cuidado de saúde à população em situação de rua no Rio de Janeiro, como forma de ilustrar o impacto do neoliberalismo no cotidiano dos serviços de saúde e suas consequências nas percepções de profissionais de saúde e usuários. Observamos que atitudes individuais e coletivas dos profissionais de saúde evidenciam formas de resistência à racionalidade neoliberal hegemônica. A lente da vida cotidiana permite observar tanto a reprodução do global neoliberal, quanto atitudes que potenciam transformações e revelam a persistência de um cuidado empático enquanto um ato de resistência ao neoliberalismo.

Palavras-Chave:
Atenção Primária à Saúde; Assistência à Saúde; Neoliberalismo; Privatização; População de Rua

Abstract

The growth of neoliberalism in Brazilian social policies has resulted in setbacks in social indicators, in working conditions and performance of health services. Nonetheless, little is known about how neoliberalism acts in concrete practices and care relationships. This article aims to contribute to the analysis of the impacts of neoliberalization of health in Brazil, focusing on the capillarization of neoliberalism in daily care., and to reflect about forms of resistance to neoliberalism in health. We draw on the Marxist and feminist critique of everyday life, which considers the interdependence between the global and the local in health policies and practices. We consider results of a qualitative research on health care for the unhoused population in Rio de Janeiro, as a way of illustrating the impact of neoliberalism in the daily life of health services and its consequences on the perceptions of health professionals and users. We observed that individual and collective attitudes of health professionals show forms of resistance to hegemonic neoliberal rationality. The lens of everyday life allows us to observe both the reproduction of neoliberal global dynamics, as well as attitudes that can enable transformations and the persistence of an empathic approach to care as an act of resistance to neoliberalism.

Keywords:
Primary Health Care; Health Services; Neoliberalism; Privatization; Homeless Persons

Introdução

O neoliberalismo, a face do capitalismo global contemporâneo, pode ser definido como “um processo econômico global que envolve uma reforma política e social significativa baseada na primazia do mercado, na competição, na intervenção estatal mínima e na eficiência do setor privado” (HARMAN, 2011HARMAN, S. Global Health Governance. Abingdon: Routledge, 2011.). O crescimento do paradigma neoliberal tem influenciado a trajetória da saúde global nas últimas décadas (Keshavjee, 2014Keshavjee, S. Blind Spot: How Neoliberalism Infiltrated Global Health. Oakland: University of California Press, 2014.). Esse processo tem múltiplos reflexos nos indicadores de saúde das populações e na prestação de cuidados de saúde (De Vogliv, 2011De Vogli, R. Neoliberal globalisation and health in a time of economic crisis. Social Theory & Health, n. 9, p. 311-325, 2011.; Coburn, 2004COBURN, D. Beyond the income inequality hypothesis: class, neo-liberalism, and health inequalities. Social Science & Medicine, n. 58, p. 41-56, 2004.; Navarro, 2007NAVARRO, V. Neoliberalism as a Class Ideology. Or the Political Causes of the Growth of Inequalities. International Journal of Health Services, n. 37, p. 47-62, 2007.; Labonté; Stuckler, 2016Labonté, R.; Stuckler, D. The rise of neoliberalism: how bad economics imperils health and what to do about it. Journal of Epidemiology and Community Health, n. 70, p. 312-318, 2016.). Políticas neoliberais foram promovidas de forma intensa a partir da década de 1980, moldando os condicionalismos dos empréstimos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) para países pobres. O controle fiscal que essas instituições exerciam sobre os países devedores passava por programas de ajuste estrutural, que entre outras deliberações, determinavam drásticas reduções nos gastos públicos locais. Este processo contribuiu para o empobrecimento ainda maior de alguns países e redundou em diminuições acentuadas no orçamento da saúde (Schrecker; Bambra, 2015Schrecker, T.; Bambra, C. How Politics Makes us Sick: Neoliberal Epidemics. Houndmills: Palgrave Macmillan, 2015.; Rowden, 2013ROWDEN, R. The deadly ideas of neoliberalism: how the IMF has undermined public health and the fight against AIDS. Zed Books, 2013.).

Mais recentemente, as medidas de austeridade aplicadas por todo o mundo na sequência da crise financeira de 2008 levaram à redução ainda mais acentuada dos investimentos em saúde pública, com impactos devastadores na sustentabilidade dos sistemas públicos e, consecutivamente, nos cuidados de saúde. O informe publicado pela Commission on Global Governance for Health (Ottersen ., 2014OTTERSEN, O. P. et al. 2014 The political origins of health inequity: prospects for change. Lancet, n. 383, p. 630-67, 2-14.) denuncia as políticas de austeridade receitadas após a crise de 2008, aliadas a ação de corporações transnacionais de medicamentos e alimentos, e as regras do comércio internacional e da propriedade intelectual, entre outras macrocausas, como algumas das principais ameaças globais à saúde da população de países em desenvolvimento e de países econômica e politicamente frágeis.

A transformação do papel do Estado enquanto provedor de políticas públicas, alinhada à racionalidade neoliberal, tem levado a uma degradação das condições de vida, dos serviços de saúde e dos padrões sanitários brasileiros (Morosini; Fonseca; Lima, 2018; IBGE, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de Indicadores Sociais 2019: Uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101678.pdf
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). O aumento da pobreza no Brasil entre 2014 e 2018 – período anterior a pandemia do coronavírus – foi superior à população total de países como Bolívia, Bélgica, Cuba, Grécia e Portugal; um contingente na ordem de 13,5 milhões de pessoas, além dos 52,5 milhões já existentes (IBGE, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de Indicadores Sociais 2019: Uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101678.pdf
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). Estes números, associados a crescentes restrições de acesso a serviços essenciais, como educação, proteção social, moradia adequada, saneamento e internet (IBGE, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de Indicadores Sociais 2019: Uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101678.pdf
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), evidenciam um retrocesso face a importantes conquistas obtidas anteriormente. A reformulação das políticas públicas e econômicas atualmente em curso é particularmente evidente no desfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que traz, desde sua gênese, dificuldades crônicas em termos de recursos (Ocké-Reis, 2012OCKÉ-REIS, C. O. SUS: O desafio de ser único. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012.). As pressões colocadas pelo neoliberalismo são visíveis também no crescimento da terceirização e precarização dos profissionais de saúde (Druck, 2016DRUCK, G. A terceirização na saúde pública: formas diversas de precarização do trabalho. Trabalho, educação e saúde, v. 14, p. 15-43, 2016.). A descontinuidade de políticas sociais federais, que ocorre sob a égide do neoliberalismo, coloca também em causa a implementação das metas de saúde previstas na Agenda 2030 (IBGE, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de Indicadores Sociais 2019: Uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101678.pdf
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).

Apesar das evidências existentes acerca do contexto neoliberal (em nível global e nacional) da saúde brasileira, sabemos pouco sobre a forma como o neoliberalismo produz os seus efeitos nas práticas concretas e nas relações de cuidado. Análises do neoliberalismo muitas vezes assumem um fluxo regular e unívoco do global para o local, negligenciando a complexidade nas relações entre os dois níveis. De que forma as ideias e políticas macroeconômicas que caracterizam o neoliberalismo repercutem-se no dia a dia? Como a mundividência neoliberal é reproduzida através das relações e práticas cotidianas do cuidado? De que forma o neoliberalismo, no seu propósito de transformar o cuidado em saúde numa relação orientada pela lógica da eficiência e do mercado, e por colocar novas pressões sobre a priorização de recursos escassos, cria novos dilemas e conflitos nos serviços de saúde? Por um lado, se torna necessário explorar em mais detalhe os efeitos “microscópicos” ou capilares do neoliberalismo. Por outro, é importante analisar de que forma a reprodução do neoliberalismo nas práticas cotidianas é ela mesma atravessada de tensões e contradições, que criam oportunidades de resistência que visa responder a essas contradições.

Este artigo visa contribuir para a análise dos impactos da neoliberalização da saúde no Brasil, com foco na capilarização do neoliberalismo no cotidiano do cuidado. Os efeitos do neoliberalismo na saúde podem ser explorados, não apenas na forma como condicionam recursos disponíveis ou alteram políticas existentes, mas também nas práticas, decisões, percepções e conflitos no cotidiano do cuidado. Especificamente, o cotidiano permite contribuir para a análise do impacto do neoliberalismo nas vivências e experiências de profissionais de saúde e usuários (Affonso; Bernardo, 2015AFFONSO, P. H. B.; BERNARDO, M. H. A vivência de profissionais do acolhimento em unidades básicas de saúde: uma acolhida desamparada. Trabalho, Educação e Saúde, v. 13, p. 23-43, 2015.; Barros; Bernardo, 2017BARROS, A. C. F.; BERNARDO, M. H. A lógica neoliberal na saúde pública e suas repercussões para a saúde mental de trabalhadores de CAPS. Revista de Psicologia da UNESP, v. 16, n. 1, p. 60-74, 2017.; Garrido-Pinzón; Bernardo, 2017GARRIDO-PINZÓN, J.; BERNARDO, M. H. Vivências de trabalhadores da saúde em face da lógica neoliberal: um estudo da atenção básica na Colômbia e no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, p. e00050716, 2017.).

Começamos propondo uma abordagem ao cotidiano da saúde enquanto “espaço” de reprodução de dinâmicas globais. Defendemos que o cotidiano não se restringe ao local, uma vez que ideias e políticas globais são filtradas e intermediadas pelo aparato institucional de nível nacional, estadual e municipal, se revelando nos seus efeitos mais concretos nas clínicas, comunidades, ruas e percepções das pessoas. Trazemos a lente da vida cotidiana, de inspiração Marxista e feminista, pois ela nos permite um novo olhar para a interseção entre local e global nos cuidados de saúde.

Analisamos, em seguida, observações e relatos de uma pesquisa realizada entre março/2017 e julho/2019 sobre o cuidado de saúde à População em Situação de Rua (PSR) no município do Rio de Janeiro (MRJ). Resultados desta pesquisa nos permitem ilustrar o impacto do neoliberalismo no cotidiano dos serviços de saúde, suas consequências para as relações de cuidado, bem como as estratégias de sobrevivência e resistência. A partir de relatos de profissionais e usuários, trazemos à luz tensões, sofrimentos e contradições na vida cotidiana, que demonstram a relação entre o global e o local. Relatos individuais e mobilização coletiva observados na pesquisa testemunham as possibilidades de resistência por parte de profissionais de saúde e cidadãos, visíveis nas transformações e adaptações na prática dos cuidados de saúde.

A pesquisa que possibilitou esse artigo combinou três técnicas de investigação: observação participante do cuidado prestado a PSR; grupo focal com profissionais de saúde da Rede de Atenção à Saúde (RAS) que prestam esse cuidado e entrevistas com a PSR atendida pelo Consultório na Rua (CnaR), que é a modalidade da Atenção Primária de Saúde (APS) para atendimento a essa população.

A observação participante foi realizada nos espaços de recepção, espera e atendimento do CnaR, em outros serviços da RAS e no território em que ela habita. Os entrevistados foram selecionados durante a espera para consulta, procedimentos, receber medicamento, alimentação, roupa ou tomar banho, e não houve critério específico de seleção, visando a uma participação mais plural. Utilizou-se a narrativa fenomenológica para analisar o material oriundo das anotações de campo, bem como das transcrições dos três grupos focais e das vinte e quatro entrevistas.

Vida cotidiana e saúde

O conceito de vida cotidiana revela a transversalidade entre o global e local (Lefebvre, 1991LEFEBVRE, H. Critique of everyday life. Vol. I: Introduction. London and New York: Verso, 1991.; 2002). Autores trabalhando com este conceito se inspiram na crítica Marxista e feminista, recusando descartar a vida cotidiana como algo de trivial ou inconsequente. No cerne das abordagens baseadas na vida cotidiana está, por um lado, a preocupação com os efeitos concretos da organização social e econômica nos aspetos mais rotineiros do dia a dia. A perspectiva do cotidiano é vista como uma janela privilegiada para observar a atomização de relações, a comodificação, burocratização, urbanização e especialização do trabalho intrínsecas ao capitalismo (GARDINER, 2000GARDINER, M. E. Critiques of Everyday Life. London and New York: Routledge, 2000.). Por outro lado, as leituras feministas são, pelo menos originalmente, inspiradas no Marxismo, mas visam também solucionar uma das principais omissões da análise marxista clássica: a relativa invisibilidade das relações de gênero. A leitura feminista da vida cotidiana privilegia também, segundo Smith (1987SMITH, D. E. The Everyday World as Problematic: A Feminist Sociology. Boston: Northeastern University Press, 1987., p. 97), a “existência corpórea e material”, mas visa ao mesmo tempo estudar como o capitalismo se repercute nos corpos e nas vidas das mulheres, que estão sujeitas a formas diferenciadas e acentuadas de dominação e vulnerabilização.

Para Lefebvre (1991), um dos primeiros autores que abordou o conceito de forma sistemática, o cotidiano é uma dimensão essencial para a reprodução do capitalismo porque a alienação atinge os aspetos mais concretos do dia a dia. A alienação sob o capitalismo abrange de forma profunda as esferas econômica, social, política e ideológica, determinando as oportunidades, redes sociais e familiares, crenças, hábitos, desejos e compulsões das pessoas (Lefebvre, 1991LEFEBVRE, H. Critique of everyday life. Vol. I: Introduction. London and New York: Verso, 1991.). A compreensão dos fenômenos cotidianos implica abordá-los como um nível de prática social num contexto abrangente de estruturas e relações determinadas pelo capitalismo (Lefebvre, 1991LEFEBVRE, H. Critique of everyday life. Vol. I: Introduction. London and New York: Verso, 1991.). Ao mesmo tempo, entender o capitalismo implica considerar os seus aspetos cotidianos. Segundo Lefebvre (2002,LEFEBVRE, H. Critique of everyday life. Vol. II: Foundations for a sociology of the everyday. London: Verso, 2002. p. 98), “não pode existir um conhecimento da sociedade (como um todo) sem um conhecimento crítico da vida cotidiana na sua posição […] no centro desta sociedade e da sua história”. Adotar a perspetiva da vida cotidiana não significa, portanto, um enfoque redutor no nível local. O cotidiano surge como a interseção entre o global e o local, não se reduzindo a nenhum deles.

Esta perspectiva nos permite conceber de outra forma as dinâmicas globais da saúde e seus efeitos no nível local. O “global” da saúde inclui também o nível local, uma vez que é no nível local que as dinâmicas globais se revelam, são interpretadas e contestadas (ADAMS, 2016ADAMS, V. What is critical global health? Medicine Anthropology Theory 3, n. 2, 2016.). O cotidiano da saúde inclui o nível local: as práticas, decisões e julgamentos efetuados pelos profissionais de saúde, no contexto de relações clínicas e de cuidado. O cotidiano inclui os atos e procedimentos, por mais insignificantes que possam parecer, que influem no cuidado e, consequentemente, nas experiências de saúde e doença das populações. Ao mesmo tempo, estas práticas cotidianas remetem ao global e são constituídas por este. Dimensões globais estão presentes nos padrões de circulação de doenças. Os determinantes infraestruturais e socioeconômicos dependem de dinâmicas (como o neoliberalismo) que vão além da esfera nacional. O global está também presente na capacidade de resposta dos sistemas de saúde. As dificuldades sentidas pelos profissionais de saúde em responder às demandas das populações, a falta de recursos e degradação das condições de trabalho não podem ser separadas de uma tendência global de precarização do trabalho e de desmonte dos serviços públicos de saúde, em favor da privatização dos serviços essenciais.

Ao mesmo tempo, a lente do cotidiano vê a interseção do global e local como um cenário produtor de fratura, divisão e desigualdade. A abordagem da vida cotidiana contribui dessa forma para um melhor entendimento das desigualdades que atravessam a saúde global e influem nas práticas concretas de cuidado. A saúde, em especial nas suas dimensões globais, tem sido muitas vezes interpretada através de visões técnicas, assentes em pressupostos de convergência de interesses. Um exemplo disto é a ideia de um mundo “unido pelo contágio” presente em definições da governança global da saúde (Zacher; Keefe, 2008ZACHER, M. W.; KEEFE, T. J. The Politics of Global Health Governance: United by Contagion. Houndmills: Palgrave Macmillan, 2008.). Segundo esta ideia, a globalização colocaria os países, regiões e populações numa posição de igual vulnerabilidade face a doenças que “não conhecem fronteiras”. Através desta visão técnica, a saúde global é reduzida a um gerencialismo supostamente apolítico, baseado em soluções tecnológicas ou farmacológicas, e assente no pressuposto errado de igualdade de condições entre os povos.

A perspectiva da vida cotidiana contraria esta visão despolitizada. A interseção entre o global e o local na saúde se efetua numa arena política onde interagem vários atores envolvidos no desenho, implementação, interpretação e contestação de políticas (como instituições internacionais, Estados, atores privados, organizações não-governamentais, profissionais de saúde e usuários de serviços). Nesta arena se revelam as clivagens existentes nas sociedades. Os processos de tomada de decisão são atravessados por tensões, negociações e disputas que determinam o nível de prioridade e os recursos disponibilizados para políticas concretas. A saúde global pode ser vista como uma arena “multinível”, onde decisões são tomadas e políticas implementadas, com efeitos profundos nas condições de trabalho dos profissionais de saúde e nas práticas de prestação de cuidado. A perspectiva da vida cotidiana, visível nas experiências do cuidado de saúde, permite, portanto, ver a saúde global em pleno funcionamento, com todas suas ambiguidades, contradições e potencial de transformação.

O cotidiano do neoliberalismo nos cuidados de saúde à população em situação de rua

Em 2009 foi criada a Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua (PSR) que preconiza a adoção de ações intersetoriais para reintegração da PSR às suas redes familiares e comunitárias e para dar acesso pleno aos direitos garantidos aos cidadãos brasileiros (BRASIL, 2009BRASIL. Presidência da República. Decreto Presidencial nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 2009; 24 dez.). Em 2012, em observância à política supracitada, o Ministério da Saúde criou uma modalidade para atendimento de saúde prioritário à PSR, no âmbito da Política Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2012. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, 25 jan 2012.). Essa modalidade foi denominada CnaR e caracteriza-se por equipes multiprofissionais compostas por profissional de Assistência Social, Psicologia, Odontologia, Enfermagem, Medicina, Técnico de Enfermagem e Agentes Sociais. Estas equipes trabalham de fora itinerante com o intuito de ampliar a oferta de cuidado integral e adequado às demandas e necessidades da PSR, buscando a construção de uma atenção compartilhada em rede (BRASIL, 2009BRASIL. Presidência da República. Decreto Presidencial nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 2009; 24 dez.). Paralelamente a esses avanços, ocorreu a reorganização da APS no MRJ, nos moldes do modelo neoliberal. Apoiada na contratação de Organizações Sociais (OS), essa reorganização foi alardeada como instrumento para a ampliação do acesso e aumento da eficiência na gestão, em especial através da adoção de incentivos financeiros para as equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) mediante alcance de indicadores de desempenho. Tal como noutros países, o problema econômico foi apresentado pelos responsáveis políticos como uma resposta ao suposto “despesismo”, “ineficiência” e “peso excessivo” da esfera pública, sendo que a solução apresentada para promover uma utilização mais racional dos recursos foi o “emagrecimento da máquina estatal” – neste caso, a privatização do cuidado.

O desmonte da dimensão pública e o fortalecimento da dimensão privada na APS trouxe consequências como a fragilização das relações trabalhistas e do vínculo empregatício dos profissionais de saúde, que resultaram na priorização de metas (como o número de altas médicas) em detrimento das pessoas e da qualidade do serviço prestado. A doutrina neoliberal, assente num toyotismo que visa melhorar o desempenho com o lema “fazer mais com menos”, resulta na demissão de profissionais de saúde, na diminuição do número de equipes da APS, cada uma atendendo um número maior de pacientes. Resulta também na fragmentação do cuidado: RAS visam atender ao princípio da integralidade mas na prática resultam em diferentes serviços, cada qual responsável por uma etapa do cuidado e gerido por uma OS distinta, com prioridades, metas, remuneração e sistema de prontuários eletrônicos por vezes divergentes entre si.

Esse modelo de gestão das OS, alinhado a nova Política Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 2017.), gera sobrecarga, insegurança, sofrimento psíquico e competitividade entre os profissionais. Leva também a um aumento da conflitualidade do trabalho (com aumento do número de greves) dada a falta de isonomia salarial entre categorias profissional e por OS, a diminuição do quantitativo de profissionais por equipe ou do valor do salário de certas categorias profissionais menos protegidas quando da renovação do contrato, ou até demissões ou exclusão dos agentes comunitários de saúde (ACS) como integrantes da equipe (Morosini; Fonseca; Lima, 2018Morosini, M. V.; Fonseca, A. F.; Lima, L. D. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, v. 42, n. 116, p. 11-24, 2018. DOI: 10.1590/0103-1104201811601; AFFONSO; BERNARDO, 2015AFFONSO, P. H. B.; BERNARDO, M. H. A vivência de profissionais do acolhimento em unidades básicas de saúde: uma acolhida desamparada. Trabalho, Educação e Saúde, v. 13, p. 23-43, 2015.). A consequência última destas dinâmicas é uma degradação das condições de trabalho e uma diminuição na cobertura efetiva.

Experiências e percepções dos profissionais de saúde

O cenário de austeridade fiscal no setor saúde brasileiro (Morosini; Fonseca; Lima, 2018), tanto no âmbito federal quanto municipal, e a diminuição de ofertas de leitos e de recursos humanos no MRJ (O’DWYER, 2019O’DWYER, G. et al. A crise financeira e a saúde: o caso do município do Rio de Janeiro, Brasil. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 4555-4568, dez. 2019. DOI: 0.1590/1413-812320182412.23212019), tornam o cotidiano do cuidado uma ação coordenada onde os números e as metas são mais importantes dos que os pacientes; e onde o serviço de saúde é organizado para a alta em detrimento do cuidado. As narrativas dos profissionais de saúde do CnaR demonstram a presença do neoliberalismo no cotidiano.

Uma médica narra sua preocupação em conseguir prestar o cuidado dentro dos preceitos da APS e do SUS:

Tem empecilhos como a falta de tempo dos profissionais que dificultam as condições de trabalho, além de uma quantidade enorme de 4 mil pacientes por médico ou equipe. E com perspectivas de piorar muito mais, como já disse o prefeito, [que] disse que vão ser 20 mil pacientes para um médico. Estou sempre assim: ‘vupt’, ‘vupt’, ‘vupt’.

Outro exemplo é dado por uma assistente social de um serviço da RAS, que compartilha um caso que considera de difícil solução:

[Mulher], 48 anos, em situação de rua, portadora de HIV, Hepatite e Sífilis, com histórico de interrupções do tratamento, foi trazida pelo Corpo de Bombeiros por ter sido atropelada [...]. Ela já é conhecida pelo hospital porque todas as vezes o processo para desospitalização é complexo […]. Foi avaliada pela ortopedia, clínica médica, fisioterapia e psicologia e todos deram parecer de alta na mesma data. Ela recusa-se a deambular […]. Foi realizada internação social [...] e também evoluiu no prontuário as limitações da equipe, porque quando acontece isso [...] é quase que assim, uma pressão mesmo: ‘E aí? Quando é que ela vai sair?’ [...] Paciente recusa-se ao abrigamento, a buscar familiar e a sair da unidade por meios próprios. […] Para a gente ela dizia que estava com dores, não conseguia andar e a gente solicitava aos médicos que fizessem uma reavaliação, só que eles diziam: ‘Não, permanece a alta!’. [...]A paciente solicitou muletas para sair da unidade por meios próprios. Conseguimos as muletas, mas a paciente permaneceu recusando-se a sair do hospital e alegou não ter condições para andar. [...] A equipe do serviço social realizou interconsulta com a psicologia do hospital que manteve a alta, então, sensibilizou a paciente quanto a todos os riscos desfeitos e disponibilizou as muletas. Foi realizada nova avaliação pela clínica médica e ortopedia e confirmada a condição de alta. Por fim, a cidadã que não conseguia deambular seguiu sozinha, por meios próprios, para rua e com encaminhamento debaixo do braço.

Pese o fato de se tratar de uma paciente portadora de doenças infectocontagiosas graves, cuja interrupção de tratamento traz importantes consequências, com baixo vínculo institucional e ausência de laços familiares, todo o cuidado multiprofissional voltou-se exclusivamente para alta médica. Negligenciou-se a oportunidade de investigar o motivo pelo qual a paciente não queria deixar a unidade hospitalar, mesmo que aparentemente não tivesse uma causa clínica. Esse caso mostra que o “não consigo andar” expresso pela paciente foi tratado eminentemente como uma “queixa” relacionada com um membro físico, ou seja, como uma questão de compreensão restritamente biomédica, como se a única causa e solução possível fosse localizada naquele membro, negligenciando todo um ser pleno de necessidades e complexidade. Nem mesmo a prestação de cuidado por uma equipe multiprofissional permitiu uma ampliação da investigação do problema. A causa da impossibilidade de andar não foi investigada para além da fratura, e assim a alta surgiu como a única solução para o problema. Desta forma, a alta autorizada pelo médico conduziu inequivocamente todos os outros profissionais, em detrimento de seus próprios projetos terapêuticos.

Ressalta-se que a análise proposta não recai sobre a qualidade ou adequação dos protocolos de alta médica, mas sobre a falta de atuação do serviço de saúde frente a um sujeito com importantes problemas de saúde conhecidos (HIV, hepatite e sífilis), sem tratamento e fragilidade de vínculo com serviços de saúde e familiares. Se a “fratura” estava de alta, será que a paciente com suas condições de saúde e emocionais estava de alta? Em contraposição a esta abordagem biomédica, um cuidado biopsicossocial que ampliasse a escuta para a compreensão do motivo pelo qual a paciente queria permanecer internada possibilitaria novas formas de solução. Com isso, poderia, inclusive, “agilizar” a alta, além de construir uma relação de confiança e vínculo para que a paciente mudasse sua relação com o serviço de saúde ou mesmo evitar internações recorrentes, enunciada pelo jargão “já é conhecida pelo hospital”.

Nesse sentido, a organização do serviço de saúde prioriza alcançar o indicador de desempenho em prejuízo do cuidado, e isso se agrava quando o cuidado é prestado a um paciente “social” como os pacientes em situação de rua são designados por dependerem de proteção social. Tão logo chegam na unidade de saúde, já recebem o estigma de “paciente com alta demorada”. Uma vez que a demora é vista como um problema, o serviço é orientado para agilizar a alta ao invés de se centrar na escuta e no cuidado. “Casos sociais” são mais suscetíveis a “surdez” dos profissionais de saúde, que resulta na reprodução da exclusão e negligência daqueles que, às vezes, contam exclusivamente com as políticas de proteção social.

Experiências e percepções dos usuários

A PSR caracteriza-se pela pobreza extrema, alta prevalência de doenças crônicas, complexidade de demandas e necessidades de saúde, e pouco acesso aos serviços públicos (BRASIL, 2012BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual sobre o cuidado à saúde junto a população em situação de rua. Brasília: MS; 2012. (Série A. Normas e Manuais Técnicos).). Sem paradeiro fixo, à margem da sociedade e com uma história de vida marcada por perdas de vínculos, rupturas, desemprego, preconceitos, estigmas, exclusão e solidão, a PSR mostra sua percepção crítica sobre as políticas e serviços públicos voltados para os mais vulneráveis, revelando as incoerências e insuficiências dos mesmos.

Eles dizem que você tem que ir [sair da rua] [...] a Prefeitura paga para cada um que entra lá [...] Mas o abrigo, tipo, o nome já diz ‘abrigo’; a ideia é a pessoa ficar acolhida, se sentir em casa. Mas aí parece um quartel. Te acordam 5:30 da manhã e 6:30 da manhã você tem ((enfatizou)) que ir para a rua. Se você não for ((enfatizou)) para a rua, você não pode ficar lá dentro, não pode descansar, não pode... e aí só pode voltar para as alimentações. [O abrigo] é distante dos trabalhos, que hoje em dia eu garimpo. [...] Aí, depois entra 6:00 da tarde ((silêncio)). E aí, só pode voltar para dormir. Então vamos, qual a ideia de abrigo servir de casa? Nenhuma. (Mulher, branca, 32 anos, ensino fundamental incompleto).

Falou que é projeto; é ONG [Organização não governamental]. Porra, eles arranca água da pedra em cima do maloqueiro [PSR]. [...] ONG é uma lavagem de dinheiro. Que é tipo uma terceirizada com um trabalho que o governo teria que fazer. Eles repassa, pra esse grupo de pirata que é uma coisa ruim. É uma coisa ilegal que eles fizeram legal. Mas é um golpe sujo, pra mim. [...] Ele não gasta nada, igual pai de santo, só recebe. Só que aí ele faz uma ração ali pra ele levar pra rua pra entregar pro maloqueiro lá, uma quentinha. Tá? Uma roupa velha. Escuta. Cada uma quentinha daquela, vale 25,00 no bolso dele. E eles servem uma ração que nem cachorro come. E ganha milhões, uma covardia. Pilantragem. Pra mim é isso. [...] Eu também gostaria de ter uma ONG porque eu ficaria rico em menos de um ano, sabe, bonita? (Homem, caboclo, 66 anos, 2º grau completo, músico)

Aqui não é como o centro da cidade que passa muita comida. Aqui só passa comida quando o pessoal, os crentes, traz. Mas não é todo dia, entendeu? ... Eu estava comendo aqui [no serviço de saúde], mas agora nem aqui pode comer mais, só um dia da semana. Nunca vi isso! É! Você se tratar aqui e só tem direito a um dia da semana com comida! Esse negócio aí está muito [enfatizou] errado. (Mulher, branca, 30 anos, vaidosa e muito debilitada, Ensino superior incompleto)

Esses excertos servem como exemplos de como o neoliberalismo pode atuar de forma sistemática sobre os serviços públicos essenciais – que visam à proteção social – promovendo, paradoxalmente, desigualdade e desassistência para aqueles em posição de maior risco e vulnerabilidade. O período de desenvolvimento da pesquisa que traz esses relatos foi marcado por um contexto de crises políticas e econômicas graves e prolongadas, que contribuíram para o aumento da pobreza, da violência, do número de pessoas em situação de rua, além de impactar no desfinanciamento dos serviços públicos de saúde e na descontinuidade de conquistas expressas em políticas públicas sociais mais progressistas. Estas cenas revelam esse contexto de crescimento do neoliberalismo enquanto racionalidade subjacente ao cuidado em saúde, que tanto agrava a prestação de serviço para quem produz e para quem recebe, quanto acentua o sofrimento de ambos.

O cotidiano e as possibilidades de resistência

Segundo a perspectiva da vida cotidiana, devido à prevalência da alienação no cotidiano, a crítica pode ter efeitos significativos ao permitir que atuações emancipatórias cheguem à vida individual. Neste contexto, Lefebvre (1991) nos dá um corolário da famosa frase de Marx, defendendo que o objetivo dos filósofos deve ser não apenas interpretar o mundo, mas também a “transformação da vida nos seus detalhes mais pequenos e cotidianos” (p. 226). Ao revelar a complexidade das múltiplas dimensões da existência humana, nomeadamente o “poético, irracional, corporal, ético e afetivo” (GARDINER, 2000GARDINER, M. E. Critiques of Everyday Life. London and New York: Routledge, 2000., p. 19), o cotidiano pode se tornar um local privilegiado para a subversão e transformação do status quo.

No mesmo contexto em que observamos a presença de dinâmicas neoliberais, podemos também reconhecer movimentos coletivos ou isolados de resistência, ora pela solidariedade, ora pela desobediência ou autogoverno de profissionais ou usuários do SUS. Durante a pesquisa, foi relativamente comum ouvir “Não pode mas eu faço!” frente às mudanças das normas, em decorrência de restrições orçamentárias, que colocam obstáculos ao cuidado. Alguns exemplos de ações individuais de resistência resultam de disputas de poder entre os profissionais de saúde e a gestão municipal, e mesmo entre diferentes categorias profissionais:

Hoje acompanhamos um atendimento de uma gestante com sífilis. Parece haver nova recomendação da Secretaria Municipal de Saúde pra não tratar parceiro, supostamente por falta de medicação, mas ele [profissional de saúde] diz que não precisa ser obediente e fornece o medicamento para uma doença sexualmente transmissível também para o parceiro.

O enfermeiro reclama da liminar [com base no Ato Médico] que diz que não pode atender, que deixou de iniciar tratamento de tuberculose, pois o paciente não quis esperar a médica, e o enfermeiro não podia mais prescrever nem mesmo tratamento dos programas de saúde... mas, naquele dia, abriu uma exceção.

Ciente das percepções e estigmatizações sociais que muitas vezes nas quais as discriminações cotidianas se baseiam, a PSR também utiliza estratégias no sentido de driblar a preterência e desassistência nos serviços públicos e de saúde. Essas estratégias consistem em mudanças de comportamento perante serviços públicos com os quais não estabeleceram confiança. O comportamento da PSR é modulado aos contextos e indivíduos com os quais interagem, ora sendo mais comunicativa, cordial, evitando reclamar, ou buscando fazer amizade; ora comportando-se com maior agressividade e impaciência, com ameaças e procurando inspirar medo.

Eu já chego já conversando, me comunicando, "oi, tudo bem?" Porque eu tenho medo de... Quando quebraram a minha cabeça, aí nesse UPA, eu cheguei ... aí eu conversei: "Oi, o meu nome é... ". Aí ela [profissional de saúde] chamou todo mundo, todo mundo, ei aí, ‘Ela está lucida aí, essa daí é diferente, ela conversa’. Olha a minha testa! Era para ser um ponto mal dado.... se eu chego cheio de marra, ia dar cada brutamonte, ... e ia costurar minha testa de qualquer jeito, entendeu? [...] ‘A cracuda aí vai ficar ocupando espaço de gente doente, dá logo uma injeção na veia dela, mata logo’. [...] Tu acha que isso não acontece? Já aconteceu com gente que não é usuário [de drogas].

Além destas microrresistências individuais, também observamos mobilizações coletivas, como o despertar dos trabalhadores para um movimento denominado “Nenhum serviço de saúde a menos” (Stevanim, 2018), auto-organizado por trabalhadores da saúde contra cortes na Atenção Básica no MRJ. No movimento criado, trabalhadores mobilizaram diversas categorias de profissionais da saúde, políticos, acadêmicos e população usuária do SUS, elaborando estudos e contra-argumentos para combater a proposta do gestor municipal do MRJ e reforçar a consciência de cidadania nas comunidades. Esse movimento de união das categorias profissionais também possibilitou a manutenção dos ACS, a categoria mais desprotegida das equipes. Respondendo à atomização e divisões resultantes da organização neoliberal do trabalho, esta mobilização rejeitou uma discussão pulverizada dos interesses individuais – e por vezes competitivos – de cada categoria profissional.

Conclusão

Dinâmicas globais associadas ao entrincheiramento de uma racionalidade neoliberal no aparato institucional dos Estados têm cimentado as condições para a reprodução de uma crise no cotidiano dos cuidados de saúde. No contexto brasileiro, a privatização do sistema de saúde, com transferência de recursos públicos para o setor privado, sobretudo Organizações Sociais da Saúde, para atuarem na expansão de provisão de serviços de saúde ou na regulação ou gestão de serviços de saúde públicos, representa uma renúncia de responsabilidade do ente público e legalmente instituído para tal, em favor do privado (MORAIS ., 2018MORAIS, H. M. et al. Organizações Sociais da Saúde: uma expressão fenomênica da privatização da saúde no Brasil. Cad. Saúde Pública, v. 34, n. 1, p. e00194916, 2018. DOI: 10.1590/0102-311x00194916). A aposta nesse modelo, especialmente em situações de crise ou em período eleitoral, tem condicionado uma degradação das condições de prestação de serviços essenciais, um aumento da condição de vulnerabilidade, insegurança e sofrimento psíquico tanto para pacientes quanto profissionais, em decorrência da instabilidade do vínculo empregatício destes.

De acordo com os casos retratados, o neoliberalismo atua reiteradamente valorizando as metas e os números (de altas, demissões, diminuições de equipes, refeições fornecidas, pessoas abrigadas) como arranjos artificiais, que na vida real nem economizam recursos nem possibilitam que os serviços prioritários atendam a sua finalidade. Na prática é “vupt, vupt, vupt” – “rapidez”, “eficiência” e remendos rápidos, em detrimento de um cuidado integral e de longo-prazo.

Propusemos neste artigo uma nova leitura da realidade do cuidado em saúde, utilizando a lente da vida cotidiana para examinar as relações entre global e local no contexto específico dos cuidados a PSR no MRJ. É no cotidiano que se observam os efeitos mais concretos do neoliberalismo. Mas é também no cotidiano que estes efeitos podem ser reconfigurados, resistidos e subvertidos. O cotidiano nos permite perceber a produção reiterada da vida social e, portanto, as possibilidades de resistência e transformação, ainda que incipientes. O processo de reprodução social nunca é unívoco e nunca está finalizado – ele é antes complexo, contingente, dependente de permanente reiteração e negociação para que os seus efeitos se mantenham. Esta contingência abre espaço para a resistência e transformação.

Nesse sentido, as atitudes individuais e movimentos coletivos de resistência aqui apresentados são exemplo das possibilidades emancipatórias na vida cotidiana, ainda que diante de grandes dificuldades e vulnerabilidades. Os pequenos atos de resistência e os movimentos por melhores condições de vida e trabalho levam em consideração a preocupação com o outro, com direitos e cidadania, e com as iniquidades sociais, por meio de gestos e atitudes solidárias e afetivas. Esta postura configura um exemplo do que denominamos “cuidado empático”: aquele que pressupõe a garantia da devida acolhida, postura comprometida, que transforma e abre espaços onde os interesses dos profissionais e pacientes convergem, mesmo quando se torna necessário contrariar as normas vigentes que muitas vezes resultaram em “descuidado”. Este cuidado empático pode ser visto como um ato político de resistência (FEUERWERKER, 2014FEUERWERKER, L. C. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede Unida, 2014.). Essas formas de resistência são visíveis em práticas cotidianas que contestam as relações decorrentes do neoliberalismo, como sejam as críticas dos profissionais de saúde e da PSR. Indo além da contestação, essas práticas demonstram a existência de alternativas, visíveis nas dissimulações, desobediências e desvios aos preceitos ortodoxos do cuidado, bem como nos movimentos coletivos reivindicatórios, que tem o potencial de ampliar o grau de consciência social e política de todos os envolvidos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2021
  • Aceito
    24 Ago 2022
  • Revisado
    04 Abr 2022
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