Estigma e injustiça epistêmica: experiência de adoecimento e tratamento no CAPS AD III sob a ótica do usuário

Stigma and epistemic injustice: experience of illness and treatment at CAPS AD III from the user's perspective

Octávia Cristina Barros Octavio Domont de Serpa JrSobre os autores

Resumo

Este artigo parte de uma pesquisa qualitativa que busca dar voz aos usuários, tornando-os atores através de uma pesquisa participativa. Trouxe à tona discursos estigmatizados e experiências afetadas pela perda de credibilidade testemunhal, conceito introduzido por Miranda Fricker como injustiça epistêmica. Todos os dados foram gerados através de um modelo de entrevista (MINI) no primeiro momento da pesquisa. No segundo momento, foi feita uma pesquisa participativa sob a lógica do cuidado que requer uma prática baseada na sensibilidade em relação às experiências do mundo dos usuários participantes. Diante desta perspectiva, ter voz emergiu como ponto essencial, e é nessa lógica que a pesquisa realizada no CAPS AD III, para que os usuários fizessem parte de uma abordagem participativa, teve a intenção de produzir mudanças.

Palavras-Chave:
Narrativa; Estigma; Injustiça epistêmica; CAPS AD

Abstract

This article is part of a qualitative research that seeks to give users a voice, making them actors through participatory research. It brought up stigmatized discourses and experiences affected by the loss of credibility, a concept introduced by Miranda Fricker as epistemic injustice. All data were generated through an interview model (MINI) in the first stage of the research, in the second moment, a participatory research was carried out under the logic of care that requires a practice based on sensitivity in relation to the experiences of the participating users in the world. Given this perspective, having a voice emerged as an essential point, and it is in this logic that the research carried out at CAPS AD III, so that users were part of a participatory approach, had the intention of producing changes.

Keywords:
Narrative; Stigma; Epistemic injustice; CAPS AD

Introdução

Este artigo visa discutir os discursos carregados de estigma que incidem sobre os usuários de um CAPS AD III nos diferentes espaços, a partir de suas narrativas de experiência de adoecimento, provocando uma ideia distorcida e exclusão. Através de nossa atuação profissional no CAPS AD, percebemos cotidianamente o desconforto dos profissionais que atendem em outros serviços da saúde nos quais circulam os nossos usuários, quando telefonam para a nossa equipe com a seguinte narrativa: “Tem um usuário seu aqui...”

Essas situações são recorrentes e reproduzem o mal-estar gerado diante de uma imagem degradada, produzida gradualmente a partir da combinação do uso intenso da droga, higiene precária, emagrecimento, resultando numa corporalidade incômoda e repulsiva (RUI, 2021RUI, T. Nojo, humilhação e vergonha no cotidiano de usuários de crack em situação de rua. Anuário Antropológico, v. 46, n. 3, 2021. DOI: https://doi.org/10.4000/aa.8925. Disponível em: http://journals.openedition.org/aa/8925. Acesso em: 27 fev. 2022.), que compõem o processo de estigma acerca do sofrimento psíquico, como também as implicações morais subjacentes à percepção do comportamento (CARVALHO, 2014CARVALHO, M. Dilemas na/da Reforma Psiquiátrica: notas etnográficas sobre o cotidiano de um Centro de Atenção Psicossocial. In: FERREIRA, J.; FLEISCHER, S. (Org.). Etnografias em serviços de saúde. Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 79-104.).

Diante deste contexto, a presente pesquisa busca dar voz aos usuários, tornando-os atores desse processo de investigação e análise, além de trazer à tona seus discursos sempre tão estigmatizados e, muitas vezes, calados. Propomos um aprofundamento da noção de estigma por envolver rotulação, separação, endossamento de estereótipo, preconceito e discriminação, e por essa noção de estigma estar tão presente nas narrativas dos profissionais da área de saúde mental e das famílias dos envolvidos e ser veementemente reproduzido nas narrativas dos usuários. Precisamos considerar também que, nas poucas oportunidades de fala que lhes são ofertadas, os usuários acabam ainda sofrendo com a desconfiança e o descrédito, o que prejudica consideravelmente sua capacidade testemunhal e acaba sendo uma forma de injustiça social a que denominamos injustiça epistêmica (FRICKER, 2007FRICKER, M. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press, 2007.). Explicitamos que a metodologia adotada se baseia no desenho qualitativo, que busca compreender e conhecer a experiência de adoecimento, tratamento e recuperação pessoal, além de crenças, valores, representações, através das narrativas em primeira pessoa de usuários. A pesquisa se divide em duas etapas: entrevista semiestruturada e análise compartilhada com os participantes. Por fim, os resultados desta pesquisa, seguidos das nossas considerações finais.

Estigma e uso problemático de substâncias psicoativas

Para Goffman (1975)GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1975., o estigma nos leva a reclassificar um indivíduo situado numa categoria socialmente aceita, colocando-o numa categoria diferente, e que nos faz alterar nosso juízo de valor sobre ele.

Deste modo, um aprofundamento sobre estigma foi importante, pois se define como um processo que envolve rotulação, separação, endossamento de estereótipo, preconceito e discriminação, levando a uma situação em que as forças sociais são exercidas em detrimento de um grupo social (THORNICROFT, 2006THORNICROFT, G. Shunned: Discrimination Against People with Mental Illness. Oxford: Oxford University Press, 2006.). A rotulação envolve características pessoais, sinalizadas ou percebidas para comunicar uma diferença importante. A separação é uma distinção categórica entre o grupo normal e o grupo rotulado como fundamentalmente diferente. O estereótipo é uma imagem ou ideia de um tipo específico de pessoa ou coisa que foi estabelecido por ser amplamente propagado, disseminado.

Para Link e Phelan (2001)LINK, B. G.; PHELAN, J. C. Conceptualizing stigma. Annual Review of Sociology, New York, v. 27, p. 363-385, 2001. Disponível em: https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev.soc.27.1.363. Acesso em: 15 abr. 2019., o estigma é decorrente de um conjunto de componentes inter-relacionados, nomeadamente atribuição de um rótulo às diferenças interindividuais tidas como socialmente relevantes; a associação desse rótulo a características indesejáveis de acordo com estereótipos negativos socialmente vigentes; e a perda de status e discriminação que conduz à perda de oportunidades daqueles que são estigmatizados. Corrigan (2004)CORRIGAN, P. How stigma interferes with mental health care. American Psychologist, v. 59, n. 7, p. 614-625, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1037/0003-066X.59.7.614. Acesso em: 10 mar. 2019.
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decompõe o processo de estigma em quatro componentes: indícios, estereótipos, preconceito e discriminação.

Os indícios são indicadores manifestos que podem assinalar a presença de transtorno mental, por exemplo. Os estereótipos consistem em estruturas de conhecimento generalizadas relativas a um determinado grupo social, enquanto o preconceito abrange as respostas cognitivas e afetivas ao estereótipo, que conduzem a um comportamento de exclusão ou evitação, a discriminação.

Thornicroft (2006) enfatiza que, nas relações pessoais, há um afastamento das pessoas quando descobrem qualquer diagnóstico psiquiátrico. Pessoas com transtornos mais severos têm menor rede social, com maior número relativo de membros da família do que amigos em seu círculo social e têm mais relações baseadas na dependência que na interdependência. As relações amorosas são mais dificultadas, e essa população é vista como sendo indesejada.

No trabalho, as pessoas são consideradas incapazes, têm mais índices de desemprego e demissões, possuem receio em comunicar sua condição em entrevistas de emprego. No campo da vida civil, são notáveis os prejuízos na garantia de direitos humanos e direitos civis; sofrem com mais violência, são mais pobres, têm mais dificuldades com transporte dentro e entre as cidades, e têm menos acesso a espaços de lazer e atividades esportivas. Já nos serviços de saúde, Thornicroft (2006) apresenta dados que mostram uma realidade similar ao que ocorre nos espaços sociais já relatados, e com isso, muitas pessoas evitam procurar ajuda médica por receio de serem taxadas e sofrerem estigma.

O estigma social percebido pode tornar-se internalizado e resultar em autoestigma (isto é, o endosso pessoal de estereótipos sobre si mesmo e o consequente preconceito e autodiscriminação). O estigma público contra o abuso de substâncias é comum e pode impedir as pessoas com uma variedade de condições de saúde mental, incluindo condições relacionadas a substâncias, de procurar ajuda, devido a sentimentos de vergonha. O autoestigma também pode impedir o tratamento quando resulta em perda do respeito próprio (CRAPANZANO ., 2018CRAPANZANO, K. A.; HAMMARLUND, R.; AHMAD, B.; HUNSINGER, N.; KULLAR, R. The association between perceived stigma and substance use disorder treatment outcomes: a review. Substance abuse and rehabilitation, v. 10, p. 1-12, 2018. Disponível em:https://doi.org/10.2147/SAR.S183252. Acesso em: 15 jun. 2020.).

Podem ocorrer efeitos prejudiciais desse processo de estigmatização, como dificuldade para estabelecer relações sociais, agravamento da condição da saúde física por evitar busca de ajuda e tratamento, sentimento de desvalorização e sofrimento pela desconfiança testemunhal a que são submetidos. Trata-se de sujeitos ligados a um imaginário que remete à criminalidade. Em função disso, não há muita tolerância para escuta, o que nos destina à injustiça epistêmica, que veremos a seguir.

Injustiça epistêmica e saúde mental

Como profissionais da saúde mental, frequentemente ouvimos narrativas de pessoas que recebem diagnósticos de transtornos mentais e sofrem pelos rótulos que recebem ao longo da vida. Na maioria das vezes, suas experiências são afetadas pela perda de credibilidade, além de sofrerem com danos na vida familiar e social.

O conceito de injustiça epistêmica foi introduzido por Miranda Fricker (2007) para se referir a formas de injustiça cometidas contra alguém especificamente em sua capacidade de conhecedor/produtor de conhecimento. Uma vez que as práticas sociais e epistêmicas de dar informações aos outros e interpretar nossas experiências são essenciais para nossa racionalidade, identidade e dignidade, é evidente que a injustiça que prejudica nossas capacidades testemunhais e hermenêuticas será uma fonte de danos profundos. A seguir, descrevemos os dois tipos de injustiça epistêmica identificados por Fricker (op. cit.).

A injustiça testemunhal ocorre quando um estereótipo prejudicial à identidade de uma pessoa ou grupo social diminui sua credibilidade, especialmente em relação a outros grupos sociais epistemicamente dominantes. Uma pessoa ou grupo que sofre dessa situação não espera que se ouça o que dizem, e com o tempo, pode se abster de falar. A injustiça hermenêutica ocorre quando alguém se torna incapaz de compreender ou expressar algum aspecto importante de sua própria experiência devido a uma lacuna nas ferramentas compartilhadas de interpretação social. Esse fato coloca uma pessoa ou grupo em desvantagem quando suas experiências sociais não são entendidas. No caso da doença, a injustiça hermenêutica surge porque os recursos necessários para a compreensão das experiências sociais das pessoas doentes não são aceitos como parte dos recursos hermenêuticos dominantes. Para Ritunnano (2022)RITUNNANO, R. Overcoming Hermeneutical Injustice in Mental Health: A Role for Critical Phenomenology. Journal of the British Society for Phenomenology, 2022. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/epub/10.1080/00071773.2022.2031234?needAccess=true. Acesso em 18 fev. 2022.
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, é necessário que profissionais da saúde e pacientes se envolvam em uma forma de humildade hermenêutica e abertura sincera para horizontes alternativos de possibilidade. E isso envolve a capacidade de reconhecer a outra pessoa como um ser humano com uma necessidade fundamental de sentido, significado e pertencimento. Para tanto, é importante compreender que, fora dos meios estritamente profissionais de recursos interpretativos, os pacientes podem buscar significados em outros contextos hermenêuticos. Essa atividade de busca de significado é necessariamente moldada pela coletividade de valores, desejos, intenções e memórias da pessoa – em função de sua história de vida única e contexto social, cultural e histórico. Portanto, esforços interpretativos especiais são necessários para responder de forma adequada e sensível às tentativas de comunicar experiências marginalizadas.

O fenômeno da injustiça epistêmica no campo da saúde

Para Crichton et al. (2017), a doença muitas vezes leva a incapacidade, ansiedade e insegurança; ela pode ser abordada com empatia e compaixão ou pode desencadear estereótipos negativos. Muitos desses estereótipos tendem a denotar incapacidade, deficiência, agência diminuída, vulnerabilidade social, fragilidade psicológica e falha corporal, entre outros. Nesta perspectiva, a doença é vista como uma marca moral, social e epistêmica. As estruturas das instituições de saúde são sustentadas por abordagens biomédicas que se concentram nos aspectos biológicos e não existenciais da doença e, portanto, diminuem o nível de atenção dada à experiência subjetiva de estar doente.

A injustiça epistêmica é importante na psiquiatria por causa dos persistentes estereótipos negativos que afetam as pessoas com transtornos mentais, e levam a um déficit de credibilidade. A consequência é que os testemunhos e interpretações dos pacientes não são reconhecidos como confiáveis, e os pacientes são, assim, prejudicados em sua capacidade como conhecedores e colaboradores do esforço epistêmico para alcançar um diagnóstico e tratamento corretos. Os estereótipos negativos associados aos transtornos mentais, tais como confuso, pouco confiável, irrelevante, incluem a visualização de pessoas com transtornos mentais como cognitivamente deficientes ou emocionalmente comprometidas (SCRUTTON, 2017SCRUTTON, A. P. Epistemic Injustice and mental illness In: The Routledge Handbook of Epistemic Injustice. London and New York: Routledge, 2017.).

Segundo Heriot-Maitland et al. (2012 apudSCRUTTON, 2017SCRUTTON, A. P. Epistemic Injustice and mental illness In: The Routledge Handbook of Epistemic Injustice. London and New York: Routledge, 2017.), os diagnósticos médicos constituem um monopólio pela forma que as experiências são interpretadas. Muitos psiquiatras são influenciados por seu treinamento médico geral e importam esse viés para o campo. Embora muitos reconheçam o modelo biopsicossocial de transtornos mentais, muitas vezes mantêm sua orientação biológica.

A psiquiatria biológica iniciou seu processo de hegemonia a partir da década de 1950, quando foram introduzidos os primeiros medicamentos antipsicóticos, e o consolida na década de 1980. Isso ocorre em parte porque a abordagem biológica tem benefícios práticos (por exemplo, psiquiatras podem economizar tempo concentrando-se em tratamentos medicamentosos). Acredita-se que a própria psiquiatria é estigmatizada na medicina e que alguns psiquiatras acham que serão mais respeitados por seus colegas médicos se abordarem transtornos mentais do ponto de vista biológico (CRICHTON et al., 2017).

Scrutton (2017)SCRUTTON, A. P. Is Depression a Sin or a Disease? A Critique of Moralizing and Medicalizing Models of Mental Illness. Journal of Disability & Religion, v. 19, n. 4, p. 285-311, 2015. DOI: 10.1080/23312521.2015.1087933 Acesso em: 15 jun. 2020. faz uma reflexão acerca dos relatos de pacientes e médicos que indicam várias injustiças epistêmicas encontradas no tratamento psiquiátrico, pela priorização da perspectiva da terceira pessoa, em detrimento e até exclusão da perspectiva da primeira pessoa. Para a autora, a atitude de escutar, ao invés de “conhecer melhor” de forma objetiva, ajudaria a combater o estigma e a sensação de alienação que algumas pessoas em sofrimento psíquico experienciam algumas vezes.

Para Scrutton (2015)SCRUTTON, A. P. Is Depression a Sin or a Disease? A Critique of Moralizing and Medicalizing Models of Mental Illness. Journal of Disability & Religion, v. 19, n. 4, p. 285-311, 2015. DOI: 10.1080/23312521.2015.1087933 Acesso em: 15 jun. 2020., mudar a forma como uma experiência é interpretada transforma a forma como é vivenciada. O silenciamento é uma faceta estrutural do diagnóstico e tratamento psiquiátrico, efetuando a transição das pessoas de agentes ativos para receptores passivos, objetos e não sujeitos.

Crichton et al. (2017) sugerem que existem características distintivas do grupo social de pessoas doentes que as tornam vulneráveis a formas semelhantes de preconceitos e estereótipos negativos, e que, ao abrir um espaço epistêmico para a experiência vivida da doença, um novo e importante domínio do conhecimento – e de mais investigações epistêmicas e mudanças no equilíbrio epistêmico entre pacientes e profissionais de saúde – pode ser revelado. Neste caminho, os autores sugerem algumas etapas cruciais. A primeira diz respeito ao desvelamento da injustiça epistêmica na doença. Seu reconhecimento e identificação são os primeiros passos essenciais para a resolução e abolição. A segunda é a análise crítica das variedades de estereótipos de pessoas doentes, procurando identificar como estereótipos distintos engendram diferentes formas de injustiça epistêmica. A terceira é o estudo das maneiras pelas quais as injustiças epistêmicas contra pessoas doentes são geradas e perpetradas por meio das estratégias de exclusão e expressão e dos pressupostos epistemológicos da prática médica. A quarta é a aplicação de ferramentas metodológicas que forneçam às pessoas doentes os recursos para articular e dar sentido a suas experiências de adoecimento e aos profissionais de saúde os recursos hermenêuticos necessários para melhor compreender esses testemunhos. E a quinta, por fim, seria se interrogar como as estruturas e instituições da saúde contemporânea poderiam ser transformadas com o intuito de minimizar sua disposição de gerar injustiça epistêmica.

Pautada nesta lógica, valorizar a narrativa do usuário em primeira pessoa é fazer emergir uma fala encarnada. A intenção é investigar não apenas as particularidades do sujeito, mas fazer emergir uma fala fora do modelo biomédico, o qual desvaloriza a subjetividade, a história e a compreensão do adoecimento em primeira pessoa.

Agência no contexto da injustiça epistêmica

No percurso do campo da pesquisa, foi bastante comum os usuários se autoatribuírem o rótulo “sou dependente químico”, o que se assemelha à abordagem médica tradicional, que define como dependência química a relação de exclusividade com a droga, ou seja, a dependência química pode ser entendida como uma doença causada pelos efeitos de uma substância. Nesse sentido, o objeto droga torna-se responsável por causar a doença (SANTIAGO, 2017SANTIAGO, J. A droga do toxicômano. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017.), que tende a centralizar o cuidado vinculado à abstinência e ao confinamento, desconsiderando as histórias de vida.

Diante de um cenário de falta de credibilidade, em uma sociedade marcada pelos processos de desigualdade e exclusão, é importante apontar na pesquisa como é a agência de um sujeito que faz uso problemático de substâncias, num cotidiano atravessado pela medicalização da subjetividade e pelo descompasso das políticas públicas.

No que se refere ao conceito de agência, Kirmayer e Carrilo (2019)KIRMAYER, L. J.; GÓMEZ-CARRILLO. Agency, embodiment and enactment in psychosomatic theory and practice. Med Humanit., v. 45, n. 2, p. 169-182, Jun. 2019. Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31167895> Acesso em: 07 fev. 2021. descrevem que ele envolve o senso de propriedade, causalidade, controle e responsabilidade por ações que estão relacionadas aos objetivos, planos e intenções. No campo da ação humana, o termo “agência” identifica o ato mesmo de “agir”. Desde William James (1890)JAMES, W. The principles of psychology. Chicago: Encyclopedia Britannica, Inc., 1952 [1890]. Disponível em: http://library.manipaldubai.com/DL/the_principles_of_psychology_vol_I.pdf. Acesso em: 05 fev. 2019.
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, este ato é visto como uma propriedade diretamente atrelada à intencionalidade humana, uma vez que, quando agimos, geralmente perseguimos um objetivo a ser atingido com a ação. Trata-se de um atributo fenomênico da experiência de ação voluntária, isto é, da ação dotada de um objetivo, cuja função adaptativa reside em produzir no indivíduo a experiência de “sentir-se no controle” de suas próprias ações (MOORE, 2016MOORE, W. J. What Is the Sense of Agency and Why Does it Matter? Frontiers in Psychology, v. 7, p. 1-9, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.3389/fpsyg.2016.01272. Acesso em: 03 set. 2020.
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).

Nesta lógica presenciamos, ao longo dos séculos, a exclusão da tomada de decisões e de limitações agenciais (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, M. History of Madness. London and New York: Routledge, 2006.), que promovem, desta maneira, a injustiça epistêmica ao público que apresenta alguma vulnerabilidade psíquica, como o uso problemático de substâncias psicoativas, por exemplo (KIDDKIDD, I.; CAREL, H. Epistemic Injustice and Illness. Journal of Applied Philosophy, 2016. Disponível em: doi: 10.1111/japp.12172. Acesso em: 05 mar. 2019.et al., 2016).

Assim, o testemunho dessas pessoas está sob alto risco de ser considerado irrelevante ou não confiável, como uma das consequências das desigualdades sociais, marginalização histórica e estigma social (CRICHTON et al.,2016). Este equívoco é profundamente influenciado por barreiras estruturais e normas sociais que impedem o reconhecimento da agência epistêmica.

Metodologia

Esta pesquisa procurou explorar as experiências de adoecimento e tratamento sob a perspectiva dos usuários do CAPS AD, vozes que raramente são ouvidas por serem associadas ao processo de estigma relacionado ao uso de álcool e outras drogas.

Os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 85633818.6.0000.5263). Foram informados de que poderiam interromper a participação na pesquisa a qualquer momento, e que o anonimato e a confidencialidade seriam preservados por meio do uso de nomes fictícios.

Todos os dados foram gerados através da McGill MINI Narrativa de Adoecimento (LEAL ., 2016LEAL, E. M. et al. McGill Entrevista Narrativa de Adoecimento - MINI: tradução e adaptação transcultural para o português. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 8, p. 2393-2402, ago. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S1413-81232016000802393&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 07 fev. 2019. https://doi.org/10.1590/1413-81232015218.08612015). A MINI é um roteiro de perguntas semiestruturadas (que permitem a comparação sistemática das narrativas) com respostas abertas (que permitem ao entrevistado contar livremente sua história). Existe uma preocupação em seguir o roteiro, composto por cinco seções e 46 perguntas, pois é a partir deste que o entrevistado é convidado a falar de um tema que a princípio ele não abordaria espontaneamente (GROLEAUGROLEAU, D.; YOUNG, A.; KIRMAYER, L. J. The McGill Illness Narrative Interview (MINI): An Interview Schedule to Elicit Meanings and Modes of Reasoning Related to Illness Experience. Transcult Psychiatry, v. 43, n. 4, p. 697-717, 2006. doi: 10.1177/1363461506070796. Acesso em: 02 abr. 2018.et al., 2006).

A MINI foi delineada para obter: a) narrativa inicial e temporal da experiência de adoecimento, organizada em termos da sequência de eventos; b) narrativa sobre outras experiências prévias do entrevistado, de membros de sua família, de amigos, encontradas na mídia, e outras representações populares que serviram de modelo para a significação da experiência do adoecimento em questão e que aparecem como protótipos relacionados ao problema de saúde estudado; c) narrativas sob forma de modelos explicativos do sintoma ou da doença, incluindo rótulos, atribuições causais, expectativas de tratamento, curso e resultado; d) narrativas de busca e procura de ajuda, relatos sobre caminhos para chegar ao cuidado e relatos sobre a experiência de tratamento e adesão; e) narrativas do impacto da doença sobre a identidade, a autopercepção e as relações com os outros (LEAL ., 2016LEAL, E. M. et al. McGill Entrevista Narrativa de Adoecimento - MINI: tradução e adaptação transcultural para o português. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 8, p. 2393-2402, ago. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S1413-81232016000802393&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 07 fev. 2019. https://doi.org/10.1590/1413-81232015218.08612015).

O critério inicial de inclusão foi contemplar usuários que frequentavam o CAPS AD há mais tempo (pelo menos seis meses). Inicialmente, foram selecionadas 22 pessoas, sendo 15 homens (entre 23 e 59 anos) e sete mulheres (entre 25 e 56 anos) que se predispuseram a colaborar, e tendo sido realizadas entrevistas individuais dos mesmos, seguindo o roteiro da entrevista MINI. As entrevistas duraram cerca de uma hora e meia, em média, tendo sido gravadas em um celular e em seguida enviadas para o e-mail da primeira autora e salvas no computador.

Todavia, é preciso ponderar que tal público frequentemente faz um uso irregular do dispositivo, razão pela qual nem todos se vincularam à pesquisa até o final. Assim sendo, um critério para a manutenção dos participantes na pesquisa foi a frequência regular, em torno de três vezes na semana, para usuários que apresentavam demanda de cuidados intensivos. Construímos ao longo do tratamento os projetos terapêuticos singulares com os usuários, e de acordo com a narrativa de adoecimento, os projetos se classificam como intensivos, semi-intensivos e não-intensivos. Dos 22 usuários entrevistados, apenas nove participaram do segundo momento do processo, de acordo com o critério de frequência no CAPS AD segundo a co-construção dos projetos terapêuticos. Os 13 usuários restantes tiveram frequência irregular, o que os impediu de participar da validação e análise compartilhada do material. No segundo momento, foi realizada uma abordagem participativa da pesquisa, que parte do princípio da lógica do cuidado (TANGVALD-PEDERSEN; BONGAARDT, 2017TANGVALD-PEDERSEN, O.; BONGAARDT, R. Towards a tinkering participatory research method in mental health. Scandinavian Journal of Disability Research, v. 19, n. 1, p. 1-11, 2016. Disponível em: DOI: 10.1080/15017419.2016.1222305. Acesso em: fev. 2021.). Agendamos três encontros para leitura e análise do material (entrevistas) com os participantes da pesquisa. No primeiro, os nove estavam presentes, no segundo e terceiro encontro, sete participaram, por imprevistos que aconteceram, mas não houve transtorno no percurso da pesquisa em decorrência disso. Cada um leu sua entrevista em voz alta e em seguida refletimos sobre as experiências relatadas, votamos nos temas e analisamos o material.

O perfil sociodemográfico dos participantes se constituiu da seguinte maneira:

09 Participantes entre 24 e 59 anos:

  • 01 mulher branca, ensino médio completo, desempregada;

  • 03 homens negros, ensino fundamental incompleto. Destes 03, 02 estão desempregados e 01, aposentado;

  • 04 homens brancos: 01 ensino médio completo, 01 ensino médio incompleto, 02 com ensino fundamental incompleto. Destes quatro, 01 está em reabilitação pelo INSS, 01 recebe BPC e 02 estão desempregados;

  • 01 homem pardo, ensino médio incompleto, desempregado

Para este artigo, destacamos a seguir os subtemas da pesquisa que foram eleitos pelos participantes em um processo de votação oral após a leitura das entrevistas. Cabe ressaltar que os participantes usaram seus diferentes olhares para analisar a experiência de adoecimento frente ao fenômeno “usar álcool e outras drogas de forma problemática”. Isso implica que a responsabilidade dos profissionais de melhorar o cuidado requer uma prática baseada na sensibilidade em relação às experiências do mundo dos usuários participantes, e não apenas experiências relativas a desvios e patologia. Deste modo, o processo de pesquisa permitiu um diálogo entre pesquisador e participante.

Situações de injustiça epistêmica e estigma a partir das narrativas em primeira pessoa dos usuários do CAPS AD III

Este artigo destaca algumas subcategorias relevantes elencadas pelos usuários participantes que descrevem o estigma e a injustiça epistêmica presentes em suas vidas:

A gente é humilhado, a gente passa por situações, já tentaram me estuprar porque eu vivia na noite, me bateram, eu já vivi muitas situações. É muito difícil uma vida de cracudo, as pessoas passam na rua apontam e ri, e a gente não sabe que no princípio aquele gosto de usar vai acarretar aquele monte de situação, humilhação (Carol)

Carol foi a única participante mulher desta pesquisa. Assim como ela, as mulheres que fazem uso de álcool e drogas enfrentam situações de violência, desigualdades de gênero, desemprego, são vitimizadas pelos problemas estruturais e têm sua situação agravada pela contínua permanência em condições insalubres (VARANDA; ADORNO, 2004VARANDA, W.; ADORNO, R. C. F. Descartáveis Urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para as políticas de saúde. Saúde e Sociedade, v. 13, n. 1, p. 56-69, jan/abr. 2004. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902004000100007> Acesso em: 28 dez. 2020.).

Sobre humilhação e abandono, encontramos em BardBARD, N.; ANTUNES, B.; ROOS, C.; OLSCHOWSKY, A.; PINHO, L. Stigma and prejudice: The experience of crack users. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 24, e2680, 2016. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692016000100309&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 02 abr. 2020.et al. (2016) que os problemas causados pelo uso de álcool e drogas podem levar ao abandono e ao isolamento social, como narra José, no seu momento de dor:

[...] Ah, a gente fica assim revoltado, qualquer coisa um estado de nervo, a gente se sente abandonado [...] fiquei mais de três meses só na bebida, direto, direto, direto, não tomava banho, não entrava pra dentro de casa, não almoçava, não jantava, não dormia direito[...] perdi a confiança no serviço, de andar na casa das pessoas [...]. (José)

Nesse conjunto de relações imagéticas, a ideia é que todos os usuários, de drogas principalmente, estão envolvidos com criminalidade e que parar o uso está relacionado à força de vontade do usuário, enfatizada pela narrativa de um dos participantes:

[...] Eu levo a sério, muitos aqui não têm força de vontade, não mudam [...]”. (Magnésio)

Preconceito

Para Thornicroft (2006), preconceito é quando as pessoas tomam atitudes negativas injustificadas em relação à outra, baseadas mais em suas crenças e preconcepções do que nos reais atributos individuais. Nesse sentido, enquanto se desconfia da palavra do outro com base em algum preconceito, a vida de uma pessoa pode ser afetada como um todo, e assim se ramifica com formas mais familiares de injustiça social (FRICKER, 2007FRICKER, M. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press, 2007.).

[...] Muitas pessoas, muitas coisas de trabalho perderam a confiança em mim por conta do preconceito. Pra formar esse conceito ruim é rápido, pra desfazer essa visão é demorado [...]. (Magnésio)

Ao longo do campo desta pesquisa, ficou cada vez mais evidente que o sujeito usuário de álcool e outras drogas é rotulado como um “criminoso” ou “doente”, e naturalmente visto e considerado pela sociedade e pelo mercado de trabalho como uma pessoa incapacitada para desenvolver qualquer função ocupacional; ou seja, ele dificilmente vai encontrar a oportunidade de mostrar sua capacidade e produtividade, devido ao preconceito impregnado por uma cultura disciplinante e segregadora.

Nessa narrativa, fica explícito que a sociedade relaciona o uso problemático de álcool e drogas a marginalidade e criminalidade, uma ideia derivada do estigma que discrimina e contribui com a segregação, havendo um silenciamento da subjetividade. No entanto, não há nenhum indício de que as drogas causem violência, pois o comportamento agressivo está associado a múltiplos fatores e a um cenário de vulnerabilidades sociais (MINAYO; DESLANDES, 1998MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F. A complexidade das relações entre drogas, álcool e violência. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 35-3, 1998.).

Tais estereótipos negativos, portanto, tendem a privar prejudicialmente as pessoas dos pré-requisitos de conduta epistêmica confiável, uma pessoa ou grupo que sofre de tal situação não espera que o que eles dizem seja ouvido e, com o tempo, podem se abster de falar (KIDD; CAREL, 2017).

Cotidiano atravessado pela falta de credibilidade

É possível que a dificuldade demonstrada nas narrativas seguintes resida na estrutura social em decorrência de preconceitos de identidades movidos por estereótipos sociais negativos que desvalorizam e desqualificam o conhecimento pertencente a este grupo. Nesta perspectiva, a palavra do sujeito se torna menos importante devido ao seu pertencimento a determinado grupo social (FRICKER, 2007FRICKER, M. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press, 2007.). Tais julgamentos depreciativos ignoram a credibilidade do sujeito como agente epistêmico com base nesses marcadores de identidades sociais, conferindo assim o que Fricker denomina de déficit de credibilidade atribuída ao falante na troca testemunhal.

[...] na Upa eu tive um princípio de overdose e fui muito bem atendida, da outra vez eu tive uma crise nervosa, a médica que me atendeu foi extremamente grosseira comigo, de falar que eu estava usando drogas na frente dos meus filhos, coisa que não acontece [.... ]A médica acionou o conselho tutelar por alegar que eu estava usando drogas na frente dos meus filhos, gritando comigo, dizendo: ‘Toma vergonha na cara, você tá fazendo gracinha [...]. (Carol)

O conteúdo desta narrativa nos remete a CrichtonCRICHTON, P.; CAREL, H.; KIDD, I. Epistemic injustice in psychiatry. BJPsych Bulletin, v. 41, n. 2, p. 65-70, 2017. Disponível em: doi:10.1192/pb.bp.115.050682. Acesso em: 15 jun. 2020.et al. (2017), que destacam a injustiça epistêmica na psiquiatria por causa dos persistentes estereótipos negativos. A médica esvazia o nível de credibilidade de Carol e, desse modo, faz um tipo distinto de injustiça, a saber, a injustiça epistêmica, que a destitui da capacidade de fornecer o conhecimento.

A situação narrada por Carol evidencia, em essência, além da injustiça epistêmica, a necessidade de maior conhecimento, por parte dos profissionais de saúde, dos princípios da Redução de Danos (RD), uma estratégia que não exige a abstinência da droga e não está focada na aprovação ou não do uso, mas suspende a ideia da abstinência como objetivo exclusivo do tratamento. Suspende, igualmente, a homogeneização que ela implica e ressalta a importância do reconhecimento da singularidade de cada caso, das múltiplas possibilidades de vinculação com as drogas e do respeito às diferenças e escolhas individuais (SOUZA, 2013SOUZA, T. P. A norma da abstinência e o dispositivo “drogas”: direitos universais em territórios marginais de produção de saúde (perspectivas da redução de danos). 2013. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013.).

Relações familiares permeadas pela sobrecarga

[...] Quando a minha mãe me colocou pra fora, foi porque estava saturada...”. (Carol)

Aqui, analisamos sob o ponto de vista dos participantes, como é para os familiares o convívio com a experiência de adoecimento. De acordo com Delgado (2014DELGADO, P. G. G. Sobrecarga do cuidado, solidariedade e estratégia de lida na experiência de familiares de Centros de Atenção Psicossocial. Revista Physis, Rio de Janeiro, v. 24, n. 4, out./dez. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010373312014000401103&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 10 jan. 2020.), a “sobrecarga familiar” (family burden) refere-se às consequências que afetam o cotidiano, como a desestruturação familiar, social e profissional, além dos gastos financeiros, e da convivência com o uso problemático de álcool e outras drogas. São situações que a família precisa aprender a lidar, mas que causam um grande desgaste físico, mental e emocional.

[...] A família tenta ajudar, eu me considero um cara de sorte, mas em outros casos, percebo que a família se afasta [...]. (Magnésio)

Para os participantes da pesquisa, a experiência de ser familiar de uma pessoa que faz uso problemático de álcool e drogas é considerada como uma experiência “difícil”, “estressante” e de “sobrecarga”, principalmente no momento de agravamento dos sintomas. Na maioria dos casos, os familiares também vivenciam a experiência de adoecimento junto com o usuário, necessitando de cuidados para restabelecerem sua saúde física e mental.

[...] É a família, que sofre, e vibra com a melhora, dá uma credibilidade [...]. (José)

Por esse ângulo, a participação da família no tratamento é de extrema importância no processo do cuidado, na reinserção do usuário na comunidade, na retomada das atividades diárias quando o familiar acredita que a melhora é possível. Daí a necessidade de os CAPS investirem na participação dos familiares no cotidiano dos serviços, já que o grupo familiar é o elo mais próximo que os usuários possuem com o mundo.

“Eu acho que a gente acredita muito naquilo que as pessoas falam...”

No decorrer das apreciações temáticas, estigma e autoestigma se destacam. Por esse motivo, ressaltamos as seguintes narrativas:

O meu problema me afastou minha família, entendem não entendendo que sou dependente, não consigo emprego porque as pessoas falam, não dá emprego porque cracudo rouba [...]. O olhar das pessoas me faz sentir inferiorizada e marginalizada [...]. (Carol)

Thornicroft (2006) salienta que os pacientes frequentemente descrevem o estigma que encontram como pior do que o próprio transtorno mental que vivenciam. O estigma afeta todos os aspectos de suas vidas, incluindo emprego, acomodação, recursos financeiros e senso de cidadania. Para Cowen & Harrison (2012), há uma internalização de estereótipos negativos, e isso, por sua vez, leva a baixa autoestima, vergonha, desmoralização, perda de confiança e desistência de objetivos.

[...] é uma questão de estigma que a gente carrega pelo uso da droga [...]. (Carol)

Fica explícito que existe uma punição de comportamentos que não são tolerados socialmente. Diante dessa circunstância, o estigma representa uma significativa fonte de danos, especialmente na circunstância do emprego, moradia, e que pode resultar em um intenso processo segregacionista.

[...] Agora eu penso, mas muitas pessoas perderam a confiança em mim por conta do preconceito. Pra desfazer essa visão é demorado[...]. (Magnésio)

A associação do uso ao ócio e a criminalidade estimulam a exclusão familiar, formas inadequadas de tratamento e moralidade social, reforçando a exclusão e o sofrimento. É evidente, nas narrativas o autoestigma, a internalização do estigma público, os usuários são levados a acreditar que são moralmente condenáveis e não merecedores de benefícios.

[...] O meu problema me tirou tudo, perdi duas casas, família... eu passei a refletir em beber ou não beber[...]. (Francisco)

Corrigan e Watson (2002)CORRIGAN, P.; WATSON, A. C. Understanding the impact of stigma on people with mental illness. World psychiatry: official journal of the World Psychiatric Association (WPA), v. 1, n. 1, p. 16-20, 2002. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1489832/ Acesso em: 10 mar. 2019. relatam que o ciclo do autoestigma cumpre essencialmente três passos fundamentais: 1 – O indivíduo tem consciência e concorda com os estereótipos negativos dominantes; 2 – aplica os estereótipos a si próprio, podendo inclusive responsabilizar-se pela doença; 3 – experiencia a diminuição da autoestima e autoeficácia. Nessa perspectiva, há uma internalização de crenças culturalmente vigentes.

[...] A autoconfiança da pessoa pra chegar demora muito, se você vai trabalhar numa firma, e sabem que você tem abuso diariamente, vai falar o cara pode ser gente boa e tudo, mas ele bebe[...]. (Tomé)

Identifica-se nas narrativas forte estigma, carregado de conotações morais. Esta situação restringe os seus direitos e oportunidades, por motivo de esses preconceitos funcionarem como uma barreira no acesso à vida social plena e aos serviços de todo tipo que possam necessitar, ficando, desta forma, dependentes dos "outros", e restritos, e impedidos nas diversas formas de expressão.

Considerações finais

A partir do universo dos participantes desta pesquisa, a desconfiança e a falta de credibilidade destacadas neste percurso resultam do efeito de um processo excludente, em que a droga se sobrepõe ao sujeito, potencializando, assim, uma série de preconceitos, rótulos, estereótipos e discriminação, constituintes do processo de estigma. De tal forma, o uso de substâncias psicoativas está atrelado à ideia de marginalidade e criminalidade e contribui com a segregação e o ensurdecimento da subjetividade.

Não priorizar as drogas e, sim, entender as singularidades de cada sujeito diante dos seus usos, das suas relações, é um grande arriscar dentro de uma lógica de sociedade que preza pela produção do adoecimento, medicalização e, sobretudo, declara guerra às drogas.

Diante desta perspectiva, ter uma voz emergiu como ponto essencial. E é nessa lógica que a pesquisa realizada no CAPS AD, com base na narrativa em primeira pessoa para que os usuários fizessem parte de uma abordagem participativa, teve a intenção de produzir mudanças. Acreditamos que promover diferenças a partir das co-construções de saberes com os sujeitos envolvidos no tratamento levanta questões sobre a autenticidade da voz, sobre o impacto do sofrimento e, principalmente, na promoção da agência.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2021
  • Aceito
    23 Mar 2022
  • Revisado
    31 Maio 2022
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