Violência armada e repercussões no cotidiano de trabalho de profissionais da Estratégia de Saúde da Família

Armed violence and repercussions on the daily work of Family Health Strategy professionals

Jéssyca Felix da Silva Sampaio Cristiane Batista Andrade Sobre os autores

Resumo

Em algumas regiões brasileiras, o cotidiano de profissionais de saúde é muitas vezes atravessado por episódios de violência armada e traz consequências para a organização do trabalho. Objetivo: analisar as repercussões da violência armada (VA) no cotidiano de trabalho de profissionais da ESF e suas percepções sobre a estratégia institucional do Acesso Mais Seguro (AMS). Método: Pesquisa qualitativa com entrevistas (roteiro semiestruturado) com quinze profissionais de uma unidade de saúde da ESF no Rio de Janeiro, que ocorreram no período de outubro de 2019 a janeiro de 2020. Por meio da história oral, indagamos sobre o cotidiano de trabalho, as dificuldades e percepções sobre a VA e a implantação do MAS. Resultados: Interrupções das atividades de cuidado em saúde, como a visita domiciliar e outras externas; o fechamento da unidade; a procura dos usuários por outros serviços de saúde; aumento do número de atendimentos da população com problemas de saúde relativos às repercussões da VA. Como estratégias de proteção dos profissionais, encontramos a implantação do AMS, que foi avaliado positivamente e o uso de redes sociais (WhatsApp) para a comunicação entre os profissionais sobre o território no qual trabalham. Conclusão: Salientamos a necessidade de ações de políticas públicas que efetivamente garantam a segurança à população e aos profissionais de saúde.

Palavras-Chave:
Cuidado; Condições de trabalho; Atenção Primária em Saúde

Abstract

In some Brazilian regions, the daily life of health professionals is often crossed by episodes of armed violence, with consequences for the organization of work. Objective: to analyze the repercussions of armed violence (AV) in the daily work of ESF professionals and their perceptions about the institutional strategy of Safer Access (SA). Method: Qualitative research with interviews (semi-structured script) with fifteen professionals from an ESF health unit in Rio de Janeiro, from October 2019 to January 2020. Through oral history, we asked about the daily work, the difficulties and perceptions about the AV and the implementation of the SA. Results: Interruptions in health care activities, such as home visits and other external visits; the closure of the unit; users' demand for other health services; increase in the number of visits to the population with health problems related to the repercussions of VA. As protection strategies for professionals, we found the implementation of the AMS, which was evaluated positively, and the use of social networks (WhatsApp) for communication between professionals about the territory in which they work. Conclusion: We emphasize the need for public policy actions that effectively guarantee the safety of the population and health professionals.

Keywords:
Care; Work conditions; Primary Health Care

Introdução

A Estratégia da Saúde da Família (ESF) é uma modalidade de organização da Atenção Primária em Saúde (APS) e caracteriza-se pela adscrição da população, assim como pela centralidade do cuidado no indivíduo e na família, considerando as características do território no qual as pessoas habitam. É considerada a principal porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS) que deve resolver a maioria dos problemas relacionados à saúde da população e promover a sua assistência, com as seguintes ações: prevenção e promoção à saúde, desenvolvimento das atividades em equipe interdisciplinar, promoção do acolhimento, criação de vínculo entre os profissionais de saúde e usuários (GARUTTI et al., 2014).

Com relação ao trabalho desenvolvido pela equipe da ESF, na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) são descritas inúmeras funções que devem ser compartilhadas pelos profissionais, como: o mapeamento e a construção do perfil da população e do território, a realização de visita domiciliar (VD) para o cuidado, ações de promoção à saúde, participação em reunião de equipe, acolhimento e atendimento integral aos indivíduos. Há determinação das ações, de acordo com a categoria profissional, tais como: realização de consultas por médicos/as, enfermeiros/as, cirurgiões dentistas, que apresentam especificidades de acordo com a formação, mas que são complementares na construção do cuidado. Existe a supervisão de técnicos/as de enfermagem, como ação privativa do enfermeiro. Os encaminhamentos para outros níveis de atenção são feitos pela medicina ou cirurgião dentista. São descritos como responsabilidade do Agente Comunitário de Saúde (ACS) o cadastramento da população e a atualização dos cadastros (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 2.436, de 21 setembro de 2017. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi...
).

Ainda que o trabalho dos profissionais de saúde seja intenso na ESF, observamos que as/os trabalhadoras/es desenvolvem ações no cotidiano para que a unidade funcione e os usuários sejam atendidos. No entanto, há dificuldades no cotidiano de trabalho que perpassam a segurança de trabalhadores/as que estão em unidades de saúde em territórios conflagrados pela violência armada (VA). Os profissionais que atuam em territórios vulneráveis e com a presença da violência armada compartilham sentimentos como aflição, ansiedade e desespero, o que influi negativamente na saúde de trabalhadores/as e usuários/as dos serviços (SANTOS 2017SANTOS, M. S.; SILVA, J. G. E.; BRANCO, J. G.O. O enfrentamento à violência no âmbito da estratégia saúde da família: desafios para a atenção em saúde. [Internet], v. 30, n. 2, 2017. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/RBPS/article/view/5895 Acesso em: 11 abr. 2020.
https://periodicos.unifor.br/RBPS/articl...
).

Apesar de haver diferentes conceitos que contemplam a violência que estamos tratando, tais como violência urbana ou no território, confrontos ou conflitos armados, escolhemos utilizar a denominação “violência armada”, por melhor exprimir o tipo da qual nos referimos, pois esta e seus modos operantes são peculiares na cidade do Rio de Janeiro.

Desse modo, Motta e Dutra (2010MOTTA, B. L.; DUTRA, G. C. Violência Armada Organizada: um fenômeno que ameaça fronteiras estatais. OIKOS, v. 9, n. 1, p. 85-105, 2010.) trazem para a discussão o conceito de Violência Armada Organizada, pois compreendem que é um tipo de violência que envolve as especificidades na América Latina. É uma violência que diz respeito às influências na vida da população, sobretudo as mais pobres, e que gera mortes e gastos públicos (MOTA; DUTRA, 2010). Acreditamos ainda que, em certos momentos, embora não haja confronto ou ostentação de armas para que os/as moradores/as e trabalhadores/as do território se sintam amedrontados, a presença de armas e possíveis confrontos por si só, já são capazes de gerar insegurança e medo na comunidade e nos profissionais que trabalham nesses locais.

Sendo assim, há uma especificidade da cidade do Rio de Janeiro, local onde foi realizada esta pesquisa, que permeia a sua história social e econômica, além de sua disposição geográfica:

O controle de territórios da cidade por grupos armados ilegais é um fenômeno característico da criminalidade no Rio de Janeiro, raro em áreas urbanas no mundo contemporâneo. Favelas dominadas por gangues – e alguns bairros da Zona Oeste e Norte – possuem “donos”, que, por sua vez, mantêm “representantes” locais organizados numa estrutura de quadrilhas armadas responsáveis por manter aquela área como um mercado exclusivo. (RAMOS, 2009RAMOS, S. Meninos do Rio: Jovens, violência armada e polícia nas favelas cariocas [Internet]. Boletim Segurança e Cidadania, 2009. Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/boletim/meninos-do-rio-jovens-violencia-armada-e-policia-nas-favelas-cariocas/
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, p. 17).

Esses grupos denominados de “gangues” são conhecidos no Rio de Janeiro como “facções” (RAMOS, 2009RAMOS, S. Meninos do Rio: Jovens, violência armada e polícia nas favelas cariocas [Internet]. Boletim Segurança e Cidadania, 2009. Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/boletim/meninos-do-rio-jovens-violencia-armada-e-policia-nas-favelas-cariocas/
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). Têm características parecidas entre si, como armamento ostensivo e, principalmente, motivação principal de organização como sendo o domínio do território por questões econômicas, além de uso de armamentos, recrutamento de jovens para a venda de drogas, dentre outros (MOTA; DUTRA, 2010).

Nesse contexto, ressaltamos que a VA atinge, direta e indiretamente, as pessoas, a ponto de cidadãos virem a necessidade de criar uma página nas redes sociais para informar “Onde Tem Tiro - OTT”, na tentativa proteger pessoas, criada em janeiro de 2016. Atualmente, existe um aplicativo para smartphones, em que é possível acessar, praticamente em tempo real, os episódios de tiroteio (OTT, 2020OTT. Onde Tem Tiroteio-RJ. OTTRJ – Home. 11 abr. 2020]. Disponível em: https://www.facebook.com/OTTRJ/
https://www.facebook.com/OTTRJ/...
).

Em vista disso, interessa-nos saber quais são as repercussões desse tipo de violência no cotidiano de trabalho de profissionais da ESF, pois de acordo com estudo (GONÇALVES; QUEIROZ; DELGADO, 2017GONÇALVES, H. C. B.; QUEIROZ, M. R.; DELGADO, P. G. G. Violência urbana e saúde mental: desafios de uma nova agenda? Fractal, Rev Psicol., v. 29, n. 1, p. 17-23, 2017.), dentre as influências da VA no trabalho em saúde, podemos considerar que há três tipos de consequências que são: a violência como agravo, como barreira ao acesso e como risco para os/as profissionais. Há repercussões nos atendimentos aos moradores do território, o que implica em uma (re)organização do serviço para os atendimentos em saúde (GONÇALVES; QUEIROZ; DELGADO, 2017), nos dias ou nas horas subsequentes às situações de violência armada.

Outro aspecto das repercussões da VA na organização dos serviços de saúde é que, além das dificuldades de acesso dos usuários aos serviços de saúde, os/as profissionais também têm dificuldades para a realização de atividades no território, como as VD aos usuários do CAPS ou da APS e, até mesmo, a entrada de ambulância para remoção ou internação de usuários, mostrando como os conflitos armados podem tornar-se uma barreira entre a população e os serviços de saúde (GONÇALVES; QUEIROZ; DELGADO, 2017). Essa dimensão também é descrita em estudo sobre as dificuldades em relação ao acesso para acompanhamento e tratamento de pacientes com tuberculose em uma favela do Rio de Janeiro, devido aos confrontos entre polícia e traficantes (SOUZA 2008SOUZA, F. B. A.et al. Peculiaridades do controle da tuberculose em um cenário de violência urbana de uma comunidade carente do Rio de Janeiro. J bras pneumol., v. 33, n. 3, p. 318-22, 2008.).

Pelo exposto, não é difícil compreender que as atividades de trabalho de profissionais na ESF são influenciadas pela VA, sobretudo quando há tiroteios e confrontos entre a polícia e as facções, ou entre essas últimas. Campos e Pierantoni (2010CAMPOS, A. S.; PIERANTONI, C. R. Violência no trabalho em saúde: um tema para a cooperação internacional em recursos humanos para a saúde. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, v. 4, n. 1, p. 86-92, 2010.) apontam o problema em relação à rotatividade dos profissionais que vivenciaram situações de violência, pois essa exposição “de elevada vulnerabilidade, frequentemente marcadas por situações de tensão entre usuários dos serviços e profissionais de saúde e assoladas por importantes níveis de criminalidade e insegurança” (CAMPOS; PIERANTONI, 2010CAMPOS, A. S.; PIERANTONI, C. R. Violência no trabalho em saúde: um tema para a cooperação internacional em recursos humanos para a saúde. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, v. 4, n. 1, p. 86-92, 2010., p. 90) são contextos que põem os profissionais em risco e trazem influências negativas na dinâmica das atividades profissionais, na saúde e subjetividade.

Uma das formas de lidarem com a VA foi a implementação do Acesso Mais Seguro (AMS), em algumas regiões do país, como é o caso da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de uma metodologia instituída pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), implantada em países em situações de guerra e conflito armado, para a manutenção de serviços essenciais, minimizando os riscos de trabalhadores/as e da população geral em face desta realidade. A situação da violência e de mortes por causas violentas no Brasil chamava atenção do CICV, que iniciou diálogo com o Governo Federal em 2009. Após o desenvolvimento de algumas ações em comunidades cariocas assoladas pela violência armada, observando as graves consequências dela à população, causando, algumas vezes, o fechamento de unidades de saúde e unidades escolares, a metodologia do AMS foi adaptada para utilização na cidade do Rio de Janeiro em áreas com conflitos armados de forma mais intensa (CICV, 2018COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Acesso mais seguro para serviços essenciais. CICV; 2018. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/publication/acesso-mais-seguro-para-servicos-publicos-essenciais-brasil
https://www.icrc.org/pt/publication/aces...
).

Por ser de ampla complexidade as vivências dos profissionais de saúde face à VA e as dificuldades enfrentadas por eles/as, entendemos que o processo de subjetivação da relação entre o trabalho e a manutenção da saúde, abordada pelos estudos da psicodinâmica do trabalho é profícuo na pesquisa aqui apresentada. Ou seja, é por meio das ressignificações diante das dificuldades nas atividades profissionais e das estratégias coletivas de defesa que os/as profissionais conseguem se articular, individualmente ou coletivamente, para lidarem com os constrangimentos no trabalho (MOLINIER, 2013MOLINIER, P. O trabalho e a psique: uma introdução à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15; 2013.), como no caso da violência, por exemplo. Por conseguinte, entender o modus operandi e as ações que realizam em situações de VA em busca da continuidade e da permanência do trabalho, mesmo em situações em que os riscos à saúde estão postos, é uma das finalidades desta pesquisa.

Desse modo, pretendemos responder as seguintes questões: quais são as influências da VA no cotidiano de trabalho de profissionais da ESF? Quais são as percepções dos profissionais sobre o AMS? Portanto, o artigo tem por finalidade analisar as repercussões da VA no cotidiano de trabalho de profissionais da Estratégia da Saúde da Família e suas percepções sobre a estratégia institucional do AMS.

Metodologia

Pela natureza da pesquisa proposta, levando em consideração a relação direta entre as pesquisadoras e o campo, trata-se de um estudo inserido na pesquisa social de abordagem qualitativa, em que é possível apreender as relações sociais de indivíduos e grupos, as subjetividades e as vivências humanas (MINAYO; DESLANDES; GOMES, 2013MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F.; GOMES, R. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2013.).

Dessa maneira, com a finalidade de conhecer as percepções de um grupo de profissionais que têm em seu cotidiano, as experiências face à violência armada em suas atividades, optamos pela História Oral, pois esta considera as experiências de vida dos participantes para mostrar e discutir as relações sociais em determinados grupos: “[...] trata-se de procurar compreender a sociedade através do indivíduo que nela viveu; de estabelecer relações entre o geral e o particular através da análise comparativa de diferentes versões e testemunhos”(RIGOTTO, 1998RIGOTTO, R. M. As Técnicas de relatos orais e o estudo das representações sociais em saúde. Ciênc Saúde Coletiva, v. 3, n. 1, p. 116-30, 1998., p. 118). Por isso, entendemos que a abordagem da história oral permite apreender, por meio dos depoimentos orais (RIGOTTO, 1998RIGOTTO, R. M. As Técnicas de relatos orais e o estudo das representações sociais em saúde. Ciênc Saúde Coletiva, v. 3, n. 1, p. 116-30, 1998.), sua relação com o trabalho e a violência, e suas construções ao longo tempo, ao resgatar o que foi vivido e permaneceu nas memórias desses/as profissionais.

Por se tratar de aspectos sociais e subjetivos de como os profissionais lidam com a violência armada, optamos pelo uso da entrevista individual que, segundo Minayo, Deslandes e Gomes (2013), é um dos procedimentos mais utilizados, tratando-se de um encontro entre duas pessoas: o entrevistado e o entrevistador. Porém esse encontro tem um objetivo claro, podendo ser coletados dados subjetivos ou objetivos. No caso do tema deste estudo, a entrevista semiestruturada possibilitou perguntas estimuladoras, e a/o entrevistada/o pode discorrer sobre o assunto não necessariamente atrelado à pergunta inicial (MINAYO; DESLANDES; GOMES, 2013).

De acordo com os estudos da psicodinâmica do trabalho, do qual parte esta pesquisa, o trabalho não é neutro. Ele (re)constrói subjetividades, como os sentimentos de prazer, contentamento e de pertencimento a um grupo profissional. Do mesmo modo, há a produção do sofrimento (individual e coletivo) diante dos constrangimentos e dificuldades (DEJOURS, 1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez Oboré; 1992.; MOLINIER, 2013MOLINIER, P. O trabalho e a psique: uma introdução à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15; 2013.). Assim, importa analisar as vivências individuais e coletivas expressas pelas palavras desses/as profissionais: “[...] que inclui concepções subjetivas, hipóteses sobre o porquê e o como da relação vivência-trabalho, interpretações e até mesmo citações” (DEJOURS, 1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez Oboré; 1992., p. 149). Portanto, a cessão de depoimentos orais sobre as representações e as construções das subjetividades no trabalho face às dificuldades no cotidiano de trabalho, auxiliam as análises das vivências de VA.

O roteiro de entrevista semiestruturado foi elaborado pelas autoras com questões referentes: a inserção dos profissionais na unidade; o cotidiano de trabalho e os fazeres dos profissionais; as vivências deles diante da violência armada e suas influências no trabalho em saúde e em sua própria saúde e subjetividade. Este último aspecto não é abordado neste artigo.

Cabe ressaltar que a primeira autora deste artigo é enfermeira da ESF na cidade do Rio de Janeiro/Brasil e possui conhecimentos sobre as unidades de saúde que vivenciam situações de VA em seus territórios. Sendo assim, as/os participantes da pesquisa escolhidos são as/os profissionais (n=15) que compõem a equipe mínima da ESF das duas equipes da unidade, a saber: uma médica, duas enfermeiras, duas técnicas de enfermagem e ACS (seis mulheres e dois homens), um gerente da unidade e uma auxiliar administrativa.

As entrevistas foram realizadas entre os meses de outubro de 2019 a janeiro de 2020, sempre no local de trabalho e em momentos em que os profissionais puderam ceder os depoimentos. Todas as entrevistas foram gravadas, com autorização prévia da/o participante. Todas as entrevistas foram transcritas por profissional especializado e verificado pela primeira autora que ouviu e corrigiu, quando necessário, o documento gravado. Tempo médio das entrevistas foi de 40 minutos.

Durante as entrevistas, foi observado que duas participantes ficaram emocionadas com seus relatos sobre o tema e um entrevistado parecia um pouco incomodado durante seu depoimento, mas todas as entrevistas seguiram até ao final, sem solicitação de interrupção pela/o participante. Esse achado permite refletir que talvez o tema da violência armada e suas influências na vida e no cotidiano de trabalho não sejam questões fáceis de falar e de expô-las.

Com relação aos aspectos éticos, a presente pesquisa, oriunda de dissertação de mestrado profissional da primeira autora, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz (parecer nº 3.377.149, aprovação em 07/06/2019) e pelo CEP da Prefeitura do Município do Rio de Janeiro (parecer nº 3.619.485, aprovação em 03/10/2019). Todos/as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Para garantia do sigilo, o nome do local onde a pesquisa foi realizada, as comunidades atendidas (Curió e Sabiá Laranja) e os nomes dos entrevistados são fictícios.

A Unidade de Saúde e os/as profissionais da ESF entrevistados/as

A unidade de saúde estudada abarca duas comunidades (Curió e Sabiá Laranja). Elas estão no mesmo morro e fazem fronteira direta entre si. No entanto, o acesso de uma para outra é por um único ponto. Curió é uma das primeiras comunidades cariocas a receber a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), em junho de 2009. A UPP fica no mesmo território da unidade de saúde e abrange as duas comunidades. Estes territórios ainda estão sob a influência de facções criminosas. E, apesar de parecerem a mesma comunidade, eram, recentemente, dominadas por facções diferentes e rivais, o que fazia com que os confrontos acontecessem com grande frequência.

Não foi possível o levantamento de ocorrências de VA na região da estudada, por ser um dado de acesso restrito do município. No entanto, sobre os casos de VA nas favelas do Rio de Janeiro, ressaltamos que entre os meses de abril e maio de 2020, foram comuns as incursões policiais, mesmo a população tendo vivido o contexto da pandemia da Covid-19. Segundo os dados do Observatório da Segurança Pública, no começo da doença no Brasil, ou seja, em março de 2020, houve uma diminuição de quase 77% nas incursões policiais na cidade do Rio de Janeiro. No entanto, no mês de abril do mesmo ano, houve aumento de cerca de 58% de mortes relativas às ações policiais, se comparadas com o mês de abril de 2019 (REDE..., 2020REDE OBSERVATÓRIOS DA SEGURANÇA. Operações policiais no RJ durante a pandemia: frequentes e ainda mais letais. 2020. Disponível em: http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/uploads/2020/05/Operac%CC%A7o%CC%83es-policiais-no-RJ-durante-a-pandemia.pdf
http://observatorioseguranca.com.br/wp-c...
).

Em se tratando da política de segurança pública, em junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) promulgou a medida cautelar que suspendeu as incursões policiais na pandemia da Covid-19 (STF, 2020SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministro Fachin determina suspensão de operações policiais em comunidades do RJ durante pandemia. 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=444960
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) No entanto, ainda são comuns as reportagens, apresentadas nas mídias jornalísticas, sobre a permanência de ações policiais nas favelas cariocas, mesmo com a referida decisão do STF.

Sobre as características dos entrevistados, o quadro 1 traz a síntese das características dos/as profissionais entrevistados/as.

Quadro 1
Identificação e caracterização das/os participantes de acordo com idade, ocupação, formação, local de moradia, tempo de atuação na unidade e se teve outra experiência na área de saúde

Há prevalência de mulheres na unidade, de modo que, das 15 pessoas entrevistadas, 12 são mulheres, totalizando 80% de força de trabalho feminina; e esta era a mesma tendência se avaliássemos o quantitativo total da unidade. De acordo com pesquisa, podemos observar o aumento da força de trabalho feminina em áreas da saúde que antes tinham pouca participação, como o caso da odontologia e medicina que, em 1970, tinham 11,3% e 11,6% de participação feminina, alcançando, em 2000, 50,9% e 35,9%, respectivamente. Destacamos, ainda, as categoriais de enfermagem que sempre tiveram a participação feminina acima de 80% para os níveis técnicos/auxiliares e acima de 90% para nível superior (MACHADO; OLIVEIRA; MOYSES, 2011MACHADO, M. H.; OLIVEIR, E. S.; MOYSES, N. M. N. Tendências do mercado de trabalho em saúde no Brasil. In: PIERANTONI, C. R.; DALPOZ, M.R.; FRANÇA, T. (Orgs.). O trabalho em saúde: abordagens quantitativas e qualitativas. Rio de Janeiro: CEPESC: IMS/UERJ: ObservaRH, 2011. p. 103-16.).

Uma segunda consideração é sobre o tempo de atuação na unidade. Apenas três profissionais entrevistadas/os têm menos de um ano na unidade (o gerente e uma técnica de enfermagem com quatro meses e a outra técnica de enfermagem atuando há dez meses). Com tempo de permanência entre um e três anos, temos as duas enfermeiras. A médica tem quatro anos e seis meses. Entre os ACS, o tempo médio de atuação é de aproximadamente sete anos, variando de quatro a nove anos.

As repercussões da violência armada no cotidiano de trabalho dos/as profissionais

O Quadro 2 apresenta uma síntese sobre as vivências da VA no trabalho dos/as profissionais entrevistados/as: a busca por abrigo e proteção diante da iminência de tiroteios, o medo das armas e dos confrontos, as interrupções das atividades de saúde e a prestação de atendimentos às pessoas feridas.

Quadro 2
Síntese das respostas dos entrevistados sobre as vivências de situações de violência armada no território

No decorrer das entrevistas, verificamos que a atividade que mais sofreu alterações em decorrências das situações de violência no território foi a visita domiciliar (VD), assim como as outras atividades de promoção de saúde e prevenção de doenças que seriam realizadas no território, ou seja, fora da unidade de saúde:

[...] para eles, (Sabiá Laranja) é bem mais difícil fazer a visita domiciliar, que é uma coisa que é nossa função, estar na rua, estar andando, mas como é muito beco e do nada acontece alguma coisa, fica mais perigoso de sair, de fazer visita assim. (Rute, ACS).

[...] dificuldade de realizar trabalhos extramuro, visita, promoção por conta de violência do território. (Carolina, médica).

No dia da entrevista de Mirela (enfermeira), ela realizaria VD em uma área, mas precisou readequar o plano, pois a ACS orientou que não era adequado ir para a área dos becos, devido à presença de “muito bandidos novos e armados”.

Estes resultados corroboram os achados da literatura (MACHADO, 2015MACHADO, C. B. A violência urbana e as repercussões nas ações de cuidado no território da Saúde da Família. Niterói: UFF; 2015.) sobre a influência da violência na organização do processo de trabalho e na realização ou não de ações no território, pois na percepção das/os profissionais, a violência armada limita as ações de cuidado no território e que 27% destas/es trocariam de unidade devido aos confrontos. Outros 73%, apesar de reconhecer a violência como dificultador, ficariam pelo vínculo já construído com a população e com a própria equipe, pela proximidade de casa e pelo prazer que têm no trabalho que desenvolvem (MACHADO, 2015MACHADO, C. B. A violência urbana e as repercussões nas ações de cuidado no território da Saúde da Família. Niterói: UFF; 2015.). A presença de duas facções rivais no território, faz com que os confrontos sejam mais frequentes (FROTA, 2008FROTA, A.C. O processo de trabalho da estratégia saúde da família: o caso Fortaleza. Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 2008.), como o caso da nossa pesquisa.

Outra influência dessa violência no cotidiano de trabalho é a necessidade de observar os sinais do próprio território para avaliar se é possível realizar as atividades externas. Esse aprendizado adquirido ao longo da vida das/os moradores/as, que é compartilhado com os demais integrantes da equipe, passa a fazer parte do trabalho, em maior parte, ficando sob a responsabilidade dos ACS, que, no trajeto para o trabalho, já iniciam a atividade:

[...] já vê pessoas, policiais, entrar armado e falar, cuidado ao subir que estava de uma forma parecendo que ia disparar, então é melhor, a gente vai, como se diz, se calçar com informação, é melhor não sair naquele momento, nós avaliamos. (Daniel, ACS).

Ao analisarmos esses depoimentos, percebemos que umas das estratégias para lidar com as possíveis situações de VA é a aprendizagem coletiva, que visa a tomada de decisões. E neste sentido, essa é uma das formas de vencer as dificuldades, em que os saberes diante do sofrimento são construídos e importantes para a manutenção da saúde e da permanência no trabalho (DEJOURS, 1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez Oboré; 1992.; MOLINIER, 2013MOLINIER, P. O trabalho e a psique: uma introdução à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15; 2013.).

Ainda é apontado como influência da VA e da recorrência dos confrontos o fechamento da unidade por alguns dias ou horas, o que gera desassistência à população, diminuição da credibilidade no serviço e preocupação sobre a saúde da população:

[...] a preocupação que causa é a seguinte: os pacientes, porque, imagine, uma unidade de saúde não abre por causa da violência, aí os pacientes estão todos agitados aqui em cima, porque a gente está lá embaixo (fora da comunidade, por não ter aberto), eles estão aqui em cima também, como é que faz? Fica sem o cuidado eles, e a gente ansioso porque não pode oferecer esse cuidado também, e ansioso com a violência. (Solange, técnica enfermagem).

Gonçalves, Queiroz e Delgado (2017) abordam o aspecto da violência como barreira de acesso à população. Isso pode se dar de diferentes formas, como o próprio fechamento da unidade, que já faz com que a população não possa ser atendida, com a falta de assistência aos/às usuários/as acamados/as, que não podem ir à unidade, pois a equipe não consegue chegar ao domicílio. Ademais, a própria restrição da população no território, ainda que a unidade de saúde esteja aberta; a dificuldade de acesso de ambulâncias, que, em situação de confronto, não pode subir. Todas as formas de restrição de acesso descritas por Gonçalves, Queiroz e Delgado (2017) foram abordadas pelas/os profissionais de saúde.

Acrescentamos a dificuldade de acesso do/a ACS, em determinadas casas, devido à instalação de ou troca por portões altos ou muros, que dificultam o usuário de ouvir o profissional chamando. O chamado pelo usuário pode ocorrer por motivo de uma VD ou mesmo para dar abrigo aos profissionais que estão diante dos tiroteios. Em alguns casos, os ACS precisam ligar antes para avisar que está indo à casa do usuário, para que ele o atenda.

Apesar de não aparecer nas entrevistas realizadas, é possível supor que, quando as atividades externas são canceladas ou a unidade é fechada, as atividades daquele dia ou período não são realizadas, o que pode gerar acúmulo de trabalho para os dias subsequentes, exigindo das/os trabalhadoras reavaliação da programação de trabalho e priorização de atividades interrompidas pela VA. E, assim, podemos indagar sobre a intensificação das atividades diárias de trabalho com as mudanças nas rotinas desses profissionais da saúde, além dos efeitos na saúde da população:

São muitos casos de pacientes com ansiedade, medo, insônia, eu acho que, assim, sempre quando a gente tem uma fala dessas, a gente acaba voltando para a violência, eles não estavam tão de cara com a violência como estão hoje, e eu acho muitos casos, aumentaram muito essa questão de ansiedade, depressão, de medo, angústia, medo de sair de casa, invasão em casa. Então, assim, aumentou o nosso número de atendimentos em relação a isso. (Mirela, enfermeira).

Sobre esse depoimento, ressaltamos que as influências da violência perpassam as questões individuais e coletivas, seja por lesões físicas e/ou psicológicas, o que afeta diretamente a organização dos serviços de saúde para suporte às vítimas para os atendimentos de traumas físicos e/ou psicológicos e “[...] coloca novos problemas para o atendimento médico e para os serviços” (MINAYO 2018MINAYO, M. C. S.; SOUZA, E. R.; SILVA, M. M. A.; ASSIS, S. G. Institucionalização do tema da violência no SUS: avanços e desafios. Ciênc Saúde Colet., v. 23, n. 6, p. 200716, 2018.; 2008).

Houve apenas um relato da saída de profissional da unidade de saúde estudada, após o episódio de confronto no território. Julieta (ACS) narra que acompanhou um médico em VD e ficaram no meio do tiroteio, pois, embora estivessem na frente da casa de uma usuária, esta era portadora de deficiência física, o que lhe dificultava caminhar até o portão e abri-lo, para que eles entrassem. Ela diz que o médico ficou muito nervoso e uma semana depois foi embora, mas não sabe se sua saída tem causa direta com esse episódio.

Apesar de, nesta unidade, a rotatividade de profissionais não ser um grande problema, aparecendo apenas na categoria médica de uma das equipes e na de gerente, estudos apontam que a VA tem uma influência importante na dificuldade de fixação de profissionais em algumas áreas (LANCMAN 2009LANCMAN, S.; GHIRARDI, M. I. G; CASTRO, E. D.; TUACEK, T. A. Repercussions of violence on the mental health of workers of the Family Health Program. Revista de Saúde Pública, v. 43, n. 4, p. 682-8, 2009.; CAMPOS; PIERANTONI, 2010CAMPOS, A. S.; PIERANTONI, C. R. Violência no trabalho em saúde: um tema para a cooperação internacional em recursos humanos para a saúde. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, v. 4, n. 1, p. 86-92, 2010.; BENICIO; BARROS, 2017BENICIO, L. F. S.; BARROS, J.P.P. Estratégia saúde da família e violência urbana: abordagens e práticas sociais em questão. SANARE - Revista de Políticas Públicas, v. 16, n. 0, p. 102-12, 2017.). Frota (2008FROTA, A.C. O processo de trabalho da estratégia saúde da família: o caso Fortaleza. Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 2008.) mostra que a Prefeitura de Fortaleza instituiu o pagamento de uma gratificação para atuação em territórios classificados como de risco, a fim de incentivar a permanência dos profissionais. Na cidade do Rio de Janeiro, não há esse incentivo.

As estratégias de enfrentamento diante da violência armada: o AMS e a comunicação entre os/as profissionais

O AMS que tem sido utilizado na unidade, desde 2017, quando o território ficou mais tenso e os confrontos armados se intensificaram. O documento do AMS aborda diversas questões sobre a violência e sobre a implantação desta metodologia. A CICV, após sensibilizar os chefes de Estado e tomadores de decisão sobre a importância do uso desta metodologia, em cooperação com as secretarias, faz a formação para multiplicadores, que devem disseminar as informações sobre o AMS e auxiliar na sua implantação. É necessário que exista um grupo de suporte ao nível central e na coordenação de área, além disso, todos os profissionais da unidade precisam ser sensibilizados e formados para a atuação no AMS (RAMOS, 2009RAMOS, S. Meninos do Rio: Jovens, violência armada e polícia nas favelas cariocas [Internet]. Boletim Segurança e Cidadania, 2009. Disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/boletim/meninos-do-rio-jovens-violencia-armada-e-policia-nas-favelas-cariocas/
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).

Rute (ACS) verbaliza sobre o início da construção do plano na tentativa de minimizar os riscos dos profissionais, pois ocorreu morte de um morador em decorrência dos confrontos:

[...] quando começou o protocolo, foi legal, até porque foi discutido com todo mundo e a gente decidiu como é que seria, como é que funcionaria, então não foi uma coisa de fora para dentro, foi a gente que organizou tudo; lógico que tem uma cartilha para a gente seguir, só que é do nosso jeito, da nossa realidade, não é realidade de outras comunidades, é da nossa, eu gostei porque deixa a gente mais seguro, não é? Apesar de a unidade ser no meio da comunidade. (Rute, ACS).

É importante destacar, na fala de Rute, a importância de o plano ser construído com base no modelo do CICV (2018), mas, considerando as características do território, a partir do conhecimento destas/es trabalhadoras/es que também são moradoras/es, pois deve refletir a realidade local e deve ser permeado pela construção coletiva. E, portanto, com maior chance de utilização na prática, com adoção de comportamentos mais seguros e com minimização dos riscos aos que estarão expostos (trabalhadoras/es e usuárias/os). Assim, há menor risco de se tornar um instrumento meramente impositivo. Atualmente, na unidade, a comissão é formada pela médica (que fica responsável pela condução na ausência do gerente), dois ACS de cada equipe, a farmacêutica, uma enfermeira e o gerente da unidade.

Conforme preconizado pelo documento oficial (CICV, 2018), todas/os as/os entrevistadas/os informam que a avaliação acontece todos os dias pela manhã, como corrobora Carolina (médica):

[...] a gente sempre faz uma classificação do território de manhã cedo, vai nortear o trabalho dos ACSs na comunidade, se pode sair, para áreas que eles podem ir, que áreas que não [...] a gente pega e coleta informação deles principalmente [...] e aí a gente classifica, dependendo se teve algum evento, algum movimento diferente.

Ressaltamos que a decisão não é do gerente da unidade, e sim do coletivo de trabalhadores/as, baseado no plano descrito e aprovado, conforme preconiza o CICV (2018). Porém, na unidade pesquisada, não foi possível verificar se a decisão é tomada coletivamente ou pela pessoa que está à frente do processo, em detrimento do grupo.

O gerente da unidade, apesar de relatar não ter passado por situações de violência no território Sabiá Laranja e Curió, entende, a partir de suas experiências prévias, que deve assumir a responsabilidade e ser referência para a equipe, tentando controlar a situação, devido à necessidade de ter que lidar com as emoções dos/as trabalhadores/as. Além disso, pede às pessoas para evitar compartilhar mensagens que acabam gerando mais pânico, pois, às vezes, são mensagens antigas ou de outra comunidade.

Em uma pesquisa sobre a experiência da implantação do AMS nas unidades de Saúde da Família, em Niterói, Quintão . (2015QUINTÃO, F. C.; CARVALHO, F. M.; MOLINA, L.; RODRIGUES, G. S. Plano de Acesso Mais Seguro - Estratégia de Prevenção e Redução das consequências de incidentes relacionados à violência armada para os profissionais do Programa Médico de Família do Município de Niterói, RJ, Brasil. In: Convención Salud 2015. Cuba, 2015. Disponível em: http://www.convencionsalud2015.sld.cu/index.php/convencionsalud/2015/paper/view/1547
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) descrevem a parceria e treinamento pelo próprio CICV. O grupo avalia que a metodologia tem potencial de diminuição de estresse dos/as trabalhadores/as, mesmo quando ainda em processo de implantação. A utilização da metodologia com as especificidades do local de atuação, construída coletivamente pelos próprios trabalhadores, permite a tomada de decisão de forma padronizada e a minimização dos riscos para todos/as (QUINTÃO et al., 2015).

Os resultados apresentados mostram que todos/as profissionais, de alguma forma, falam do plano de AMS, que parece estar consolidado. Nenhum deles parece discordar ou negar a necessidade do seu uso:

[...] tem funcionado muito bem, porque, de vez em quando, de dois em dois meses, às vezes, tem alguma operação, então hoje a gente já tem um plano para essas situações. [...] Deu tiro, não subimos, aguardamos trinta minutos, então, assim, já tem o que fazer, já está bem estruturado e que todos nós já conhecemos [...] passa uma segurança (Marilsa, enfermeira).

[...] o protocolo já é uma coisa que ajudou bastante e, assim, se a gente ver que tem alguma coisa muito estranha e tiver que fechar a unidade, a gente consegue, a gente tem apoio.

Poucos estudos mostram a implantação do AMS e como tem sido desenvolvido nas unidades de saúde, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro. O principal motivo, possivelmente, seja a orientação inicial de que esse plano fosse secreto, pois nem os usuários do serviço podiam saber da sua existência. Acreditava-se que isso iria conferir mais insegurança aos trabalhadores, porém, depois de episódios recorrentes de violência com fechamentos de unidades, a Secretaria Municipal de Saúde comunicou a imprensa sobre o Plano de AMS e, a partir de então, tornou-se público.

Entendemos que o plano de AMS é um aparato institucional para mitigar os riscos nos quais as/os trabalhadoras/es e usuárias/os estão expostas/os, mas sabemos que estas/es trabalhadoras/es também utilizam outras estratégias para suportarem as dificuldades no cotidiano laboral, como as estratégias individuais e coletivas.

Outra estratégia para lidar com a VA é a comunicação entre os/as profissionais que estão sempre em contato entre si e com moradores/as do território. A comunicação se dá após a constatação de sinais de violência ou na iminência dela. Entrevistadas/os apontam que, para que a comunicação aconteça em tempo oportuno, o meio mais utilizado é de WhatsApp (aplicativo de mensagens instantâneas com uso de internet), seja por mensagens destinadas aos grupos ou individuais às pessoas que compõem o grupo de tomada de decisões:

Pelo WhatsApp, para a gente, o pessoal não subir, colocar a equipe técnica em risco, né, porque a gente ainda está dentro de casa, então eles vão subir sem saber o que está acontecendo, a gente sempre dá informação para eles (Julieta, ACS).

Vale sinalizar que, como a maior parte da comunicação é feita através de aplicativo de celular, com necessidade de internet, pode ocorrer de alguém da equipe não ser comunicado em tempo hábil. Mas as/os trabalhadoras/es entendem que todas/os precisam estar atentas/os e se responsabilizar pela própria segurança, mantendo o contato telefônico atualizado e o telefone conectado para recebimento dos alertas. Dessa forma, pelos depoimentos das/os participantes, pudemos observar que a comunicação é utilizada como forma de prevenir os riscos (quando a equipe evita visitar determinada área pela informação obtida previamente); como forma de sinalizar à exposição ao risco no momento (quando alguém fica na área em situação de confronto e comunica à unidade, ou a unidade entra em contato para saber onde a pessoa está); e, posteriormente, com a comunicação à coordenação das unidades de saúde sobre o ocorrido.

Autores (QUINTÃO et al., 2015; BROCH, 2017BROCH, D. Desafios na atuação dos agentes comunitários: compreensão da determinação social da saúde e das condições de trabalho. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2017.) também apontam que a comunicação é uma das formas utilizadas para a proteção dos profissionais, adotada principalmente entre as/os ACS. Somado a isso, chamamos à atenção para a fala de Mirela para a antecipação das ocorrências da violência. É como se esses/as profissionais estivessem sempre atentos/as aos “sinais” e aos possíveis indícios da ocorrência da violência armada. E, nesse sentido, Cavalcanti (2008CAVALCANTI, M. Tiroteios, legibilidade e espaço urbano: Notas etnográficas de uma favela carioca. Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 1, n. 1, p. 35-59, 2008.) argumenta que, perante a violência, as pessoas estão “como uma quase espera pela próxima ocorrência, engendrando uma série de rotinas de evitar e avaliar riscos” (p. 37).

Os achados apresentados não são passíveis de generalizações, mas permitem refletir que, embora haja um trabalho preconizado para a sua realização, ou seja, exista um trabalho prescrito, os/as profissionais criam estratégias para amenizar o sofrimento diante do medo, da insegurança e de situações que os coloquem em risco, como pontuado pelo referencial teórico da psicodinâmica do trabalho (DEJOURS, 1992DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez Oboré; 1992.; MOLINIER, 2013MOLINIER, P. O trabalho e a psique: uma introdução à psicodinâmica do trabalho. Brasília: Paralelo 15; 2013.). Em se tratando da autoproteção, as percepções diante dos riscos que vivenciam diante dos confrontos também os fazem realizar estratégias para que estejam em segurança. E, nesse caso, o AMS foi considerado importante aos profissionais para que haja a proteção, além, é evidente, do uso das redes sociais para se manterem informados na iminência ou durante os tiroteios.

Considerações finais

O trabalho na Atenção Primária à Saúde, principalmente na modalidade de ESF, é complexo e requer aproximação do território, criação de vínculo e acompanhamento próximo com as famílias de toda a equipe para a continuidade das ações em saúde. Assim, foi possível conhecer as vivências de profissionais da ESF, que tem como finalidade o cuidado, mas que estão em territórios com a presença da VA. O cotidiano de trabalho, muitas vezes, é atravessado pelos episódios dos confrontos no território e traz implicações à organização do trabalho: fechamento total ou parcial da unidade de saúde, suspensão das atividades externas, aumento de atendimentos não agendados previamente por solicitação dos/as usuários/as que sofrem pela violência à que estão expostos.

Ressaltamos ainda, que existe a aprendizagem individual e/ou coletiva sobre os sinais do território para proteção da equipe e dos próprios usuários. Esta última demanda tempo e disponibilidade, principalmente dos/as ACS, que verificam os sinais no trajeto para a unidade, em um tempo que ainda não é de trabalho. Uma das estratégias para lidar com as situações de VA é o uso do AMS, que no caso da pesquisa aqui apresentada, é tido como uma estratégia eficaz no que diz respeito ao conhecimento das circunstâncias do território, bem como a busca pela proteção da equipe e dos usuários em saúde.

Uma das conclusões é que, por meio do trabalho, existem as construções de aprendizagens e estratégias para a sobrevivência diante das dificuldades, que nesta pesquisa são expressas pelo uso do AMS e das redes de comunicação pelos aplicativos de celular. Sendo assim, ressaltamos a importância da psicodinâmica do trabalho como aporte teórico que tem como finalidade desvendar os enigmas das atividades nas construções sociais face aos desafios de trabalhadores/as. Desafios esses que foram apreendidos pelos depoimentos orais, que possibilitaram o resgate das vivências de profissionais de saúde em contexto de VA.

Em âmbito geral, observamos que os estudos sobre essa temática vêm sendo realizados, sobretudo nos últimos anos. As/os próprias/os entrevistadas/os falaram sobre a importância de que o tema fosse fomentando para que seja pensado não só na saúde destas/es trabalhadoras/es e da população, mas também (e talvez, principalmente), sejam pensadas ações e políticas que efetivamente garantam segurança à sua população.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2021
  • Aceito
    27 Dez 2022
  • Revisado
    19 Out 2022
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