Medicalização da alimentação e da nutrição: aproximações conceituais

Medicalization of food and nutrition: conceptual approach

Raquel Kerpel Carlos Medrano Fernando Hellmann Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste estudo foi identificar conceitos e temáticas centrais da medicalização da alimentação e da nutrição. Para tanto, realizou-se revisão de busca sistematizada seguindo o método Systematic-Search Flow em sete bases de dados, combinando a palavra-chave “medicali?ation” com nutrition*, diet*, food, nourishment e eat*. Após a aplicação dos critérios de inclusão e de exclusão, foram selecionados 17 documentos que compuseram o portfólio de análise. A leitura destes documentos permitiu pensar em categorias, sendo elas: medicalização da alimentação: dispositivos de controle do corpo e do comportamento alimentar; dispositivos de prevenção e programas de educação nutricional; alimentos como medicamentos e Nutrição Personalizada. Em todas, foi possível identificar estratégias pelas quais a alimentação e a nutrição foram reduzidas ao olhar da biomedicina, desconsiderando outras dimensões do alimentar-se. Essa redução ocorreu por meio: a) da prescrição de normas de comportamento e dietas; b) de práticas preventivas que moralizam comportamentos considerados de risco, causando estigmatização e culpabilização dos indivíduos pelas suas doenças; c) da concepção dos alimentos como se fossem medicamentos; d) da prescrição individualizada de dietas, de acordo com a Nutrição Personalizada, comprometendo a compreensão do alimentar-se a partir dos aspectos políticos, culturais, históricos e sociais.

Palavras-Chave:
Medicalização; Alimentação; Nutrição

Abstract

This study aimed to identify concepts and central themes of the medicalization of food and nutrition. To this end, a systematized search review following the Systematic-Search Flow method was conducted in seven databases, combining the keyword “medicali?ation” with nutrition*, diet*, food, nourishment and eat*. After applying the inclusion and exclusion criteria, 17 documents were selected to compose the analysis portfolio. The reading of these documents allowed us to think of categories, as follows: medicalization of food: devices to control the body and eating behavior; prevention devices and nutrition education programs; food as medicine and Personalized Nutrition. In all of them, it was possible to identify strategies through which food and nutrition were reduced to the biomedical view, disregarding other dimensions of eating. This reduction occurred through a) the prescription of behavioral norms and diets; b) preventive practices that moralize behaviors considered risky, causing stigmatization and blaming individuals for their diseases; c) the conception of food as if it were medicine; d) the individualized prescription of diets, according to Personalized Nutrition, compromising the understanding of eating from political, cultural, historical, and social aspects.

Keywords:
Medicalization; Food; Nutrition

Introdução

Os sentidos, bem como a perspectiva teórica utilizada para analisar a alimentação, variam no tempo, na história e na cultura. Sob a visão das Ciências Sociais, a alimentação é um ato complexo, pois é resultado da interação entre fatores biológicos, psicológicos, sociais, culturais e históricos (Chamberlain, 2004CHAMBERLAIN, K. Food and Health: Expanding the Agenda for Health Psychology. Journal of Health Psychology, v. 9, n. 4, p. 467-481, 2004.; Contreras, 2006CONTRERAS, J. Les aliments décomposés : l ’ omnivore médicalisé ? Jesus Contreras. In: 2006, Paris. Colloque OCHA « L’homme, le mangeur, l’animal. Qui nourrit l’autre ? ». Paris, mai. 2006.; Guidonet, 2007GUIDONET, A. La antropología de la alimentación. Barcelona: Editorial UOC, 2007.). E embora reconheçamos o caráter complexo e interdisciplinar da alimentação, suas práticas e seus discursos – inclusive os que fundamentam sua medicalização – foram determinados e legitimados pela racionalidade biomédica.

Vale dizer que, desde o início da modernidade, a racionalidade biomédica se tornou hegemônica nas sociedades ocidentais, a fim de explicar os mais diversos fatos relacionados à vida e aos processos de saúde-adoecimento, incluindo a própria prática de se alimentar. A esse fenômeno, convencionou-se chamar de “medicalização social” ou ainda “medicalização da vida”. A medicalização é um fenômeno que, por meio do qual, questões não-médicas da vida social e cotidiana são apropriadas e reduzidas ao olhar das ciências biomédicas, implicando a construção de conceitos e explicações que desconsideram questões políticas, culturais, históricas e sociais (Caponi et al., 2010). Assim, pode-se dizer que medicalização da sociedade é a trama que, segundo Foucault (1976FOUCAULT, M. História de la medicalización. Educ Med Salud, 1976.), incorpora, a partir do século XVIII, não somente o corpo, mas também o comportamento e a existência, sob controle e poder da medicina.

O termo “medicalização” se refere a um instrumento conceitual que vem se tornando cada vez mais importante para quem pretende compreender as práticas e as orientações que têm sido construídas em torno da saúde. Sobre o tema, importantes trabalhos problematizam os desdobramentos que o conceito vem tendo até os dias de hoje (Caponi, 2009CAPONI, S. Biopolítica e medicalização dos anormais. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, p. 529-549, 2009.; Freire et al., 2014FREIRE, G. et. al. Sequei 40 kg com a bala que emagrece: medicalização da comida em capas de revistas femininas. In: FREITAS, R. F. et al. (Org.). Corpo e Consumo nas cidades. Série Sabor Metrópole. Curitiba: CRV, 2014, v. 2, p. 27-46.; Zorzanelli; Ortega; Bezerra Jr., 2014ZORZANELLI, R. T.; ORTEGA, F.; BEZERRA JUNIOR, B. Um panorama sobre as variações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 19, n. 6, p. 1859-1868, jun. 2014.; Carvalho et al., 2015CARVALHO, S. R. et al. Medicalização: uma crítica (im)pertinente? Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1.251-1.269, 2015.; Neves et al., 2015NEVES, A. dos S. et. al.. A nutrição na busca pela supernormalidade: da medicalização da comida à farmacologização social da nutrição. In: PRADO, S. D. et al. (Org.). Alimentação e Consumo de Tecnologias. Série Sabor Metrópole. Curitiba: CRV, 2015, p. 17-32.; Zorzanelli; Cruz, 2018ZORZANELLI, R. T.; CRUZ, M. G. A. O conceito de medicalização em Michel Foucault na década de 1970s. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v. 22, n. 66, p. 721-731, 2018.).

Não é demasiado dizer que a relação entre a alimentação e a saúde está presente em todas as culturas (Poulain, 2002POULAIN, J.-P. Des risques de médicaliser l’alimentation quotidienne. In: Manger Aujourd’hui, Attitudes, normes et pratiques. Paris : Editions Privat, p. 191–200, 2002.). No entanto, como campo científico e de prática, esteve atrelada à medicina e a suas disciplinas, como quando do surgimento da dietética e da nutrição. O entrelaçamento “alimentação, medicina e saúde” e as transformações ocorridas na medicina do século XVIII, com advento da medicina social no contexto europeu, são importantes para compreender o processo de medicalização da sociedade.

Atualmente, a medicalização avança, sem limites, sobre o corpo social e sobre a vida. São estabelecidos conceitos, regras e prescrições – mais ou menos – elaborados, embasados estabelecidos e codificados por um saber biológico e médico (Foucault, 2010FOUCAULT, M. Crise da Medicina ou Crise da Antimedicina. Verve. Revista semestral autogestionária do Nu-Sol, n. 18, 2010.). Essa crescente ampliação da medicina aos mais diversos aspectos da vida humana e da sociedade (Foucault, 1976FOUCAULT, M. História de la medicalización. Educ Med Salud, 1976.) se estendeu à alimentação. Em estreita relação com esse processo de medicalização da sociedade, e a partir do surgimento da química moderna e da fisiologia, desdobram-se outros saberes científicos e práticas profissionais, como a Nutrição. Destaca-se especialmente a incorporação recente de saberes e conhecimentos derivados da biologia molecular, das neurociências, das nanociências e da engenharia genética. Por conseguinte, novos métodos diagnósticos e instrumentos de mensuração são utilizados para a quantificação do corpo e suas funções (Russo; Caponi, 2006), assim como para a análise dos alimentos e os efeitos de seus componentes na saúde humana.

Vale também dizer que, inicialmente, o fenômeno nutricional era objeto de estudo da fisiologia, denominado “metabolismo”, uma vez que o termo “nutrição” quase não fora usado até o final do século XIX (Todhunter, 1973TODHUNTER, E. N. Some Aspects of the History of Dietetics. World Review of Nutrition and Dietetics, v. 18, p. 1-46, 1973.). Não obstante, com o avanço científico-tecnológico e novos métodos e instrumentos de mensuração, os alimentos foram reduzidos aos seus nutrientes, e estes foram isolados, quantificados, identificados e estudados no que tange à incidência de doenças. Mais tarde, foram estudados os efeitos benéficos à saúde da matriz dos alimentos e dos padrões alimentares (Brasil, 2014BRASIL. Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.). E, para citar alguns dos exemplos que podem ter características medicalizantes, já se fala atualmente de alimento funcional, nutrigenômica, epigenética nutricional e nutrição personalizada.

Cumpre ressaltar que discutir teorias e conceitos relacionados à medicalização da alimentação e da nutrição é um ato que visa dar visibilidade a este debate e abrir diálogo com abordagens mais biologicistas no campo da Nutrição no Brasil, aguçando a crítica sobre a simplificação da alimentação aos seus aspectos biológicos, racionais e à normalização do hábito de comer de sujeitos e de populações, a partir das intervenções profissionais, sobretudo de nutricionistas. Incluir a dimensão sociocultural, sem excluir o conhecimento científico sobre as características nutricionais dos alimentos e seus efeitos na saúde, e revisar as práticas clínicas e ações por parte dos nutricionistas, foi apontado por Kramer et al. (2014) como condição para a reformulação do território tradicionalmente ocupado de modo hegemônico pela racionalidade biomédica.

Nesse sentido, a pertinência e a contribuição deste trabalho estão postas nos esforços de sistematizar, como também de apresentar um arcabouço teórico que facilite o debate sobre medicalização da alimentação e da nutrição. Nossos objetivos, portanto, são identificar conceitos e temáticas centrais de medicalização tanto de uma quanto de outra, a partir de artigos científicos sobre o tema.

Método

Buscou-se, junto à literatura, responder à seguinte pergunta: quais são os principais conceitos e temáticas que embasam a discussão de estudos sobre a medicalização da alimentação e da nutrição? Para tal, optou-se por realizar buscas sistemáticas na literatura, seguindo o método Systematic-Search Flow (SSF) (Ferenhof; Fernandes, 2016FERENHOF, H. A; FERNANDES, R. F. Desmistificando a revisão de literatura como base para redação científica: método SSF. Revista ACB: Biblioteconomia em Santa Catarina, Florianópolis, SC: v. 21, n. 3, p. 550-563, ago./nov., 2016.). De forma a complementar, buscas reversas foram efetuadas, utilizando a técnica de snowball.

Sete foram as bases eletrônicas de dados consultadas nesta pesquisa: 1) BVS (Bireme); 2) Livivo; 3) Pubmed; 4) Scielo; 5) SCOPUS (Elsevier); 6) SocINDEX EBSCO e 7) Web of Science.

De acordo com o método SSF, deve-se definir a estratégia de busca nas bases. Tomou-se como suporte as seguintes palavras-chave: medicali?ation, nutrition*, diet*, food, nourishment e eat*. Foram utilizadas as palavras-chave em inglês. Assim, a estratégia de busca compreendeu o cruzamento da palavra “medicalização”, com cada uma das demais, por meio do operador lógico AND, de maneira independente, resultando em cinco (5) buscas independentes: 1) (medicali?ation AND nutrition*); 2) (medicali?ation AND diet*); 3) (medicali?ation AND nourishment); 4) (medicali?ation AND food) e 5 (medicali?ation AND eat*).

A pesquisa nas bases foi realizada nos campos título, resumo ou palavras-chave, entre os meses de fevereiro e abril de 2020. Destaca-se que nenhum filtro foi selecionado. Quanto ao critério de inclusão, recorreu-se a estudos que contenham abordagem da medicalização da alimentação, da comida, da dieta ou da nutrição, sem restrição à data de publicação ou ao idioma. Por sua vez, o critério de exclusão foi a possibilidade de o estudo ter objeto da medicalização diferente da investigação, não ter acesso ao documento na íntegra, ou ter apenas citado a palavra “medicalização”.

Resultados e Discussão

O levantamento bibliográfico localizou 1.436 documentos. A partir desse número, procedeu-se à exclusão dos artigos duplicados em cada pasta de estratégia de busca, restando 819 artigos. Em seguida, realizou-se a exclusão dos duplicados, cruzando-se as pastas das demais estratégias, restando 405 trabalhos.

Realizada a leitura dos títulos, de resumos e de palavras-chave, com base nos critérios de inclusão, foram selecionados 46 estudos. Após a leitura completa, 31 foram excluídos, pois a palavra “medicalização” apenas foi citada ou se referia à medicalização da sociedade ou da vida, sem qualquer análise, explicação ou autor referenciado. Ademais, cinco documentos não puderam ser acessados na íntegra, resultando em 10 artigos para o portfólio bibliográfico, conforme o Quadro 1.

Quadro 1
Artigos incluídos no portfólio encontrados na busca em base de dados

De posse dos 10 artigos selecionados a partir da busca nas bases de dados, procedeu-se à busca reversa, analisando-se na íntegra as referências dos artigos incluídos no portfólio. Foram encontrados sete documentos, adicionados ao portfólio bibliográfico final, conforme o Quadro 2, sendo livros e capítulos de livros (4), artigos (1) e, conferências/colóquios (2).

Quadro 2
Referências incluídas no portfólio encontrados na busca reversa por meio da técnica de snowball

Quanto à síntese dos resultados da composição do portfólio bibliográfico, pode ser observada na Figura 1.

De posse do portfólio, com as 17 referências incluídas, buscou-se responder à pergunta de pesquisa. A leitura dessas fontes permitiu pensar em categorias, dadas a posteriori, conforme apresentado a seguir.

Figura 1
Fluxograma de localização dos documentos.

Medicalização da alimentação: dispositivos de controle do corpo e do comportamento alimentar

Uma descrição da trajetória histórica dos dispositivos de intervenção sobre o corpo e o comportamento alimentar partem, no século XVIII, do entendimento do homem-máquina e do alimento-combustível (Gracia-Arnaiz, 2005GRACIA-ARNAIZ, M. Maneras de comer hoy. Comprender la modernidad alimentaria desde y más allá de las normas. Revista Internacional de Sociología, v. 63, n. 40, p. 159-182, 2005.). Nessa visão mecanicista da fisiologia, a energia precisa ser equilibrada na equação que tem, como variáveis, a ingestão (alimentos) e o gasto de energia (exercício físico), segundo Mayes (2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014.). No século seguinte, as dietas controladas tinham como objetivo desenvolver, dentre outras virtudes, a temperança, o controle das paixões e a estabilidade mental. Isso não apenas em nome da “boa” saúde, mas também da delicadeza social e das boas maneiras, constituindo, dessa forma, uma moralidade religiosa com implicações individuais (Gracia-Arnaiz, 2005GRACIA-ARNAIZ, M. Maneras de comer hoy. Comprender la modernidad alimentaria desde y más allá de las normas. Revista Internacional de Sociología, v. 63, n. 40, p. 159-182, 2005.).

Ainda no século XIX, quando se aprimoram os dispositivos de controle e de disciplinarização do corpo (Foucault, 1987), as dietas se tornaram práticas, tendo como objetivo aumentar a eficiência e a força de trabalho no contexto da expansão do capitalismo. No mesmo século, foram apresentadas as condições para que o comer e o alimentar passassem de práticas incorporadas nas relações sociais ou culturais a práticas médicas (Mayes, 2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014.).

Cumpre dizer que, a partir do processo de medicalização, a alimentação tornou-se “repleta de contradições e oposições, cheia de confusões e potencial fonte de ansiedade, principalmente em relação à saúde” (Chamberlain, 2004CHAMBERLAIN, K. Food and Health: Expanding the Agenda for Health Psychology. Journal of Health Psychology, v. 9, n. 4, p. 467-481, 2004., p. 468). Isso porque os alimentos foram caracterizados como o traço principal da vida social, sendo fonte de prazer, de medos e de inseguranças, estando relacionados tanto à saúde e à vida quanto às doenças e à morte. Eles permeiam as relações, a linguagem, a cultura popular, além de refletir nossa posição e status muito além da visão simplista de meros combustíveis adequados ao corpo (Chamberlain, 2004CHAMBERLAIN, K. Food and Health: Expanding the Agenda for Health Psychology. Journal of Health Psychology, v. 9, n. 4, p. 467-481, 2004.).

Pode-se dizer, conforme Poulain (2002POULAIN, J.-P. Des risques de médicaliser l’alimentation quotidienne. In: Manger Aujourd’hui, Attitudes, normes et pratiques. Paris : Editions Privat, p. 191–200, 2002., p. 194), que “a medicalização da alimentação substitui as razões gastronômicas ou simbólicas nas quais se baseiam as decisões dietéticas pelas razões de ordem médica”. Seu advento moderno relaciona-se com o nascimento da medicina social. Para Gracia-Arnaiz (2005GRACIA-ARNAIZ, M. Maneras de comer hoy. Comprender la modernidad alimentaria desde y más allá de las normas. Revista Internacional de Sociología, v. 63, n. 40, p. 159-182, 2005., p. 162), o processo de medicalização “significou a substituição de uma grande parte dos motivos simbólicos, econômicos ou hedonistas em que as escolhas alimentares foram articuladas por outras razões de ordem médica”.

Destaca-se que a medicalização não se resume aos aspectos biológicos, pois está envolvida em práticas destinadas a introduzir perspectivas morais, teológicas e/ou legais no ato de comer (Mayes, 2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014.). Cabe também dizer que tanto a gula quanto a fraqueza moral, originalmente relacionadas desde uma perspectiva moralizante, permanecem entrelaçadas com as concepções médicas e, reformuladas, por meio da linguagem médica, como hiperalimentação ou transtorno de alimentação excessiva (Mayes, 2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014.).

A subalimentação, incialmente definida pela linguagem teológica como jejum, a partir da medicalização passa a ser definida pela medicina como anorexia nervosa ou desnutrição (Mayes, 2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014.). Nesses casos, a alimentação em geral é progressivamente investida com significado médico (Mayes, 2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014.).

Sendo assim, “a dieta moderna está ligada a processos históricos de regulação social e de controle comportamental, por meio da normatização do consumo alimentar” (Gracia-Arnaiz, 2010GRACIA-ARNAIZ, M. Fat bodies and thin bodies. Cultural, biomedical and market discourses on obesity. Appetite, v. 55, n. 2, p. 219-225, 2010., p. 219). A prevenção, por meio da alimentação, envolve processos de medicalização e de moralização, “valendo-se da dieta ideal, que é administrada quase como se fosse um medicamento” (Gracia-Arnaiz, 2010GRACIA-ARNAIZ, M. Fat bodies and thin bodies. Cultural, biomedical and market discourses on obesity. Appetite, v. 55, n. 2, p. 219-225, 2010., p. 223).

Para Mayes (2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014., p. 2), os estudos de medicalização não contestam a existência da biologia, mas argumentam que “forças sociais e culturais complexas, e contingentes, determinam certos conhecimentos, categorias e definições médicas”. Portanto, precisa ser considerado o contexto sociocultural (normas sociais e culturais do corpo, da beleza e da feminilidade), nos casos de anorexia, e não apenas serem reduzidos à biologia ou à psicologia do sujeito; entretanto, quando uma causa psicológica e/ou biológica é estabelecida, justificam-se intervenções médicas (Mayes, 2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014.).

Como “possuidores de uma capacidade terapêutica ou de melhoria da saúde, que indica a saúde presente e futura de um indivíduo ou de uma população”, assim são considerados os alimentos e as dietas (Mayes, 2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014., p. 1). Nesse cenário, inclusive os benefícios de padrões alimentares podem ser medicalizados (Gaspar; Verthein, 2019GASPAR, M. C. D. M. P.; VERTHEIN, Ú. Entre la “salud” y la “tradición”: las representaciones sociales de la dieta mediterránea. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 29, n. 2, 2019.).

Poulain (2002POULAIN, J.-P. Des risques de médicaliser l’alimentation quotidienne. In: Manger Aujourd’hui, Attitudes, normes et pratiques. Paris : Editions Privat, p. 191–200, 2002.) explica que as dietas podem ser justificadas a partir dos seus benefícios nutricionais. Ressalta que a medicalização da alimentação “não é [...] problemática, desde que a nutrição não se torne dominante e eclipse os outros mundos alimentares (gosto, identidade, socialidade)” (Poulain, 2002POULAIN, J.-P. Des risques de médicaliser l’alimentation quotidienne. In: Manger Aujourd’hui, Attitudes, normes et pratiques. Paris : Editions Privat, p. 191–200, 2002., p. 194). O mesmo autor analisa a evolução do estatuto epistemológico da obesidade, de problema estético e moral à causa de doenças, até uma epidemia mundial (2013a; 2013b). Por fim, a medicalização “é um processo contínuo, no qual o percurso pelas questões social e moral desaparece aos poucos, em proveito de uma ordem racional, fundamentada pela ciência (Poulain, 2013bPOULAIN, J.-P. Sociologia da obesidade. São Paulo, Editora do Senac, 2013b., p. 158).

Por sua vez, Mayes (2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014.) destaca que o excesso de massa corporal, quantificado pelo Índice de Massa Corporal (IMC) em relação a padrões de normalidade, foi definido como um problema médico, a obesidade. Assim, o excesso de comida é considerado a principal causa, sendo visado pela medicina (Mayes, 2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014.), dentro da racionalidade biomédica quantificadora.

Os problemas em torno do excesso de peso e do consumo alimentar estão vinculados tanto à medicalização quanto à individualização e à mercantilização (Gracia-Arnaiz, 2010GRACIA-ARNAIZ, M. Fat bodies and thin bodies. Cultural, biomedical and market discourses on obesity. Appetite, v. 55, n. 2, p. 219-225, 2010.). Segundo a autora, é possível observar quatro fenômenos: 1) estabelecimento do peso ideal e de normas dietéticas; 2) a construção da magreza como atributo de saúde, autodisciplina e distinção social; 3) o reconhecimento da obesidade como doença; e 4) a transformação da saúde e do corpo em oportunidade de negócios. Por meio dessa análise, Gracia-Arnaiz (2010GRACIA-ARNAIZ, M. Fat bodies and thin bodies. Cultural, biomedical and market discourses on obesity. Appetite, v. 55, n. 2, p. 219-225, 2010.) mostra como a medicalização dos alimentos e do peso corporal abriu caminho para a comercialização da saúde, assim como indica que a obesidade requer uma abordagem holística e não individualista.

Outros autores, como Poulain (2013aPOULAIN, J.-P. Sociologias da alimentação: os comedores e o espaço social alimentar. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013a.; 2013b) e Mayes (2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014.), também problematizaram a medicalização do corpo gordo. Esse fenômeno também se reflete em uma crescente pressão estética corporal, mais um componente do processo de medicalização (Poulain, 2002POULAIN, J.-P. Des risques de médicaliser l’alimentation quotidienne. In: Manger Aujourd’hui, Attitudes, normes et pratiques. Paris : Editions Privat, p. 191–200, 2002.), já que o desejo pela redução de peso não está necessariamente atrelado às razões de reestabelecimento da saúde, mas de busca e de manutenção de uma condição estética dita normal.

Cabe, portanto, dizer que essa importância, dada à saúde e ao seguir padrões de dieta, provém do processo de medicalização (Gracia-Arnaiz, 2005GRACIA-ARNAIZ, M. Maneras de comer hoy. Comprender la modernidad alimentaria desde y más allá de las normas. Revista Internacional de Sociología, v. 63, n. 40, p. 159-182, 2005.). Como consequência, tem-se a “sensação de que ao controlar a dieta, também se controla o futuro em um mundo em mudança, a religião da dieta dá a ilusão de estar no controle” (Poulain, 2002POULAIN, J.-P. Des risques de médicaliser l’alimentation quotidienne. In: Manger Aujourd’hui, Attitudes, normes et pratiques. Paris : Editions Privat, p. 191–200, 2002., p. 195). “Paradoxalmente, o tratamento consiste em substituir um conjunto de obsessões alimentares julgadas patogênicas por outro que esteja de acordo com o modelo nutricional biomédico” (Gracia-Arnaiz, 2010GRACIA-ARNAIZ, M. Fat bodies and thin bodies. Cultural, biomedical and market discourses on obesity. Appetite, v. 55, n. 2, p. 219-225, 2010., p. 223).

Viana et al. (2017, p. 450) refletiram sobre a relação da medicalização da comida com o conceito de racionalidade nutricional, que “se refere às práticas alimentares atentas ao permanente cuidado em manter na alimentação o equilíbrio de nutrientes, em detrimento do prazer de comer e dos valores com que a alimentação marca o convívio social a ele associado”. De acordo com o artigo, supõe-se que a racionalidade nutricional contribui para o processo de medicalização da sociedade por meio do “1) descredenciamento do sujeito em escolher a própria comida [...] 2) elevação de uma suposta má alimentação a uma funcionalidade negativa [...] 3) na ideia de que comer bem é comer de acordo com princípios científicos” (Viana et al., 2017, p. 448).

Dispositivos de prevenção e programas de educação nutricional

É inegável que os conhecimentos no campo da medicina tiveram efeitos terapêuticos e preventivos na saúde dos indivíduos e das populações. No contexto preventivo, envolvendo a alimentação, por exemplo, surgiram campanhas para a promoção de dietas saudáveis e equilibradas (Poulin, 2002).

Tais práticas preventivas, decorrentes do dispositivo higienista medicalizador, como programas de educação nutricional governamentais, têm como consequência a moralização dos comportamentos considerados inadequados e de risco. Os resultados, segundo Poulain (2002POULAIN, J.-P. Des risques de médicaliser l’alimentation quotidienne. In: Manger Aujourd’hui, Attitudes, normes et pratiques. Paris : Editions Privat, p. 191–200, 2002.) e Gracia-Arnaiz (2005GRACIA-ARNAIZ, M. Maneras de comer hoy. Comprender la modernidad alimentaria desde y más allá de las normas. Revista Internacional de Sociología, v. 63, n. 40, p. 159-182, 2005.), são a estigmatização e a culpabilização dos indivíduos pela própria doença, ou seja, “se você está doente, é porque fez algo que não deveria ter feito e a culpa é sua” (Poulain, 2002POULAIN, J.-P. Des risques de médicaliser l’alimentation quotidienne. In: Manger Aujourd’hui, Attitudes, normes et pratiques. Paris : Editions Privat, p. 191–200, 2002., p. 196).

Além disso, o discurso médico e de saúde pública – e acrescentamos o da Nutrição − posiciona o indivíduo como pessoalmente responsável por sua saúde, tanto moral quanto comportamental, sustentando a noção de saúde como uma preocupação contemporânea (Chamberlain, 2002CHAMBERLAIN, K. The medicalisation of food. In: 2002, Amsterdam. Proceedings of Eat and drink and be merry: Cultural meaning of food in the 21st century. Amsterdam: Amsterdam School for Cultural Analysis, 2002, p. 11.), assim como para Crawford (1980CRAWFORD, R. Healthism and the medicalization of everyday life. International Journal of Health Services, v. 10, n. 3, p. 365-388, 1980.) a noção de “healthism”, ou salutarismo, é uma característica da sociedade moderna, na qual a saúde é causa de preocupação e valor máximo para as pessoas.

De acordo com Poulain (2002POULAIN, J.-P. Des risques de médicaliser l’alimentation quotidienne. In: Manger Aujourd’hui, Attitudes, normes et pratiques. Paris : Editions Privat, p. 191–200, 2002., p. 196), “os debates científicos, que acompanham o que devemos nos resignar a chamar de modas, mostram como é difícil passar de descobertas fisiológicas ou epidemiológicas para conselhos nutricionais”. Além disso, explica o autor, a comunidade científica e a indústria de alimentos tentam transformar muito rapidamente esses achados em recomendações de saúde pública.

É necessário, pois, diferenciar, com relação à medicalização da alimentação, aquela que corresponde à administração de dietas como tratamento para uma patologia e, nesse caso, as orientações e a dieta são formuladas pelo médico desde uma perspectiva terapêutica (Poulain, 2015POULAIN, J.-P. The affirmation of personal dietary requirements and changes in eating models. In: FISCHLER, C. (org.). The rise, meaning and sense of personal dietary requirements. Paris: Odile Jacob, p. 252-264, 2015.). Daquela, em perspectiva preventiva, para a qual sugere o termo “nutricionalização”, quando se trata da disseminação dos conhecimentos derivados da racionalidade nutricional, que se insere no corpo social tanto pelas mídias quanto por campanhas de educação para a saúde e pela popularização dos saberes científicos.

Ressalte-se, ainda, que a medicalização da alimentação tem sido impulsionada por outras forças para além da medicina (Mayes, 2014MAYES, C. Medicalization of Eating and Feeding. Encyclopedia of Food and Agricultural Ethics, p. 1795-1801, 2014.). Associações profissionais e organizações de saúde elaboram manuais de diagnóstico e guias, moldando ou criando definições de doenças que influenciam as práticas alimentares. Somado a isso, a mídia, continua o autor, se tornou o veículo para popularizar as novas propostas que surgem das indústrias privadas de alimentos e farmacêuticas, assim como de seguros de saúde.

Atualmente, “pratica-se uma ‘comunicação positiva da saúde’, menos culpabilizadora do sujeito, buscada por meio da educação e da promoção em saúde” (Gracia-Arnaiz, 2005GRACIA-ARNAIZ, M. Maneras de comer hoy. Comprender la modernidad alimentaria desde y más allá de las normas. Revista Internacional de Sociología, v. 63, n. 40, p. 159-182, 2005., p. 163). As políticas de educação nutricional têm como princípio que, para mudar hábitos alimentares, é suficiente fornecer informações científicas à população (op. cit.). Essas informações seriam interiorizadas pela população, visando a mudanças de comportamento e reduzindo riscos, “seria uma questão de eliminar as motivações ‘não-racionais’ que guiam as preferências humanas através da intervenção médica e da atualização das prescrições de dieta” (op. cit., p. 163).

Outra camada de problematização pode ser adicionada ao debate quando o “aconselhamento alimentar normativo tende a simplificar a base científica das afirmações de que as escolhas alimentares individuais podem garantir a saúde e prevenir doenças em um indivíduo e, portanto, na população” (Mayes; Thompson, 2014MAYES, C.; THOMPSON, D. B. Is Nutritional Advocacy Morally Indgestible? A Critical Analysis of the Scientific and Ethical Implications of ‘Healthy’ Food Choice Discoursein Libertal Societies. Public Health Ethics, 2014; 2014; 7(s): 158-69., p. 159). Esses autores questionam eticamente a “obrigação” de as pessoas, diagnosticadas ou não com uma doença crônica, fazerem escolhas alimentares “saudáveis”, como também criticam a base científica e epidemiológica que norteia o aconselhamento nutricional normativo como meio de prevenir as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) em indivíduos e populações.

Diferentemente das doenças carenciais, as DCNT têm etiologia multifatorial e que, por meio de estudos observacionais, têm sua etiologia correlacionada a alguns fatores dietéticos, porém isso não implica causalidade. Apesar disso, os estudos são divulgados como se determinados nutrientes pudessem prevenir ou ocasionar DCNT (Mayes; Thompson, 2014MAYES, C.; THOMPSON, D. B. Is Nutritional Advocacy Morally Indgestible? A Critical Analysis of the Scientific and Ethical Implications of ‘Healthy’ Food Choice Discoursein Libertal Societies. Public Health Ethics, 2014; 2014; 7(s): 158-69.). Ademais, completam os autores, ensaios clínicos estudam o efeito da dieta no tratamento, tendo desfechos de saúde conduzidos com populações específicas, não sendo possível extrapolar seus achados para populações saudáveis; também, os achados são estatisticamente significativos para a população estudada, e não para cada indivíduo tratado, ou seja, não há como garantir o efeito benéfico a cada pessoa. No entanto, “o conselho justificado no nível da população sugere a escolha dos alimentos como um determinante primário da saúde individual, embora os dados existentes se relacionem com resultados de saúde agregados ao nível da população” (op. cit., p. 161).

Na mesma lógica das campanhas e programas de educação nutricional, podemos mencionar os guias alimentares. Vale, pois, recorrer ao que apresentaram Davies . (2018DAVIES, V. F. et al. Applying a food processing-based classification system to a food guide: a qualitative analysis of the Brazilian experience. Public Health Nutrition, v. 21, n. 1, p. 218-229, 2018.). Os autores possibilitaram o debate sobre a aplicação de um sistema classificatório baseado em processamento de alimentos no novo Guia Alimentar Brasileiro, identificando as partes interessadas, bem como seus argumentos e recomendações. Durante a consulta pública de elaboração do material, os pesquisadores identificaram uma série de argumentos – enviados por setores da indústria e associações ligadas aos alimentos – com uma visão medicalizada da alimentação, tendo como foco a função e a quantificação dos nutrientes, assim como seu papel na fisiologia corporal, denotando fortemente a presença do modelo biomédico (Davies ., 2018DAVIES, V. F. et al. Applying a food processing-based classification system to a food guide: a qualitative analysis of the Brazilian experience. Public Health Nutrition, v. 21, n. 1, p. 218-229, 2018.). Esses argumentos foram usados para questionar a nova proposta de classificação dos alimentos e sua abordagem qualitativa.

É preciso ainda salientar que, mesmo que guias populacionais estejam tradicionalmente relacionados à normalização do comer (compondo uma estratégia biopolítica), o novo Guia Alimentar da População Brasileira (Brasil, 2014BRASIL. Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.) considera as várias dimensões da alimentação, para além da ingestão de nutrientes, além de demarcar uma resistência à presença da indústria alimentar na alimentação do brasileiro.

Alimentos como medicamentos

Há também que se considerar a estratégia em que os alimentos são concebidos e promovidos para que sejam consumidos como medicamentos. Nesse contexto, é inevitável nos remetermos à frase “Faça do seu alimento seu medicamento e do seu medicamento seu alimento” que, segundo Cardenas (2013CARDENAS, D. Let not thy food be confused with thy medicine: The Hippocratic misquotation. e-SPEN Journal, v. 8, n. 6, p. e260–e262, 2013.), é equivocadamente atribuída a Hipócrates. Apesar do equívoco, fica evidente que a frase assumiu valor e efeitos de verdade, sendo usada para, dentre outros, “validar e legitimar científica e eticamente os conceitos atuais de nutracêuticos ou alimentos funcionais na Antiguidade” (Cardenas, 2013CARDENAS, D. Let not thy food be confused with thy medicine: The Hippocratic misquotation. e-SPEN Journal, v. 8, n. 6, p. e260–e262, 2013., p. 261).

O termo “nutracêuticos” é formado pela fusão de “nutrição” e “produtos farmacêuticos”, e denota o estudo de alimentos com efeitos benéficos sobre a saúde (Galesi, 2014GALESI, D. Towards the genomization of food? Potentials and risks of nutrigenomics as a way of personalized care and prevention. Italian Sociological Review, v. 4, n. 2, 2014.). Já os funcionais são definidos como “alimentos que fornecem benefícios relacionados à saúde, além da nutrição básica” (ILSI, 1999ILSI. Safety asessment and potential health benefits of food components based on selected scientific criteria: ILSI North America technical committee on food components for health promotion. Critical Reviews in Food Science and Nutrition, v. 39, n. 3, p. 203-205, 1999., p. 203). Eles, os alimentos funcionais e os nutracêuticos, indicam um dos modos mais diretos da elisão entre os alimentos e os medicamentos (Chamberlain, 2004CHAMBERLAIN, K. Food and Health: Expanding the Agenda for Health Psychology. Journal of Health Psychology, v. 9, n. 4, p. 467-481, 2004.), refletindo a medicalização da vida cotidiana (Chamberlain, 2002CHAMBERLAIN, K. The medicalisation of food. In: 2002, Amsterdam. Proceedings of Eat and drink and be merry: Cultural meaning of food in the 21st century. Amsterdam: Amsterdam School for Cultural Analysis, 2002, p. 11.). Quanto aos primeiros, ou seja, os funcionais, representam uma mudança qualitativa na percepção dos alimentos, pois não nos referimos ao alimento em si, mas aos seus componentes (Contreras, 2006CONTRERAS, J. Les aliments décomposés : l ’ omnivore médicalisé ? Jesus Contreras. In: 2006, Paris. Colloque OCHA « L’homme, le mangeur, l’animal. Qui nourrit l’autre ? ». Paris, mai. 2006.).

Por sua vez, Chamberlain (2004CHAMBERLAIN, K. Food and Health: Expanding the Agenda for Health Psychology. Journal of Health Psychology, v. 9, n. 4, p. 467-481, 2004.) descreve outros exemplos da medicalização dos alimentos. Para isso, consideram-se: 1) o desenvolvimento de alimentos que incluem ingredientes ativos para o tratamento de condições médicas (a adição de iodo ao sal ou folato à farinha); 2) produtos alimentares com aditivos vegetais (margarinas) ou probióticos (leites fermentados), que são comercializados com indicação de dosagem diária; 3) bebidas de reposição eletrolítica para a classe média que se exercita e para fisiculturistas, muitos dos quais têm dietas consideravelmente diferentes do normal. Ademais, inclui-se o consumo de suplementos dietéticos, apresentados na forma de medicamentos, como pílulas e comprimidos, com instruções de dosagem e contraindicações (Chamberlain, 2002CHAMBERLAIN, K. The medicalisation of food. In: 2002, Amsterdam. Proceedings of Eat and drink and be merry: Cultural meaning of food in the 21st century. Amsterdam: Amsterdam School for Cultural Analysis, 2002, p. 11.; 2004).

Vale mencionar que combinações de vitaminas e de minerais estão disponíveis como “tratamentos” para uma série de “condições”, configurando-se como um problema para reguladores governamentais e consumidores (Chamberlain, 2004CHAMBERLAIN, K. Food and Health: Expanding the Agenda for Health Psychology. Journal of Health Psychology, v. 9, n. 4, p. 467-481, 2004.). Por outro lado, os medicamentos podem ser usados para controlar a ingestão ou a absorção de alimentos (pílulas dietéticas e fármacos antiobesidade); assim, “alimentos e medicamentos estão interligados de maneiras cada vez mais complexas, e isso é uma fonte de ansiedade e tensão a ser negociada pela pessoa que busca saúde hoje” (Chamberlain, 2002CHAMBERLAIN, K. The medicalisation of food. In: 2002, Amsterdam. Proceedings of Eat and drink and be merry: Cultural meaning of food in the 21st century. Amsterdam: Amsterdam School for Cultural Analysis, 2002, p. 11., p. 1).

A ciência nutricional permitiu decompor os alimentos e classificá-los como promotores ou ameaçadores da saúde, objetificando-os como medicinais ou patogênicos (Chamberlain, 2002CHAMBERLAIN, K. The medicalisation of food. In: 2002, Amsterdam. Proceedings of Eat and drink and be merry: Cultural meaning of food in the 21st century. Amsterdam: Amsterdam School for Cultural Analysis, 2002, p. 11.). Esse conhecimento, em sociedades que reforçam a individualização e a medicalização da dieta, tem servido aos agentes econômicos da cadeia alimentar (produtores, intermediários, indústria alimentícia, distribuidores) no imperativo de expandir e encontrar novos mercados, estimulando o consumo tanto dos alimentos existentes quanto dos novos, que correspondam a necessidades particulares de nichos de mercado (Michaud; Baudier, 2007MICHAUD, C.; BAUDIER, F. Alimentation et prévention : risque de médicalisation d’une pratique éminemment sociale. Cahiers de Nutrition et de Diététique, v. 42, n. 3, p. 131-133, 2007.).

Tal segmentação, nas palavras de Michaud e Baudier (2007MICHAUD, C.; BAUDIER, F. Alimentation et prévention : risque de médicalisation d’une pratique éminemment sociale. Cahiers de Nutrition et de Diététique, v. 42, n. 3, p. 131-133, 2007., p. 132), “reforçada pela publicidade, alimenta o sentimento coletivo da possibilidade de ter produtos feitos sob medida”. Em prol disso, foram desenvolvidas estratégias de marketing, baseadas nas alegações de saúde dos produtos, com rotulagens do tipo “sem glúten”, “menos sódio”, “menos calórico”, “aumenta a imunidade”, “fonte de”, “com adição de”, dentre outros (Michaud; Baudier, 2007MICHAUD, C.; BAUDIER, F. Alimentation et prévention : risque de médicalisation d’une pratique éminemment sociale. Cahiers de Nutrition et de Diététique, v. 42, n. 3, p. 131-133, 2007.). Essa estratégia comercial “reforça a ideia de que os alimentos podem ser manipulados à vontade e podem ser semelhantes, se o fabricante assim o desejar, a um medicamento que garanta ao consumidor uma boa saúde” (op. cit., p. 132). É preciso considerar ainda que “as categorias relativas de alimentos parecem ter sido modificadas no sentido de uma maior cientifização e medicalização” (Contreras, 2006CONTRERAS, J. Les aliments décomposés : l ’ omnivore médicalisé ? Jesus Contreras. In: 2006, Paris. Colloque OCHA « L’homme, le mangeur, l’animal. Qui nourrit l’autre ? ». Paris, mai. 2006., p. 2).

Reconhecemos, portanto, que a concepção do alimento como medicamento cria uma relação de poder desigual entre a indústria “farmacoalimentar” e o consumidor, bem como entre os profissionais de saúde e os indivíduos. Sendo assim, entendemos que o peso da racionalidade médico-nutricional deixa as pessoas em situação de desamparo, além de limitar as possibilidades de escolha baseadas em outras lógicas e racionalidades. Afinal, o alimento como medicamento é uma estratégia medicalizadora com efeitos eficazes na subjetividade das pessoas. Nos levando a refletir sobre a pergunta apresentada por Debevec e Tivadar (2006DEBEVEC, L.; TIVADAR, B. Making connections through foodways: contemporary issues in anthropological and sociological studies of food. Anthropological Notebooks, v. 12, n. 1, p. 5-16, 2006., p. 9): “Como não podemos mais pensar em alimentos fora de um ambiente de saúde?”.

Nutrição personalizada

A conclusão do Projeto Genoma Humano trouxe novas possibilidades na individualização de dietas, por intermédio da Genômica Nutricional (GN), um campo de pesquisa que visa reinventar sistemas de diagnóstico, de prevenção e de manejo de doenças crônicas relacionadas à alimentação (Fournier; Poulain, 2017FOURNIER, T.; POULAIN, J.-P. La génomique nutritionnelle : (re)penser les liens alimentation-santé à l’articulation des sciences sociales, biomédicales et de la vie. Natures Sciences Sociétés, v. 25, n. 2, p. 111–121, 2017.; 2018).

A GN, segundo Ferguson (2013FERGUSON L. R. (Ed.), 2013. Nutrigenomics and nutrigenetics in functional foods and personalized nutrition, Boca Raton, CRC Press.), abrange a nutrigenética (influência dos genes nas respostas do corpo às dietas) e a nutrigenômica (influência das dietas na expressão gênica). E, mais recentemente, a nutriepigenética (marcas epigenéticas que o ambiente, neste caso o alimentar, ativa ou desativa nos genes, modificando sua expressão), explicam Fournier e Poulain (2017FOURNIER, T.; POULAIN, J.-P. La génomique nutritionnelle : (re)penser les liens alimentation-santé à l’articulation des sciences sociales, biomédicales et de la vie. Natures Sciences Sociétés, v. 25, n. 2, p. 111–121, 2017.). Para estes últimos, a nutrigenética e a nutrigenômica já possuem aplicações biotecnológicas como testes nutrigenéticos, com maiores investimentos na área cardiovascular (op. cit.). Eles ainda ressaltam que a nutriepigenética inspirou um programa de saúde pública chamado “Primeiros mil dias de vida” (período periconcepcional, gravidez e os primeiros 2 anos de vida da criança), período como janela crítica de exposição, que tem como base a reversibilidade e a transmissibilidade (parcial) de marcas epigenéticas induzidas por alimentos (op. cit.).

Nesse contexto, surge a Nutrição Personalizada (NP), uma abordagem de base genética, que adapta as práticas alimentares segundo o patrimônio genético e fatores de risco associados (Fournier; Poulain, 2017FOURNIER, T.; POULAIN, J.-P. La génomique nutritionnelle : (re)penser les liens alimentation-santé à l’articulation des sciences sociales, biomédicales et de la vie. Natures Sciences Sociétés, v. 25, n. 2, p. 111–121, 2017.; 2018), trazendo a promessa de dietas mais eficazes (Galesi, 2014GALESI, D. Towards the genomization of food? Potentials and risks of nutrigenomics as a way of personalized care and prevention. Italian Sociological Review, v. 4, n. 2, 2014.) e complexificando ainda mais o ato alimentar e a relação entre o homem, a comida e a saúde (Contreras, 2006CONTRERAS, J. Les aliments décomposés : l ’ omnivore médicalisé ? Jesus Contreras. In: 2006, Paris. Colloque OCHA « L’homme, le mangeur, l’animal. Qui nourrit l’autre ? ». Paris, mai. 2006.).

Criam-se, portanto, expectativas de que, dentre outras consequências, o planejamento baseado em genes teria importantes efeitos na prevenção de doenças crônicas (Fournier; Poulain, 2018FOURNIER, T.; POULAIN, J.-P. Eating According to One’s Genes? Exploring the French Public’s Understanding of and Reactions to Personalized Nutrition. Qualitative Health Research, v. 28, n. 14, p. 2195–2207, 2018.). Essa promessa, segundo Fournier e Poulain (2017FOURNIER, T.; POULAIN, J.-P. La génomique nutritionnelle : (re)penser les liens alimentation-santé à l’articulation des sciences sociales, biomédicales et de la vie. Natures Sciences Sociétés, v. 25, n. 2, p. 111–121, 2017.), não foi cumprida, uma vez que o desenvolvimento epigenético evidenciou que genoma e o ambiente interagem de maneira complexa.

Baseada em uma lógica preventivista das sociedades contemporâneas, a GN induz novas formas de responsabilidade (Fournier; Poulain, 2017FOURNIER, T.; POULAIN, J.-P. La génomique nutritionnelle : (re)penser les liens alimentation-santé à l’articulation des sciences sociales, biomédicales et de la vie. Natures Sciences Sociétés, v. 25, n. 2, p. 111–121, 2017.). No nível individual, em particular a partir dos testes nutrigenéticos, o sujeito é levado a ser autônomo, responsável e a estar antecipado em relação a sua saúde. Já no nível intergeracional, a campanha “Primeiros mil dias de vida” induz uma forte responsabilização, especialmente nas mulheres, para cuidar da alimentação, pensando na saúde futura dos filhos. E, por fim, no nível político, a GN envolve a responsabilidade do poder público, por exemplo, quanto à responsabilização na exposição frequente a um nutriente ou contaminante alimentar, tornando ações de saúde públicas necessárias.

Cumpre dizer que a responsabilização transgeracional, de acordo com uma pesquisa qualitativa desenvolvida entre os franceses (Fournier; Poulain, 2018FOURNIER, T.; POULAIN, J.-P. Eating According to One’s Genes? Exploring the French Public’s Understanding of and Reactions to Personalized Nutrition. Qualitative Health Research, v. 28, n. 14, p. 2195–2207, 2018.), foi decisiva para uma possível mudança de intervenções alimentares. E, segundo esses pesquisadores, os participantes, quando questionados sobre os testes nutrigenéticos, demonstraram resistência à medicalização dos alimentos e dos hábitos culturais alimentares, porém mudaram de opinião quando a intervenção alimentar teve impacto positivo na saúde futura de seus filhos. Esse resultado, cabe destacar, abre inúmeras possibilidades de estratégias de subjetivação e de manipulação para tornar muito mais eficiente a medicalização do ato de se alimentar. Ressalte-se que a NP leva ao risco “apagar as dimensões socioculturais da alimentação e uniformizar as práticas e representações alimentares” (Fournier; Poulain, 2017FOURNIER, T.; POULAIN, J.-P. La génomique nutritionnelle : (re)penser les liens alimentation-santé à l’articulation des sciences sociales, biomédicales et de la vie. Natures Sciences Sociétés, v. 25, n. 2, p. 111–121, 2017., p. 117).

Ainda em relação aos “Primeiros mil dias de vida”, os autores levantam a possibilidade de essa campanha ampliar as desigualdades de gênero, tendo um aumento tanto da ansiedade quanto do trabalho doméstico para as mulheres e a possibilidade de estigmatização daquelas que não sigam as normas, trazendo a necessidade de debates interdisciplinares (Fournier; Poulain, 2018FOURNIER, T.; POULAIN, J.-P. Eating According to One’s Genes? Exploring the French Public’s Understanding of and Reactions to Personalized Nutrition. Qualitative Health Research, v. 28, n. 14, p. 2195–2207, 2018.). Mais uma vez, vale notar, as mulheres estão na centralidade do modelo higiênico-medicalizador, agente de transformação e disseminador dos “novos conhecimentos” que necessitam ser traduzidos em novos comportamentos.

Além das questões éticas sobre o armazenamento e a circulação das informações genéticas (Fournier; Poulain, 2017FOURNIER, T.; POULAIN, J.-P. La génomique nutritionnelle : (re)penser les liens alimentation-santé à l’articulation des sciences sociales, biomédicales et de la vie. Natures Sciences Sociétés, v. 25, n. 2, p. 111–121, 2017.), cumpre considerar que, apesar de a NP ainda não ser uma prática disponível para a população em geral, deixa inúmeros questionamentos. Será uma nova forma de desigualdade no acesso? Será um novo critério em seleções? Será que esse novo paradigma, quando estabelecido como hegemônico sustentado genomicamente, tornará as pessoas mais dóceis e obedientes com relação a orientações e a prescrições dos nutricionistas, levando-os a abandonar definitivamente os significados culturais relacionados à alimentação? “Ou, em vez disso, a nutrição personalizada limitará o papel de alguns ou todos os alimentos à medicina e transformará a alimentação em um medicamento para toda a vida?” (Görman, 2006GÖRMAN, U. Ethical issues raised by personalized nutrition based on genetic information. Genes & Nutrition, v. 1, n. 1, p. 13-22, 2006., p. 16).

Diante disso, podemos concluir que a dieta do onívoro do futuro será elaborada para evitar a morte, segundo Contreras (2006CONTRERAS, J. Les aliments décomposés : l ’ omnivore médicalisé ? Jesus Contreras. In: 2006, Paris. Colloque OCHA « L’homme, le mangeur, l’animal. Qui nourrit l’autre ? ». Paris, mai. 2006.). Um alerta, isto é, “a futura adaptação do omnívoro consistirá em conhecer seu mapa de DNA e logo adaptar sua dieta a ele para prevenir ‘suas’ doenças; ao contrário, sua ignorância ou preguiça seriam os culpados” (op. cit., p. 4).

Considerações finais

A alimentação é um ato social complexo. Na modernidade, foi incorporada, traduzida e ressignificada a partir da racionalidade científica biomédica, no processo de medicalização da sociedade. De acordo com os autores citados, a substituição de parte dos motivos pelos quais as escolhas alimentares são articuladas (simbólicos, hedonistas, econômicos) por razões médico-nutricionais, configurou a medicalização da alimentação.

Pôde-se perceber, ao longo desta pesquisa, o caráter polissêmico nos conceitos de medicalização não só da alimentação, como também da nutrição. Assim, buscou-se apresentar autores que vinculam ou relacionam tais práticas, tanto na dimensão terapêutica quanto preventiva, como originadas e determinadas pelo campo da medicina.

Nos trabalhos que compuseram esta revisão, identificamos quatro categorias que se destacaram. Daí, considerações sobre: 1) Medicalização da alimentação (dispositivos de controle do corpo e do comportamento alimentar); 2) Dispositivos de prevenção e programas de educação nutricional; 3) Alimentos como medicamentos; e 4) Nutrição Personalizada. Em todas, foi possível identificar estratégias pelas quais a alimentação e a nutrição foram reduzidas ao olhar da biomedicina, desconsiderando outras dimensões do alimentar-se. Essa redução ocorreu por meio: a) da prescrição de normas de comportamento e dietas; b) de práticas preventivas que moralizam comportamentos considerados de risco, causando estigmatização e culpabilização dos indivíduos pelas suas doenças; c) da concepção dos alimentos como se fossem medicamentos; d) da prescrição individualizada de dietas, de acordo com a Nutrição Personalizada, comprometendo a compreensão do alimentar-se a partir dos aspectos políticos, culturais, históricos e sociais.

Diante disso, para os próximos trabalhos, uma provocação: é preciso pensar a categoria “comer” – a comida – e não o alimentar-se, como o gesto menos medicalizado e inserido em outras racionalidades que não a biomédica. Ademais, também entendemos a necessidade de realizar futuramente os desdobramentos e debates tanto éticos quanto bioéticos relativos às novas práticas da Nutrição. Sendo assim, em face desse cenário, surge uma série de questionamentos que necessitarão ser considerados.

Que tipos de tipos de estratégias, especialmente as mulheres, terão que desenvolver para não sobrecarregar o trabalho de conviver com pressões estéticas ou expectativas de gênero, relacionadas à alimentação, disseminadas cada vez com maior inserção na vida das pessoas? Depois, de que forma a equidade e a igualdade poderão se sustentar quando da aplicação de modelos de nutrição personalizada? Haverá espaço para recuperar a dimensão do prazer e do gozo envolvidos no ato de comer? De que forma a moralização e a culpabilização poderão ser superadas para dar lugar a outras formas de se relacionar com a comensalidade, quando a lógica pela escolha dos alimentos e modos de preparo poderão ser influenciados pela ideia de funcionalidade e salutarismo?

Além dessas indagações, outras deverão ser consideradas. Primeiro, com o gradativo avanço da medicalização da alimentação e da nutrição, as razões para as escolhas alimentares ficarão subordinadas à racionalidade médico-nutricional? Haverá resistência? Como a Nutrição poderá se inserir nesse processo, de maneira a respeitar a amplitude da dimensão da alimentação em seus aspectos simbólicos, hedônicos e culturais? Como fomentar essa discussão na formação do nutricionista? E, por último, haverá debates sobre as questões éticas desses desenvolvimentos?

Por fim, cumpre dizer que o debate dessas questões poderá permitir a melhor apreciação do arcabouço de conhecimentos que fazem parte do discurso interdisciplinar e/ou transdisciplinar nos estudos concernentes tanto à Alimentação quanto à Nutrição.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2021
  • Aceito
    28 Jun 2023
  • Revisado
    30 Mar 2022
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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