Análise do cuidado a partir das experiências das mães de crianças com paralisia cerebral

Analysis of care from the experiences of mothers of children with cerebral palsy

Resumos

O artigo analisa o cuidado a partir da experiência das mães cuidadoras de crianças com paralisia cerebral (PC) tendo como marco teórico a hermenêutica heideggeriana. Realizou-se com 15 mães, em um Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI) em Fortaleza, Ceará, de fevereiro a agosto de 2011, utilizando-se a entrevista como produção de dados. Posteriormente foram organizados em um quadro analítico que permite leituras horizontais e verticais e a identificação das unidades significativas que surgiram das experiências das mães e que convergiram para as categorias pré-analíticas heideggerianas: cotidianidade, ruptura, angústia e autenticidade. A partir da analítica fenomenológica heideggeriana, atestamos que o processo de cuidar por parte das mães cuidadoras de crianças com PC pode ser abordado como um modo de ser em que surge a possibilidade de um encontro com o próprio ser no cuidado. As reflexões sinalizam a urgência de efetivar um cuidado centrado na alteridade e possibilita novas incursões e revisitações da qualidade do cuidado prestado pelos profissionais de saúde.

Cuidado; Paralisia Cerebral; Cuidador


The study aims to analyze care from the experiences of care given to mothers of children with Cerebral Palsy (CP).  Using the Heideggerian hermeneutic theoretical framework, it brings insights to the health professionals to consider human subjectivities in the process of care. Semi structured interviews were carried out with 15 mothers, at NAMI (the Center of Integral Medical Attention), University of Fortaleza, from February to August, 2011. After transcribing the interviews, the corpus was organized using an analytic table, allowing horizontal and vertical explorations and identification of units of meaning from the mother’s experiences. These units of meaning converged on the predefined Heideggerian categories such as cotidianity, rupture, anguish and authenticity. From Heidegger’s phenomenological analysis, we certify that the process of care by mothers caring for children with CP can be approached as a way of being in which there is the possibility of an encounter with Being itself in care. The findings point to the urgency of considering alterity in care practices, which brings the possibility of new prospects and reviewing the quality of care offered by the health workers.

Care; Cerebral Palsy; Caregiver


Introdução

No exercício da prática dos profissionais de saúde há o encontro com diversas faces do cuidar, demandando uma abordagem reflexiva sobre o cuidado (Benevides e Passos, 2005BENEVIDES, R.; PASSOS, E. Humanização na saúde: um novo modismo? Interface: Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 9, n. 17, p. 389-394, 2005.; Camacho e Santo, 2001CAMACHO, A. C. L. F.; SANTO, F. H. E. Refletindo sobre o cuidar e o ensinar na enfermagem. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 9, n. 1, p. 13-17, 2001.). Dessa forma, surge a necessidade de um amadurecimento teórico que integre o cuidado em saúde às concepções abrangentes e necessárias para lidar com o ser humano em suas complexidades e subjetividades. Nessa premissa de reconstruções teóricas o termo cuidado assume uma dimensão crucial, como forma de adensamento conceitual e filosófico, capaz de ampliar a visão daqueles que cuidam, nas diferentes situações em que dois ou mais sujeitos interagem na busca de um alívio para o sofrimento.

Ao pensar o cuidado unicamente como agente estressor ou como conjunto de atividades instrumentais utilizadas cotidianamente para benefício de alguém, incorre-se na precipitação de limitá-lo ao senso comum. Compactua-se com a assertiva de que toda ciência é fundamentada numa implícita ontologia do seu objeto (Heidegger, 2009HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon: protocolos, diálogos, cartas. Petrópolis: Vozes, 2009.) seguindo um método científico e pensando no que seja este cuidado.

A partir de uma abordagem hermenêutica heideggeriana esta pesquisa intenta contribuir com reflexões para que os profissionais de saúde visualizem uma abertura à própria condição humana como contingência e transitoriedade. Assim sendo, o profissional se vê também como ente intramundano, inserido em uma situação que o aproxima ao cuidador, percebendo o cuidado como “modo de ser” (Bressan e Scatena, 2002BRESSAN, V. R.; SCATENA, M. C. M. O cuidar do doente mental crônico na perspectiva do enfermeiro: um enfoque fenomenológico. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 10, n. 5, p. 682-689, 2002.; Terra e col., 2006TERRA, M. G. et al. Na trilha da fenomenologia: um caminho para a pesquisa em enfermagem. Texto & Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 15, n. 4, p. 672-678, 2006.; Monteiro e col., 2006MONTEIRO, C. F. S. et al. Fenomenologia heideggeriana e sua possibilidade na construção de estudos de enfermagem. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 297-301, 2006.).

Nessa perspectiva aproximar-se da cotidianidade, perceber a facticidade e estar sensível à angústia possibilita aos profissionais de saúde uma aproximação com a realidade do cuidador (Heidegger, 2006HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2006.). A partir daí há uma maior compreensão e oferta de um cuidado integral e humano pautado no diálogo (Camacho e Santo, 2001CAMACHO, A. C. L. F.; SANTO, F. H. E. Refletindo sobre o cuidar e o ensinar na enfermagem. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 9, n. 1, p. 13-17, 2001.).

Essa concepção permeará o arcabouço teórico deste artigo ao deparar com mães cuidadoras de crianças com paralisia cerebral (PC) em suas angústias, na superação da cotidianidade que as levam à autenticidade no seu modo de ser.

Importante lembrar que durante a gravidez a mãe sonha com um filho saudável. No nascimento da criança com PC, a descoberta do diagnóstico, o temor da situação desconhecida se contrapõe ao sonhado que fazia parte de seu mundo pleno de significado. Essa situação contém a possibilidade do “vir a ser” no cuidado (Heidegger, 2006HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2006.). Desse modo, o artigo analisa o cuidado a partir da experiência das mães cuidadoras de crianças com paralisia cerebral.

A leitura da fenomenologia hermenêutica de Heidegger é muito densa e complexa. Buscando a interface entre cuidado e paralisia cerebral no campo da saúde, em junho de 2012 foi realizada uma pesquisa em bases de dados (Lilacs e Scielo) com os descritores: mãe, criança, paralisia cerebral e cuidado, abrangendo o período de 2000 a 2013. Tal busca resultou em 20 artigos qualitativos que tratam de temas atuais, tais como a acessibilidade; o impacto na vida da família e do cuidador; dificuldades e transtornos mentais; atitudes e percepções dos cuidadores e profissionais em relação a portadores de paralisia cerebral. Apenas dois artigos analisaram a experiência vivida por mães cuidadoras sob a perspectiva fenomenológica (Bressan e Scatena, 2002BRESSAN, V. R.; SCATENA, M. C. M. O cuidar do doente mental crônico na perspectiva do enfermeiro: um enfoque fenomenológico. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 10, n. 5, p. 682-689, 2002.; Barbosa e col., 2008BARBOSA, M. A. M.; CHAUD, M. N.; GOMES, M. M. F. Vivências de mães com um filho deficiente: um estudo fenomenológico. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 46-52, 2008.).

Tendo em vista a escassez de estudos, este artigo resgata o sentido original do cuidado a partir da vivência de mães cuidadoras de crianças com PC, buscando uma aproximação e uma relação dialógica do profissional com o sentimento dessas mães, suas angústias e seu próprio “ser”.

O cuidado em Heidegger

A noção de cuidado está envolta em concepções predefinidas e naturalmente relacionada ao gênero feminino, à medicina, à enfermagem (tecnicização), à moral e ao dever (tradição judaico-cristã). O senso comum traz uma ideia convergente sobre o cuidado baseada na concepção de um conjunto de técnicas e ações necessárias para a obtenção de resultados benéficos em um indivíduo em situação vulnerável (Waldow e Borges, 2008WALDOW, V. R.; BORGES, R. F. O processo de cuidar sob a perspectiva da vulnerabilidade. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 4, n. 16, p. 765-771, 2008.). Entretanto a abordagem etimológica da palavra “cuidar” nos leva a dois sentidos originais que, de certa forma, se fundem e são complementares: do latim cogitare, que significa pensar e o sentido de preocupação, preocupar-se com (Cunha, 2010CUNHA, A. G. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.).

Encontra-se no cuidado o ethos (modo de ser) necessário para a sociabilidade humana e para identificar a essência do ser (Waldow e Borges, 2008WALDOW, V. R.; BORGES, R. F. O processo de cuidar sob a perspectiva da vulnerabilidade. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 4, n. 16, p. 765-771, 2008.). De fato, o termo cuidado é analisado em consonância com a possibilidade de uma abertura para o ser. Esta afirmação traz em si uma dificuldade interpretativa do significado dessa abertura, de como é abordada e a quem interessa essa abordagem. Afirma-se que interessa diretamente a quem lida com o humano e que irremediavelmente refere-se à humanização, como concebido por Deslandes (2004)DESLANDES, S. F. Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 7-14, 2004. no que diz respeito à possibilidade de se constituir uma nova ordem relacional, pautada no reconhecimento da alteridade e do diálogo.

Segundo Heidegger, preocupamo-nos conosco e com os outros no curso temporal de nossa existência. No cuidado somos cautelosos, pensamos sentindo, atendemos a um futuro incerto e ao presente imediato a partir do que já sabemos de antemão. O autor afirma que a condição existencial de possibilidade de uma preocupação com a vida e dedicação deve ser concebida como cura (cuidado) num sentido originário, ou seja, ontológico (Heidegger, 2006HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2006.). O ser se revela a partir da ideia do cuidado como modo de existência e que se perfaz em um processo vital; a existência, o “ser-no-mundo” em uma contingência imodificável (facticidade) e o esquecimento do próprio ser nas atividades cotidianas do mundo (a inautenticidade ou decadência).

A fenomenologia do Dasein (existência) considera o cuidado como termo que define a própria existência humana o “ser/estar-aí” (Heidegger, 2006HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2006.). O Dasein é lançado dentro do mundo, vem à existência em uma situação que está fora de seu controle, que contém coisas que ele não elegeu. Ele se relaciona com esse mundo existindo nesse mundo e esquecendo-se de si, ou seja, se faz inicialmente em uma mundanidade. Esta pertence ao “ser” enquanto existindo no mundo, ou seja, existindo na cotidianidade; o modo como a presença vive o seu dia, quer em todos os seus comportamentos, quer em certos comportamentos privilegiados pela convivência (Heidegger, 2006HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2006.). Essa cotidianidade é tão próxima a nós que é normalmente ignorada.

Do ponto de vista existencial somos “lançados no mundo” que não foi escolhido. “Existir é sempre fático. Existencialidade determina-se essencialmente pela facticidade” (Heidegger, 2006HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2006., p. 259). Essa experiência de si privilegiada surge como possibilidade e é realizada no sentimento fundamental da angústia diante do nada na qual há o desvio da decadência.

O cuidado como o modo de ser do Dasein comporta uma totalidade por incluir a existencialidade, a facticidade, a decadência e a autenticidade (Sales, 2005SALES, C. Vivenciando a facticidade em dar existência a filho prematuro: compreensão dos sentimentos expressos pelas mães. Acta Scientiarum - Health Sciences, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 19-23, 2005.). Nesses termos Heidegger evidencia o cuidado como o modo de ser em que o Dasein chega à autenticidade — um ser vivendo em um presente que se originou de um passado com circunstâncias que não foram de sua escolha e que avança por um horizonte definido pelo nada. Somente diante da angústia, de um estranhamento do próprio mundo, do questionamento de suas significações e de um sentimento de estar fora de casa, o Dasein encontra o seu “ser”.

Nessa perspectiva, o presente estudo adota como conceito de mães cuidadoras o que se aproxima das concepções de Wegner e Pedro (2010)WEGNER, W.; PEDRO, E. N. R. Os múltiplos papéis sociais de mulheres cuidadoras-leigas de crianças hospitalizadas. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 31, n. 2, p. 335-342, 2010. ao investigarem as concepções de cuidado de mulheres cuidadoras de crianças com câncer, proporcionando uma reflexão entre a situação concreta e a idealizada, defendendo a premissa de que a função cuidadora abrange questões relacionadas à capacidade que a mulher tem de gestar, ao instinto materno e às dificuldades do homem em desempenhar o cuidado com os filhos.

Perpassando a visão ontológica, este artigo teve como objetivo analisar o cuidado a partir das mães cuidadoras de crianças com paralisia cerebral, considerando seu modo próprio de existir, a sua origem e sua finalidade.

Método

Trata-se de um estudo qualitativo ancorado na concepção heideggeriana segundo a qual a linguagem caracteriza intrinsecamente a relação do “ser com o mundo”. Ao se deparar com o mundo que o circunda, o “ser” se vê na possibilidade de interpretá-lo e nessa interpretação se insere o próprio sentido hermenêutico. A realidade social é tomada como texto a ser analisado e interpretado a partir do contexto histórico (Jesus e col., 1998JESUS, M. C. P.; PEIXOTO, M. R. B.; CUNHA, M. H. F. O paradigma hermenêutico como fundamentação das pesquisas etnográficas e fenomenológicas. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 6, n. 2, p. 29-35, 1998.). Há uma tentativa de aprofundar os sentidos que ultrapassam aquilo que aparentemente está exposto de uma maneira que permita interpretar os significados a partir do diálogo com o mundo.

Esse ser, neste estudo, é representado por mães cuidadoras de crianças com diagnóstico médico confirmado de paralisia cerebral, usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) que estavam com seus filhos em tratamento, há pelo menos um ano, no Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI) da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

Nesse núcleo são desenvolvidas ações de saúde no nível secundário, com atendimentos à rede do SUS, à saúde suplementar, aos colaboradores do Grupo Edson Queiroz e ao particular. Configura-se também como campo de prática para a formação acadêmica dos diversos cursos na área de saúde/psicologia da UNIFOR.

Importante mencionar que o NAMI é referência no atendimento às crianças com deficiências; oferta um cuidado multidisciplinar com foco ampliado para a família e possíveis demandas inerentes aos desdobramentos do processo de doenças crônicas. Anualmente são efetuados cerca de 500 mil atendimentos, entre consultas/terapêuticas especializadas (médicas, enfermagem, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicologia), exames complementares (análise clínica e imagem, dentre outros), vacinas, atendimento materno-infantil e grupos operativos em temas específicos — saúde mental, climatério, corporeidade, e outros que surgem a partir de novas demandas (Pereira, 2011PEREIRA, A. R. P. F. As estratégias de coping (enfrentamento) e o significado do cuidado para as mães cuidadoras de crianças com paralisia cerebral. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2011.).

Inicialmente deu-se o processo de identificação e seleção dessas mães mediante acesso aos cadastros de usuários e arquivos disponibilizados no Serviço de Arquivo Médico (SAME) do NAMI. A partir dos critérios estabelecidos no estudo — mães cuidadoras de crianças com paralisia cerebral, de 2 a 8 anos de idade; com plano terapêutico em andamento (NAMI) há pelo menos um ano. Esse intervalo etário (2 a 8 anos) justifica-se porque, na maioria dos casos, as incapacidades e/ou dificuldades da criança são manifestadas no desempenho das atividades de vida diária, após os 2 anos de vida (Zamfolini e col., 2008ZAMFOLINI, H. C.; RIBEIRO, M. N.; PRESUMIDO, B. L. M. Aquisição de habilidades funcionais na área de mobilidade em crianças atendidas em um programa de estimulação precoce. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 27-34, 2008.).

Nesse sentido, participaram do estudo 15 mães usuárias do SUS que contribuíram com suas experiências do “ser” cuidadora. Os dados foram originados a partir de entrevistas semiestruturadas norteadas pelas questões: para você, como é tomar conta de seu filho? O que é ser uma mãe cuidadora? No cuidado cotidiano de seu filho/filha, o que considera mais difícil? Por quê? Como divide o tempo para cuidar do seu filho e da sua vida?

As entrevistas foram gravadas, tendo duração média de 30 minutos e, aproximadamente, 3 horas e 17 minutos de transcrição na íntegra, realizada por uma das autoras. Interrompeu-se a coleta à medida que se deu a saturação de sentido (Fontanella e col., 2008FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 17-27, 2008.). Em respeito ao anonimato, as falas serão apresentadas pelas iniciais MC (mãe cuidadora) e identificadas por numeral de 1 a 15, obedecendo a ordem das entrevistas.

O material não estruturado resultante das entrevistas foi organizado e analisado a partir do marco teórico conceitual de Heidegger, sob as seguintes categorias: cotidianidade (vivência cotidiana, onde há esquecimento do ser), facticidade (ruptura do esperado, depara-se com o diagnóstico), angústia (abertura de possibilidades de crescimento) e autenticidade (preocupar-se com/assume o cuidado).

A partir de uma primeira leitura do corpus foi elaborado um quadro analítico que permitiu leituras horizontais e verticais, organizadas pelas questões norteadoras que possibilitaram identificar as categorias predefinidas, bem como as unidades significativas que emergiram das experiências das mães.

Explicitando o conceito de paralisia cerebral retoma-se a definição elaborada pela Surveillance of Cerebral Palsy in Europe (SCPE) segunda a qual, a partir de um consenso de clínicos e epidemiologistas europeus, a patologia é caracterizada por um conjunto de distúrbios permanentes que afetam o desenvolvimento, o movimento e a postura dos indivíduos, causando comprometimentos e limitações das suas atividades. A essa patologia são atribuídas alterações não progressivas que ocorreram no desenvolvimento fetal ou no cérebro infantil.

O comprometimento motor da PC é acompanhado de distúrbio de sensibilidade, percepção, cognição, comunicação, comportamento, epilepsia e disfunções musculoesqueléticos secundários (Bax e col., 2005BAX, M. et al. Proposed definition and classification of cerebral palsy. Developmental Medicine and Child Neurology, London, v. 47, n. 8, p. 571-576, 2005.). A utilização do termo “paralisia cerebral” é utilizado tradicionalmente e está estabelecido na literatura, sendo aceito universalmente por clínicos, terapeutas, epidemiologistas, pesquisadores, gestores, organizações de saúde e pessoas leigas.

A classificação da PC pode ser feita de muitas maneiras (Rotta, 2002ROTTA, N. T. Paralisia cerebral, novas perspectivas terapêuticas. Jornal de Pediatria, Porto Alegre, v. 78, p. S48-S49, 2002. Suplemento 1.) e se relaciona ao local, surgimento, causa, sintomas e topografia da lesão. Seguindo a classificação anatômica e clínica, enfatizando o comprometimento motor, elemento principal do quadro clínico, a patologia divide-se em: espásticas ou piramidais; coreoatetósicas ou extrapiramidais; atáxicas e mista (Blair, 2006BLAIR, E. Epidemiology of cerebral palsy. Seminars in Fetal & Neonatal Medicine, Philadelphia, v. 11, n. 2, p. 117-125, 2006.; Kok, 2003KOK, F. As principais afecções em neurologia infantil: encefalopatias não-progressivas: deficiência mental e paralisia cerebral. In: NITRINI, R.; BACHESCHI, L. A. A neurologia que todo médico deve saber. 2. ed. São Paulo: Atheneu, 2003. p. 441-445.; Rotta, 2002ROTTA, N. T. Paralisia cerebral, novas perspectivas terapêuticas. Jornal de Pediatria, Porto Alegre, v. 78, p. S48-S49, 2002. Suplemento 1.; Katherine e Ratliffe, 2002KATHERINE, M.; RATLIFFE, M. A. Paralisia cerebral. In: ______. Fisioterapia na clínica pediátrica: guia para a equipe de fisioterapeutas. São Paulo: Editora Santos, 2002. p. 163-217.). A forma mais frequente é a espástica ou piramidal.

Atendendo aos preceitos éticos, o estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Fortaleza, sob parecer de n. 11-082/2011 e registro do CAAE 0071.0.037.037-11, bem como anuência do Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI/UNIFOR).

Resultados e discussão

Características das mães cuidadoras de crianças com paralisia cerebral

As mães cuidadoras de crianças com PC geralmente têm problemas em conciliar o cuidado da criança com o trabalho fora de casa, tendo que abandoná-lo ou reduzir a sua jornada (Gondim e Carvalho, 2012GONDIM, K. M.; CARVALHO, Z. M. F. Sentimentos das mães de crianças com paralisia cerebral à luz da Teoria de Mishel. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 11-16, 2012.). Muitas vezes o benefício ou aposentadoria que a criança recebe não são suficientes para cobrir as despesas com medicação, alimentação, fraldas e meio de transporte que ela necessita para chegar ao local onde faz tratamento de reabilitação.

Essas mães cuidadoras são, em grande parte, mulheres pertencentes a uma parcela vulnerável da população (Diniz e Coelho, 2007DINIZ, G.; COELHO, V. Gênero, migração e saúde mental: dimensões da experiência de mulheres nordestinas no Distrito Federal. In: FÉRES-CARNEIRO, T. (Org.). Família e casal: saúde, trabalho e modos de vinculação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. p. 35-54.). As mães participantes deste estudo são provenientes de classes sociais desfavorecidas. Assim, há uma relação entre gênero e pobreza, pois existe uma maior representação feminina entre os pobres e miseráveis no mundo (Costa e col., 2005COSTA, J. S. et al. A face feminina da pobreza: sobre-representação e feminização da pobreza no Brasil. Brasília, DF: IPEA, 2005. (Texto para discussão, n. 1137). Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1137.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2014.
http://www.ipea.gov.br/portal/images/sto...
). Ressaltamos que as mães entrevistadas são usuários do SUS. Os indivíduos atendidos pelo sistema público apresentam como características sociodemográficas o predomínio de mulheres (2:1), baixa escolaridade (52,8% têm até três anos de estudo) e sem posse de plano de saúde privado (Barata, 2008BARATA, R. B. Acesso e uso de serviços de saúde considerações sobre os resultados da Pesquisa de condições de vida 2006. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 19-29, 2008.).

Após realizar uma primeira interpretação geral, buscou-se entender os fatos comuns das vivências relatadas, o processo de adaptação e os sentidos atribuídos ao cuidado pelas mães cuidadoras de crianças com PC à luz da fenomenologia heideggeriana. Ao mesmo tempo buscou-se dialogar com estudos sobre a temática na área da saúde, realizados nos últimos dez anos.

Cotidianidade e ruptura

Respondendo à vivência cotidiana e à ruptura do esperado, as falas sinalizam que, diante da deficiência do filho, a família inteira começa uma batalha adaptativa para recuperar o equilíbrio. Embora somente um membro da família “possua” a deficiência, todos os seus membros são afetados e, até certo ponto, incapacitados por ela (Fonseca e col., 2008FONSECA, N. R.; PENNA, A. F. G.; SOARES, M. P. G. Ser cuidador familiar: um estudo sobre as conseqüências de assumir este papel. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 4, p. 727-743, 2008.).

Em geral o cuidador primário dessas crianças, na maioria das vezes a mãe, vê sua vida alterada com o intuito de melhorar a condição da criança, rompendo com seus próprios papéis sociais. A percepção das necessidades de cuidados especiais, acrescida da vontade de proporcionar estímulos adequados que potencializem o desenvolvimento da criança, em muitos casos provoca a saída das mães do mercado de trabalho, levando-as à dedicação exclusiva a seu filho (Milbrath e col., 2008MILBRATH, V. M. et al. Ser mulher mãe de uma criança portadora de paralisia cerebral. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 21, n. 3, p. 427-431, 2008.). A abdicação de sua vida profissional altera a sua rotina e influencia a família como um todo, pois, ao sair de seu emprego, além de reduzir a renda familiar, passa a depender financeiramente de outros (Gondim e Carvalho, 2012GONDIM, K. M.; CARVALHO, Z. M. F. Sentimentos das mães de crianças com paralisia cerebral à luz da Teoria de Mishel. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 11-16, 2012.).

Na minha vida eu não tenho muito tempo, meu tempo é praticamente todo voltado para ela. É muito difícil eu ter um lazer e essas coisas. Tudo porque ela só tem a mim, não tem ninguém, a mim e o pai dela lógico. Mas o meu tempo é só dela. Ao acordar ela é dependente de tudo, tudo ela depende de mim e eu estou ali do lado dela. A minha vida gira em torno dela, conforme seja a necessidade dela (MC 6). De forma marcante uma mãe ressaltou: a cada dia a gente sabe que tem que amanhecer e anoitecer para cuidar (MC 7).

Evidencia-se assim que essas mães têm comprometido o tempo de sua vida pessoal com acentuada sobrecarga de tarefas. A condição de cuidadora gera um impacto que repercute na vida e relações interpessoais dessa mãe, o que se mostra na fala: Eu não saio mais com as amigas. O pai dela, a gente morava junto há nove anos e, quando ela nasceu, ele disse que não ia ficar com uma mulher que tinha uma filha assim e não ia querer uma filha assim. Ele foi embora e disse que ia viver a vida dele (MC 15). Essas experiências estressantes afetam as mães em quase todos os aspectos de suas relações e, muitas vezes, leva-as ao isolamento social, o que pode levar ao estresse profundo, depressão e uma diminuição subjetiva na qualidade de vida delas e de suas famílias (Miura e Petean, 2012MIURA, R. T.; PETEAN, E. B. L. Paralisia cerebral grave: o impacto na qualidade de vida de mães cuidadoras. Mudanças, São Paulo, v. 20, n.1/2, p. 7-12, 2012.).

Outro fator gerador de estresse é o desconhecimento por parte das mães acerca da condição do seu filho. Esse problema se perpetua à medida que se configura o atendimento não dialogado, em virtude da carência de uma orientação profissional que implique escuta e diálogo. Entende-se que a informação não é traduzida para o seu mundo (mãe cuidadora) e entendimento.

A literatura ressalta a importância do atendimento dialogado na busca de um maior conhecimento das necessidades do usuário e dos modos de satisfazê-las possibilitando a oferta de uma prática qualificada e sensível, que também elege a subjetividade na condução de planos terapêuticos (Teixeira, 2005TEIXEIRA, R. Humanização e atenção primária à saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 585-597, 2005.; Moraes e Cabral, 2012MORAES, J. R. M. M.; CABRAL, I. E. A rede social de crianças com necessidades especiais de saúde na (in)visibilidade do cuidado de enfermagem. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 20, n. 2, p. 282-288, 2012.). É imperioso que o profissional encontre um solo comum de conversação com a usuária, reconhecendo suas necessidades, orientando-a, de modo que ela saiba encontrar o próprio caminho (Gadamer, 2007GADAMER, H. G. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes, 2007.).

Nesse momento, o diálogo é imprescindível e parte do tratamento que busca abolir a distância e promover a confiança entre os envolvidos. O modo como esse diálogo vem sendo produzido nos campos onde se materializa esse cuidado mostra-se frágil, tênue e com ruídos que impossibilitam considerar a alteridade. Duas mães se reportam a essa compreensão: Eu saí arrasada por não saber o que era. Eu fui chorando até chegar em casa... A doutora jogou assim na minha cabeça: “seu filho tem hipertonia” (MC 1). Para mim foi um baque... Olha, foi impactante, foi um choque mesmo, porque eu não esperava que ele tivesse e, na verdade, eu nem sabia o que era paralisia cerebral (MC 5).

Observa-se a ocorrência de uma espécie de ruptura com o que a pessoa vive no cotidiano intramundano onde tudo significa e faz sentido (um filho normal, as visitas festivas, o orgulho do filho esperado) para emergir um estranhamento, uma perda do que antes parecia familiar diante da situação inesperada. Quando eu cheguei lá na UTI eu corri pros outros bebês que era parecido com... Deus me perdoe... (parecido) com gente, mas ele (o médico) disse assim: “não mãezinha não é essa daí, é aquela dali”. Aí eu olhei assim, não é? Eu tive foi um medo porque não tinha a figura de gente, era só um feto se mexendo (MC 7). O parto da minha filha foi muito difícil, muito sofrido, quase ela morria... Eu olhava assim para ela e: “meu Deus, será que está acontecendo comigo?” (MC 2).

Por um lado, a mãe se depara com a facticidade; o ser humano é lançado no mundo, um mundo que não foi escolhido e que se constitui independentemente de nossas aspirações e ideais: o que está acontecendo é um fato. Ser mãe de uma criança com paralisia cerebral revela esta facticidade particular. Não é fácil ser mãe de criança especial. Às vezes me sinto cansada, eu me sinto impotente por não saber o que ele está sentindo. Às vezes eu peço forças para o Senhor, porque não é fácil ser mãe de criança especial; só Ele é que pode me ouvir e atender minhas orações... (MC 1).

Por outro lado, explicita-se então uma superação dessa facticidade: Ah, pra mim é um prazer. Como eu já falei, pra mim é um prazer cuidar da minha filha; pra mim nada é difícil pra fazer pra ela (MC 2). Em outro exemplo a mãe aponta sua condição como uma forma de crescimento individual e significado: Eu vejo que ser uma mãe cuidadora é uma coisa muito importante pra mim e pra ele [filho da entrevistada] não é? É importante pra mim porque eu aprendo a cada dia mais (MC 3).

Apesar de acreditarmos que a mãe cuidadora de uma criança com PC revele um desgaste linear em todas as etapas desse cuidado, falas significativas contrapõem essa suposição, como as referidas por MC 2 e MC 3. Reafirma-se a superação da facticidade de modo contínuo, pois o desvelo dessas mães aproxima à autenticidade do ser, minimizando percepções de angústia.

Contudo, percebe-se que elas possuem ainda muitos sentimentos de angústia e incerteza quanto à patologia da criança, principalmente quanto ao futuro. Tais incertezas podem ser reduzidas mediante apoio dos profissionais. Tendo melhor manejo com as mães, tirando suas dúvidas, dando explicações sobre a patologia e todo o processo de tratamento, concedendo um feedback quanto à evolução da criança, eles podem reduzir as dúvidas que elas têm em virtude da doença (Gondim e Carvalho, 2012GONDIM, K. M.; CARVALHO, Z. M. F. Sentimentos das mães de crianças com paralisia cerebral à luz da Teoria de Mishel. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 11-16, 2012.).

Angústia e autenticidade

Depois do choque da anunciação, a mãe ressignifica o fato. A partir daí a noção de cuidado começa a assumir uma dimensão mais abrangente, vinculada à experiência humana diante do sentimento de angústia. Há, então, uma abertura para que o “ser” se singularize, ou seja, se retire da condição de imerso na cotidianidade. Há uma revelação da possibilidade desse ser se tornar autêntico, assumindo suas responsabilidades.

Os depoimentos das mães indicam essa ressignificação do fato em si. Nesse aspecto a mãe cuidadora da criança com PC demonstra sua consciência de uma realidade que se mostra bem mais desafiadora quando comparada com a maternidade em si: Mas eu vi que eu tinha que cair na real, que eu tinha uma criança especial e tinha que ter maturidade para aceitar e superar para poder cuidar dela (MC 6). Eu não aceitava, mas depois, eu comecei a ver o sentido da vida, as pequenas conquistas, as pequenas coisas, a valorizar mais a vida, o ser humano, a se colocar no lugar do outro, que até então não tinha (MC 10).

O cuidado se torna um modo de ser do homem diante da existência, pleno de significados. Essas mães, agora, diante da angústia que as retirou da decadência, se colocam na ocupação (junto-a-seu-filho) e na preocupação (copresença em um mundo que se transformou após o sentimento de angústia).

O cuidado, no seu significado mais profundo, traduz o modo de ser e o sentido da existência dessas mães cuidadoras: Agora, já que ele teve esse problema e saiu com ele de lá e, assim, a gente teve que se adaptar a ele, era novo pra mim... ele dá sentido bem mais amplo pra vida, pras atividades que a gente faz, pro desenvolvimento humano da gente mesmo e até o desenvolvimento religioso da fé (MC 3). Observa-se nesse depoimento o sujeito reagindo frente ao incontrolável e assumindo seu papel de cuidador responsável e ativo. O sentido ou significado da vida está imbricado no cuidado; na preocupação o indivíduo terá de assumir sua própria responsabilidade, encontrando um sentido autêntico da sua própria experiência. Há um esforço de mudança comportamental em que o indivíduo assume novos padrões de visão sobre o problema.

Uma mãe exprime de forma veemente a internalização de novo significado à sua vida: Eu não gosto de olhar para o que já aconteceu, o que aconteceu é passado. O que eu tô olhando é o que está acontecendo na vida do meu filho. O que tem acontecido na vida do meu filho. Têm sido coisas maravilhosas (MC 4). Observa-se aqui uma nítida referência ao passado em que se evidencia a facticidade, que é superada à medida que o “ser” assume que sua condição pertence ao passado, ou seja, não há como mudá-lo. Somente diante da angústia, de um estranhamento do próprio mundo, do questionamento de suas significações e de um sentimento de “estar fora de casa” há uma abertura para outra possibilidade: o cuidado e a autenticidade.

Atestamos nos discursos evidências sutis de que, a partir da angústia de sua situação como mãe cuidadora de uma criança com paralisia cerebral, há um despertar para sua própria existência, em consonância com uma realidade que se mostra imperturbável e alheia aos seus sonhos. Essa constatação traz mudanças profundas sobre a subsequente visão do mundo. A mãe cuidadora retira de sua angústia um novo significado para sua existência, um novo caminho, agora marcado pela finitude e inexorabilidade.

Paradoxalmente, essa situação refaz o sentido inicial que parecia estar repleto de significados, e há agora a descoberta de que a existência é finita, repleta de contingências imutáveis e desconcertantes. É a oportunidade do “vir a ser” na autenticidade: no cuidado. Essas ideias permitem um aprofundamento eminentemente humanístico sobre o modo de ser das mães cuidadoras revelado na perspectiva do cuidado.

Contudo, ressalte-se que as mães cuidadoras de crianças com PC enfrentam desafios e dificuldades cotidianamente. Ampliando a concepção e adentrando no âmbito dos serviços de saúde, a dificuldade verbalizada por essas mães canaliza para o acesso. Trecho significativo corrobora essa assertiva na fala da MC 1: a dificuldade seria assim... que eu acho ruim é a locomoção. Algumas mães salientaram a alimentação como um processo de difícil manejo. Falas expressivas apontam para essa compreensão: Alimentá-lo não é fácil. Eu sofri muito com meu filho pra alimentá-lo, fui julgada até pelo meu esposo, porque ele dizia que eu não sabia cuidar do meu filho. Ele vomitava demais... (MC 5). É na hora da comida dele, porque a comida dele é toda batida e, às vezes, ele se engasga. Então eu fico doidinha (MC 8).

Outro aspecto, de caráter mais subjetivo, inclui a falta de reconhecimento familiar no tocante à particularidade de ser mãe cuidadora que reverbera em possíveis conflitos interpessoais: E a pior questão que eu acho é a valorização. Você não tem valor, você é a mãe como outra qualquer e o meu esposo, ele diz assim: “não, você faz o que qualquer mãe faria, não é?” Não reconhece, assim, todo o sacrifício, que é todo o sacerdócio que é cuidar de uma pessoa especial. Então eu costumo dizer que a gratificação só Deus mesmo vai me dá, porque ninguém dá, acha que ainda poderia fazer mais (MC 5).

Os achados dessa pesquisa assinalaram que as mães cuidadoras necessitam de profissionais preparados para orientá-las, levando em consideração seus sentimentos e peculiaridades. Ela tem um papel crucial no tratamento e cuidado do filho e o profissional deve estar aberto e atento ao mundo da mãe para que o tratamento seja dialogado, e consequentemente efetivo. A verdadeira arte de curar deve, primeiramente, conhecer e considerar o ser humano na sua totalidade. Como afirma Gadamer, “há que buscar entender a essência multiforme da alma em que se quer implantar as convicções e a variedade dos discursos que se adaptam a cada estado da alma” (Gadamer, 2007GADAMER, H. G. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes, 2007., p. 665).

Nesse sentido, os profissionais de saúde devem estar preparados para oferecer informações com vistas a direcionar as mães e os familiares quanto aos cuidados necessários à criança com necessidades especiais. Para tanto, o profissional necessita de uma base teórica que lhe forneça subsídios para orientar e dar apoio à família, dirimindo suas dúvidas e reduzindo suas incertezas quanto ao futuro de uma criança que durante toda a vida dependerá de cuidados especiais de alguém (Gondim e Carvalho, 2012GONDIM, K. M.; CARVALHO, Z. M. F. Sentimentos das mães de crianças com paralisia cerebral à luz da Teoria de Mishel. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 11-16, 2012.).

Conclusão

Reconhece-se a complexidade do objeto de estudo ao analisar as experiências de mães cuidadoras de crianças portadoras de paralisia cerebral à luz da teoria heideggeriana, o que possivelmente origina lacunas analíticas na construção desse cuidado. Desse modo, os autores assumem os limites do estudo ao apresentar um recorte dessa realidade permeada pela cotidianidade, ruptura, angústia e autenticidade na dinâmica do cuidar.

A hermenêutica de Heidegger, escolhida para a análise dos dados, confirma-se como fio condutor teórico-metodológico para a sistematização e compreensão dos discursos das mães, oferecendo uma interpretação simples e profunda com reflexões sobre a questão do cuidado em saúde nos seus aspectos subjetivos e humanos. Vai ao encontro do que preconiza as políticas públicas no que concerne à humanização e promoção da saúde.

Acredita-se que a análise de experiências tão significativas possa sensibilizar profissionais e gestores da saúde na efetivação das políticas públicas que estão postas. E instiga o profissional de saúde a sistematizar o cuidado com o olhar, cada vez mais, centrado no ser e na sua alteridade. Em concluso, a investigação vislumbra novos desdobramentos envolvendo experiências de novos seres que se inserem e circunscrevem no fenômeno.

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  • Este estudo contou com o financiamento da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    apr-jun 2014

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2012
  • Revisado
    10 Jul 2013
  • Aceito
    03 Out 2013
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br