A educação democrática e sua aplicação ao campo da saúde

Fernando Lefevre Ana Maria Cavalcanti Lefevre Carla Cristina Tze Jú Cavalcanti Sobre os autores

Resumos

Apresenta-se neste trabalho a proposta de Educação Democrática aplicada ao campo da saúde e da saúde coletiva. Considerando que a prática da saúde e da saúde coletiva implicam em uma larga medida em tomada de decisões pelos indivíduos, a proposta da educação democrática busca dar relevo à dimensão necessariamente ética envolvida em tal tomada de decisão, que, acredita-se, deve ser sempre considerada como uma opção livre e autônoma dos indivíduos, que possuem condições para poderem exercer essa liberdade. Mas para que esta situação possa acontecer efetivamente, faz-se necessário questionar se os comportamentos válidos e intrinsecamente éticos são sempre aqueles baseados, fundamentados na ciência e na tecnologia. Neste quadro a tarefa magna do educador que atua na área da saúde consistirá em oferecer todas as condições para que tal liberdade de decisão possa ser efetivamente exercida pelos indivíduos. Para isso é indispensável considerar a diversidade e a diferença, incontestes atributos da contemporaneidade.

Educação; Tomada de Decisão; Ética; Autonomia Pessoal.


Introdução

Coloca Castells (2003)CASTELLS, M. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2003., a propósito da Internet e da Globalização:

O terceiro maior desafio é o estabelecimento da capacidade de processamento de informação e geração de conhecimento em cada um de nós- e particularmente em cada criança. Não me refiro com isso, obviamente, ao adestramento no uso da Internet em suas formas em evolução (isto está pressuposto). Refiro-me à educação. Mas em seu sentido mais amplo, fundamental; isto é, a aquisição da capacidade intelectual de aprender a aprender ao longo da vida, obtendo-se a informação que está digitalmente armazenada, recombinando-a e usando-a para produzir conhecimento para qualquer fim que tenhamos em mente. Esta simples declaração põe em xeque todo o sistema educacional desenvolvido durante a Era Industrial. Não há reestruturação mais fundamental. E muito poucos países e instituições estão verdadeiramente voltados para ela, porque, antes de começarmos a mudar a tecnologia, a reconstruir as escolas, a reciclar os professores, precisamos de uma nova pedagogia, baseada na interatividade, na personalidade e no desenvolvimento de capacidade autônoma de aprender e pensar. Isso, fortalecendo ao mesmo tempo o caráter e reforçando a personalidade. E esse é um terreno não mapeado. (Castells, 2003CASTELLS, M. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2003., p. 227)

É neste quadro ideológico que buscaremos discutir aqui a problemática do que estamos chamando de Educação Democrática e sua aplicação ao campo da saúde e da saúde coletiva.

Educação democrática, saúde e tomada de decisão

A proposta da Educação Democrática aqui apresentada insere-se no campo da Educação de um modo geral, seguindo uma tradicional perspectiva deste campo associada, entre outras, às ideias de emancipação, autonomia, respeito às diferenças, horizontalidade dos agentes envolvidos nas interações educativas.

No que toca à sua aplicação à área da saúde, a Educação Democrática insere-se na linha dos trabalhos que fazem a crítica da Educação em Saúde vista como prática autoritária de busca da compliance ou mera obediência aos preceitos médico-sanitários dominantes.

A saúde e a saúde coletiva, numa larga medida, envolvem a tomada de decisões por parte dos distintos atores sociais envolvidos. Do ponto de vista dos profissionais de saúde tais decisões envolvem aspectos como: dar atenção ou não às histórias dos pacientes; oferecer ou não alternativas de tratamento e assim sucessivamente. Do ponto de vista dos pacientes: tratar ou não tratar-se; cumprir ou não cumprir a prescrição médica; usar ou não usar preservativo nas relações sexuais; fumar ou não fumar; consumir drogas ou não consumir; entrar em depressão ou enfrentar seus problemas.

Examinar a questão da tomada de decisões é, pois, central para a saúde e para a saúde coletiva e mais ainda quando a Educação está envolvida já que certamente Educação tem a ver com Tomada de Decisão.

A tomada de decisão por sua vez tem a ver com Ética na medida em que envolve necessariamente a tensão entre Autonomia x Heteronomia.

Tal tensão se exacerba quando se trata de saúde na medida em que, sendo a área da saúde hegemonizada pela esfera técnica, na relação entre os indivíduos e os técnicos a heteromia tende prevalecer (Silva, 2011SILVA, W. M. Transformar é preciso: transformações na relação de poder estabelecida entre médico e paciente (um estudo em comunidades virtuais). 2011. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.), na medida em que o poder encontra-se todo concentrado na autoridade sanitária, detentora de jure do conhecimento técnico.

Chega-se assim ao paradoxo, por vezes muito real para os que militam na área, de que a grande tarefa da Educação no campo da saúde e da saúde coletiva consiste em fazer com que os indivíduos sejam capazes de "tomar a decisão", heterônoma, de sempre obedecer à autoridade técnica, e os Educadores em Saúde são avaliados positivamente quando conseguem cumprir com eficácia esta árdua missão, produzindo a compliance.

Considerando criticamente este quadro é que se coloca nossa proposta de Educação Democrática para a área da saúde e da saúde coletiva.

Conceito de Educação

Antes de começarmos a discutir o que estamos entendendo por educação democrática convém assinalar uma importante distinção entre o que estamos entendendo por educação para distingui-la de outras práticas pedagógicas (Cambi, 1999CAMBI, F. História da pedagogia. São Paulo: Unesp, 1999.).

Entendemos que educação é um processo que diz respeito ao desenvolvimento da autonomia; envolve, portanto, necessariamente uma perspectiva ética. Por isso, de nosso ponto de vista, não é jamais uma ação, qualquer que seja ela, sobre o outro; ninguém educa ninguém, como coloca Paulo Freire (Vasconcelos, 2006VASCONCELOS, M. L. M. C. Conceitos de educação em Paulo Freire. Petrópolis: Vozes, 2006.); a educação é uma responsabilidade da pessoa, que se educa em contato com o mundo.

O educado (por si mesmo em contato com o mundo) é aquele, como assinala Castells (2003)CASTELLS, M. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2003., que aprendeu a pensar, a tomar decisões, assumir um ponto de vista próprio (mesmo que essa decisão seja não decidir) com base na informação e no conhecimento disponível.

As pessoas aprendem, ou não, a se educar a partir do seu contato com o mundo e com as mais diversas formas de obter informação e conhecimento nestes contatos.

O educador não é aquele que educa o outro, mas o que permite e facilita o outro se educar.

Uma prática efetivamente educativa consiste, portanto, numa ação deliberada com vistas a promover e facilitar o desenvolvimento da autonomia pensante e decisória nos indivíduos.

A educação assim concebida, não exclui por certo o fato de que os indivíduos podem e com certeza devem ser informados, instruídos, treinados, habilitados, capacitados. Assim tais indivíduos serão capazes de entender e/ou fazer algo (pilotar um avião, marcar um impedimento em futebol corretamente, realizar uma cirurgia, usar corretamente a camisinha para se proteger de DSTs). A aquisição de habilidades é obviamente necessária para a reprodução da vida humana em sociedade.

Mas aí não estará havendo necessariamente educação se entendermos que educação tem a ver com tomada autônoma de decisões, adoção consciente de pontos de vista próprios. Por isso, a passagem de informação é condição necessária, mas não suficiente para que ocorra educação.

Não se trata, contudo, de uma querelle de mots ou "disputa de palavras"; nada impede que se resolva chamar de 'educação' a passagem de informação, a instrução, o treinamento, a capacitação, a formação escolar, etc. O importante é distinguir estes processos daqueles que envolvem a capacidade de tomada autônoma de decisões ou da adoção informada de pontos de vista.

Nossa proposta de educação democrática diz respeito especificamente às situações, circunstâncias, processos e momentos em que está envolvida tomada autônoma de decisões ou adoção de pontos de vista próprios.

Prática da educação democrática

Educação democrática e resgate da diversidade e pluralidade

No contexto acima indicado, a prática da educação democrática envolve, da parte do educador ou da instância educadora, a busca e a apresentação do máximo possível da diversidade e da pluralidade de pontos de vista ou perspectivas envolvidas no tema em pauta, buscando não privilegiar nenhuma delas.

A Educação Democrática está comprometida com a diversidade, com a diferença (Mantoan, 2013MANTOAN, T. E. M. (Org). O desafio das diferenças nas escolas. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.) e com a pluralidade na medida em que importantes pensadores do momento atual (Giddens, 1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.; Castels, 2003CASTELLS, M. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.; Bauman, 1998BAUMAN, Z. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.) consideram tais características como traços definidores da contemporaneidade.

Na educação democrática não há nenhum ponto de vista ou perspectiva que se considere a priori como verdadeira: a verdade não está no conteúdo, mas no processo, na discussão, no diálogo.

Parte-se do suposto de que, a curto, médio ou longo prazo, o resultado da Educação, ou seja, a decisão, a adesão autônoma a uma perspectiva, a adoção voluntária de um ponto de vista, será sempre de responsabilidade do educando e que a decisão final que ele tomar será tanto melhor quanto mais estiver baseada em informação ampla e diversificada.

A apresentação da diversidade e o diferente pelo educador democrático pode se dar de formas distintas: entre outras, pela disponibilização ao interlocutor das diversas perspectivas teóricas envolvidas no tema, referências bibliográficas diversificadas, exemplos ou ilustrações e pela realização de pesquisas para levantamento dos diversos tipos de Representação Social envolvidos com o tema, bem como pela transposição dos resultados para programas educativos.

Educação democrática, pesquisa de Representação Social e Discurso do Sujeito Coletivo

A proposta da Educação Democrática encontra na Teoria da Representação Social (Jodelet, 1989JODELET, D. Représentations sociales: un domaine en expansion. In: ______. Les représentations sociales, Paris: PUF, 1989.) importante base de apoio na medida em que tal perspectiva teórica tem como uma de suas proposituras básicas a presença, em toda formação social, e mais ainda nas contemporâneas, de distintos e variados esquemas ideativos socialmente compartilhados.

A pesquisa de representação social que busca resgatar tais esquemas ideativos é um instrumento muito útil para a educação democrática na medida em que permite que aflore a diversidade de pontos de vista existentes sobre o tema pesquisado, num determinado momento histórico e num determinado espaço sociocultural.

Evidentemente tal pesquisa tem que ser feita de modo a viabilizar o resgate da diversidade e da diferença. Nesse sentido uma série de requisitos devem ser considerados: escolha criteriosa dos stakeholders, ou seja, das populações objeto envolvidas com o tema, definição dos instrumentos adequados de coleta de dados quantitativos e qualitativos, processamento dos dados de representação social com distinção clara entre os pensamentos coletivos obtidos e as interpretações de seus sentidos pelos pesquisadores (Lefevre; Lefevre, 2010aLEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A. M. C. Os três sujeitos do diálogo intradiscursivo nas pesquisas sociais de atribuição de sentido: consequências para a avaliação. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 15-21, 2010a. Disponível em: <http://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/676>. Acesso em: 27 abr. 2015.
http://www.reciis.icict.fiocruz.br/index...
), etc.

O Discurso do Sujeito Coletivo na qualidade de técnica qualiquantitativa construída para o resgate de representações sociais em toda a sua diversidade, por via de depoimentos e outros materiais verbais (Lefevre; Lefevre, 2010bLEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A. M. C. Pesquisa de representação social: um enfoque qualiquantitativo. Brasília, DF: Liberlivro, 2010b.), se coloca como um instrumento viabilizador da Educação Democrática.

Considerando este quadro geral de diversidade, as pesquisas de representação social devem buscar descrever o que, num determinado espaço sociocultural, se pensa sobre um dado tema.

Tal tarefa envolve o resgate dos distintos discursos, que enunciam as diferentes perspectivas, posturas, crenças, opiniões professadas pelo se, isto é pelo conjunto dos atores ou agentes sociais envolvidos na temática em tela.

O resgate via pesquisa empírica destes discursos implica a adoção de metodologias, técnicas, estratégias e instrumentos de natureza tanto qualitativa quanto quantitativa.

Qualitativamente se trata de apresentar e marcar do modo mais detalhado e claro possível às diferenças externas entre os discursos e, internamente, as histórias, conteúdos e argumentos presentes em cada um deles.

O Discurso do Sujeito Coletivo busca preservar a natureza qualitativa e discursiva das Representações Sociais presentes numa dada população na medida em que por via de questões sempre abertas busca viabilizar respostas em que as representações apareçam sob a forma de depoimentos; tais depoimentos são em seguida processados individualmente com vistas à detecção das Ideias Centrais ou posicionamentos neles presentes com suas correspondentes Expressões Chave, ou seja, conteúdos, argumentos e histórias. Cada depoimento é assim caracterizado e os depoimentos que apresentem posturas semanticamente semelhantes são agrupados em categorias maiores. Finalmente, para cada categoria maior, que expressa uma particular opinião ou representação, são elaborados, na primeira pessoa do singular, Discursos do Sujeito Coletivo com os conteúdos e argumentos presentes em cada um dos depoimentos individuais que apresentam sentidos semelhantes, buscando com isso que cada DSC expresse uma "história coletiva" sobre o tema pesquisado.

Quantitativamente se trata como faz o Discurso do Sujeito Coletivo com o auxilio do software Qualiquantisof, de descrever, também detalhadamente, a distribuição destas "histórias coletivas" entre as populações pesquisadas considerando os diversos atributos demográficos e outros, presentes nestas populações.

Um exemplo de educação democrática: o Programa Di@seguinte

O Di@Seguinte11LEFÈVRE, F. et al. Di@Seguinte. Software. São Paulo, 2011. Disponível em: <www.tolteca.com.br>. Acesso em: 08 out. 2013 é um programa educativo multimídia elaborado com os resultados da pesquisa "Gravidez na Adolescência e Pílula do Dia Seguinte. Desvelando seus sentidos entre adolescentes e profissionais de saúde", projeto CNPq 550763/2007-4, desenvolvido durante os anos de 2007 a 2010 em São Paulo junto a 300 jovens, do sexo feminino e do sexo masculino e 70 profissionais de saúde da PMSP responsáveis por programas de saúde destinados a jovens e adolescentes.

A pesquisa visou retratar as Representações Sociais dos jovens e dos profissionais a partir de 6 casos ou historias, cada uma delas relacionada a um aspecto particular da problemática associada à sexualidade e ao uso da pílula do dia seguinte.

As respostas dos jovens e dos profissionais foram processadas com o uso do Qualiquantisoft obtendo-se ao final um expressivo número de Discursos do Sujeito Coletivo (DSCs) que retratam de modo bastante detalhado e diversificado as categorias de opinião desta coletividade sobre o tema em tela.

O multimídia, elaborado com os DSCs dos jovens pesquisados é destinado prioritariamente a jovens e está disponibilizado, a partir de 2011, gratuitamente, no site www.tolteca.com.br

Como exemplo de proposta de educação democrática, o que o programa Di@ Seguinte propõe é uma pedagogia "horizontal" em que a visão do jovem sobre a problemática envolvida com o uso da pílula do dia seguinte aparece ao lado (e não submetida a) da visão sanitária do problema, em diálogo ou confrontação com ela.

Ao final do programa o(a) jovem pode (é um direito seu) continuar com a mesma visão que tinha antes de acessar o programa mesmo que tal visão possa ser considerada equivocada, da perspectiva do pensamento sanitário. Mas mesmo assim ele terá tido acesso a um conjunto plural de informações e nesse sentido o processo educativo estará sendo democrático e ético.

O programa tem início com uma apresentação pelo coordenador da pesquisa, que descreve a origem do programa e seu modo de utilização.

Em seguida abre-se uma tela em que o usuário pode escolher uma das 6 histórias. A história é apresentada (visual e oralmente) e em seguida é apresentada uma versão em "quadrinhos" com fundo musical.

Ao final da versão em quadrinhos pede-se ao usuário que escolha respostas do jovem ou da jovem pesquisado; tais respostas são apresentadas visual e oralmente e ao final da resposta o usuário pode ter acesso ao comentário de cada resposta elaborado por um profissional de saúde, que enuncia sua posição enquanto técnico frente à opção presente na resposta do jovem pesquisado.

Vejamos um exemplo deste diálogo:

Caso 3:

Uma adolescente namorava, faz tempo, um rapaz. Como eles se amavam muito, acabaram não resistindo e indo para a cama. No dia seguinte, a moça ficou muito nervosa achando que poderia ter ficado grávida; ela então contou para as amigas e mesmo para a mãe, que recomendaram que ela tomasse a pílula do dia seguinte. Ela, porém, decidiu não tomar porque era uma pessoa muito religiosa.

Se essa adolescente religiosa fosse pedir conselhos para você o que diria para ela?

Abaixo uma das categorias de resposta das jovens expressa sob a forma de DSC

Ela devia tomar pra ela não ficar grávida, porque vai ver que era um a gravidez indesejada e ainda tava em tempo de parar, né? Então eu diria para ela tomar a pílula porque ela não estaria fazendo um aborto, ela estaria se prevenindo de uma criança indesejada pra ela; por que a pílula, ela não tá matando nenhum ser. Ela tá simplesmente fazendo com que não aconteça a ovulação e você fique grávida. Ela tá simplesmente parando aquele ovulamento que vai gerar um feto realmente, né?Eu aconselharia ela a tomar o remédio pra não pegar gravidez porque ela ia ter que depender da mãe pra ajudar ela a sustentar o filho. Se ela tava namorando ou ela tava ficando a primeira vez com ele, não devia ter ido para a cama com ele, deveria tomar a pílula já que ela se arrependeu, não sabe direito o que ela quer, por causa que ela é nova, nem acabou os estudos às vezes. Então eu daria o conselho pra ela de tomar a pílula e obedecer à mãe dela, pois filho não é brincadeira, não é assim, o que "nós faz" e deixa no mundo. Tem que criar, tem que aprender, conviver com a criança, porque assim, as consequências na vida de uma mulher que passa a ser mãe é totalmente diferente da pessoa solteira, que tem mais liberdade pra sair, pra curtir, pra ter uma vida assim, livre mesmo.

Comentário do profissional de saúde

Vejo que você tem uma visão madura sobre este problema. É importante saber que a contracepção de emergência não é abortiva.Penso também que os adolescentes que tem essa posição poderiam multiplicadores dessa informação. Eu também concordo que não vale a pena sacrificar o futuro de todos os envolvidos. O melhor é que todos possam preparar seu futuro com estudos e uma boa profissão, reunindo condições para constituir sua família.

O programa apresenta também uma série de informações técnicas relativas à pílula do dia seguinte e a seu uso.

O objetivo com o Di@Seguinte foi o de informar o jovem sobre os diversos aspectos relativos à pílula do dia seguinte no quadro da problemática da gravidez na adolescência.

Sua particularidade reside no fato de apresentar aos que acessam o programa, além de um diálogo entre as perspectivas leigas e as técnicas, como exemplificado acima, também as diversas posturas possíveis frente ao uso ou não uso da PDS adotadas pelos jovens e pelas jovens pesquisadas.

Objetiva-se, com esta forma de apresentação, favorecer a identificação do usuário do programa com uma ou outra posição ou postura frente ao tema e o acesso a outras posições possíveis bem como o confronto com a posição técnica do profissional de saúde.

Na proposta da Educação Democrática, o democrático tem a ver basicamente com a democratização da informação, característica própria e distintiva da contemporaneidade na visão, entre outros, de Castells (2003)CASTELLS, M. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. e que o programa Di@Seguinte buscou implementar.

Tal democratização implica que os programas educativos - basicamente, mas não apenas quando se trate de educação de adultos - devem primar pela horizontalidade da informação apresentada querendo isso dizer que todos os pontos de vista sobre o tema em questão são igualmente respeitados e respeitáveis.

Esta horizontalidade informativa está visível no Di@Seguinte na medida em que o método utilizado para o resgate das Representações - o Discurso do Sujeito Coletivo - viabiliza a presença quantitativa das diferentes ideias e posicionamentos sobre a temática da Pílula do Dia Seguinte e, da mesma forma, a qualitativa, presente nos discursos que desdobram e detalham os conteúdos de cada uma das diferentes ideias.

Também a Educação Democrática tem a ver, na esteira do pensamento de Freire (1972)FREIRE, P. Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. com o diálogo entre idéias diferentes, com presença igualmente destacada no Di@Seguinte quando, no programa, se mostra uma "troca de ideias" entre cada uma das posições dos entrevistados e a posição dos profissionais de saúde. Também o diálogo está vigente, ainda que implicitamente, pela simples presença de diferentes posições presentes nos discursos dos entrevistados às quais o usuário do programa pode ter acesso.

A Educação Democrática tem a ver igualmente com a escuta do outro na medida em que o usuário (a) dos programas que viabilizam tal proposta é implicitamente educado para ouvir e respeitar o pensamento discrepante, buscando entender a sua lógica interna. Como coloca Bastos (2009)BASTOS, A. B. B. A escuta psicanalítica e a educação. Psicólogo Informação, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 91-98, 2009.

A escuta não é uma função passiva; ela coloca em movimento o sujeito, fazendo-o falar, deparar-se com seu não saber, com suas dúvidas acerca de si e do mundo. A escuta é ativa, é preciso dar consequências a ela, como ir de encontro à satisfação e ao prazer de descobertas de um novo saber; novo saber que nos posicione perante uma realidade da qual queremos participar e na qual queremos o direito de ter voz ativa. A escuta precisa orientar-se para a singularidade do sujeito, possibilitando que ele se expresse, fale e implique seu desejo (Bastos, 2009BASTOS, A. B. B. A escuta psicanalítica e a educação. Psicólogo Informação, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 91-98, 2009., p.94).

Todos estes atributos da Educação Democrática constituem insumos para uma melhor tomada de decisões, objetivo último das ações educativas de um modo geral e particularmente no campo da saúde.

Obstáculos para a prática da educação democrática

Muitos aspectos da vida das pessoas nas formações sociais contemporâneas impedem ou dificultam a prática de uma educação democrática.

Busca da identidade

A identidade pelo pertencimento a um ou a vários grupos (familiares, religiosos, políticos, esportivos, de trabalho, etc.) é algo que todos buscam e de que todos precisam. A busca de identidade representa um claro obstáculo para a prática de educação democrática na medida em que tende a levar que os "identificados" procurem defender ou propor de modo a-crítico as ideias, crenças, posições de seus grupos de pertencimento, deixando de considerar as demais perspectivas.

Predomínio da razão instrumental

Outro obstáculo para a educação democrática é o domínio da Razão Instrumental em sociedades e culturas atuais, dominadas por uma ética do "como fazer" (...para vencer na vida, para fazer amigos, para conquistar mulheres, para obter orgasmos prolongados, para ser bem sucedido no trabalho, para permanecer saudável ao longo de toda a vida, para ser um pesquisador produtivo, etc.,etc.), já que em tais circunstancias há um claro impedimento para que se considere criticamente as implicações das "soluções" propostas e até mesmo o próprio "problema" (há sempre que "vencer na vida" ou "conquistar mulheres"?).

Hegemonia do conhecimento científico

Vivemos em sociedades completamente fundadas na ciência e na tecnologia ou na razão científico-tecnológica o que faz com que tendamos a considerar subalternas ou equivocadas ou fragmentárias todas as demais racionalidades (místico-religiosas, populares, senso comum, etc.) e mesmo como "irracionalidades" tudo o que remete ao instintual e que supostamente se afasta dos comportamentos ou condutas chamadas "civilizadas".

Neste quadro, derivado da proposta iluminista, educar é entendido justamente como o ato de "iluminar as trevas da ignorância" ou "conduzir à razão" (científico-tecnológica) os "irracionais", as crianças, as mulheres, os africanos, os bárbaros e os demais adultos incultos.

A proposta da Educação Democrática vai na direção inversa desta tendência buscando (re) conduzir para o palco, sem julgamento prévio, todas as racionalidades ou mesmo as supostas "irracionalidades", para que o educando possa livremente fazer a sua opção.

A questão das políticas públicas

A atividade educativa, em muitas circunstâncias, envolve como educadores a atores sociais vinculados aos serviços públicos de saúde, educação, arte, transporte, segurança pública, etc.

Nesta qualidade, a liberdade de ação de tais atores se encontra fortemente limitada na medida em que são vistos e se vêm como meros elos de transmissão ou operadores ou, no melhor dos casos, como adaptadores a contextos locais de decisões já definidas previamente com estatuto de lei, portanto de cumprimento obrigatório.

Para a proposta de Educação Democrática a saída para tal dilema leva a que o educador agente do serviço público deva apresentar a política pública não como algo a imposto ou como objeto de adesão, mas como algo a ser negociado em clima de diálogo, no quadro de um amplo leque de opções a serem igualmente consideradas e colocadas em cena.

A guisa de conclusão

A saúde e a saúde coletiva, porque implicam, numa larga medida, decisões dos indivíduos, colocam em relevo a questão ética da necessária autonomia na tomada de decisões.

As práticas educativas em vigor no campo sanitário, no entanto, consistem no mais das vezes em fazer com que os indivíduos tomem sempre as decisões que a técnica e ciência recomendam.

Este tipo de educação implica o uso de toda sorte de técnicas e estratégias pedagógicas para conseguir da parte do educando cumprimento das recomendações, adesão, consentimento (mesmo o chamado "consentimento informado") deixando de lado a questão da autonomia, com base no (falso) suposto de que comportamentos fundados na ciência sempre são válidos e intrinsecamente éticos.

A proposta da Educação Democrática vai na direção contrária das práticas habituais de educação no campo da saúde na medida em que postula que tomada de decisão deve ser sempre uma opção livre e soberana do sujeito que decide e que a magna tarefa do educador consiste em oferecer todas as condições para que tal liberdade possa ser efetivamente exercida.

Por isso o compromisso desta postura educativa com as ideias de diversidade, autonomia, diferença, pluralidade pilares incontestes da contemporaneidade.

  • BASTOS, A. B. B. A escuta psicanalítica e a educação. Psicólogo Informação, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 91-98, 2009.
  • BAUMAN, Z. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
  • CAMBI, F. História da pedagogia. São Paulo: Unesp, 1999.
  • CASTELLS, M. A galáxia da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
  • FREIRE, P. Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.
  • GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
  • LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A. M. C. Os três sujeitos do diálogo intradiscursivo nas pesquisas sociais de atribuição de sentido: consequências para a avaliação. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 15-21, 2010a. Disponível em: <http://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/676>. Acesso em: 27 abr. 2015.
    » http://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/676
  • LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A. M. C. Pesquisa de representação social: um enfoque qualiquantitativo. Brasília, DF: Liberlivro, 2010b.
  • JODELET, D. Représentations sociales: un domaine en expansion. In: ______. Les représentations sociales, Paris: PUF, 1989.
  • MANTOAN, T. E. M. (Org). O desafio das diferenças nas escolas. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
  • SILVA, W. M. Transformar é preciso: transformações na relação de poder estabelecida entre médico e paciente (um estudo em comunidades virtuais). 2011. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
  • VASCONCELOS, M. L. M. C. Conceitos de educação em Paulo Freire. Petrópolis: Vozes, 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2013
  • Revisado
    07 Fev 2014
  • Aceito
    15 Maio 2014
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