Assistência ao parto de mulheres negras em um hospital do interior do Maranhão, Brasil11Trabalho apresentado ao Curso de Especialização em Saúde da Mulher Negra do Programa de Mestrado em Saúde e Ambiente da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) por Ilka Kassandra Pereira Belfort com orientação de Luís Eduardo Batista.

Black women's childbirth assistance in a countryside hospital in Maranhão, Brazil

Resumo

Há no Brasil poucos estudos que considerem a cor como um possível fator de aumento de vulnerabilidade à perda da saúde, que analisem a morbidade levando em consideração a cor/raça das pessoas, especialmente os que abordam a saúde reprodutiva. Estudos realizados nos últimos anos evidenciaram diferenças importantes entre as taxas de mortalidade materna de mulheres de cor branca, parda e preta. Supõe-se que essas diferenças sejam decorrentes de falta de acesso a serviços de saúde e/ou da pior qualidade da assistência prestada amulheres negras. Há poucos estudos que analisam como se dá o atendimento pré-natal e ao parto considerando a cor das mulheres, especialmente em pequenos municípios, em regiões mais carentes do país. Este estudo objetiva descrever como ocorre a assistência ao ciclo gravídico puerperal de mulheres negras residentes no município de Icatu, no Maranhão. Trata-se de uma pesquisa descritiva exploratória desenvolvida com puérperas que tiveram parto no Hospital Municipal da cidade. Foram entrevistadas 26 mulheres negras que aceitaram participar da pesquisa. A idade variou de 10 a 39 anos, com 50% de 20 a 24 anos. A maioria estava em união estável, 46,2% iniciaram a vida sexual antes de 15 anos, e 53,8%, entre 16 e 20 anos. Constatou-se que a maioria iniciou o pré-natal no primeiro trimestre e teve seis consultas ou mais durante o acompanhamento. Todas as mulheres de cor preta e a maioria das de cor parda tiveram anemia ferropriva no período gestacional. Elas gostariam de ser escutadas na hora do parto e de receberem mais atenção, com maior acolhimento.

Palavras-chave:
Saúde Reprodutiva; Racismo; Equidade em Saúde; Saúde da Mulher; Serviços de Saúde

Abstract

In Brazil, there is a limited number of studies that consider color as a possible factor of increased vulnerability of health losing and analyze morbidity regarding the color/race of the people, especially those that address reproductive health. Studies conducted in recent years have highlighted important differences between the rates of maternal mortality in white, mulatto and black women. These differences are likely a result of the lack of access to health and/or poorer quality of care services provided for black women. There are few studies that analyze prenatal care and childbirth considering the color of women, especially in small municipalities in the poorest regions of the country. This study aims to describe the assistance in puerperal cycle of pregnancy of black women residing in the city of Icatu, Maranhão. This is an exploratory and descriptive study developed with black women who gave birth at the city's hospital. Twenty-six women who agreed to participate in the research were interviewed. Their age ranged from 10 to 39 years, with 50% with 20-24 years. Most women were in a stable relationship, 46.2% reported sexual initiation before 15 years and 53.8% between 16 and 20 years. We found that the majority began prenatal care in the first quarter of pregnancy period and had six or more visits during its course. All the black women and most of the mulatto women had iron deficiency anemia during pregnancy. They would like to receive a more proper, caring and welcoming treatment in childbirth.

Keywords:
Reproductive Health; Racism; Equity in Health; Black Women's Health; Health Care

Introdução

No Brasil, nos últimos anos, estudos evidenciaram que as taxas de mortalidade materna entre as mulheres negras são sempre maiores do que entre as brancas. Martins (2006)MARTINS, A. L. Mortalidade materna de mulheres negras no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 11, p. 2473-2479, 2006., analisando a mortalidade materna no período de 2000 a 2002 do estado do Paraná, constatou que o risco relativo entre mulheres de cor preta, parda e branca foi 8,2, 4,3 e 1,1, respectivamente.

Teixeira et al. (2012)TEIXEIRA, N. Z. F. et al. Mortalidade materna e sua interface com a raça em Mato Grosso. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 12, n. 1, 2012. apontaram que as mulheres de cor preta e parda tinham 5,13 e 1,68 vezes mais chances, respectivamente, de morrer por morte materna quando comparadas às mulheres brancas no estado de Mato Grosso no período de 2000 a 2006. Também identificaram que a maioria das mortes relacionava-se a transtornos hipertensivos ocorridos na gravidez, parto e puerpério.

No estado de São Paulo, Batista (2005)BATISTA, L. E. Mortalidade da população negra adulta no estado de São Paulo. In: BATISTA, L. E.; KALCKMANN, S. (Org.). Seminário saúde da população negra estado de São Paulo 2004. São Paulo: Instituto de Saúde, 2005. p. 117-128. encontrou resultados similares; verificou que dos 349 óbitos maternos ocorridos no ano de 1999 (47,81 por 100 mil nascidos vivos), predominaram aqueles relacionados a causas obstétricas diretas. O autor constatou que a mortalidade materna das mulheres pretas era 6,4 vezes maior do que das brancas.

Supõe-se que tais diferenças sejam decorrentes de falta de acesso a serviços de saúde e/ou a pior qualidade da assistência prestada às mulheres negras, pois quando se compara o número de consultas de pré-natal realizadas, observa-se similaridade. Segundo Batista (2010)BATISTA, L. E. Introdução. In: KALCKMANN, S. et al. (Org.) Nascer com equidade. São Paulo: Instituto de Saúde, 2010. p. 21-25., há baixa produção de estudos que qualifiquem essas consultas segundo cor.

Nesse sentido, este estudo tem como proposta contribuir para a ampliação dos conhecimentos sobre essas questões.

Objetivos

Descrever a assistência prestada às mulheres durante internação para o parto no município de Icatu (MA).

Metodologia

Trata-se de um estudo transversal descritivo e exploratório sobre a assistência ao parto de mulheres internadas no Hospital de Icatu, Maranhão. Foram entrevistadas 26 mulheres que se internaram no Hospital Municipal de Icatu (HMI) para buscar assistência ao parto.

Há poucos estudos que analisam como se dá o atendimento pré-natal e o parto considerando a cor das mulheres, especialmente em um dos estados mais pobres da Federação, em um município com alta proporção de população rural (70%) e com 38 comunidades remanescentes de quilombos.

As entrevistadas foram selecionadas às segundas, terças e quartas-feiras, no período de 1 a 31 de janeiro de 2011, de acordo com a ordem de chegada ao HMI. A amostra foi formada por mulheres que aceitaram participar da pesquisa mediante esclarecimentos sobre a proposta e assinatura do termo de consentimento informado.

As entrevistas foram realizadas pela primeira autora deste artigo, utilizando um formulário semiestruturado contendo perguntas fechadas e abertas sobre aspectos que permitiram caracterizar as mulheres por cor, idade, escolaridade, atividade profissional, situação conjugal e perfil socioeconômico. Na sequência, perguntou-se sobre as intercorrências na gestação e no parto. Finalizando a entrevista, sugestões para melhoria do pré-natal e do parto foram levantadas. A pesquisa foi iniciada após a autorização da Secretaria Municipal de Saúde de Icatu (MA).

Os dados foram analisados utilizando o programa Microsoft Office Excel 2010.

Local do estudo

Icatu é um município do estado do Maranhão, localizado na microrregião de Rosário, no norte do estado. Sua população em 2010 era de 25.145 habitantes, com 68,9% residindo na zona rural e com 38 comunidades remanescentes de quilombos. É um município pobre com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) municipal de 0,546. Tem uma superfície de 1.547 km² (IBGE, 2010IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010. Disponível em: <www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=210510&search=maranhao|icatu|infograficos:-informacoes-completas>. Acesso em: 24 mar. 2014.
www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php...
). A vila de Icatu, inicialmente chamada de Arraial de Santa Maria de Guaxenduba, denominação dada por seu fundador, Jerônimo d'Albuquerque Maranhão, adquiriu categoria de cidade em 1924, quando passou a ser denominada de Icatu.

A saúde de Icatu está referenciada por nove unidades básicas de saúde, com nove equipes de saúde da família e um hospital municipal, que possui 38 leitos gerais e 6 leitos para atendimentos obstétricos. Conta com 47 trabalhadores da saúde em seu quadro de pessoal. O horário de funcionamento é de 24 horas em regime de plantão.

Em 2011, o número de nascidos vivos residentes em Icatu foi de 394. No município nasceram 305 crianças: 224 (73,4%) no HMI, 79 (25,9%) em domicílios, e 2 (0,7%) em unidades do Programa de Saúde da Família. Ocorreram dois óbitos em crianças de 0 a 6 dias e um óbito materno.

Dos nascidos no município, segundo o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), 5 eram brancos, 5 de cor preta, 290 de cor parda, 1 de cor amarela e 4 com a informação ignorada22Disponível em <http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0205>. Acesso em jun. 2014..

Agregando os de cor preta e parda, verifica-se que 295 dos recém-nascidos eram negros, ou seja, 97,4% do total.

Na Tabela 1 estão reunidas as informações sobre o quesito cor dos nascidos vivos do município. Observa-se que 18,6% dos RN negros (cor preta + cor parda) nasceram fora do município, enquanto para os de cor branca essa proporção foi de 54,5%. Segundo o DataSUS, 29,5% dos bebês nascidos no município em 2011 tinham mãe com idade menor a 20 anos, proporção um pouco acima da proporção estadual, que foi de 25,96%; na região Nordeste, essa proporção foi de 22,1%. A menor proporção no Brasil ocorreu no Sudeste: 15,9%.

Tabela 1
Distribuição dos nascidos vivos do município de Icatu, segundo cor (2011)

Em Icatu, o programa de saúde da mulher teve início em 2009, com capacitação de profissionais de saúde para coletar material para análise e diagnóstico de doenças transmissíveis, câncer de colo e de mama. Houve esforços no período para a adoção de pré-natal, parto e puerpério humanizados. A partir dessas capacitações, kits para os recém-nascidos contendo fraldas, roupas, entre outros materiais necessários para o primeiro mês de vida começaram a ser distribuídos. Os recém-nascidos recebem vacinação contra hepatite B e BCG ainda no hospital.

Resultados

Todas as 26 mulheres entrevistadas eram negras; 65,4% de cor parda e 34,6% se consideram de cor preta. No período do estudo não houve internação para o parto de nenhuma mulher branca, o que limitou a análise comparativa por cor. A idade variou de 10 a 39 anos; 50% das mães tinham idade entre 20 a 24 anos, e 23%, de 15 a 19 anos. Quanto à escolaridade, 50% possuíam nível fundamental completo, e 46,2%, ensino médio completo.

Do total das mulheres entrevistadas, 96,2% tinham renda per capita menor que um salário mínimo.

Quanto à ocupação remunerada, 80,8% eram lavradoras, uma mulher trabalhava como marisqueira, e uma é doméstica. Em relação à situação conjugal, 53,8% estavam casadas ou em união consensual, enquanto 46,2% disseram ser solteiras.

A menarca ocorreu entre 10 e 12 anos para 50% das entrevistadas e entre 13 a 15 para 17,3%. Do total das entrevistadas, 53,8% afirmaram ter iniciado sua vida sexual entre os 16 e 20 anos, e 46,2%, antes dos 15 anos (Tabela 2).

Tabela 2
Distribuição de variáveis selecionadas de puérperas negras do Município de Icatu (2011)

A iniciação sexual desse grupo ocorreu mais precocemente do que a média nacional. Na Pesquisa nacional de demografia e saúde (PNDS) de 2006, a idade média de início da vida sexual foi de 17,9 anos para o total de mulheres brasileiras em idade reprodutiva. Na região Nordeste, essa média foi de 17,7 anos. Dentre as mulheres brancas, a média foi de 18,1 anos; dentre as negras, 17,7 anos. Observou-se que, quanto maior a escolaridade da mulher, mais tardia era sua iniciação sexual.

De acordo com Freitas e Botega (2002)FREITAS, G. V. S. de.; BOTEGA, N. J. Gravidez na adolescência: prevalência, ansiedade e ideação suicida. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 48, n. 3, 2002. , hoje uma jovem inicia sua vida reprodutiva entre 15 e 20 anos. Estudos também têm sugerido que a gravidez na adolescência interfere no desenvolvimento psíquico, social e econômico das jovens.

Segundo a PNDS de 2006: "entre 15-19 anos, em 2006, 33% das mulheres já haviam tido relações sexuais, valor que representa o triplo do ocorrido em 1996" (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Pesquisa nacional de demografia e saúde da criança e da Mulher: PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília, DF, 2009.).

Todas as entrevistadas tiveram a primeira gestação antes dos 20 anos, 27% delas antes dos 15 anos (Tabela 3)

Tabela 3
Distribuição de variáveis da vida reprodutiva entre puérperas negras do município de Icatu (2011)

A alta porcentagem de gravidez na adolescência indica um desafio para os serviços de atenção básica de Icatu. É fundamental entender por que elas ocorrem. Elas desejam engravidar? Elas recebem orientações e insumos para poder evitar a gravidez se desejarem? Há um trabalho integrado com as escolas? Deve-se também considerar os fatores culturais da região.

Dentre as mulheres entrevistadas, observou-se que 15,3% são primíparas; 23,1% estão na segunda gestação e 34,6% já tiveram quatro gestações ou mais.

Das entrevistadas, 61,5% começaram o pré-natal no primeiro trimestre, resultado promissor, pois quanto mais cedo se iniciar o pré-natal, maior será a eficácia do tratamento, reduzindo o déficit de mortalidade materna e neonatal, principalmente com disponibilização de exames, palestras, imunização, consultas de enfermagem, médicas etc., além de diminuir as dúvidas surgidas nesse período pelas mulheres.

De acordo com dados da PNDS de 2006 (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Pesquisa nacional de demografia e saúde da criança e da Mulher: PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília, DF, 2009.), o acesso à assistência pré-natal aumentou bastante, pois a porcentagem de mães que não realizaram pelo menos uma consulta ao longo da gestação diminuiu de 14% para 1% entre 1996 e 2006. Essa redução foi igualmente expressiva nos contextos urbano e rural. A PNDS 2006 destaca que 77% das mães realizaram no mínimo seis consultas de pré-natal, como recomenda o Ministério da Saúde desde 2000.

A maioria das puérperas entrevistadas (69,2%) teve 6 ou mais consultas durante o pré-natal (Tabela 3). Houve inegavelmente um avanço na qualidade do cuidado, pois apesar de elas serem, na maioria, lavradoras e trabalharem de dia, conseguiram realizar mais de seis consultas. Nesse contexto, acredita-se que houve tempo suficiente para orientações acerca dos cuidados e das possíveis intercorrências durante a gravidez, solicitações de exames, assim como início de tratamento, se necessário. Em pesquisa realizada por Coimbra et al. (2003)COIMBRA L. C. et al. Fatores associados à inadequação do uso da assistência pré-natal. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 456-462, 2003. com gestantes em São Luís (MA), 62,9% das puérperas entrevistadas fizeram cinco ou mais consultas pré-natais, resultado similar ao encontrado em Icatu.

As orientações específicas para o pré-natal contidas na Portaria 569/GM, de 1º de junho de 2000, definem que o atendimento deve ser iniciado até o quarto mês da gestação e ter concentração mínima de seis consultas. Define ainda um conjunto de exames laboratoriais e procedimentos requeridos para cumprir os objetivos da atenção qualificada e humanizada às gestantes (Brasil, 2000BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 569, de 1º de junho de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 jun. 2000. Seção 1, p. 4-6.).

Todas as entrevistadas tiveram parto vaginal.

Gráfico 1
Intercorrências e queixas referidas durante gestação segundo cor das puérperas do município de Icatu (2011)

Indagadas sobre as intercorrências durante a gestação, 100% das pretas e 76% das pardas alegaram anemia ferropriva durante o período gestacional; 56% das mulheres de cor preta e 41% das pardas alegaram vômitos em excesso. A hipertensão arterial foi referida por 11% das pretas e 6% das pardas. 33% das pretas constataram anemia falciforme. Os dados são maiores entre as pardas somente na infecção urinária (12%). As portadoras de anemia falciforme já sabiam que tinham a patologia antes da gravidez, faziam acompanhamento em São Luís e sabiam que não podiam tomar sulfato ferroso. Quando foram para a unidade básica de saúde (UBS) fazer o pré-natal, era a primeira coisa que falavam para equipe de saúde.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a deficiência de ferro pode afetar: o desempenho cognitivo, comportamental e o crescimento físico de crianças, a imunidade e morbidade diante de infecções em todos os grupos etários, o uso das fontes de energia dos músculos e, desse modo, a capacidade física e o desempenho no trabalho de adolescentes e adultos. De acordo com a PNDS de 2006, nas mulheres, a prevalência de anemia foi igual a 29,4%, atingindo quase 40% na região Nordeste. Mulheres negras apresentaram maior prevalência de anemia (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Pesquisa nacional de demografia e saúde da criança e da Mulher: PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília, DF, 2009.).

Situação da residência, anos de estudo e idade não se associaram à presença de anemia em mulheres em idade reprodutiva. Durante a gravidez, a deficiência de ferro pode aumentar riscos de morbidade materna e neonatal e contribuir para a mortalidade infantil. O MS disponibiliza, pelo programa de suplementação de ferro, medicações necessárias para controlar a anemia, porém só isso não é animador, visto que a maioria das mulheres é lavradora e tem renda mínima menor que um salário mínimo (Tabela 2). O município deveria ter políticas públicas afirmativas e específicas para desenvolver habilidades que ampliassem as fontes de renda, diferente do que acontece hoje, que são programas lançados de forma universal, não observando a cultura de cada local.

No que diz respeito à anemia falciforme, ficamos surpresos, pois todas as mulheres fizeram pré-natal na UBS, e não numa unidade de referência, ou seja, onde tivessem suporte maior para exames e cuidados necessários durante a gestação. A anemia falciforme é uma patologia que atinge prevalentemente a população negra, sendo umas das doenças hereditárias mais comuns no Brasil. Durante a gravidez, as crises dolorosas podem se tornar mais frequentes, exigindo procedimentos específicos. Sendo assim, deveria haver um reforço de esclarecimentos e informações sobre anemia falciforme para as equipes de saúde da família acerca do problema, porque o acesso aos serviços de referência no Maranhão pode ser muito difícil.

A hipertensão arterial constitui-se em uma das mais importantes complicações do ciclo gravídico-puerperal, por apresentar alto risco de morbidade e mortalidade para o binômio mãe-filho. Ela é mais frequente na população negra, começando mais cedo do que nos indivíduos brancos, além de apresentar uma evolução mais grave. No Brasil, as síndromes causadas pela hipertensão são a principal causa de morte materna, sendo responsável por um terço dos óbitos.

Tabela 4
Distribuição do conteúdo das orientações recebidas durante o pré-natal por puérperas do município de Icatu (2011)

Quando indagadas sobre as orientações recebidas no pré-natal, 46,2% das entrevistadas alegaram alimentação saudável; 23,1%, necessidade de atividade física, e 23,1%, medicações. Elas não lembram ou não receberam orientações sobre anemia ferropriva, tampouco sobre anemia falciforme, que exigem cuidados especiais para manutenção da saúde. Outro fato relevante é que, das entrevistadas, somente uma puérpera citou a dieta hipossódica, elemento necessário para o não desenvolvimento de hipertensão arterial. Quando indagadas sobre o que seria uma alimentação saudável, elas não souberam responder, o que demonstra que a comunicação entre os profissionais de saúde e as usuárias não é eficaz. Sendo assim, precisamos adequar a forma de abordagem para um melhor entendimento e fixação das prioridades para gestantes no pré-natal, de acordo com a realidade do município. Dados similares foram observados em estudo realizado em maternidades do Rio de Janeiro, especialmente entre as entrevistadas nas maternidades públicas, ou seja, falta às gestantes e puérperas informações básicas que poderiam ampliar a segurança para uma gestação e parto mais seguros e tranquilos (Gama et al., 2009GAMA, A. S. et al. Representações e experiências de mulheres sobre a assistência ao parto. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 11, p. 2480-2488, 2009.). Segundo Pereira (2004)PEREIRA, W. R. Poder, violência e dominação simbólicas nos serviços públicos de saúde. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 391-400, 2004., na relação entre as mulheres e os serviços de saúde há nitidamente a ocorrência de "não informação" (informação negada, fragmentada, confusa), mantendo a assimetria da relação.

Gráfico 2
Sugestão das puérperas para mudanças no atendimento hospitalar no município de Icatu (2011)

Chama atenção que 12 mulheres tenham se abstido de sugerir mudanças ou de expressar alguma queixa, tendo apenas 14 entrevistadas referido sugestões para maior adequação da assistência ao parto no HMI. A maioria (5) gostaria de ter recebido melhor atendimento hospitalar na hora do parto; gostariam de mais atenção e de ser escutada. Algumas falas são exemplares:

Eles não prestam atenção no que a gente fala, sentia dor, e ninguém vinha, deviam fazer um curso. (MAB, 20 anos, cor preta, 3 filhos)

Fiquei com raiva, a gente chama, eles dizem que vão chamar o médico, e ninguém aparece. (JSS, 23 anos, cor preta, 4 filhos)

O hospital é ruim, só tem um médico. Os aparelhos são sujos e velhos, mudava tudo isso. Cheguei aqui com dor, me deixaram esperando aqui na sala, quase tenho neném aqui. A moça me tratou mal. Muito feio aqui. A doutora mora perto de minha casa, ela trabalha aqui, me arrumou a vaga, porque senão teria o neném em casa, mas acho que ia ser até melhor. (PS, 26 anos, cor parda, 3 filhos)

Seria melhor se tivesse mais gente trabalhando. (SSS, 22 anos, cor parda, 1 filho)

É interessante perceber que predominaram críticas ou sugestões de multíparas. Considerando esses resultados, conclui-se que os profissionais de saúde, apesar de treinados, não estão totalmente motivados para desenvolver suas habilidades com presteza e humanização. Vale ressaltar que é necessário cumprir as normas dos manuais técnicos de acordo com as rotinas do MS, inclusive o acolhimento dessas mulheres, que é de suma importância, atendendo às necessidades de cada uma.

Constatou-se que, apesar de falarem de forma diferente, o que todas desejam é ser tratadas melhor, com dignidade. Não adianta o pré-natal ser realizado de acordo com o que preconiza o MS, com o mínimo de seis consultas no pré-natal, disponibilização de exames, referência e contrarreferência eficaz, se as mulheres não perceberam/lembraram que receberam orientações, e na hora do nascimento, momento importante para a gestante, serem tratadas com indiferença (Brasil, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política nacional de humanização: atenção básica. Brasília, DF, 2010.).

Considerações finais

Observou-se que as mulheres iniciaram a vida sexual antes dos 15 anos e tiveram a primeira gravidez antes dos 20 anos, portanto é importante que seja realizado um trabalho intenso com as adolescentes, pois a maioria dos programas do MS é destinado a crianças ou adultos, ficando essa parcela da sociedade aquém do que realmente precisa. Deve-se considerar que os serviços básicos de saúde devem buscar parcerias com instituições acessíveis (como escolas) e desenvolver orientações também para os pais e mães dos jovens.

Acredita-se que, com o aumento da cobertura das equipes de saúde da família no Maranhão, esse quadro poderá mudar, e as mulheres serão mais bem informadas e capacitadas quanto ao uso dos métodos contraceptivos, do sexo seguro, da importância do pré-natal e do puerpério acompanhado.

Um dos desafios a serem vencidos na atenção integral à saúde das mulheres negras, que pressupõe que os direitos sexuais e os direitos reprodutivos sejam compreendidos como direitos humanos, é levar em conta a diversidade e as necessidades específicas da população feminina. Este estudo mostrou algumas características da assistência pré-natal para as negras e apontou sugestões referidas pelas próprias mulheres para um atendimento de qualidade na hora do parto hospitalar. Não é fácil modificar esse cenário; a educação em saúde para a população e para os profissionais de saúde deve ser exercida rotineiramente.

Com a inserção do novo modelo assistencial da Estratégia Saúde da Família (ESF) e dos agentes comunitários da saúde (ACS), espera-se uma melhora significativa nos programas de saúde. É um exercício cotidiano para que a equidade seja incorporada na assistência. O vínculo a ser criado entre a unidade de saúde e a comunidade é primordial, sendo adquirido somente com esforços, principalmente dos ACS. Percebe-se a importância de campanhas educativas para aceitar esse modelo assistencial que está sendo inserido, que valorize as ações básicas de saúde e que promova uma interação mais eficaz, com as características sociais e econômicas da população.

A amostra estudada (26 puérperas negras) pertence à área abrangente de EACS. Justifica-se que 69,23% fizeram mais de seis consultas. Fato relevante, que deveria ser visualizado pelos profissionais de saúde, pois há tempo suficiente para todas as orientações necessárias para desenvolver uma gestação tranquila e de qualidade.

Outro desafio a ser explorado é a sensibilização dos profissionais acerca das patologias que podem ser desenvolvidas pelas gestantes, em especial as negras, pois verificamos que 80,8% são lavradoras, desenvolvem um trabalho árduo, que demanda força e disponibilidade diurna, dificultando o acesso aos serviços de saúde. A alta prevalência de anemia falciforme indica ser necessário um planejamento de ações de saúde da mulher que, além de ter enfoque de gênero, incorpore também as questões relativas à raça/etnia e seguimento do recém-nascido.

As puérperas solicitam maior acolhimento e desejam ser tratadas com os princípios de humanização e integralidade da atenção à pessoa.

É exemplar verificar que em Icatu, em dois anos, houve uma mudança no perfil de nascimento. Em 2009, do total de 1.100 nascidos vivos de mães residentes no município, 41,5% nasceram no HMI, enquanto em 2011, dos 394 nascidos vivos de mães residentes no município, 56,8% nasceram no HMI. Assim, houve uma redução importante no número de nascidos vivos residentes e maior resolutividade no próprio município.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2014
  • Aceito
    03 Jul 2014
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br