Vivências de familiares no cuidado à pessoa idosa hospitalizada: do visível ao invisível11Estudo financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

Experiences of hospitalized elderly’s family caregivers: visibility to the invisible

Resumo

Estudo baseado na fenomenologia merleau-pontyana, que objetivou desvelar vivências de familiares cuidadores no acompanhamento da pessoa idosa hospitalizada. Foi realizado em hospital no interior da Bahia, Brasil, em 2014, com cinco participantes, sob a forma de rodas de conversa e em setores cujo fluxo de assistência a pessoas idosas é maior. As descrições vivenciais foram gravadas, transcritas e submetidas à analítica da ambiguidade. A compreensão das vivências resultou na seguinte categoria: o visível e o invisível em espaço de cuidado. O estudo mostrou que os familiares acompanhantes vivenciam sofrimentos ambíguos, classificados em três dimensões: coexistência entre familiar acompanhante e idoso hospitalizado, o dever legal e moral no cuidado ao idoso hospitalizado, e o des(cuido) no serviço hospitalar. A “visibilidade” do familiar acompanhante, para além das demandas de cuidado à pessoa idosa, requer da equipe multiprofissional de saúde a ressignificação do familiar no espaço do hospital, considerando a lógica da construção de contextos de intersubjetividade, o que permitirá a criação de estratégias para efetivação e ampliação do cuidado humanizado.

Palavras-chave:
Idoso; Hospitalização; Cuidadores; Relações familiares; Filosofia em Enfermagem

Abstract

This study was based on Merleau-Ponty phenomenology, and aimed to reveal experiences of family caregivers monitoring hospitalized elderly. It was performed in a hospital in Bahia, Brazil, in 2014, with five participants, who were analyzed through conversation circles, in hospital sectors where elderly assistance flow is greater. Experiential descriptions were recorded, transcribed and submitted to analytical ambiguity. The understanding of experiences resulted in the category ‘visible and invisible in care space’. This paper showed that family caregivers experience ambiguous suffering, classified into three dimensions: coexistence of accompanying family and elderly hospitalized; legal and moral duty in hospitalized elderly care; and (dis)regard of hospital service. Family member’s “visibility”, beyond elderly care, demands of multidisciplinary health team the redefinition of family in the hospital space, considering the logic of building intersubjectivity contexts, which will allow the creation of strategies for effectivity and expansion of humanized care.

Keywords:
Elderly; Hospitalization; Caregivers; Family Relations; Nursing Philosophy

Introdução

Atualmente, o processo de envelhecimento é uma realidade vivenciada em todo o mundo, incluindo o Brasil, que exibe um perfil populacional do tipo em transição demográfica, em que o número de pessoas idosas cresce em ritmo maior do que o número de pessoas que nascem (Veras, 2009VERAS, R. Envelhecimento populacional contemporâneo: demandas, desafios e inovações. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 43, n. 3, p. 548-554, 2009.). Nos últimos anos, houve aumento de mais de seis milhões no número de idosos, sendo que o percentual dessa população corresponde hoje a 11,3% do total de brasileiros (IBGE, 2011IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sinopse do censo demográfico 2010. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2ju6aeR > Acesso em: 12 fev. 2015.
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).

Nessa perspectiva, a saúde no processo de envelhecer humano revela-se como importante foco de atenção, uma vez que os riscos para o desenvolvimento de morbidades, quadros de limitações e dependências aumentam com o passar dos anos. Isso porque o envelhecer ainda é caracterizado pelo surgimento de fragilidades, doenças crônico-degenerativas e descompensações, que podem gerar episódios agudos e levar a frequentes hospitalizações (Macinko et al., 2011MACINKO, J. et al. Predictors of 10-year hospital use in a community-dwelling population of Brazilian elderly: the Bambuí cohort study of aging. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, p. 336-344, 2011. Suplemento 3.).

Em função dessas características, evidencia-se o aumento progressivo da demanda de idosos por leitos hospitalares e em instituições de longa permanência, sendo que, atualmente, as pessoas com idade igual ou superior a 60 anos são responsáveis por 23% do total das internações hospitalares que ocorrem no Brasil (Brasil, 2013aBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Morbidade hospitalar do SUS: por local de internação no ano de 2013. 2013a. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2f7VbAm >. Acesso em: 18 jun. 2013.
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). Durante o período de hospitalização, é importante considerarmos o perfil da pessoa idosa internada, observando seus hábitos, costumes e crenças, para oferecer-lhes cuidados humanizados, acolhimento e um ambiente que transmita a segurança do contexto familiar.

Nesse sentido, a presença de um familiar acompanhante pode tornar esse processo menos difícil e traumático, colaborando para que a pessoa idosa doente supere as modificações ocorridas em sua rotina, as limitações e os impactos psicoemocionais advindos da hospitalização. A família caracteriza-se como principal suporte informal à pessoa idosa, e esse suporte contribui, ainda, com as atividades cuidativas da equipe de saúde para a recuperação e alta do idoso (Rocha et al., 2014ROCHA, L. S. et al. O cuidado de si de idosos que convivem com câncer em tratamento ambulatorial. Texto & Contexto Enfermagem , Florianópolis, v. 23, n. 1, p. 29-37, 2014.). Convém destacar que o familiar acompanhante, normalmente, é também o cuidador principal no domicílio, aquele que assume a total ou a maior parte das ações cuidativas voltadas para a pessoa idosa (Cherchinaro; Ferreira, 2015CHERNICHARO, I. M.; FERREIRA, M. A. Sentidos do cuidado com o idoso hospitalizado na perspectiva dos acompanhantes. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 80-85, 2015.).

O cuidado sempre envolve um importante comprometimento de alguém para com outro e abrange mais que um momento de atenção e de zelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro e, desse modo, faz parte da natureza e da constituição do próprio ser humano. Se não for cuidado desde o nascimento até a morte, este definha, perde sentido e morre (Boff, 2013BOFF, L. Saber cuidar: ética do homem: compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2013.).

Estudos que tratam de familiares cuidadores com foco na gerontologia (Rocha et al., 2011ROCHA F. C. V. et al. Cuidador familiar: dificuldades para cuidar do idoso no domicílio. Revista de Pesquisa: Cuidado é Fundamental, Rio de Janeiro, v. 3, p. 18-27, 2011. Suplemento.; Pedreira; Oliveira, 2012PEDREIRA, L. C.; OLIVEIRA, A. M. S. Cuidadores de idosos dependentes no domicílio: mudanças nas relações familiares. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 65, n. 5, p. 730-736, 2012.) normalmente versam sobre concepções acerca da experiência de cuidado que convergem para estereótipos e consequente emissão de juízo de valor sobre as vivências. Dentre estes, destaca-se a do imaginário popular, de que tornar-se familiar cuidador de uma pessoa idosa com fragilidades e dependências, especialmente em situações de hospitalização, constitui-se como experiência que produz conflitos na vida de quem cuida, com sobrecarga e impactos físicos, emocionais e sociais (Rocha et al., 2011ROCHA F. C. V. et al. Cuidador familiar: dificuldades para cuidar do idoso no domicílio. Revista de Pesquisa: Cuidado é Fundamental, Rio de Janeiro, v. 3, p. 18-27, 2011. Suplemento.).

Entretanto, refletindo sob a ótica da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, compreendemos que ser familiar acompanhante de uma pessoa idosa hospitalizada implica a vivência de experiências ambíguas, ou seja, em um mesmo cuidado é possível experimentar sentimentos até então categorizados como “negativos” ou “positivos”, “bons” ou “ruins”, o que repercute fortemente na experiência da “universalidade do sentir”, ou coexistência, como trata Merleau-Ponty (Sena; Gonçalves, 2008SENA, E. L. S.; GONÇALVES, L. H. T. Vivências de familiares cuidadores de pessoas idosas com doença de Alzheimer: perspectiva da filosofia de Merleau-Ponty. Texto & Contexto Enfermagem , Florianópolis, v. 17, n. 2, p. 232-240, 2008.; Merleau-Ponty, 2012MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.; Carvalho et al., 2011CARVALHO, P. A. L. et al. O sentimento de coexistência e os cuidados à pessoa em sofrimento mental. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 10, n. 4, p. 658-665, 2011.).

A pesquisa justifica-se pela necessidade da retomada de discussões acerca do tema familiar cuidador, com novo aporte teórico-filosófico, que convergirá para a desconstrução de conceitos enraizados na sociedade, bem como para a condução de uma nova maneira de pensar, perceber e acolher as vivências do familiar cuidador acompanhante. A questão norteadora do estudo, considerando a necessidade de reflexões filosóficas que contemplassem o vivido, foi definida como: “Quais as vivências de familiares cuidadores no acompanhamento da pessoa idosa hospitalizada?”. O objetivo delineado, portanto, consistiu em desvelar as vivências de familiares cuidadores no acompanhamento da pessoa idosa hospitalizada.

Método

O estudo se fundamenta na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, abordagem que não se ocupa em explicar os fatos, mas, em compreender o fenômeno que se desvela e, desse modo, a produção do conhecimento é concebida como resultado da relação dialógica, da intersubjetividade (Sena et al., 2011SENA, E. L. S et al. A intersubjetividade do cuidar e o conhecimento na perspectiva fenomenológica. Revista Rene, Fortaleza, v. 12, n. 1, p. 181-188, 2011.; Merleau-Ponty, 2011MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.).

A pesquisa foi desenvolvida em um hospital regional de grande porte, que possui mais de duzentos leitos operacionais, no município de Jequié, interior da Bahia, Brasil. Para contemplar o objetivo do estudo, utilizamos as Clínicas Médica (CM) e Neurológica (CN), setores do hospital cujo fluxo de assistência a pessoas idosas é maior. Os participantes foram cinco familiares cuidadores acompanhantes de pessoas idosas hospitalizadas, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e que atenderam ao critério de inclusão: ser o cuidador principal de uma pessoa idosa internada há no mínimo sete dias.

Em virtude da natureza do estudo, a quantidade dos participantes não é o mais relevante, mas, sim, a profundidade da discussão do que se desvela. Essa característica permitirá, inclusive, fazer generalizações, uma vez que se busca a descrição da natureza sensível, dimensão que configura o igual entre os seres humanos. Em outras palavras, a pesquisa fenomenológica atenta para a coexistência, pois consideramos que o mundo não existe só para nós, mas para tudo que nele acena, e, desse modo, o mundo dos sentimentos é potencialmente vivido por todos (Merleau-Ponty, 2012MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.).

Para a produção das descrições vivenciais utilizamos a roda de conversa, recurso metodológico que admite as interações como rico material de pesquisa e prioriza discussões em torno de um tema, de acordo com os objetivos propostos (Costa et al., 2015COSTA, R. R. O. et al. As rodas de conversas como espaço de cuidado e promoção da saúde mental. Revista de Atenção à Saúde, São Caetano do Sul, v. 13, n. 43, p. 30-36, 2015.). A partir do diálogo, os participantes podem posicionar-se e influenciar o outro a falar e ouvir, o que caracteriza a intersubjetividade, inerente aos estudos fenomenológicos. Logo, ao mesmo tempo em que os participantes retomam suas vivências como cuidadores da pessoa idosa hospitalizada, compreendem-nas por meio do pensar compartilhado, o que possibilita a ressignificação das experiências vividas (Merleau-Ponty, 2012MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.).

As rodas de conversa foram conduzidas com o auxílio de roteiro previamente desenvolvido e ocorreram em quatro momentos: 1) acolhimento e interação entre as participantes; 2) exibição de vídeo com reflexão; 3) abertura da roda; 4) encerramento. Duas rodas foram realizadas no mês de março de 2014, com duração média de uma hora e trinta minutos cada. O gravador digital foi utilizado para registro das informações.

As descrições vivenciais foram submetidas à analítica da ambiguidade, técnica elaborada com base na redução fenomenológica eidética de Edmund Husserl, para compreender textos empíricos originários de pesquisas fundamentadas na fenomenologia de Merleau-Ponty (Carvalho et al., 2011CARVALHO, P. A. L. et al. O sentimento de coexistência e os cuidados à pessoa em sofrimento mental. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 10, n. 4, p. 658-665, 2011.; Costa et al., 2015COSTA, R. R. O. et al. As rodas de conversas como espaço de cuidado e promoção da saúde mental. Revista de Atenção à Saúde, São Caetano do Sul, v. 13, n. 43, p. 30-36, 2015.). A compreensão das vivências ocorreu da seguinte maneira: transcrição e organização das entrevistas; realização de leituras exaustivas dos textos; exercício perceptivo das descrições sob o olhar figura-fundo, para que os fenômenos se mostrassem em si mesmos a partir de si mesmos, e, por fim, objetivação em categorias (Sena et al., 2010SENA, E. L. S. et al. Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 31, n. 4, p. 769-775, 2010.).

O estudo atendeu às normas da resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Uesb, sob protocolo nº 518.994/14. Em respeito ao anonimato das participantes, cada uma escolheu um codinome relacionado a sentimentos vivenciados nos últimos dias: Saudade, Amor, Tristeza, Ansiedade e Preocupação.

Resultados e discussão

Todos os participantes eram do sexo feminino, filhas, com idades entre 33 e 57 anos e com um tempo de acompanhamento que variou entre oito e sessenta dias. No tocante ao estado civil, quatro eram casadas. Três residiam com a pessoa idosa que acompanhavam e apenas duas afirmaram revezar o cuidado com outro familiar.

A leitura dos relatos das participantes se fez seguindo a perspectiva de Merleau-Ponty, a qual impõe o olhar figura-fundo. Ela nos possibilitou perceber a ambiguidade que entorna as vivências de familiares acompanhantes da pessoa idosa hospitalizada. Por conseguinte, decidimos categorizá-las como o visível e o invisível em espaço de cuidado.

O visível e o invisível em espaço de cuidado

A análise fenomenológica se compara à observação de uma paisagem pitoresca, quer dizer, como ocorre na contemplação de uma obra de arte, em que podemos perceber as partes e o todo que se impõe a nós. Independentemente de nossa vontade, notamos que o contexto da hospitalização da pessoa idosa, com a presença do familiar acompanhante, envolve o “visível” e o “invisível”.

Esse raciocínio permite inferir que a pessoa idosa, ao ser internada e iniciar o tratamento, mostra-se como figura - o “visível” -, uma vez que passa a ser o foco da atenção da equipe de saúde e, também, do familiar acompanhante. No entanto, por detrás da figura, isto é, em seu fundo, há outras figuras ocultas; entre elas, o familiar acompanhante que, conforme nossa análise, constitui o “invisível”, não obstante apresentar-se com demanda por cuidados. A pessoa idosa hospitalizada também pode tornar-se o “invisível”, quando não é cuidada de maneira holística, considerando sua integralidade. Portanto, sob as lentes de Merleau-Ponty, e seguindo a analítica da ambiguidade (Sena et al., 2010SENA, E. L. S. et al. Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 31, n. 4, p. 769-775, 2010.), percebemos que, no contexto deste estudo, o “visível” e o “invisível” se mostram de forma ambígua, em um movimento de reversibilidade.

A partir dessas percepções, consideramos que os familiares acompanhantes podem vivenciar sofrimentos ambíguos, aqui apresentados e discutidos em três dimensões. A primeira dimensão considera a coexistência ( Merleau-Ponty, 2012MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.) entre familiar acompanhante e pessoa idosa hospitalizada. Quando olhamos para a intersubjetividade que se estabelece no domínio do cuidado pais-filhos e vice-versa em situação de sofrimento, essa coexistência aparece de forma mais intensa e pode afetar a saúde do cuidador, pois envolve vínculo familiar, afetivo e de responsabilização para com o dever moral e legal.

A notícia da hospitalização de um ente querido, ameaçado e sujeito a dor, dependência e até mesmo a morte, tende a provocar no familiar um turbilhão de sentimentos como angústia, insegurança, esperança, ansiedade, saudade, amor, dentre outros (Souza et al., 2014SOUZA, T. L. et al. Perspectiva de familiares sobre o processo de morrer em unidade de terapia intensiva. Texto & Contexto Enfermagem , Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 751-757, 2014.), como observamos no relato: Meu irmão me ligou desesperado dizendo: mãe vai morrer, mãe está morrendo! E eu não pensei duas vezes, fui para o computador comprar passagem, não quero nem saber, estou indo para a Bahia (Ansiedade).

Essa cuidadora mora em Campinas, São Paulo. A fala evidencia que a doença, seguida da hospitalização, impacta e desestrutura o universo familiar, de modo que os sentimentos são compartilhados e mobilizados de uma pessoa à outra, tornando-se uma generalidade. Isso possibilita a experiência do outro eu mesmo, bastando apenas que, no interior de seu mundo, um gesto semelhante ao seu se esboce (Merleau-Ponty, 2012MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.).

À luz da filosofia merleau-pontyana, a relação entre sujeitos ou intersubjetividade apresenta-se como campo aberto à descrição de vivências intencionais e, por conseguinte, à experiência da coexistência (Merleau-Ponty, 2014MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2014.). Assim, após o desencadeamento do quadro de hospitalização da pessoa idosa e à medida que experimentamos a coexistência, ocorrem-nos vivências ambíguas relacionadas ao evento, demonstradas no relato a seguir: Eu a via sentindo dor e não podia fazer nada [...] e aquilo me doía tudo por dentro também; fiquei muito mal [...] agora ela não está mais sentindo dor e eu senti um alívio [...] não posso me divertir, vou me divertir e penso em minha mãe, eu sei o que ela está passando. Tempos atrás fui a uma festa, ao chegar, ela sentia muita dor [...] fiquei triste, estava alegre e fiquei triste (Amor).

A vivência mostra-nos que o cuidar, quando analisado numa perspectiva fenomenológica, caracteriza-se como marcado pela ambiguidade e opera na intersubjetividade, numa relação reversa entre quem cuida e quem é cuidado, afetando ambas as partes. Portanto, numa perspectiva merleau-pontyana, compreendemos que no processo de hospitalização existe um “quiasma” entre quem pratica e quem recebe a ação de cuidar, e isso inclui, além dos familiares acompanhantes e a pessoa idosa hospitalizada, a equipe de saúde, alguns em maior, outros em menor intensidade.

“Quiasma” refere-se às interseções ou entrecruzamentos que questionam o limite entre o corpo e o mundo, de modo a pôr em discussão a ideia do entrelaçamento dos corpos: ao mesmo tempo em que tocamos e sentimos o mundo, somos tocados e percebidos como uma presença, ou como outro objeto em meio a todas as coisas visíveis e invisíveis desse mesmo mundo. Assim, na rede que tece a vida, tudo sempre e de alguma maneira está entrelaçado (Merleau-Ponty, 2014MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2014.).

O “quiasma” ou entrelaçamento que se estabelece entre familiar acompanhante e pessoa idosa hospitalizada é resultado do contínuo sentir/agir com reversibilidade, mobilizado pelas vivências afetivas e cuidativas, o que faz que o cuidador, muitas vezes, sinta que ele e a pessoa idosa hospitalizada são um só corpo, enquanto a pessoa idosa também sente quando outra pessoa presta-lhes cuidados (Sena et al., 2011SENA, E. L. S et al. A intersubjetividade do cuidar e o conhecimento na perspectiva fenomenológica. Revista Rene, Fortaleza, v. 12, n. 1, p. 181-188, 2011.).

a gente sente, parece que quando está perto, ele está sendo mais bem cuidado; às vezes falamos em pagar alguém para cuidar, mas não é a mesma coisa de uma filha. Ele vai sentir que estamos dando carinho a ele [...] (Tristeza). [...] eu vou para casa, mas vou sair preocupada, vou ficar ligando para saber como é que ela está, porque ela sempre chama mais a mim [...] (Amor). [...] a minha outra irmã que estava com ele há dez dias, saiu pra eu ficar, mas foi com o coração fechado. Disse que estava saindo contra a vontade dela, que ela queria esperar a alta médica para ir junto (Preocupação).

Nessas descrições vivenciais, percebemos que as acompanhantes não conseguem desligar-se da pessoa idosa hospitalizada. Parece haver uma cumplicidade de tal modo, que a familiar não se sente à vontade em deixar que a extensão de seu próprio corpo (o semelhante) seja cuidada por uma pessoa diferente. Esta compreensão fundamenta-se no pensamento merleau-pontyano de que, na intersubjetividade, o outro “me envolve e me habita a tal ponto que não sei mais o que é meu, o que é dele”. (Merleau-Ponty, 2012MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012., p.51).

Nesse sentido, a produção de cuidados significa considerar a intersubjetividade que favorece a coexistência, a partir do compartilhamento de vivências do outro em uma relação empática. E, para além do sofrimento, coexistir permite-nos aprender, confrontar, incorporar, completar e enriquecer nossa própria identidade, que, por sinal, nunca é imóvel; ao contrário, é uma matriz que, em contato com o desigual, pode se renovar e crescer (Boff, 2011BOFF, L. Atitudes e comportamentos de hospitalidade. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. Brasília, DF, v. 19, n. 36, p. 229-236, 2011.).

Na intenção de fazer o familiar acompanhante “invisível” tornar-se “visível” para além das demandas de cuidado à pessoa idosa, é importante que a equipe de saúde compreenda as ambiguidades e a coexistência apresentadas pelos familiares, e como estas se manifestam e repercutem em suas vidas e na pessoa idosa. Em outras palavras, é necessário que cada profissional ressignifique a participação do familiar no domínio hospitalar, enxergando-o não apenas como colaborador do cuidado, mas, também, como ser humano que necessita de cuidado. Essa compreensão será reflexo da capacidade humana de transformar-se em um outro eu mesmo a todo instante, pois nós não existimos, mas coexistimos, convivemos e comungamos com as realidades mais imediatas (Merleau-Ponty, 2012MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.; Boff, 2013BOFF, L. Saber cuidar: ética do homem: compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2013.). Assim, será possível o delineamento de estratégias cuidativas ampliadas, humanizadas e sensíveis à necessidade do outro (o semelhante).

A adoção de outras racionalidades, além da tecnológica, é uma proposta para se pensar as mediações ente conhecimento e prática. Estabelecer o diálogo entre familiar acompanhante e profissional de saúde, por exemplo, revela-se como importante dispositivo de intervenção na prática do cuidado, pois contribui para o estreitamento de laços entre os sujeitos e construção de vínculos que direcionarão o cuidado integral e democrático.

Caracterizada como tecnologia leve ou relacional (Franco; Merhy, 2012FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Tempus: Actas de Saúde Coletiva, Brasília, DF, v. 6, n. 2, p. 151-163, 2012.), dialogar permite que reconheçamos que o outro toca em nossas significações e que nossas respostas tocam o outro e suas significações, de maneira que invadimo-nos um ao outro, na medida em que pertencemos ao mesmo mundo sociocultural e possuímos a mesma língua (Merleau-Ponty, 2012MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.). Portanto, dialogar é entrar em reciprocidade e intercambiar. Todo ser humano é dialógico, porque sua existência é coexistência e interdependência (Boff, 2011BOFF, L. Atitudes e comportamentos de hospitalidade. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. Brasília, DF, v. 19, n. 36, p. 229-236, 2011.).

A segunda dimensão de sofrimento que o familiar acompanhante vivencia refere-se ao cuidado pelo dever legal e moral. O não cumprimento, por parte da família, do cuidado aos mais velhos, doentes e/ou fragilizados, implica exposição ao julgamento social, o que, a depender da formação cultural dessa família, de seus princípios e valores no âmbito das relações intrafamiliares e sociais, poderá também comprometer a saúde do acompanhante da pessoa idosa hospitalizada, principalmente por desencadear ansiedade intensa. Na verdade, ninguém tem paciência. A gente fica porque não tem jeito! A gente precisa cuidar deles (Ansiedade). Tem momentos que o pé dela começa a doer, ela fica muito nervosa e me chama por segundo, então, se a gente não tiver a força de Deus, parece que perco a paciência [...] Eu peço a Deus: não me deixa perder a paciência, não! Porque é a minha mãe, eu tenho que cuidar (Saudade).

A Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988) dispõe, em seu Art. 229, que “os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Em consonância com a Constituição, a lei nº 8.842, referente à Política Nacional do Idoso (PNI) (Brasil, 1994BRASIL. Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994. Dispõe sobre a Política Nacional do Idoso, cria o Conselho Nacional do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 jan. 1994. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2chItOl >. Acesso em: 23 mar. 2015.
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) estabelece em suas diretrizes que os idosos devem ser atendidos, prioritariamente, pela própria família, em detrimento da atenção asilar, exceto aqueles que não possam garantir sua sobrevivência. Desse modo, a família tem o dever legal de amparar as pessoas idosas, assegurando-lhes a participação na comunidade, defendendo sua dignidade e seu bem-estar, e garantindo-lhes o direito à vida (Brasil, 2003BRASIL. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 out. 2003. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/1HAI0zB >. Acesso em: 23 mar. 2015.
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).

O dever moral também é perceptível nos relatos e se relaciona aos bons costumes, à cultura, aos hábitos e à preocupação com a forma pela qual meu semelhante me vê: Essa é uma obrigação de filho! Estar perto da mãe, carregando no colo. Ela não cuidou de mim? Não lavou o meu bumbum? Hoje eu lavo o dela [...] e eu não fico triste por isso, fico triste por ela não estar em casa e bem (Ansiedade). É obrigação do filho cuidar dos pais! Se não tem filhos, então, vem um parente, um vizinho. Mas, se tem? Vai vim alguém de fora cuidar e os filhos em casa de pernas para cima? (Preocupação).

Essas falas revelam um saber instituído que opera em favor da cultura e fortalece a tese do dever moral, acrescentando, ainda, a tese do dever de retribuição, ou reciprocidade, resultante do sentimento de obrigação. Segundo o pensamento merleau-pontyano, da mesma maneira que a natureza penetra até o mais profundo de nossa vida pessoal, entrelaçando-se a ela, os comportamentos também descem na natureza e nela se depositam sob a forma de um mundo sociocultural (Merleau-Ponty, 2011MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.). Assim, o dever moral é estabelecido pelo mundo sociocultural e é incorporado e transmitido entre gerações, mobilizando sentimentos e condutas humanas (Carvalho et al., 2011CARVALHO, P. A. L. et al. O sentimento de coexistência e os cuidados à pessoa em sofrimento mental. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 10, n. 4, p. 658-665, 2011.).

Percebemos, portanto, que o familiar acompanhante da pessoa idosa hospitalizada sofre duplamente, tanto pela vivência de coexistência com o familiar doente quanto por sua dimensão socioantropológica, pela preocupação com o juízo social e a possibilidade de difamação pessoal.

Por fim, a terceira dimensão de sofrimento estabelecida para o familiar acompanhante refere-se às vivências de “invisibilidade” e descuido no hospital, refletidas pela falta de ambiência, que se refere ao meio ambiente preparado, de forma adequada e agradável para o cuidado e bem-estar, não apenas do usuário, mas de seu cuidador: sinto-me triste no hospital, parece que a gente está em uma prisão [...] porque aqui eu não sei de nada. A gente mora na roça e lá eu sei, eu conheço! Mas, aqui, eu não conheço nada (Amor). A realidade é uma só: bom não é! (estar no hospital) Bom é o conforto da nossa casa, da nossa cama, do nosso cobertor, mas é uma coisa necessária (Ansiedade).

Ao se inserir em um espaço onde tudo ecoa como novidade, a intersubjetividade que o familiar acompanhante estabelece com o novo contexto primeiramente emerge de maneira superficial, uma vez que ainda não há vínculo entre os envolvidos, implicando a ocorrência de sentimentos de insegurança, insatisfação, solidão e até mesmo de sensação de prisão circunstancial, como foi observado nas vivências relatadas.

O hospital, embora se constitua em espaço de cuidado, pode incorrer em práticas de descuido, a exemplo das situações vivenciadas por duas participantes do estudo: aqui esses dias, eu já senti muita coisa! Minha mãe ficou um tempo no corredor. Na quinta-feira, foi a noite inteira no corredor [...] era sentindo dor, agoniada, e eu fiquei muito mal, dormi sentada em um banquinho, naquelas escadinhas, eu cochilei (Amor). O hospital nunca é igual a nossa casa [...] eu coloco o meu cobertor no chão, e elas (enfermeiras) sabem que a gente não suporta, a gente já está velho! Uma noite, duas, três, tudo bem, mas cinco, seis noites em diante, a gente não suporta. Então, eu coloco o meu cobertor ali e deito (Saudade). Ele (pai) fala, caça um cantinho para dormir... mas, que cantinho? O cantinho é essas cadeiras! É a única coisa que a gente tem (Tristeza).

Seguindo a lógica da compreensão merleau-pontyana, as falas revelam situações de “invisibilidade” vivenciadas pelos familiares acompanhantes no serviço público de saúde e apontam falhas severas no cumprimento da portaria nº 280 (Brasil, 1999BRASIL. Portaria nº 280, de 7 de abril de 1999. Dispõe sobre a obrigatoriedade da presença do acompanhante de pacientes maiores de 60 (sessenta) anos de idade, quando internados. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2wvmehu >. Acesso em: 23 mar. 2015.
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), que dispõe sobre a presença do acompanhante para pessoas maiores de 60 anos de idade, quando internadas. Esta portaria considera que cabe aos hospitais públicos, contratados ou conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS), a viabilização de meios para a permanência do acompanhante de idosos hospitalizados, garantindo, inclusive, cama para sua acomodação, por período de 24 horas.

As vivências revelam, ainda, dificuldades para a prática do acolhimento, que constitui uma das principais diretrizes da Política Nacional de Humanização, no que concerne à produção do cuidado em saúde (Brasil, 2013bBRASIL, Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013b.). O acolhimento é um dispositivo de intervenção que pressupõe a mudança no processo de trabalho em saúde, com foco nas relações entre profissionais, usuários e sua rede social, por meio de parâmetros técnicos, éticos, humanitários e de solidariedade (Brasil, 2013cBRASIL. Caminhos do Cuidado: caderno do aluno. Brasília, DF: Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, 2013c. p. 132. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2ycRaFA > Acesso em: 20 nov. 2014.
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), o que, no contexto da internação da pessoa idosa, inclui o cuidado ao familiar acompanhante.

No ambiente hospitalar, acolher adquire caráter especial, em virtude da vulnerabilidade a que tanto os usuários como os familiares acompanhantes estão submetidos em termos físicos e sentimentais. O estudo de Ferreira et al. (2011)FERREIRA, C. G. et al. Fatores associados à qualidade de vida de cuidadores de idosos em assistência domiciliária. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 398-409, 2011. revelou que cuidadores que não contavam com apoio social formal ou informal apresentavam maior probabilidade de desenvolver problemas de ordem física e psíquica, quando comparados àqueles que se sentiam respeitados e apoiados de alguma forma. Dessa forma, percebe-se a importância do desenvolvimento de estratégias que busquem acolher e cuidar de quem cuida.

Entretanto as discussões e ações relacionadas ao acolhimento comumente centralizam-se no âmbito da atenção primária e, quando estão voltadas para a atenção hospitalar, atendem apenas aos usuários, os “visíveis” em primeira instância. Na prática, o acolhimento impõe uma postura ética. Não pressupõe hora ou profissional específico para fazê-lo, implica simplesmente respeitar, aceitar e valorizar aqueles que acompanham o ente hospitalizado (Freitas et al., 2012FREITAS, K. S. et al. Conforto na perspectiva de familiares de pessoas internadas em Unidade de Terapia Intensiva. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 21, n. 4, p. 896-904, 2012.). Constitui-se, portanto, como uma ação de inclusão que deve ser ampliada a partir da identificação, compreensão e resolução das diversas demandas apresentadas pelo familiar acompanhante, o que irá melhorar a qualidade do serviço hospitalar.

Outro dispositivo de intervenção possível de se empregar é a escuta, tecnologia relacional humanizadora do processo de trabalho em saúde ou tecnologia leve, que adquire valor de cuidado, por permitir o fortalecimento de vínculos afetivos com potencial para o diálogo e troca de experiências (Franco; Merhy, 2012FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Tempus: Actas de Saúde Coletiva, Brasília, DF, v. 6, n. 2, p. 151-163, 2012.; Brasil, 2013bBRASIL, Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013b.). Escutar o familiar acompanhante contribui para amenizar os temores da hospitalização, bem como para estabelecer relação de confiança entre os profissionais da saúde e o usuário/família, o que facilitará a assistência à pessoa idosa hospitalizada e, ainda, a ressignificação da participação do familiar acompanhante no hospital.

A vivência a seguir encaminha-nos para a compreensão da experiência da escuta: eu tenho hipertensão arterial e sempre fico preocupada com ela (mãe hospitalizada). Essa semana o médico pediu um exame que era pago e eu estou sem condições de pagar. Eu fiquei tão preocupada, minha cabeça doeu tanto, que eu chorei de dor! Porque eu não sabia o que fazer [...] e eu perguntei à enfermeira se iria precisar fazer o exame que o doutor pediu e ela disse que não iria precisar mais. Então, eu fiquei calma [...] Eu falei com ele (médico) que eu não tinha condições. Acho que ele se compadeceu da minha situação e concordou comigo (Amor).

A fala mostra que não apenas a permanência, mas, também, as demandas que emergem durante a hospitalização podem afetar a saúde do familiar cuidador, que, como acompanhante, é envolvido por todo o contexto de ambiguidades que a hospitalização impõe. No caso dessa cuidadora, a dificuldade financeira para realizar o exame solicitado para a mãe trouxe-lhe implicações em seu ser integral. Entretanto a vivência revela que essas implicações rapidamente cessaram, após saber que o exame não seria mais necessário. Provavelmente, o profissional médico tenha ponderado a real necessidade de realização do exame, após escutar e compreender a cuidadora.

É importante percebermos que cada pessoa sempre tem algo a nos comunicar, e o faz com sua presença: pela sua fácies, pelo olhar, pelos gestos e temperatura das mãos, pelas palavras e até mesmo pelas vestes. Escutar é dispor-se a captar aspectos da realidade, às vezes inacessíveis, mas que são possíveis de ser revelados pelo outro. É abrir-se cordialmente, sentindo o outro e tentando vê-lo a partir dele mesmo e não a partir dos conceitos e preconceitos criados pela cultura.

Nessa perspectiva, entendemos que atitudes como dialogar com franqueza, acolher de maneira generosa e escutar atentamente configuram-se como virtudes fundamentais (Boff, 2011BOFF, L. Atitudes e comportamentos de hospitalidade. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. Brasília, DF, v. 19, n. 36, p. 229-236, 2011.) a serem exercidas pela equipe de saúde junto ao familiar acompanhante no serviço hospitalar. Postas em prática, essas tecnologias relacionais contribuem para que figuras ocultas, que estão por detrás do “visível”, venham à tona e sejam reconhecidas como parte integrante do cuidado nas ações hospitalares.

Considerações finais

As vivências desveladas se apresentaram em três dimensões de sofrimento. Numa perspectiva merleau-pontyana, elas não podem assumir a conotação de negativas, pois toda experiência permite a abertura ao outro. Assim, nos sofrimentos “visíveis”, há possibilidades “invisíveis” de transcendência e ressignificação das relações, tanto de quem cuida como de quem é cuidado.

O estudo mostrou-nos que o familiar que acompanha a pessoa idosa hospitalizada compartilha de seu sofrimento, e isso se configura como coexistência. Nessa perspectiva, é importante que os profissionais de saúde reconheçam os contextos de intersubjetividade que se estabelecem no domínio hospitalar e como estes se configuram como espaços de produção de cuidado. Esse reconhecimento engloba a noção de humanizar como articuladora entre assistência, tecnologias e relações humanas, envolvendo usuários do serviço, acompanhantes e profissionais.

Portanto, é imprescindível que a equipe multiprofissional trabalhe em conjunto para que os vínculos entre profissionais, familiar cuidador e pessoa idosa hospitalizada se fortaleçam, de maneira que todas as necessidades sejam ouvidas, percebidas e entendidas, o que convergirá para o cuidado humanizado. Para que essas aspirações tornem-se realidade, teses e dogmas instituídos culturalmente devem ser suspensos, e um novo olhar para este perfil de familiar cuidador deve ser construído.

Consideramos que as ambiguidades identificadas no estudo possuem o potencial de abrir caminhos à ressignificação da figura do familiar cuidador por parte da equipe multiprofissional, de modo que estratégias de cuidado voltadas para o acompanhante se consolidem, tendo por base tecnologias relacionais como o diálogo, o acolhimento e a escuta. Entretanto, para que essa ressignificação se torne real, é necessária, antes de tudo, uma disposição do ser, livre de preconceitos e discriminações. Deste modo, acreditamos que as informações produzidas, apesar do número reduzido de colaboradores do estudo, ao mesmo tempo em que responderam à questão e ao objetivo proposto, despertaram a sensação de que ainda há muito a ser desvelado.

Referências

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  • 1
    Estudo financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2015
  • Aceito
    31 Jul 2017
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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