Do domicílio à ecografia de terceira dimensão: trajetórias assistenciais de mulheres assistidas na saúde suplementar de Porto Alegre, RS

From home to the third-dimension ultrasound: the paths in assistance of women assisted in the supplementary health sector of Porto Alegre - RS

Aline Alves Veleda Tatiana Engel Gerhardt Sobre os autores

Resumo

Este artigo analisa as trajetórias assistenciais de mulheres assistidas por serviços conveniados a saúde suplementar de Porto Alegre, buscando compreender como se constroem os caminhos durante sua gestação, parto e puerpério. Trata-se de estudo qualitativo do tipo etnográfico. Foram acompanhadas oito mulheres residentes em Porto Alegre, que realizaram seu pré-natal no subsetor de saúde suplementar. A geração dos dados aconteceu por meio de visitas domiciliares, acompanhamento nas consultas de pré-natal, observação participante, entrevistas gravadas e transcritas, sendo utilizado um diário de campo em todas as interações. Todas as informações foram analisadas a partir do referencial teórico de Clifford Geertz. Os resultados apontam para trajetórias terapêuticas individuais mas semelhantes, com dificuldades no que se refere a escolhas de cuidado, peregrinação na busca por profissionais e serviços, pouca informação qualificada disponível e à força da cultura biomédica. Destaca-se a luta das mulheres por respeito às suas individualidades e a importância do apoio encontrado nos movimentos femininos organizados. No entanto, conclui-se que, apesar das tentativas de fuga, o sistema utiliza de sua legitimação cultural e “diplomada” para instituir o medo entre as mulheres, retirando-lhes qualquer autonomia ou coragem para seguir em frente e modulando os caminhos que elas devem seguir.

Palavras-chave:
Trajetórias Assistenciais; Cultura; Mulheres; Parto Humanizado

Abstract

This article aims to analyze the care provided to women assisted in services of the supplementary health sector of Porto Alegre, RS, to better understand their experiences during pregnancy, childbirth and the postpartum period. It is an ethnographic qualitative study. Eight women were followed during pregnancy, childbirth and the postpartum period, all of them living in Porto Alegre, RS, who had received their prenatal care in the supplementary health sector. The data were collected through home visits, attendance in prenatal appointments, observations of moments which were pre-determined alongside the women, recorded and transcribed interviews, and a field journal that was used in all interactions. All information was analyzed based on the theoretical framework of Geertz. The results show similar individual experiences, with difficulties in relation to the choices of care, peregrination in the search for professionals and services, few available and qualified information, and the almost overwhelming force of a biomedical culture. The women’s fight for respect to their individualities and decisions stands out, as does the importance of the feminist movement’s support, aiming at the improvement of the experiences of labor and childbirth. However, it can be concluded that despite the attempts of escape, the health system utilizes its scientific and “certified” legitimization to enforce fear among the women, withholding their autonomy or courage to move on and modulating the paths they should take.

Keywords:
Trajectories of Care; Culture; Women; Humanized Childbirth

Introdução

A gestação é uma transformação na corporeidade, no biológico e no subjetivo das mulheres, uma vivência individual e coletiva, imbricada por experiências e saberes científicos e culturais. É durante este período que, mais uma vez, operam-se regulações sobre o corpo das mulheres, modelando corpos grávidos na busca de resultados sanitários esperados e ajustando relações sociais para o cumprimento da maternidade esperada (Robles, 2015aROBLES, A. F. Regulações do corpo e da parentalidade durante o pré-natal em mulheres jovens de camadas populares. Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 190-213, 2015a., 2015bROBLES, A. F. Da gravidez de “risco” às “maternidades de risco”: biopolítica e regulações sanitárias nas experiências de mulheres de camadas populares de Recife. Physis, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 139-169, 2015b.).

Não apenas o corpo das mulheres é modelado durante estas vivências, mas também as trajetórias percorridas por elas durante a busca por cuidados em saúde, indicando quais lugares de cuidado se espera que ela ocupe e quais podem garantir uma gestação saudável e sem riscos (Veleda, 2015VELEDA, A. A. Trajetórias do nascer: a construção cultural da incompetência de mulheres gestantes para gestar e parir no subsetor suplementar de saúde em Porto Alegre, RS. 2015. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.). Itinerários terapêuticos podem ser entendidos como as escolhas dos caminhos de tratamento feitas pelos sujeitos nos serviços de saúde, sendo permeados por visões de mundo, interpretações em relação ao funcionamento dos serviços e aos cuidados prestados, obstáculos de acesso aos serviços especializados e experiências coletivas de adoecimento e de busca pela saúde, delimitadas por condições materiais e simbólicas do existir (Lima; Baptista; Vargas, 2017LIMA, N. C; BAPTISTA, T. W. F.; VARGAS, E. P. Ensaio sobre “cegueiras”: itinerário terapêutico e barreiras de acesso em assistência oftalmológica. Interface, Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 21, n. 62, p. 615-627, 2017.).

No caso dos processos de gestação, parto e nascimento, o que se percebe é que os caminhos de cuidado continuam sendo organizados de forma bastante parecida com os serviços de assistência relacionados aos processos de adoecimento. As trajetórias das mulheres durante este período são marcadas pela condução biomédica, com priorização de procedimentos técnicos em detrimento dos espaços de escuta e acolhimento e com redução de suas participações nos processos decisórios, tendo a cesariana como desfecho esperado e frequente (Cordova, 2008CORDOVA, F. P. Do pré-natal ao parto: estudo das trajetórias terapêuticas percorridas por um grupo de mulheres usuárias do subsetor suplementar de assistência à saúde. 2008. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.; Leão et al., 2012LEÃO, M. R. C. et al. Reflexões sobre o excesso de cesarianas no Brasil e a autonomia das mulheres. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 8, p. 2395-2400, 2012.).

Cabe ressaltar que, tanto no setor público quanto no privado/suplementar, o modelo medicalizante de assistência continua predominando como uma força moduladora de opiniões condutas e ações. No entanto, o que se pode inferir é que esta força, moduladora de representações sociais, delimita e demarca caminhos medicalizantes da vida de maneira mais acentuada no subsetor suplementar de saúde, o qual responde pelos mais altos índices de intervenções desnecessárias e cesarianas sem indicação efetiva.

Nesse sentido, enfocar as trajetórias terapêuticas possibilita utilizá-las como um instrumento fundamental para a compreensão e interpretação de como é pensada e concebida a maternidade em seus processos específicos de gestação e parto a partir desta realidade da saúde suplementar, considerando a cultura destas mulheres. Afinal, a gestação não ocorre isoladamente; é um aspecto social da vida das mulheres, necessitando da presença de outras figuras familiares e sociais que devem manter um contato eticamente comprometido, construindo formas mais solidárias de convivência comunitária em relação à maternidade (Veleda, 2015VELEDA, A. A. Trajetórias do nascer: a construção cultural da incompetência de mulheres gestantes para gestar e parir no subsetor suplementar de saúde em Porto Alegre, RS. 2015. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.; Visintin; Aiello-Vaisbgerg, 2017VISINTIN, C. D. N.; AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Motherhood and social suffering in Brazilian mommy blogs. Psicologia, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 108-116, 2017.).

Portanto, este estudo tem por objetivo analisar as trajetórias assistenciais de mulheres assistidas por serviços conveniados a saúde suplementar de Porto Alegre, Rio Grande do Sul (RS), buscando compreender como se constroem os caminhos, as escolhas e as experiências durante a gestação, o parto e o puerpério. Acredita-se que, ao reconhecer as trajetórias vividas pelas mulheres, olhando a questão a partir do modo como elas vivem o dia a dia de ser mulher-gestante-mãe, é possível contribuir com a construção de políticas públicas que garantam não apenas espaços e ambientes qualificados, mas profissionais e atores sociais comprometidos com o gestar e o nascer digno, humanizado e integral.

Estratégias metodológicas

Trata-se de um estudo qualitativo do tipo etnográfico, realizado no município de Porto Alegre (RS) durante os anos de 2014 e 2015, fazendo parte de uma tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O cenário de estudo foi o contexto de vida das mulheres atendidas pela saúde suplementar, os locais onde vivenciaram os processos de gestação, parto e puerpério, tendo como pano de fundo o município de Porto Alegre. Foram convidadas e aceitaram participar do estudo oito mulheres, com idade entre 22 e 41 anos, gestantes que realizaram seu pré-natal no subsetor de saúde suplementar.

A coleta de dados ocorreu por meio do método etnográfico, o qual se caracteriza como uma imersão no campo e no cotidiano das pessoas, inscrevendo-se mediante o discurso e as práticas sociais (Geertz, 2008GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.). Para isso, foram utilizados técnicas e instrumentos de pesquisa que, em sua operacionalização, possibilitaram ver, ouvir e registrar estes momentos, experiências e práticas envolvendo a maternidade e o contexto de estudo, escolhendo-se a observação participante, a entrevista e o diário de campo.

Utilizaram-se informações geradas durante os momentos de interação entre pesquisadora e participante nos diversos contextos de encontro: visitas domiciliares, consultas médicas, realização de exames, passeios em shoppings, chás de fraldas, mensagens telefônicas e redes sociais. Nos encontros presenciais, os quais ocorreram nos diversos espaços já citados, pesquisadoras e mulheres conversavam livremente sobre as temáticas que envolviam a gestação, a partir de assuntos específicos trazidos pelas mulheres sujeitos da pesquisa. As pesquisadoras utilizaram algumas questões norteadoras nos encontros, sendo elas: “Como você se sente em relação a sua gestação hoje?”, “Conte-me como está sendo a experiência da maternidade para você?”; “Nos momentos em que você pensa sobre o parto ou nascimento de seu bebê, como você se vê?”. Estes encontros ocorreram muitas vezes fora do ambiente domiciliar, e as pesquisadoras mantinham conversas informais enquanto observavam as interações das mulheres, utilizando da observação participante como técnica de coleta das informações. Em todas as interações e encontros utilizou-se o gravador de voz para registro das falas, as quais posteriormente foram transcritas na íntegra.

Nos momentos de escuta houve interação e relação em um exercício de diálogo e construção de espaços, mas com o cuidado de possibilitar que as falas das mulheres pudessem revelar sua cultura e seu contexto social, o que poderia influenciar as concepções individuais sobre os processos de cuidado durante a gestação/parto/maternidade.

A partir do que foi observado, ouvido e experenciado/compartilhado com as mulheres, registraram-se experiências cotidianas e impressões do empírico em um diário de campo. Por ser um instrumento de registro de dados, utilizou-se o diário de forma livre, em textos e escritas cotidianas, com intuito de enriquecer a análise das situações e contextos vivenciados, bem como das impressões e sentimentos da pesquisadora em relação à apreensão do empírico.

Os dados gerados foram analisados a partir da Teoria Interpretativa da Cultura, de Clifford Geertz (2008GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.), para quem a cultura é uma condição essencial da existência humana, fornecendo o vínculo entre o que os homens desejam se tornar e o que eles realmente se tornam, um a um, vivendo em um mundo dotado de sentido. Portanto, cultura neste estudo será definida como um sistema entrelaçado de signos, dentro do qual os sujeitos conseguem enxergar o mundo e pertencer a ele, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas (Geertz, 2008GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.).

Foram analisados entrevistas transcritas e diários de campo, aprofundando-se nos discursos, nas vivências acompanhadas e nos relatos do diário de campo. Assim, esta análise buscou significar a narrativa dos participantes, contando suas histórias e experiências e analisando-as à luz das considerações de Geertz (2008GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.); não buscando categorizações, mas a compreensão da prática social concreta dos atores envolvidos.

Para isso, foram construídas duas trajetórias assistenciais de análise e discussão, devido à diferenciação entre as histórias e ao caráter representativo de todas as outras mulheres acompanhadas durante a pesquisa: (1) Trajetória assistencial das mulheres-gestantes-puérperas atendidas pela saúde suplementar em Porto Alegre e (2) Trajetória de resistência de Frida.

Este estudo foi realizado respeitando os preceitos estabelecidos pela Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (Brasil, 2013BRASIL. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 13 jun. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1mTMIS3 >. Acesso em: 22 jul. 2018.
https://bit.ly/1mTMIS3...
), sendo enviado ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS e obtendo aprovação em abril de 2014 por meio do parecer CEP nº 522742.

Resultados e discussão

Apesar de o acompanhamento ter ocorrido com oito mulheres durante os meses finais de suas gestações, escolheu-se apresentar duas trajetórias assistenciais, já que a semelhança entre os caminhos percorridos por elas não permitia grandes modificações na construção gráfica de suas trajetórias. No entanto, destaca-se uma trajetória bastante diferenciada, cercada de caminhos e diálogos singulares e que, pela riqueza dessa diferenciação e pelos significados que ela nos transmite, merece um olhar atento e uma reflexão aprofundada.

Dessa forma, apresentam-se as trajetórias assistenciais da seguinte maneira: (1) Trajetória assistencial das mulheres-gestantes-puérperas atendidas pela saúde suplementar em Porto Alegre, com um esquema contendo os caminhos percorridos pela maioria das participantes deste estudo, focados no modelo biomédico e influenciados pelas concepções tecnológicas de cuidado; e (2) Trajetória de resistência de Frida, apresentando o caminho percorrido por uma das mulheres participantes deste estudo, imbrincado por lugares e espaços diferenciados e que exprimem claramente sua visão de maternidade e suas escolhas em relação ao parto e nascimento.

Sintomas gestacionais seguidos de desconfiança e medo são o que leva ao primeiro passo em busca de respostas, e ele nunca é dado sozinho; sempre a possibilidade de estar grávida é compartilhada com alguém muito próximo: companheiro, figura materna, melhor amiga ou colega de trabalho. Ao cogitar a gravidez a mulher compartilha esta informação com outra pessoa próxima, como que solicitando apoio para enfrentar essa descoberta e desejando que esta pessoa aceite a gestação como ela já está aceitando.

Ela não vai sozinha obter a resposta; mesmo que seja uma gravidez planejada e desejada, é a insegurança e o medo que a movem em busca de uma companhia para este momento. De casa ou do trabalho e até na farmácia, na busca pela testagem gestacional, sempre há alguém com ela. Do shopping ao domicílio, não importa onde a resposta esteja, a mulher sempre tem alguém ao seu lado na hora da confirmação da gravidez.

Liguei pra uma amiga minha, a Luciana. Lú, eu fiz o teste e não sei o que lá, preciso de um teste oficial, vamos achar um teste oficial porque eu preciso ter certeza. Aí a Lú saiu enlouquecida, veio me buscar, andamos por tudo, e todo mundo entregava na terça o exame. […] Aí a Lú falou assim: vamos na farmácia compra um teste e aí a gente faz um melhor de 3. Se 3 der positivo. E ainda diz que o troço é 99,9%. 1% filho da mãe […] risos […] A gente fica no pontinho preto no meio da folha branca. E, aí a gente fez até o segundo teste no banheiro do Shopping, e, aí ela saiu gritando, fiz mais um só […] Ela saiu gritando bicampeão, assim, no meio, dentro do shopping. (Jane)

Trajetórias 1
Mulheres atendidas pela saúde suplementar no município de Porto Alegre

As mulheres referiram que, apesar das dificuldades para engravidar ou dos prognósticos médicos anteriores à gestação não serem favoráveis, elas já sabiam, já sentiam que estavam grávidas antes mesmo de realizar qualquer testagem confirmatória. No entanto, todas precisaram de no mínimo dois testes, de diferentes tipos, para que suas suspeitas fossem dadas como verdade, seguindo o caminho do domicílio até um laboratório.

Após o exame de sangue confirmando a gestação com a segurança que elas necessitavam, o próximo passo era contar para a família, conviver com as reações de todos à sua volta e muito rapidamente agendar uma consulta com o obstetra, iniciando o pré-natal formal. O que elas não contavam era com a dificuldade de encontrar um profissional que as atendesse como desejavam, escutando, respeitando seus desejos e estimulando-as sem medos. Todas travaram uma peregrinação por no mínimo três profissionais diferentes, agendando consultas, comparecendo sozinhas ou acompanhadas, escutando o que lhes era dito sobre as formas de nascimento possíveis segundo cada obstetra e decidindo os próximos passos nessa caminhada a partir do que lhes era informado. Em alguns momentos decidiam pelo que lhes era possível, ou seja, pelo que o plano de saúde oferecia, e não porque realmente confiavam ou sentiam empatia pelo profissional.

A peregrinação das mulheres no ciclo gravídico-puerperal sempre foi destacada como característica do serviço público de atenção ao parto, não indicando que no subsetor suplementar a situação fosse diferente (Cunha et al., 2015CUNHA, S. F. et al. Peregrinação no anteparto em São Luis-Maranhão. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 15, n. 3, p. 441-447, 2010.; Ferreira, 2015FERREIRA, R. V. F. Fatores associados à peregrinação no anteparto das gestantes da região Sudeste no Nascer do Brasil. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciências) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Rio de Janeiro, 2015.). Enquanto no setor público as mulheres peregrinam no momento do parto em busca do cuidado que desejam, no subsetor suplementar esta peregrinação se inicia já no pré-natal, em busca de alguém que as atenda da maneira como desejam ser atendidas e pelo seu convênio ou plano de saúde.

Vários foram os motivos que as fizeram seguir trajetórias de busca pelo “obstetra ideal”, mas o que mais chamou atenção foi a valorização das mulheres sobre a opinião do profissional em relação ao parto normal/vaginal. A peregrinação se dava porque elas desejavam vivenciar a experiência de um parto e, quase que unanimemente, não conseguiam um obstetra que desejasse seguir este caminho com elas.

A (não) escolha pelo profissional terminava quando elas encontravam aquele que aceitava, mesmo que momentaneamente, seus desejos, ou quando não havia mais opções de obstetras na cobertura de seu plano de saúde. Durante os nove meses de gestação as trajetórias limitavam-se invariavelmente a espaços biomédicos, indo do consultório médico ao laboratório e à clínica ecográfica. No ambiente domiciliar é que as modificações ocorriam de forma diferenciada a cada trimestre gestacional, surgindo experiências a partir das dúvidas e sensações impulsionadas pela gravidez e pelo seu contexto social e cultural.

No primeiro trimestre a alegria pela descoberta, os sintomas gestacionais incomodativos, as dicas e opiniões de outras mulheres que já tiveram filhos, o fortalecimento da relação do casal, a descoberta do sexo do bebê, as buscas por informações nas redes sociais e a insegurança com a gestação dominaram as subjetividades das mulheres-gestantes e suas famílias.

No segundo trimestre, junto com as idas ao consultório médico, as ecografias e mais alguns exames, ocorrem as vivências de momentos muito esperados na gestação: sentir o bebê se movimentar; a barriga finalmente cresce e a mulher finalmente sente-se e visualiza-se como grávida; planeja-se o chá de fraldas, assim como o ambiente em que o bebê será inserido.

Por fim, no terceiro trimestre é que o caminho percorrido se tenciona levemente, na medida em que as consultas passam a ser quinzenais e, posteriormente, semanais; as ecografias para definição do tamanho e posição do bebê podem ser realizadas também semanalmente; a ecografia 3D é realizada, para que se tenha uma visão mais nítida de como será o filho, e os exames laboratoriais são repetidos na íntegra. Além disso, a ansiedade de ver o bebê, o medo e a insegurança em relação ao trabalho de parto, o cansaço e a pressão familiar pelo nascimento impulsionaram uma busca maior pelo profissional e pelos serviços hospitalares.

Com o nascimento, quase que exclusivamente por cesarianas, o foco da caminhada não muda de direção, a mulher continua trilhando caminhos entre o domicílio - agora cheio de visitas que querem conhecer o bebê -, o posto de saúde, para realizar vacinas e o teste do pezinho, e os consultórios do obstetra e do pediatra. As dificuldades com a amamentação costumam gerar ansiedade e tristeza, fazendo com que ligações para o obstetra sejam frequentes, em busca de apoio e estímulo ao aleitamento, além de informações sobre como esse processo ocorre nos primeiros dias pós-parto - o que, em muitos momentos, essas mulheres não encontravam.

As visitas invadem a casa e retiram do colo da mulher, sempre sem permissão, o seu filho. Palpites, opiniões e intromissões no novo ambiente familiar, que se molda com a chegada do bebê, são constantemente fornecidos, muitas vezes também sem permissão ou sem solicitação das mulheres. E, apesar de tanta gente, elas se sentem sozinhas, desejando mais apoio e menos julgamentos. É na família que se encerra sua trajetória como gestante e se inicia sua caminhada como mulher-mãe.

Como podemos visualizar, as trajetórias assistenciais são exclusivamente marcadas por um saber biomédico, moldadas pela hegemonia tecnológica e pelo ideal da gestação mais como uma condição de risco do que um processo fisiológico feminino e social. O que se encontra é um cuidado ainda centrado no modelo médico-hegemônico, fortemente centralizado na esfera biológica da mulher e enxergando a maternidade, o parto e o puerpério como um problema de saúde que precisa de intervenção médica, representando um nó crítico que requer maior discussão em direção à integralidade.

Não há espaços diferenciados de cuidado, não há opções ou caminhos diferentes a serem seguidos. O que existe são referências e contrarreferências prontas, moldadas por um discurso hegemônico e que garantem que o caminho percorrido seja sempre circular, isto é, inicia-se em uma instituição de saúde e finaliza-se em instituições de saúde. O espaço onde a mulher vivencia outras culturas e saberes sobre a maternidade é basicamente o espaço familiar, influenciado e modulado diretamente pelo espaço institucional e formal já legitimado socialmente pelo poder biomédico.

A partir da concepção biomédica de que as necessidades em saúde são apenas aquelas clinicamente observáveis e de que a gestação e o parto são processos de risco, a busca por cuidados formais em saúde durante a gestação e no momento do parto torna-se social e culturalmente imposta. A busca pela atenção em saúde, no sentido tradicional de práticas técnicas e procedimentos específicos, torna-se indispensável para as mulheres e famílias na medida em que culturalmente se estabeleceu que é somente por meio da tecnologia e do aparato médico específico que se pode produzir bebês perfeitos (Helman, 2003HELMAN, C. G. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.).

As mulheres traçam suas trajetórias apenas pelo subsetor profissional de cuidado, legitimado pelas profissões organizadas, formais, legalmente reconhecidas e em sua maioria biomédicas tradicionais. Trata-se da medicina científica, influente no tratamento à saúde dos indivíduos e que expressa a estrutura e a lógica dominante das sociedades (Kleinman,1988KLEINMAN, A. The illness narrative: suffering, healing, and the human condition. New York: Basic Books; 1988.; Helman, 2003HELMAN, C. G. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.).

E se o foco não é a mulher nem sua experiência em gestar, o que encontramos neste caminho é o olhar patológico sobre a gestação. Assim, a mulher grávida passa a ser vista como uma paciente passiva, dependente e não detentora do poder de decisão sobre seu corpo e seu filho. Supervaloriza-se o nascimento como um problema técnico, e transmitem-se, através dos rituais da obstetrícia, valores básicos da sociedade para a mulher, tais como impotência feminina, deficiência de seu corpo, necessidade da medicina para controlar processos naturais e a superioridade das instituições e das máquinas sobre as crenças individuais (Helman, 2003HELMAN, C. G. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artes Médicas, 2003.).

E os “rituais” da obstetrícia ficam claros durante o caminhar das mulheres: são procedimentos técnicos, consultas mecanicistas, que seguem protocolos claros de medições uterinas, toques vaginais, verificação de peso e cuja prioridade é saber o valor da pressão arterial com vistas a controlar o risco de uma possível e perigosa hipertensão na gestação. São inúmeros os exames laboratoriais, sempre deixando a mulher em alerta para qualquer problema que possa aparecer no decorrer dos nove meses; as ecografias indicam o temível peso do bebê, sempre acima do esperado, sempre de risco; invariavelmente a posição fetal nunca é a melhor para a realização de um parto vaginal.

Por meio do discurso biomédico a mulher fica cercada por uma rede de vigilância constante sobre seu corpo e suas atitudes, sendo responsabilizada não só pela própria saúde, mas também pela produção de um bebê saudável, tornando o pré-natal e os encontros de cuidado durante este período um locus privilegiado do discurso do risco (Robles, 2015ROBLES, A. F. Da gravidez de “risco” às “maternidades de risco”: biopolítica e regulações sanitárias nas experiências de mulheres de camadas populares de Recife. Physis, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 139-169, 2015b.). No Brasil, atualmente a categoria risco organiza o manejo das gestações, com objetivo de atingir metas de saúde, tais como redução da mortalidade materna e infantil. No entanto, essa categoria biomédica se converte em uma força cada vez mais disciplinadora, que muitas vezes transforma as experiências na gestação e enquadra o sistema de saúde em uma etapa biomédica baseada na avaliação e no monitoramento das mulheres, orientando e governando a vida das famílias, normalizando as condutas das mulheres-mães a partir de referências e padrões criados por especialistas e considerados “normais” (Robles, 2015ROBLES, A. F. Da gravidez de “risco” às “maternidades de risco”: biopolítica e regulações sanitárias nas experiências de mulheres de camadas populares de Recife. Physis, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 139-169, 2015b.; Petry; Somavilla, 2017PETRY, A. R.; SOMAVILLA, V. C. A exortação do discurso de risco e a coleta autóloga de células-tronco do cordão umbilical. Texto Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 26, n. 3, p. 1-8, 2017.).

Tomar estes caminhos é seguir as trajetórias mais seguras durante a gestação, com vistas a um nascimento o mais controlado possível, minimizando riscos e sofrimentos. No entanto, as mulheres desejam durante o processo de cuidado ser vistas e tratadas integralmente, acolhidas, respeitadas sem julgamentos ou preconceitos, apontando para a necessidade de um cuidado que incorpore valores e iniciativas humanizadoras e não apenas o seguimento de protocolos previamente estabelecidos (Veleda, 2015VELEDA, A. A. Trajetórias do nascer: a construção cultural da incompetência de mulheres gestantes para gestar e parir no subsetor suplementar de saúde em Porto Alegre, RS. 2015. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.).

No entanto, a realidade de suas trajetórias não deixa margem para discussões sobre como os espaços não biomédicos são ocupados pelas mulheres durante a gestação, visto que estes espaços não existem no subsistema formal de cuidado na saúde suplementar - e se existem, não são valorizados ou não são compartilhados com as mulheres, pois nenhuma delas relatou quaisquer atividades diferenciais fornecidas pelos planos de saúde. Não houve participações em quaisquer atividades em que não estivesse presente o profissional de saúde, quase que exclusivamente na figura do médico obstetra ou médico ecografista, estando sempre estas participações focadas em procedimentos necessários de manutenção de um pré-natal saudável e seguro.

Fica claro nesta trajetória apresentada o quanto o modelo biomédico de atenção, com enfoque na doença e no risco, conduz o caminhar das mulheres durante a gestação até o momento do nascimento. Ao circular por este caminho, cada vez mais é reforçado o mesmo discurso biomédico, na medida em que não se oportuniza a participação das mulheres em espaços coletivos e sociais que permitam novos olhares sobre a gestação, o parto e o puerpério.

No entanto, algumas mulheres desejam ocupar novos espaços, compartilhar novos olhares e vivenciar a gestação e o nascimento como um evento de não risco. Afinal, durante a experiência da maternidade e do parto, os sentidos de cuidado buscados pelas mulheres não são exclusivamente relacionados aos procedimentos intervencionistas, mas também são voltados para questões que indicam um cuidado em busca da integralidade.

Assim surge a trajetória de Frida, marcada pela resistência ao modelo biomédico de atenção à gestação, uma busca por cuidados voltados para a integralidade e para o seu contexto social e cultural, objetivando um nascimento fora dos padrões determinados e legitimados pela ciência obstétrica. Nesta trajetória, o cuidado materializa-se para além do tradicionalmente instituído, fora das instituições de saúde, não se tratando apenas de aspectos técnicos, mas também estéticos, éticos e políticos, em que os vínculos e a formação de redes fortalecem a capacidade de colaboração e mobiliza os laços de solidariedade no cuidado à saúde (Gerhardt et al., 2011GERHARDT, T. E. et al. Atores, redes sociais e mediação em saúde: laços e nós em um cotidiano rural. In: PINHEIRO, R.; MARTINS, P. H. (Org.). Usuários, redes sociais, mediações e integralidade na saúde. Rio de Janeiro: Uerj, 2011. p. 112-131.).

Frida busca a humanização do nascimento de seu filho - não a humanização normativa ou amparada em critérios biomédicos, mas sustentada na ideia de “projeto de felicidade”, fugindo de um tecnicismo autonomizado e desenvolvendo ações compartilhadas de antecipação, escolha e negociação de uma vida boa (Ayres, 2005AYRES, J. R. C. M. Hermenêutica e humanização das práticas de saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 549-560, 2005.). Na Trajetória 2 consta como ela organizou esse caminhar durante a gestação e o nascimento de seu bebê.

Trajetória 2
A resistência de Frida

A trajetória de Frida inicia-se com um exame anual de rotina para controle dos ovários policísticos. Frida tem 41 anos e seu esposo está nos 50; não pensavam em engravidar nem estavam planejando isso. Mas ao realizar a ecografia de controle, lá está o bebê; inesperadamente a gravidez acontece, contradizendo os prognósticos biomédicos e epidemiológicos. Ansiedade, medo, insegurança, preocupação tomam conta de Frida, afinal ela está em uma idade “avançada” e de risco para a gravidez.

Contar ao companheiro foi tarefa difícil, pois nenhum deles estava esperando ou planejando ser pais mais uma vez. A família se assusta, repensa a questão da idade dela e questiona os riscos de uma gravidez nesse momento de sua vida. Mas Frida não questiona e já planeja como será sua gestação e o nascimento do bebê, relembrando o parto de seu primeiro filho, domiciliar e sem nenhum tipo de intervenção, o qual ela chama de humanizado.

Frida há dez anos já era uma resistente. Hoje, mesmo com outro companheiro que não tem tanta segurança quanto ela em relação ao parto em casa, insiste em suas convicções e decide que sua tarefa é convencer o marido e fazer com que ele se sinta seguro quanto a isso. A solução é a informação.

Em sua trajetória ela inicia o pré-natal (nada convencional) indo a um médico que atende pelo seu plano de saúde e que logo de início já a categoriza como uma gestante de alto risco, devido a sua idade, indicando uma cesariana por precaução. Ela vai a este profissional apenas para solicitar os exames laboratoriais do primeiro trimestre, pois, como deseja um parto domiciliar, fará o acompanhamento com o único profissional obstetra que realiza esse trabalho em Porto Alegre, mas com financiamento totalmente particular, sem convênios ou planos de saúde.

É com esse segundo profissional que o vínculo acontece, mesmo que ela não consiga, devido às condições financeiras, consultar-se todos os meses com ele. Frida continua sua trajetória pelo laboratório, consultório médico e compartilhando sua vivência no domicílio, mas é nos grupos e nas parcerias na luta pelo parto humanizado que ela consolida e fortalece seus desejos.

Ela participa de um Grupo de Apoio ao Parto Natural, onde mulheres, casais e famílias compartilham as experiências de nascimento domiciliar e as vivências no pré-natal e puerpério. Neste grupo se percebe a riqueza no compartilhamento de emoções, sentimentos, desejos, angústias, ansiedades e informações; são mulheres apoiando umas às outras em suas escolhas, procurando por meio das evidências científicas o respaldo legal e técnico para que possam ter seus filhos da forma que desejarem.

Por mais que o discurso científico seja o modulador dos saberes sobre gestação e parto a partir do olhar biomédico, também é por meio deste discurso que ocorre a validação dos desejos e escolhas das mulheres. Neste grupo elas discutem as evidências científicas, apoiadas por alguns profissionais presentes, tais como enfermeira obstetra e doulas, e as utilizam de forma a validar suas escolhas.

Partos são relatados, dúvidas são discutidas, informações compartilhadas, militâncias pela humanização do nascimento acontecem ali mesmo, com o aval das mulheres e do conhecimento científico. No entanto, o que chama atenção são os momentos de sensibilização e encorajamento, nos quais o relato de uma fortalece o desejo da outra e a conquista do parto desejado por uma mulher indica às outras a possibilidade de também terem seus desejos respeitados e valorizados.

Frida coordena um grupo de mulheres interessadas em empoderamento feminino, geração de renda e cooperativismo, que tem por finalidade debater estes assuntos enquanto as mulheres constroem mandalas com fios de lã. Nesse grupo ela medita, relaxa, discute o feminino, conversa sobre suas escolhas em relação ao parto e escuta o que outras mulheres têm a lhe dizer. Ninguém entende muito bem por que ela, uma mulher da capital, com todos os recursos e tecnologias disponíveis, quer parir em casa. Por que ela deseja sofrer em um parto normal se pode fazer uma cesariana?

E esse é o mesmo questionamento que sua mãe e sua irmã lhe fazem. A família não entende seu desejo pelo parto vaginal, muito menos se for domiciliar: é loucura e risco, é inconsequente e perigoso. Seu companheiro ainda não se sente seguro para adentrar esta trajetória com ela, e os únicos lugares onde Frida encontra apoio para resistir são os grupos de que participa.

No primeiro e no segundo trimestre sua trajetória é marcada por apenas duas consultas com o obstetra, uma visita ao laboratório para coleta de exames e nenhuma ecografia. Ela não acredita que sejam necessárias tantas ecografias, e seu obstetra a acompanha referindo evidências científicas que corroboram a não realização destes exames sem indicação clínica clara. O discurso científico legitima o que Frida deseja não realizar na gravidez. Ela participa constantemente dos grupos de apoio ao parto, sempre utilizando desses espaços para seu fortalecimento e confiança.

No terceiro trimestre ela começa a participar de um Grupo de Movimento, onde mulheres, gestantes, “tentantes” e doulas se reúnem para realizar dinâmicas corporais de preparo para o parto. É um grupo de conscientização sobre a corporeidade, sobre os “lugares” do corpo e que visa o conhecimento do corpo para o nascimento.

Como seguidora e estudiosa do feminino, Frida participa de um Círculo da Lua Nova, coordenado pela madrinha de seu bebê, onde significados da lua conduzem debates sobre o empoderamento feminino e a força da mulher e da natureza. Sua trajetória segue passando pelos grupos, mais uma vez pelo consultório médico e laboratório, até que na 34ª semana de gestação acontece o encontro de benção, momento dedicado à energização de Frida e de desejos coletivos invocados para um parto tranquilo, baseando-se na tradição xamânica das anciãs.

É uma trajetória desconhecida, não marcada pelas conduções biomédicas, um pré-natal que não possui todas as consultas preconizadas, nem todos os exames de “rotina” são feitos e ainda sem nenhuma ecografia. É novo acompanhar tantos caminhos e tantos lugares nos quais a gestação não é vista como risco ou não exigem procedimentos de segurança.

A própria consulta com o obstetra não possui nada de “padrão”, nada de normatizações e surpreendentemente tem mais olhares e toques do que procedimentos técnicos e assistenciais. É na consulta que se assistem vídeos de partos domiciliares, debate-se sobre as condutas humanizadas e escuta-se Frida falar. Sim, ela fala e não o obstetra; ela decide e não o profissional, enquanto o companheiro, atento a tudo, é convencido por ela de que ter seu filho em casa é seguro e tranquilo.

Sua trajetória se torna intensa e com a presença de instituições formais de cuidado somente na 35ª semana de gestação, quando ela entra em trabalho de parto espontaneamente e tem sua filha prematura. E é nesse momento que a força do sistema se mostra de maneira bastante cruel. Frida peregrina entre três hospitais de Porto Alegre em busca do respeito ao seu plano de parto, ouvindo desde “estamos cheios” até “é melhor você ir embora”. É somente na terceira instituição, onde chega praticamente parindo, que Frida consegue, com a legitimação do acompanhamento do seu obstetra, o parto mais próximo do que desejava.

Devido à prematuridade, sua trajetória continua entre o domicílio e o hospital, mesmo após o parto; visita seu bebê na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) Neonatal e estimula a amamentação no Banco de Leite Humano. Em ambas as unidades seus desejos em relação aos cuidados com o bebê não são levados em consideração - o sistema apoderou-se de sua filha; amamentá-la e cuidar dela de forma mais próxima não é permitido. Além disso, Frida é intensamente culpabilizada pela prematuridade do bebê, já que teve uma gestação aos 41 anos e principalmente por não ter seguido um pré-natal conforme preconizado nos modelos obstétricos.

Após a alta da UTI Neonatal, cinco dias após o parto, Frida e seu bebê retornam para casa, onde ela escuta as músicas que havia gravado para o momento do parto, concentra-se na amamentação do bebê e chora brevemente pelo luto do parto que não teve. Mesmo conseguindo que muitos dos seus desejos fossem viabilizados, a imprevisibilidade do parto prematuro provocou uma culpabilização pelas suas escolhas que a levara ao choro do puerpério.

Frida resistiu, construiu um caminho somente seu, apoiando-se em mulheres que possuíam os mesmos desejos e informando-se sobre tudo que era necessário para legitimar suas escolhas perante a família e a sociedade em geral. Mesmo assim, seguindo uma trajetória de resistência, foi no puerpério que o sistema de saúde conseguiu modular suas decisões, ao apoderar-se do sua filha com o intuito de “corrigir” o que Frida havia feito de errado durante a gestação. E essa modulação deixou marcas na história de nascimento, fazendo com que ela reviva o momento com um pouco de dor e sofrimento.

Nessa trajetória se encontra um olhar sobre a gestação e o parto com o qual não se está acostumada, uma visão não biológica dos processos, mas social e cultural, em que as crenças, os valores e modos de vida da mulher estiveram imbrincados durante todo tempo. Ao longo dos caminhos trilhados, em cada parada por lugares diferentes e dialogando com sujeitos diferentes de cuidado, pode-se perceber as crenças de Frida sobre a gestação e as formas que ela encontrava de fortalecimento e de apoio às suas escolhas. Ao trilhar seu caminho, Frida utilizava rotas de fuga, traçadas em ativo movimento que, buscando alternativas para conjunturas próprias, impulsionava as transformações no mesmo sistema que tentava contornar (Medeiros, 2014MEDEIROS, L. B. Rotas de fuga no ciberespaço: itinerários de mulheres em busca do parto desejado. 2014. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.).

É necessário visualizar a mulher como alguém que compartilha crenças, vivências e recursos práticos, adquiridos e ampliados ao longo de sua trajetória e que, a partir de todos estes aspectos, constrói suas próprias trajetórias de vida e de cuidado. Por ter sua trajetória marcada não apenas pelo modelo biomédico, Frida deixa à mostra o pluralismo terapêutico presente no caminho da gestação e do parto. No entanto, esse pluralismo só se tornou possível por sua vontade própria - não houve impulsos, estímulos ou movimentos que a levassem em busca destas múltiplas alternativas; ela mesma construiu e cartografou sua trajetória, fortalecendo-se na medida em que encontrou outros sujeitos desejosos por trilhar os mesmos caminhos.

Assim, ao buscar os grupos de apoio, Frida adentrou o subsistema informal de cuidado, envolvendo o uso de recursos e aconselhamento sobre questões de saúde com amigos, vizinhos e associações, baseando-se principalmente nas experiências próprias das pessoas envolvidas. Já ao buscar o acompanhamento de uma doula e ao participar dos Círculos da Lua, ela se insere no subsistema popular de cuidados, onde se encontram especialistas de cuidado não formais mas amplamente reconhecidos pela comunidade, que compartilham as mesmas crenças e valores e conduzem práticas dentro de um movimento de resgate de valores e concepções holísticas, os quais muitas vezes são negligenciados pelos profissionais e pelo setor formal (Kleinman, 1988KLEINMAN, A. The illness narrative: suffering, healing, and the human condition. New York: Basic Books; 1988.; Marin; Comin, 2017MARIN, R. C.; COMIN, F. S. Desfazendo o “mau-olhado”: magia, saúde e desenvolvimento no ofício das benzedeiras. Psicologia, Brasília, DF, v. 37, n. 2, p. 446-460, 2017.).

Frida procurou fortalecer-se para o enfrentamento social que teria quando deixasse claro seu desejo por um parto domiciliar; informou-se, buscou apoio do coletivo organizado e tinha um profissional que corroborava com suas inquietações e planejamentos. Mesmo assim, na reta final de sua trajetória, permeada pela imprevisibilidade do processo de nascer, o sistema médico hegemônico deixou a sua marca, culpabilizando-a por suas escolhas e limitando-a a ter apenas uma parte de seus desejos respeitados, apenas aquela parte que dizia respeito ao seu corpo, não a que dizia respeito à sua filha. Foi a forma velada e silenciosa, mas profundamente eficaz, de o modelo dominante tomar para si a razão e deixar clara a mensagem de que Frida, sem o auxílio tecnológico e sem percorrer os caminhos previamente estabelecidos, teria feito escolhas erradas e, o que é mais grave, escolhas de risco.

Sua trajetória de resistência foi única, individual, nenhuma outra mulher participante deste estudo percorreu caminhos sequer parecidos com o de Frida. Ela realmente resistiu, criou sua própria trilha, caminhou por suas próprias escolhas, mas sofreu com o discurso biopolítico obstétrico e regulador que exigia dela um comportamento mais adequado como mulher e como mãe. Frida, aos olhos do modelo biomédico, preventivista e individualista, teve o desfecho gestacional prematuro devido à sua irresponsabilidade e às suas escolhas equivocadas, já que almejou caminhar pela maternidade como dona de si e de seu corpo.

Considerações finais

No caminhar junto com as mulheres desta pesquisa, pode-se experenciar lugares, pessoas e encontros que determinaram práticas sociais produtoras de significados sobre a gestação e a maternidade, reprodutoras de ideias dominantes sobre o que é gestar e parir e moduladoras das escolhas de trilhas a serem seguidas. Os destinos quase sempre eram os mesmos, seguindo caminhos quase sempre idênticos, e não se tinha muitas opções de ser mulheres-mães-pesquisadora além dos contextos institucionais de cuidado.

Partiu-se do domicílio, seguindo os mesmos trajetos, esperando pelos mesmos atendimentos e ouvindo os mesmos discursos - da sala de casa, ao consultório na instituição privada; do cafezinho na sala de espera ao ecografista palpitando pelo tipo de parto possível. Não importava como ocorressem os movimentos, os caminhos eram sempre os mesmos, os discursos técnicos pareciam programados previamente e os diálogos quase sempre excluíam o olhar acolhedor. É lógico que as vivências das mulheres em relação à sua gestação eram únicas e diferenciadas, os sentimentos eram particulares e individuais, mas o que se destaca é o quanto as trajetórias se assemelhavam, tanto nos lugares físicos ocupados, quanto nos simbolismos e sentidos compartilhados.

A saúde suplementar em Porto Alegre conta com uma diversidade de instituições e profissionais cadastrados e atuantes, mas nos parece que são atuantes quase como um protocolo imóvel. Segundo relato das próprias mulheres, elas foram sempre encaminhadas para as mesmas instituições hospitalares, consideradas muito mais pela sua hotelaria e pela possibilidade de arranjos médicos do que pela qualidade dos cuidados propriamente ditos. As mulheres realizaram diversos exames, em locais semelhantes ou até nos mesmos serviços, pois os que não eram indicados pelos obstetras possivelmente não possuíam valor de segurança adequado.

Aquelas poucas, ou no caso deste estudo, a única mulher que se nega a seguir os caminhos traçados socialmente como os mais adequados para uma gestante, sofre a culpa pela possibilidade de ser negligente em suas escolhas, isto de acordo com a visão normativa do cuidado pré-natal. Afinal, se ela tem convênio e possui acesso facilitado a toda uma gama de tecnologia possível, porque não desejaria utilizar todo este aparato disponível? Não seguir um padrão do domicílio até a ecografia de terceira dimensão, tecnologia cara e sem objetivos clínicos ou padrões de segurança ainda definidos, é estar à parte do que é exigido, é ser negligente no seu caminhar e provavelmente um movimento gerador de riscos em potencial.

O que percebemos ao acompanhar o caminhar destas mulheres é que a atenção materno-infantil de Porto Alegre continua sendo organizada de forma semelhante aos serviços de assistência a processos de adoecimento, com referências e contrarreferências construídas não a partir das necessidades características deste momento, mas por uma organização geral do sistema de saúde marcada pelo modelo médico-hegemônico tradicional. Nesse sentido, em que engravidar é se manter alerta contra os perigos gestacionais, não seguir os caminhos indicados pelos profissionais e reforçados socialmente é deixar de atentar para toda imprevisibilidade do que é gestar e parir, aspecto que fortalece a culpabilização das mulheres no momento de decidirem por caminhos não normativos de cuidado, assim como Frida.

O acesso aos serviços biomédicos e tecnológicos, como ecografias, exames complementares e instituições com unidades de internação neonatal, é entendido pelas mulheres e fortalecido pela orientação profissional como uma necessidade a ser conquistada. Não é permitido e muito menos aceito que a mulher escolha um local de nascimento que não ofereça a melhor sala de cirurgia, a melhor UTI neonatal com todo o equipamento necessário e a sala de espera mais confortável para os familiares. Não é cogitado passar nove meses de uma gravidez sem muitas ecografias de controle, principalmente sem as fotos de seu filho em terceira dimensão; todos estes aparatos, de acordo com as trajetórias, são essenciais ao bom desenvolvimento de uma gestação.

Não pensar ou não desejar, durante seu caminhar, essas necessidades construídas socialmente é ser irresponsável com sua própria gestação. É quase como uma obrigação da mulher seguir caminhos orientados pelo discurso biomédico, mais seguros e confiáveis, cientificamente credenciados, e traçar trajetórias que previnam o maior número de riscos possíveis para ela e seu filho. Estas representações são de tal forma trabalhadas no íntimo feminino e familiar que, independentemente do desejo inicial das mulheres, possivelmente esta será a assistência desejada ao final, este será o cuidado vislumbrado como objetivo e serão estas condutas, muitas vezes geradoras do risco, as mais solicitadas e consumidas.

Afinal, no subsetor suplementar “vende-se” a ideia e cria-se a crença de que quanto mais intervenção e controle médico, quanto mais medicalização no momento do parto e quanto menor a dor, mais humanizada será a assistência prestada, mais segurança haverá e mais acolhida será a mulher. Trata-se da construção da mulher civilizada, afastando-a de seus processos fisiológicos relativos ao parto para que possa entregar-se ao progresso biomédico e medicalizante (Vieira, 2003VIEIRA, E. M. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.).

Conclui-se a partir do resgate do objetivo deste estudo que, por meio da construção das trajetórias assistenciais, conseguimos analisar e compreender como estes caminhos se originam e o quanto o discurso biomédico da segurança, do risco e da maternidade ideal modula as escolhas de por onde as mulheres podem e devem ir durante a gestação, o parto e o puerpério. Claramente os profissionais utilizavam de sua legitimação social e “diplomada” para instituir o medo entre as mulheres, retirando-lhes qualquer autonomia ou coragem para seguir em frente e, a partir de então, conduzindo os caminhos nos quais elas deverão caminhar.

Por fim, ficam mais questionamentos do que respostas fechadas. Afinal, como traçar caminhos iguais para sujeitos diferentes, com expectativas e desejos diversos? Como esperar que as mulheres, com suas diversidades e subjetividades construídas por meio da cultura em que se inserem, possam apresentar desempenhos e papéis iguais pelos caminhos do nascimento? E principalmente: por que punir aquelas que resistem ao desenho prévio destas trajetórias, aquelas que, mesmo pressionadas, decidem fugir por desvios não planejados pela ciência biomédica? Cabe a todos a construção e a descoberta destas respostas, as quais com certeza impulsionarão mudanças concretas na assistência ao parto e nascimento no país campeão de cesarianas.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2017
  • Revisado
    24 Mar 2018
  • Aceito
    28 Abr 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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