Desenvolvimento do capitalismo no Brasil e as tendências da política de saúde

Development of capitalism in Brazil and the trends of health policy

Laila Talita da Conceição Costa Lívia Méllo Priscila Tamar Alves Nogueira Sobre os autores

Resumo

A política pública de saúde se constitui como um instrumento em permanente disputa de poder, com a crescente apropriação dos seus serviços pelo mercado privado, o que vem evidenciando os diferentes projetos societários em confronto no interior do Estado brasileiro. Porém, a dominação política de uma classe social através do Estado não pode ser explicada somente através de registros da ação estatal em determinado período, ou seja, pelo simples reflexo do desenvolvimento do modo de produção. Ela é, antes, o resultado do movimento das contradições que só podem ser visualizadas no terreno da luta de classes, na correlação de forças existentes na sociedade civil. Assim, este trabalho tem como objetivo analisar as tendências da política pública de saúde, levando em consideração as atuais características do desenvolvimento político-econômico do Estado brasileiro, mas também situando-a enquanto política social inscrita nas complexas relações que envolvem o processo de produção e reprodução do capitalismo contemporâneo.

Palavras-chave:
Burguesia; Política Social; Saúde Pública

Abstract

The public health policy constitutes an instrument in permanent power dispute, and the growing appropriation of its services by the private market is evidencing the different corporate projects that are in confrontation within the Brazilian State. However, the political domination of a social class through the State can not be explained only by records of state action in a given period, that is, by the simple reflection of the development of the mode of production. It is rather the result of the movement of contradictions that can only be seen in the field of class struggle, in the correlation of forces existing in civil society. Thus, this study aims at analyzing the trends of the public health policy, taking into account the current characteristics of the political-economic development of the Brazilian State, but also situating it as a social policy inscribed in the complex relationships that involve the production and reproduction process of contemporary capitalism.

Keywords:
Bourgeoisie; Social Policy; Public Health

Introdução

O processo de construção histórica das formas de dominação burguesa e sua contínua adequação aos interesses gerais dos capitais foi investigada por Marx, em sua análise de conjuntura sobre o desfecho da revolução francesa a partir de 1848, nas obras As lutas de classes na França e em O 18 de brumário de Luís Bonaparte (Marx, 2015MARX, K. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2015.). Tomando como base tais referências, pode-se afirmar que as formas de dominação burguesa não nasceram prontas como hoje se apresentam, são constructos históricos determinados pela luta de classes.

A burguesia enquanto classe não pode exercer a dominação em seu próprio nome, necessita dominar não apenas pela força, mas também pelo consenso, apresentando-se como portadora de “interesses universais”. Por isso, a análise no terreno da política deve ser feita observando, antes de tudo, o movimento das classes para além dela. Trata-se de superar a aparência da política como esfera de dissimulação, procurando sua gênese nos reais interesses de classe que a condicionam e na correlação de forças existente na sociedade civil (Mara, 2016MARA, E. Pacto social e hegemonia burguesa: a reforma do neoliberalismo na era Lula. 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.).

Nesse sentido, a proposta inicial foi sumariar o debate marxista como ponto de partida deste trabalho, distanciando a discussão das abordagens sobre a política pública de saúde como uma iniciativa exclusiva do Estado para responder às demandas da sociedade no processo de redemocratização do país, após um longo período de ditadura militar, ou, em outro extremo, apenas como decorrência da luta e pressão da classe trabalhadora. A teoria social de Marx e seu método crítico-dialético permite uma visão dessa política no movimento da sociedade burguesa, reconstruindo suas características a partir de um conjunto de determinações que vão além das sugestões imediatas.

Desse modo, a saúde pública no Brasil não deve ser entendida como resultado de fatos isolados, sem situá-los no cenário de disputa de projetos societários. Ou seja, é preciso compreendê-los como fatos de um todo dialético, que determinam e são determinados por uma totalidade concreta.

De acordo com Behring e Boschetti (2009BOSCHETTI, I. Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. Brasília, DF: CFESS, 2009., p. 44), alguns elementos de análise são fundamentais para o exame dos aspectos da saúde pública brasileira:

As análises das políticas sociais sob o enfoque dialético precisam considerar alguns elementos essenciais para explicar seu surgimento e desenvolvimento. O primeiro é a natureza do capitalismo, seu grau de desenvolvimento e as estratégias de acumulação prevalecentes. O segundo é o papel do Estado na regulamentação e implementação das políticas sociais, e o terceiro é o papel das classes sociais.

Avalia-se, então, que um dado fundamental para o exame dessas complexas relações em que se insere a saúde pública brasileira é a estruturação de sua economia. De acordo com Oliveira (1980OLIVEIRA, F. A economia da dependência imperfeita. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980.), pela necessidade de expansionismo do sistema capitalista, o Brasil sofre consequências devastadoras no conjunto de possibilidades e soluções políticas como país da periferia do capital. Nessa perspectiva, na incorporação das economias periféricas ao processo capitalista de reprodução mundial, cabe aos estados nacionais o papel de indutores do desenvolvimento econômico, com apelo ao crédito externo para o financiamento de sua expansão, propiciando uma base produtiva integrada às necessidades dos mercados internacionais e aos imperativos do pensamento e da prática neoliberal, marcada pela retração das políticas públicas de proteção social.

Para Filgueiras (2014FILGUEIRAS, L. A natureza e os limites do desenvolvimento no capitalismo dependente brasileiro. Margem Esquerda, São Paulo, n. 23, p. 32-38, 2014., p. 34), “essa dependência, contudo, não é algo que se sobrepõe externamente aos países periféricos; antes, ela se constitui econômica e politicamente no interior desses países, através das alianças de classe que compõem os blocos no poder”. Isso ocorre porque a dependência não se limita à “deterioração dos termos de troca” ou à “troca desigual” evidenciadas no comércio internacional. Para além da circulação de mercadorias e capitais, é a totalidade do ciclo de reprodução do capital nos países periféricos que está subordinada e determinada, direta ou indiretamente, pelo ciclo de reprodução do capital em escala mundial, com o domínio dos capitais estrangeiros sobre os principais e mais dinâmicos setores produtivos nacionais. Desse modo, a dependência é um fenômeno endógeno aos países periféricos, que se efetiva econômica e politicamente através da articulação, orgânica ou não, de determinadas frações de capitais nacionais com o capital estrangeiro, imprimindo sua marca na natureza dos padrões de desenvolvimento. A partir daí são definidos os blocos no poder que controlam o Estado, condicionando o financiamento desses padrões, controlando a introdução e difusão do progresso tecnológico. Tudo isso circunscreve e limita, ou mesmo impõe e dirige a implementação de “reformas” e políticas econômicas que reproduzem a situação de subdesenvolvimento e dependência dos países periféricos (Filgueiras, 2014).

No Brasil, os impactos dessa correlação de forças entre países imperialistas e da periferia do capital evidenciam-se nas condições gerais do trabalho, “crescentemente desregulamentadas, informais, de que são exemplo as distintas formas de terceirização”, como afirma Antunes (2005ANTUNES, R. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 44), e no desenho focalizado das suas políticas sociais.

Segundo Iamamoto (2008IAMAMOTO, M. V. Estado, classes trabalhadoras e política social no Brasil. In: BOSCHETTI, I. et al. (Org.). Política social no capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008. p. 13-43., p. 39), os contornos das políticas sociais no Brasil estão intimamente atrelados às orientações do Banco Mundial. Em suas palavras:

As diretrizes na condução da política social apresentam fina sintonia com as recomendações dos organismos internacionais. O relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2006, do Banco Mundial, é explícito: a meta é a equidade, entendida enquanto igualdade de oportunidades de forma que respeite as liberdades individuais, bem como o papel do mercado a alocação de recursos.

É nesse contexto que a política de saúde se torna alvo de contradições que ora resultam em ganhos para a classe trabalhadora, ora servem aos interesses econômicos do grande capital. A partir desse cenário, este trabalho objetiva analisar as tendências da política pública de saúde, levando em consideração as atuais características do desenvolvimento político-econômico do Estado brasileiro, mas também situando-a enquanto política social inscrita nas complexas relações que envolvem o processo de produção e reprodução do capitalismo.

O artigo está estruturado em duas partes: a primeira destaca análises sobre o Estado e o desenvolvimento capitalista no Brasil, e a segunda evidencia as tendências da saúde pública no país, a partir desse quadro referencial.

Estado e desenvolvimento capitalista no Brasil

Assistimos, durante boa parte dos anos de governo de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, um retorno do papel do Estado brasileiro como agente indutor do desenvolvimento econômico, sob as bases de um “novo desenvolvimentismo”, retomando à cena pública o debate sobre as vias de um desenvolvimento nacional. No entanto, o que chama atenção desse período é o fato de que a ideia de desenvolvimento apareceu fortemente, mas sem suscitar nas classes subalternas qualquer debate sobre um projeto societário alternativo à ordem do capital, ou mesmo de um desenvolvimento que incluísse a dimensão da soberania nacional como meta.

O debate sobre as interpretações desse período ganhou um adensamento importante a partir da provocação feita pelo já citado Francisco de Oliveira, em seu texto Hegemonia às avessas, escrito logo após a reeleição de Lula para a presidência da República em janeiro de 2007 e que deu origem ao livro de mesmo título (Oliveira et al., 2010OLIVEIRA, F. et al. Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.). O debate trouxe à tona novas contribuições alicerçadas nos conceitos gramscianos de “revolução passiva”, “transformismo” e “hegemonia da pequena política”.

Na mesma trilha, Braga (2012BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 11) defendeu que estávamos diante de uma “revolução passiva à brasileira”, processo de modernização conservadora típico do capitalismo dependente. Tal processo sintetiza aspectos de “conservação”, de reação das classes dominantes para controlar e manter as manifestações contrárias nos estreitos limites da ordem social vigente, e de “inovação”, de incorporação de algumas demandas oriundas das classes subalternas.

Coutinho (2010COUTINHO, C. N. A hegemonia da pequena política. In: OLIVEIRA, F.; BRAGA, R.; RIZEK, S. Hegemonia às avessas. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 29-43., p. 37), por sua vez, utiliza-se da noção de contrarreforma para caracterizar a construção de hegemonia pelas classes burguesas no período neoliberal. Segundo o autor, não estaríamos diante de um processo de revolução passiva, pois o neoliberalismo seria, justamente, incapaz de incorporar as demandas das classes subalternas. A construção de hegemonia se daria, dessa forma, não por essa incorporação, mas pelo transformismo, ou seja, pela cooptação das principais lideranças do ciclo de lutas anterior (processo que não é exclusivo aos processos de revolução passiva) e pelo confinamento das demandas da classe trabalhadora à esfera da pequena política, no consenso passivo dos dominados, quando a política “deixa de ser pensada como arena de luta por diferentes propostas de sociedade e passa, portanto, a ser vista como um terreno alheio à vida cotidiana dos indivíduos, como simples administração do existente” (Coutinho, 2010, p. 32).

Para suscitar o debate sobre esse período do desenvolvimento do capitalismo brasileiro, é importante referenciar a década de 1990, período em que a América Latina experimentou o chamado neoliberalismo, baseando sua economia nas orientações do Consenso de Washington que previa medidas para acabar com a crise da dívida externa, a estagnação econômica e os altos índices inflacionários enfrentados pelos países da região.

A abordagem do Consenso de Washington para a crise na América Latina se solidificou nos anos de 1980. Em sua abordagem, traz como causas da crise o excessivo crescimento do Estado, com o excesso de regulações, e o populismo econômico, definido pela incapacidade de controlar o déficit público e de manter sob controle as demandas salariais tanto do setor privado quanto do setor público. A partir dessa avaliação, as reformas no curto prazo deveriam combater o populismo econômico e lograr o equilíbrio fiscal e a estabilização. Estruturalmente, a receita é uma estratégia baseada na redução do tamanho do Estado, na liberalização do comércio internacional e na promoção das exportações (Pereira, 1991PEREIRA, L. C. B. A crise da América Latina: Consenso de Washington ou crise fiscal? Pesquisa e Planejamento Econômico, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 3-24, 1991.).

No Brasil, resultou dessas medidas uma forte valorização de capitais estrangeiros, por meio de compras e expropriações maciças de bens públicos e da especulação financeira, o capital que rende juros. De acordo com Iamamoto (2008IAMAMOTO, M. V. Estado, classes trabalhadoras e política social no Brasil. In: BOSCHETTI, I. et al. (Org.). Política social no capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008. p. 13-43., p. 24):

O capital que rende juros, cunhado por Marx de capital fetiche, aparece como se tivesse o poder de gerar mais dinheiro no circuito fechado das finanças - como se fosse capaz de criar ovos de ouro -, independente da relação que faz dos lucros e dos salários criados na produção. Mas o fetichismo das finanças só é operante se existe produção de riquezas, ainda que as finanças minem seus alicerces ao absorverem parte substancial do valor produzido.

Além disso, também se acirraram os danos sociais sentidos com o desmonte da cadeia produtiva e com a desnacionalização de alguns setores, além da crescente superexploração do trabalho e da perda de direitos sociais básicos.

Para Amaral e Carcanholo (2012AMARAL, M. S.; CARCANHOLO, M. D. Superexploração da força de trabalho e transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (Org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102., p. 99-100):

Há quatro formas principais de superexploração do trabalho - atuando de forma isolada ou combinada - que possibilitam a continuidade do processo de acumulação capitalista na periferia, quais sejam: a) o aumento da intensidade do trabalho; b) o prolongamento da jornada de trabalho; c) a apropriação, por parte do capitalista, de parcela do fundo de consumo do trabalhador - então convertido em fundo de acumulação capitalista-, valendo o comentário de que esse mecanismo atua no sentido de criar “condições através das quais o capital viola o valor da força de trabalho”; e d) a ampliação do valor da força de trabalho sem que seja pago o montante necessário para tal.

Tais fatores se relacionam com “a existência do exército industrial de reserva” que fortalece a superexploração do trabalho, com aumento da jornada e intensificação do trabalho, além da queda salarial, implicando na elevação da taxa de mais valia e a consequente elevação da taxa de lucro. Isso se realiza porque esse exército de trabalhadores excluídos (massa de desempregados) exerce uma pressão sobre aqueles trabalhadores empregados, “forçando a que se submetam a todas as formas de superexploração existentes, sob pena de se verem substituídos e desempregados num momento futuro” (Amaral; Carcanholo, 2012AMARAL, M. S.; CARCANHOLO, M. D. Superexploração da força de trabalho e transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. (Org.). Padrão de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 87-102., p. 99-100).

Em relação à perda dos direitos sociais básicos, o conjunto de direitos duramente conquistados no texto constitucional de 1988 foram em grande parte submetidos à lógica do ajuste fiscal, distanciando a lógica do direito da realidade. Percebe-se também um assistencialismo focalizado, que não pode ser confundido com a assistência social, ao mesmo tempo que propicia um nicho lucrativo para o capital, em especial para os segmentos do capital nacional que perderam espaço com a abertura comercial. São exemplos a educação superior e a previdência complementar, considerando que a saúde vive essa condição a mais tempo (Behring; Boschetti, 2009BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2009.).

Com estas avaliações no início do novo século, os governos que representam os setores progressistas chegaram à presidência com posicionamentos de desenvolvimento nacional, anti-imperialistas e de defesa de um desenvolvimento autossustentável, fazendo críticas às políticas neoliberais e ressaltando seus resultados nefastos em termos de autonomia e desenvolvimento dos Estados nacionais (Mota; Amaral; Peruzzo, 2010MOTA, A. E.; AMARAL, A.; PERUZZO, J. O novo desenvolvimentismo e as políticas sociais na América Latina. In: MOTA, A. E. (Org.). As ideologias da contrarreforma e o serviço social. Recife: Editora UFPE, 2010. p. 35-67.).

Segundo Castelo (2012CASTELO, R. O novo desenvolvimentismo e a decadência ideológica do pensamento econômico brasileiro. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 112, p. 613-636, 2012., p. 624), nesse cenário de esgotamento da estratégia neoliberal:

Percebeu-se uma dupla movimentação na política regional: de um lado, as classes dominantes readequaram o seu projeto de supremacia, incorporando uma agenda de intervenção focalizada nas expressões mais explosivas da “questão social”, naquilo que se convencionou chamar de social-liberalismo; […] De outro, uma mobilização política das classes subalternas antagônicas ao neoliberalismo levou à derrubada de governantes alinhados ao Consenso de Washington (Argentina, Bolívia, Equador, Peru) e à eleição de coalizões partidárias com posições antineoliberais (Venezuela, Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai).

Diante desse quadro, se iniciaram no Brasil as discussões sobre o desenvolvimento econômico e social vinculadas às ideias do chamado projeto neodesenvolvimentista que, segundo o economista Armando Boito Junior (2012BOITO JUNIOR, A. As bases políticas do neodesenvolvimentismo. In: FÓRUM DE ECONOMIA DA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS, 9., 2012, São Paulo. Papers… São Paulo: FGV, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2SdXy9k >. Acesso em: 20 out. 2018.
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), teve como base uma frente política ampla, policlassista e de certo modo instável, com sustentação na política de desenvolvimento.

Na economia brasileira, assinalaram o surgimento desse regime político-econômico o artigo “O novo desenvolvimentismo”, escrito por Carlos Bresser- -Pereira para a em 2004BRESSER-PEREIRA, L. C. O novo desenvolvimentismo.Folha de S.Paulo, São Paulo, 19 set. 2004. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2CUXdTU >. Acesso em: 20 maio 2018.
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, e a coletânea Novo-desenvolvimentismo: um projeto nacional de crescimento com equidade social, organizada por João Sicsú, Luiz Fernando de Paula e Renaut Michael. Em comum, as literaturas afirmam o surgimento de um modelo de acumulação capitalista distinto dos velhos períodos de desenvolvimentismo, bem como da “ortodoxia convencional” dos anos de 1990, em que as políticas sociais se destacam sobre as meramente econômicas.

No entanto, ainda que as políticas econômico-sociais não tenham permanecido as mesmas durante esse processo de desenvolvimento, elas se apoiaram em elementos conjunturais, podendo ser facilmente revertidas de acordo com o posicionamento das distintas frações do capital no interior do Estado (Filgueiras, 2014FILGUEIRAS, L. A natureza e os limites do desenvolvimento no capitalismo dependente brasileiro. Margem Esquerda, São Paulo, n. 23, p. 32-38, 2014.).

Diante desse quadro e da gravidade dos retrocessos anunciados recentemente, sobretudo após o golpe de Estado de 2016, que instituiu no Brasil o presidente ilegítimo Michel Temer, somadas ao inteiro afastamento das instâncias e mecanismos de controle e participação social, próprias de um Estado de exceção, ao mesmo tempo que se intensificam as participações dos setores privados na gestão das políticas públicas, Soares (2018SOARES. R. C. Governo Temer e contrarreforma na política de saúde: a inviabilização do SUS. Revista Argumentum, Vitória, v. 10, n. 1, p. 24-32, 2018., p. 28) afirma que:

Vive-se no Brasil um momento crucial da ofensiva capitalista no decurso do golpe institucional. Tal ofensiva só encontra terreno fértil para sua realização mediante a inviabilização ou profunda restrição das alternativas civilizatórias e democráticas, mesmo sob a ordem capitalista. A prisão do ex-presidente Lula da Silva, assim, constitui-se elemento importante nesse processo.

Para Soares (2018SOARES. R. C. Governo Temer e contrarreforma na política de saúde: a inviabilização do SUS. Revista Argumentum, Vitória, v. 10, n. 1, p. 24-32, 2018., p. 26) “com o decurso do golpe e do governo Temer, a contrarreforma do Estado brasileiro e precisamente da política de saúde entra em uma nova fase de explicitação do processo”. Estaria se estabelecendo na saúde uma estratégia que evidencia o vínculo das mudanças impetradas pelo governo Temer com o capital nacional e internacional. Nesse cenário, a população brasileira, sobretudo a classe trabalhadora, vem enfrentando a maior ofensiva da história deste país contra o conjunto das conquistas civilizatórias de nosso Estado. No item a seguir, ressalta-se as tendências da política de saúde nesse processo.

Tendências da política de saúde

Para o entendimento do arranjo social em disputa no cenário da saúde pública brasileira, cabe registrar que o padrão de proteção social que garantiu o direito à sua universalização desenvolveu-se de forma “tardia”, nos moldes de seguro social e de caráter híbrido que mistura direitos provenientes do trabalho (previdência), com direitos universais (saúde) e direitos seletivos (assistência social) (Boschetti, 2009BOSCHETTI, I. Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. Brasília, DF: CFESS, 2009.).

Nesse sentido, desde o marco legal de sua construção, o sistema de saúde brasileiro tem sido submetido à polarização da seguridade social com característica de seguro, e o direito à saúde com caráter universalista. Assim, a característica principal da proteção social brasileira se configura na opção de não construir um estado de “bem-estar” e adoção da versão restrita de políticas sociais numa perspectiva de “Estado desenvolvimentista” (Fiori, 1995FIORI, J. L. Em busca do dissenso perdido: ensaios críticos sobre a festejada crise do estado. Rio de Janeiro: Insight Editorial, 1995.).

Resultado dessa contradição, assistimos a um processo de municipalização do sistema de saúde brasileiro, com ampliação de serviços públicos, predominantemente no âmbito da atenção primária à saúde, e a não garantia de financiamento adequado do setor saúde, que se configurou como entrave central na efetivação da política como direito social. Tal fato se agravou com a estratégia de ajuste econômico de Desvinculação das Receitas da União, iniciada na década de 1990 e presente até os dias atuais, a fim de desviar os recursos que deveriam ser destinados aos programas sociais para pagamento do déficit público (Paim, 2013PAIM, J. S. A Constituição cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 10, p. 1927-1953, 2013.).

Para Mendes (2013MENDES, E. V. 25 anos do Sistema Único de Saúde: resultados e desafios. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 78, p. 27-34, 2013., p. 30), a generosidade do mandamento jurídico da saúde como direito de todos e dever do Estado não foi sustentada na Constituição Federal por uma base material que garantisse um financiamento público compatível com a universalidade. Essa questão acompanha a problemática sobre os crescentes cruzamentos entre os interesses do setor público e do setor privado. De um lado, uma lógica traduzida nos esforços de viabilizar o Sistema Único de Saúde (SUS), e de outro, a lógica privatista, com a ampliação do setor suplementar através da oferta do consumo de planos e seguros de saúde (Menicucci, 2007MENICUCCI, T. M. G. Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetória. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.).

Vale ressaltar o fato de já existir um setor privado robusto, “tanto no campo da prestação de serviços (com um parque hospitalar predominantemente privado), como no que tange ao asseguramento privado (por meio de seguradoras e operadoras de planos privados de saúde)” impulsionados desde a década de 1950 (Santos; Ugá; Porto, 2008SANTOS, I. S.; UGÁ, M. A. D.; PORTO, S. M. O mix público-privado no Sistema de Saúde Brasileiro: financiamento, oferta e utilização de serviços de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, p. 1431-1440, 2008.). Além disso, o Brasil é bastante atrativo ao complexo produtivo da saúde, quer seja por sua dimensão, com amplo mercado consumidor interno, quer seja pelas facilidades de investimentos garantidas ao setor privado pelos diversos governos ao longo da história (Cardoso et al., 2017CARDOSO, M. R. D. O. et al. O mix público e privado no sistema de saúde brasileiro: coexistência em evidência. Saúde em Redes, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 107-118, 2017.).

Mendes (2013MENDES, E. V. 25 anos do Sistema Único de Saúde: resultados e desafios. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 78, p. 27-34, 2013.), em entrevista sobre os 25 anos do SUS, caracteriza o sistema como segmentado, no qual há convivência entre um sistema universal, que seria o constitucional, um sistema suplementar, de caráter privado, mas subsidiado pelo SUS, e um sistema privado de desembolso direto. Embora o arcabouço legal do SUS tenha garantido a saúde como um direito de todos e dever do Estado, a legislação também permitiu que a assistência à saúde ficasse livre à iniciativa privada, estabelecendo as instituições privadas como complementares ao SUS e abrindo precedentes para a continuidade da compra dos serviços privados pelo setor público estatal.

Esse setor suplementar tem como um de seus objetivos a ampliação do mercado de planos e seguros privados de saúde, e vem conformando um processo de consolidação de um sistema de saúde dual no país, “confrontando a lógica da assistência médica como uma mercadoria ou um produto à lógica do SUS, baseada na noção de direito de cidadania” (Menicucci, 2007MENICUCCI, T. M. G. Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetória. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007., p. 190).

No campo do financiamento em saúde, existem ainda outras formas de relação público-privado no Brasil. Estas se dão de três maneiras: (1) desonerações fiscais a pessoas físicas e às empresas que, ao imputarem como custos os gastos em serviços e planos de saúde dos seus funcionários, diminuem também a base de cálculo do imposto de renda; (2) pelo gasto de órgãos públicos com operadoras de seguros de saúde para a assistência à saúde de servidores públicos e seus familiares; e (3) pelo uso de serviços do SUS por clientes de operadoras privadas, nos casos em que não ocorre o ressarcimento ao sistema público (Santos; Santos; Borges, 2013SANTOS, I. S.; SANTOS, M. A. B.; BORGES, D. C. L. Mix público-privado no sistema de saúde brasileiro: realidade e futuro do SUS. In: FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. A saúde no Brasil em 2030: prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: estrutura do financiamento e do gasto setorial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. v. 4, p. 73-131.).

Nos anos 2000, as expectativas de efetivação do SUS foram retomadas na esperança de que os projetos neodesenvolvimentistas adotados pelos governos progressistas no Brasil atuassem na contramão dos interesses privatistas. No entanto, foi possível verificar durante esse projeto uma forte vinculação das políticas sociais a uma cadeia de serviços, mercadorias e finanças, ampliando a lucratividade do capital nacional e internacional e correspondendo aos interesses burgueses na saúde. A concepção de saúde nesse período, expressa no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) da saúde, destacou a saúde como direito social e estratégia de desenvolvimento e de investimento público e privado, integrando assim um modelo de desenvolvimento econômico que tem suas bases de crescimento na lucratividade do capital (Soares, 2010SOARES, R. C. A contrarreforma na política de saúde e o SUS hoje: impactos e demandas ao Serviço Social. 2010. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.).

De acordo com Soares (2010SOARES, R. C. A contrarreforma na política de saúde e o SUS hoje: impactos e demandas ao Serviço Social. 2010. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.), alguns elementos, como a queda da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), a proposta de criação das Fundações Estatais de Direito Privado (FEDP) e a expansão da oferta de planos privados de assistência à saúde para servidores públicos, ainda no primeiro mandato do presidente Lula da Silva, e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento no seu segundo mandato do “Plano Mais Saúde: direito de todos 2008-2011”, conhecido como o PAC da saúde, expressaram o reconhecimento da saúde e seu complexo industrial, nesse período, como eixos estratégicos para o desenvolvimento nacional nos moldes do projeto “neodesenvolvimentista”. Nos termos de Bravo (2007BRAVO, M. I. S. Política de saúde no Brasil. In: MOTA, A. E. et al. Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, 2007. p. 212-220.), se por um lado foram fortalecidos alguns pontos do projeto da Reforma Sanitária, por outro houve o depósito da realização do direito à saúde à iniciativa privada - que contou com um significativo aumento do lucro líquido entre os anos 2003 e 2011, em detrimento de investimentos na esfera estatal.

Nos governos da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), a formação de uma frente burguesa “antidesenvolvimentista” e o avanço do cerco rentista no país distanciariam ainda mais a efetivação do direito à saúde pela via pública estatal. Apesar do lançamento do programa Inova Empresa, que pretendia injetar recursos no fomento a inovações tecnológicas em empresas de inúmeros setores industriais no país, entre eles da iniciativa privada da saúde, bem como nas universidades, laboratórios e centros de pesquisa públicos (Antunes, 2013ANTUNES, A. Inova Saúde: governo busca fomentar a inovação da indústria nacional de medicamentos e equipamentos médicos. Para pesquisadores, programa subsidia modelo de atenção à saúde baseado em planos privados. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 18 jul. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2EJuy6O >. Acesso em: 10 jul. 2016.
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), os impactos da economia internacional na economia brasileira, como o baixo crescimento do PIB, em 2012, e o surto inflacionário anunciado em janeiro de 2013, tornaram cada vez mais difícil a continuidade do projeto iniciado nos governos Lula da Silva (Singer, 2015SINGER, A. Cutucando onças com varas curtas: o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato Dilma Rousseff (2011-2014). Novos estudos, São Paulo, ed. 102, v. 34, n. 2, p. 42-71, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2EKqQKi > Acesso em: 20 out. 2018.
https://bit.ly/2EKqQKi...
).

No SUS, por um lado a pressão popular viabilizou a implantação do programa Mais Médicos Brasil em 2013, que no seu eixo provimento emergencial diminuiu a carência de médicos em regiões prioritárias e vulneráveis, como exemplo das regiões Norte e Nordeste do país (Kemper et al., 2018KEMPER, E. S. et al. Cobertura universal em saúde e o Programa Mais Médicos no Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 42, p. 1-5, 2018.).

Por outro lado, os impactos da crise ocorreram basicamente nos incentivos financeiros realizados através da concessão do fundo público à inciativa privada, por meio da permanência do mecanismo de renúncia fiscal concedidos aos planos e seguros privados de assistência à saúde, permissão da abertura do capital privado estrangeiro para exploração das ações e serviços de saúde, além da adoção de ajustes fiscais com considerável redução nos recursos da saúde (Mendes, 2015MENDES, A. O subfinanciamento e a mercantilização do SUS no contexto do capitalismo contemporâneo em crise. In: BRAVO, M. I. S. et al. A mercantilização da saúde em debate: as Organizações Sociais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Uerj: Rede Sirius, 2015.). Expressam os retrocessos na saúde pública e a concessão dos seus serviços à iniciativa privada, dentre outros, o processo de privatização do maior sistema hospitalar público composto por hospitais universitários, que em março de 2014 já contava com 23 hospitais em contrato com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), de natureza privada (sendo este número atualizado em junho de 2018 para 39 hospitais), e a aprovação da Emenda Constitucional (EC) nº 86/2015, que modificou a base de cálculo do financiamento federal da saúde, vinculando-a ao lucro líquido, em detrimento da campanha dos 10% do PIB defendida por amplo setor organizado na saúde.

Esse cenário foi agravado pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016. Não mais interessado no projeto “neodesenvolvimentista”, a ofensiva restauradora do grande capital internacional e das frações da burguesia brasileira a ele associadas encontrou caminho livre para avançar, dando início ao “golpe midiático-jurídico-parlamentar”. O golpe, implementado por deputados e senadores profundamente envolvidos em casos de corrupção (cerca de 60%), levou à presidência do Brasil o presidente interino Michel Temer, que vem estabelecendo medidas antidemocráticas, antipopulares e antinacionais.

Como medidas antidemocráticas, citamos aqui a imposição do novo regime fiscal, na contramão das reivindicações sociais e posicionamento de centenas de entidades, que prevê o congelamento dos gastos primários por vinte anos, através da EC nº 95/2016, ameaçando o conjunto das políticas sociais, dentre as quais a política de saúde pública. Estima-se uma perda acumulada de aproximadamente R$ 654 bilhões para a saúde pública até o ano de 2036 (Cosemsrj, 2016COSEMSRJ - CONSELHO DE SECRETARIAS MUNICIPAIS DE SAÚDE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Estudo prevê que o SUS perderá 654 bilhões caso a PEC 241 seja aprovada. 3 ago. 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2EHNHWB > Acesso em: 20 jul. 2017.
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).

Ressaltam-se ainda as alterações na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e na Política de Saúde Mental, que contou com débil participação social na definição dessas modificações. Após pressão do movimento sanitário, foi realizada consulta pública por meio eletrônico sobre as já definidas alterações da PNAB, que não foram analisadas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). Pode-se observar o rompimento da centralidade na Estratégia Saúde da Família, possibilitando a exclusão dos agentes comunitários de saúde da equipe, ao instituir formas de financiamento para outros arranjos assistenciais, com base em princípios opostos aos que norteiam a atenção primária à saúde (Bravo; Pelaez; Pinheiro, 2018BRAVO, M. I. S.; PELAEZ, E. J.; PINHEIRO, W. N. As contrarreformas na política de saúde do governo Temer. Revista Argumentum, Vitória, v. 10, n. 1, p. 9-23, 2018.).

Com relação à Política de Saúde Mental, foram aprovadas novas diretrizes para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que engendram mudanças visando o fortalecimento das internações em hospitais psiquiátricos, além da criação de leitos em hospitais gerais e serviços ambulatoriais, por meio de ampliação de recursos para tais fins. Registra-se, nesse processo, a completa ausência de consulta aos representantes do controle social e à sociedade, incluindo as entidades e pesquisadores que atuam no movimento de luta antimanicomial, que avaliam que as alterações na política decorrem de um movimento em benefício do mercado e da “indústria da loucura” (Mudanças…, 2018MUDANÇAS na Política Nacional de Saúde Mental: participação social atropelada, de novo. Boletim: Projeto Análise de Políticas de Saúde no Brasil (2013-2017), Salvador, v. 4, n. 15, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2KI8nM1 > Acesso em: 1º jul. 2018.
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). Para o movimento, tais mudanças marcam um retrocesso na implantação da rede de atenção psicossocial territorializada, de base comunitária e construída com participação dos movimentos sociais da luta antimanicomial e do controle social.

Como medidas antipopulares, o governo Temer, sob a gestão do Ministro da Saúde Ricardo Barros, anunciou assim que assumiu o cargo que “o tamanho do SUS precisa ser revisto”. Assim, determina o fechamento de todas as unidades próprias do programa Farmácia Popular, lançado em 2004, que garantia a distribuição gratuita ou com até 90% de desconto de 112 medicamentos de uso contínuo para doenças crônicas, como hipertensão, diabetes e anemia. Por outro lado, mantém a parceria com as farmácias privadas, o que deixa claro os interesses de mercado do governo (Cardona Junior, 2017CARDONA JUNIOR, A. Fim das Farmácias Populares é mais um duro ataque. Jornal Brasil de Fato, São Paulo, 15 jun. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2AqZd4O >. Acesso em: 20 out. 2018.
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; RBA, 2017RBA - REDE BRASIL ATUAL.Governo Temer anuncia fim de todas as Farmácias Populares até agosto. 7 jun. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2D1DzX5 >. Acesso em: 7 jun. 2017.
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).

Além do mais, a população vem sentindo os impactos da crise concretamente em suas vidas, com aumento de 11,2% da pobreza extrema entre 2016 e 2017 (Bôas, 2018BÔAS, B. V. Pobreza extrema aumenta 11% e atinge 14,8 milhões de pessoas. Jornal Valor Econômico, Rio de Janeiro, 12 abr. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2KVaQnb >. Acesso em: 12 abr. 2018.
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) e 13,1% de desempregados no primeiro trimestre de 2018 (Benedicto, 2018BENEDICTO, M. Desemprego volta a crescer no primeiro trimestre de 2018. Agência IBGE Notícias, Rio de Janeiro, 27 abr. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2KJwcUN >. Acesso em: 27 abr. 2018.
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), ao mesmo tempo que o governo faz cortes em programas de transferência de renda como o Bolsa Família, o que repercute diretamente nas condições de saúde e doença da população.

Por outro lado, identifica-se o avanço do setor empresarial da saúde, a exemplo da elaboração do documento Coalizão saúde Brasil: uma agenda para transformar o sistema de saúde, divulgado em 2017. O documento é do Instituto Coalizão Saúde (Icos), formado por representantes da cadeia produtiva do setor de saúde com a intenção de aprofundar as relações entre os setores público e privado. Entre as principais propostas da agenda estão a ampliação da participação dos prestadores privados de assistência à saúde na definição do desenho, planejamento e execução das políticas nacionais de saúde, além de priorizar o planejamento e regulação do setor privado no atendimento público de saúde, por exemplo, estabelecendo critérios para qualificação dos prestadores (Icos, 2017ICOS - INSTITUTO COALIZÃO SAÚDE. Coalizão Saúde Brasil: uma agenda para transformar o sistema de saúde. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2JeRIAK > Acesso em: 20 out. 2017.
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).

Já as medidas antinacionais são conduzidas a partir da abertura do pré-sal para o capital estrangeiro, o desmonte e privatização de ativos da Petrobras, assim como o enfraquecimento do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) enquanto banco de fomento do desenvolvimento nacional, o que contribui para a desnacionalização da economia e aprofunda a hegemonia do capital financeiro.

Portanto, nesse cenário de vínculos estreitos do empresariado da saúde privada com um Estado regressivo em relação aos direitos sociais já conquistados, as possibilidades de se estruturar um sistema de saúde público, universal e de qualidade, como previstos na Constituição Federal de 1988, se tornam cada vez mais distantes.

Considerações finais

Entender a correlação de forças existente entre diferentes projetos societários e seu rebatimento na ação estatal em determinados períodos torna-se fundamental na análise das políticas sociais brasileiras. Essas avaliações implicam direcionar o olhar para a forma como se construiu nossa sociedade civil e como as diferentes classes constroem sua hegemonia.

Assim, situar a saúde pública brasileira no terreno da luta de classes, e suas consequentes respostas institucionais por parte do Estado brasileiro, é uma condição fundamental para apreender o real significado e alcance dessa política pública para a classe trabalhadora.

De acordo com as ideias de Oliveira (1980OLIVEIRA, F. A economia da dependência imperfeita. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1980.), que foram utilizadas algumas vezes como mediadoras do processo de construção deste trabalho, existe, sem dúvida nenhuma, uma determinação de caráter estrutural entre as modificações econômicas que se gestam em anos anteriores e as transformações que vão se dá em anos sequentes, mas, sobretudo, são determinações que emergem dentro de um conjunto de possibilidades e soluções políticas que terminarão por ser implantadas.

Por isso, para alguns críticos da saúde coletiva, a exemplo de Paim (2013PAIM, J. S. A Constituição cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 10, p. 1927-1953, 2013.), apesar da vitória de um governo progressista nas eleições brasileiras de 2002, as políticas sociais permaneceram com caráter de continuidade das políticas implementadas pelo governo liberal que o antecedeu. Mesmo com a oportunidade histórica de construção de outro modelo de seguridade e das relações entre capital e trabalho, foi transformado pelos interesses dos gestores do capital (Paim, 2013).

Com o golpe de Estado de 2016, pode-se afirmar que a política de saúde vem se constituindo como um instrumento em permanente disputa de classes, mas com demasiada e crescente apropriação dos seus serviços pelo capital privado, trazendo à luz os projetos que estão em confronto no interior do Estado.

Assim, os elementos aqui indicados salientam a importância da negação da lógica excludente do mercado, funcional para a ordem capitalista, mediada no contexto de uma estratégia defensiva do SUS que reivindique a saúde como um direito social.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2018
  • Aceito
    17 Out 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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