Melhor no passado: a verdadeira saúde da família11Este artigo teve como base a dissertação de mestrado de Patrícia Aparecida da Silva Valadão Bioética e relações de trabalho entre profissionais da Estratégia Saúde da Família, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho da Universidade Federal da Bahia.

Patrícia Aparecida da Silva Valadão Liliane Lins Fernando Martins Carvalho Sobre os autores

Resumo

Buscou-se avaliar os limites da Estratégia Saúde da Família (ESF) a partir do cotidiano de trabalho de seus profissionais. Neste estudo qualitativo, realizaram-se entrevistas individuais semiestruturadas com 16 profissionais da equipe de Saúde da Família de um município da região metropolitana de Salvador, Bahia. O exame dos dados utilizou a análise de conteúdo proposta por Bardin e os referenciais da Política Nacional de Atenção Básica e da Política Nacional de Humanização para Atenção Básica. Identificaram-se duas categorias: a atenção básica (AB) do Sistema Único de Saúde (SUS) e a cogestão e humanização na AB. Na primeira categoria, evidenciou-se o contexto atual que permeia a AB, caracterizando os desafios que se apresentam no cotidiano de trabalho dos profissionais da ESF e as dificuldades encontradas para mudar o modelo de atenção à saúde. Na segunda categoria, destacaram-se as condições concretas em que se realizam as práticas no cotidiano de trabalho, indo de encontro aos pressupostos da humanização. Os problemas apresentados evidenciam descaracterização da AB, contradizem os preceitos da ESF e revelam dificuldades na proposta de reorientação do modelo de saúde.

Palavras-chave:
Atenção Básica à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Humanização da Assistência

Introdução

No Brasil, o modelo tradicional centrado na prática médico-assistencial privatista, hospitalocêntrico, baseado na doença e em medicamentos, com fragmentação e especialização da medicina, foi questionado pelo movimento de reforma sanitária e vem sofrendo modificações (Costa et al., 2009COSTA, G. D. et al. Saúde da família: desafios no processo de reorientação do modelo assistencial. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 62, n. 1, p. 113-118, 2009.; Scherer; Marino; Ramos, 2005SCHERER, M. D. A.; MARINO, S. R. A.; RAMOS, F. R. S. Rupturas e resoluções no modelo de atenção à saúde: reflexões sobre a estratégia saúde da família com base nas categorias kuhnianas. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, São Paulo, v. 9, n. 16, p. 53-66, 2005.). As mudanças tiveram como marco histórico a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, em que se aprovou a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).

A Estratégia Saúde da Família (ESF) foi implantada em 1994 pelo Ministério da Saúde, primeiramente como um programa e, a partir de 2006, como uma proposta de mudança e reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica - ou AB (Brasil, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: atenção básica. Brasília, DF, 2010. v. 2. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2nlNo5T >. Acesso em: 7 fev. 2018.
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, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF, 2012.). São necessários esforços e responsabilidades de todas as esferas de Governo para ampliar a ESF, ofertando maior cobertura assistencial à população, buscando melhorar os indicadores de saúde, consolidar e qualificar a atenção básica à saúde e transformar seu modelo. Para alcançar esse novo paradigma, a ESF deve ser regida pelos princípios pilares do SUS, privilegiando as ações de promoção da saúde e prevenção de doenças (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF, 2012.).

O HumanizaSUS, como também é conhecida a Política Nacional de Humanização (PNH), busca por em prática os princípios do SUS no cotidiano dos serviços de saúde, produzindo mudanças nos modos de gerir e cuidar. Consiste numa aposta ética, política e estética de inclusão e comunicação dos três atores do SUS (trabalhadores, usuários e gestores), de forma que atuem, coletivamente, como sujeitos corresponsáveis no cuidado de si, do outro e do ambiente, visando melhorar relações e processos de trabalho.22 BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização: HumanizaSUS. Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: <https://bit.ly/2NwlnGK>. Acesso em: 8 jan. 2019. Criada pelo Ministério da Saúde em 2003, a PNH define a humanização no SUS como uma estratégia de democratização da gestão e das práticas de saúde. É uma política transversal e, por isso, precisa também transpor barreiras rígidas, como as encontradas nos diferentes campos de saber, a exemplo da equipe multiprofissional da ESF. É, antes de tudo, uma proposta ética porque envolve atitude de usuários, gestores e profissionais de saúde comprometidos e corresponsáveis. A PNH é uma política ampliada na medida em que se preocupa não só com o usuário, mas também com os trabalhadores de saúde - ou seja, há inseparabilidade entre a clínica e a gestão, no nível micro e macro político (Brasil, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: atenção básica. Brasília, DF, 2010. v. 2. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2nlNo5T >. Acesso em: 7 fev. 2018.
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).

A Unidade Básica de Saúde (UBS) deve funcionar como porta de entrada do SUS. As ações e serviços na ESF acontecem no território adscrito à Unidade Saúde da Família (USF), ampliando e localizando espacial e temporalmente a noção do processo saúde-doença e tornando possível o vínculo com os indivíduos (Brasil, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: atenção básica. Brasília, DF, 2010. v. 2. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2nlNo5T >. Acesso em: 7 fev. 2018.
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). Para a implantação da estratégia, é necessária uma equipe multiprofissional, tendo como grupo mínimo uma composição com médico, enfermeiro, auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde. A equipe pode ser acrescida de cirurgião dentista, auxiliar e/ou técnico em saúde bucal, dentre outros, a exemplo dos profissionais do Núcleo de Apoio e Assistência à Saúde da Família (Nasf), como nutricionista, psicólogo, fisioterapeuta, educador físico, fonoaudiólogo e assistente social (Brasil, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: atenção básica. Brasília, DF, 2010. v. 2. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2nlNo5T >. Acesso em: 7 fev. 2018.
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, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 out. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2VA3ATz >. Acesso em: 10 set. 2015.
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).

A diversidade no processo de trabalho no contexto da ESF se deve ao fato de que o objeto de trabalho desses profissionais é o ser humano, cuja saúde buscam preservar ou reconstituir, tendo como produtos imateriais o conforto, o bem-estar e a satisfação dos usuários (Minayo-Gomez; Machado; Pena, 2011MINAYO-GOMES, C.; MACHADO, J. M. H.; PENA, P. G. L. (Org.). Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011.).

Discutir a dinâmica do processo de trabalho das equipes da ESF quanto a sua organização, seu espaço físico, suas relações de trabalho e suas relações interprofissionais, contribui para a compreensão de suas potencialidades e fragilidades (Buchele; Coelho, 2010BUCHELE, F.; COELHO, E. B. S. (Org.) A formação em saúde da família: uma estratégia na consolidação do SUS. Florianópolis: Editora UFSC, 2010.). O alcance dos objetivos propostos da ESF requer relação pessoal estreita do usuário do serviço com os profissionais de saúde, os quais, idealmente, devem reproduzir tal proximidade entre si. No denominado trabalho em equipe, as equipes multiprofissionais, estando mais perto das pessoas, deslocam o foco do indivíduo para a família, na tentativa de garantir a oferta de um atendimento integral de saúde com maior resolutividade (Costa et al., 2009COSTA, G. D. et al. Saúde da família: desafios no processo de reorientação do modelo assistencial. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 62, n. 1, p. 113-118, 2009.). O trabalho em equipe desenvolvido pelos diversos profissionais na ESF deve acontecer de forma interprofissional. Interprofissionalidade, aqui, deve ser compreendida como a atuação de diferentes profissionais, com autoridade individual e seus respectivos códigos de ética e culturas profissionais, interagindo nas áreas comuns em que todos têm conhecimento, independentemente da especialidade - envolvendo a integração de saberes e colaboração interprofissional (Ellery, 2012ELLERY, A. E. L. Interprofissionalidade na Estratégia Saúde da Família: condições de possibilidade para a integração de saberes e a colaboração interprofissional. 2012. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012.).

Compreender as ações dos trabalhadores de saúde e os limites no processo de trabalho pelos profissionais que compõem a ESF, sob a ótica da Política Nacional de Atenção Básica, poderá contribuir para o remodelamento do modelo assistencial vigente na AB no SUS.

Este trabalho busca avaliar os limites da ESF a partir do cotidiano de trabalho de seus profissionais.

Metodologia

O estudo tem natureza qualitativa e descritiva e visou a construção de sentidos. Com essa abordagem, buscou-se compreender o que determinadas situações vivenciadas e as experiências e significações individuais cotidianas representam e como elas moldam o indivíduo ou um grupo de indivíduos (Turato, 2005TURATO, E. R. Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 507-514, 2005.).

O estudo foi realizado entre fevereiro e outubro de 2015, em uma USF localizada em um município da região metropolitana de Salvador, Bahia, com amostra de 16 profissionais atuantes nas duas equipes de ESF implantadas na referida unidade.

Foram incluídos os profissionais que atuavam no serviço há pelo menos seis meses, em qualquer uma das equipes ou Nasf, independentemente do vínculo empregatício, sexo e idade.

Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, com roteiro semidirigido, com uma enfermeira, uma médica, duas técnicas de enfermagem, uma recepcionista, uma psicóloga, uma assistente social, uma nutricionista, uma dentista, a gerente da unidade e seis agentes comunitários, cinco mulheres e um homem. Os discursos foram gravados e posteriormente transcritos na íntegra (Rosa; Arnoldi, 2008ROSA, M. V. F. P. C.; ARNOLDI, M. A. G. C. A entrevista na pesquisa qualitativa: mecanismos para validação dos resultados. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.). Não houve necessidade de aumentar o número de equipes pesquisadas para se alcançar a saturação teórica dos dados (Fontanella et al., 2008FONTANELLA, B. J. B. et al. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 17-27, 2008.).

Considerando as diferentes perspectivas profissionais dos sujeitos, buscou-se captar como eles compreendiam e interpretavam o universo simbólico em que estavam imersos e identificar os valores pessoais que lhes traziam significações em meio ao contexto socialmente construído da ESF. A captação foi facilitada pela observação em campo, com anotações no diário acerca das ações desenvolvidas no cotidiano de trabalho dos profissionais da ESF, bem como as interações e as relações que ocorriam no desenvolver do trabalho em equipe. Segundo Morin (2013MORIN, E. Ciência com consciência. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.), para compreender o que se busca, é preciso olhar tanto as partes como o todo.

O método de análise de conteúdo foi utilizado para o tratamento e exame do material gerado pelas entrevistas. Ele pode ser definido como um conjunto de técnicas de análise das comunicações que, com a utilização de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, é capaz de permitir a inferência de conhecimentos relativos à produção dessas mensagens (Bardin, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009.). A análise categorial temática perpassou por três diferentes fases, desde pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados até interpretação e inferência. A informação contida nas mensagens foi tratada de forma a permitir ver além daquilo que se escutou ou leu, trabalhando com vestígios, significações e significantes por trás das palavras, o que deu origem às categorias (Bardin, 2009).

A cada categoria de análise, emergiram subcategorias que contribuíram para a melhor compreensão do objeto de estudo.

Para aprofundar a análise, esta pesquisa se ancorou na Política Nacional de Humanização (Brasil, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: atenção básica. Brasília, DF, 2010. v. 2. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2nlNo5T >. Acesso em: 7 fev. 2018.
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)33 BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização: HumanizaSUS. Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: <https://bit.ly/2NwlnGK>. Acesso em: 8 jan. 2019. e na Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 out. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2VA3ATz >. Acesso em: 10 set. 2015.
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, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 set. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2DdWcaE >. Acesso em: 13 dez. 2017.
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). Ressalta-se que as narrativas foram coletadas no período em que estava vigente a Portaria nº 2.488/2011 que aprovou esta última política (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 out. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2VA3ATz >. Acesso em: 10 set. 2015.
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).

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Bahia, Parecer nº 693.112, de 21 de junho de 2014. Para garantir o anonimato, nomes fictícios foram dados aos participantes da pesquisa.

Resultados e discussão

Após tratamento e análise dos discursos produzidos nas entrevistas, emergiram duas unidades temáticas por categorias de análise, “Atenção básica do SUS” e “Cogestão e humanização na atenção básica”. Das unidades temáticas, emergiram as subcategorias (Bardin, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009.) apresentadas em seguida.

A atenção básica do SUS

As narrativas dos diferentes profissionais conferem significados próprios ao trabalho que é desenvolvido na ESF. A inserção na AB do SUS e as percepções sobre a atuação e os limites da estratégia se expressam no campo de atuação, no cotidiano do trabalho. Nota-se o tripé da responsabilização, em que o outro sempre tem a responsabilidade. Os usuários colocam a responsabilidade nos gestores; estes colocam a responsabilidade nos profissionais, que, por sua vez, responsabilizam os usuários. O usuário responsabiliza o gestor por má administração, por não atender seu direito constitucional à saúde; o gestor responsabiliza os profissionais pela falta de comprometimento com o trabalho e/ou por um processo de trabalho ineficaz; resta aos profissionais responsabilizar os usuários pela falta da participação popular e por não serem agentes autônomos e modificadores da sua saúde.

A inserção e os significados de trabalhar no SUS

Os discursos refletem o fazer no SUS - um SUS que parece estar sendo feito “para pobres”, sob um viés de “caridade”, de “voluntariado”. Os trabalhadores se inseriram e permanecem nesse espaço sem conhecê-lo especificamente. Ressalte-se que apenas um profissional entrevistado tinha formação de sanitarista.

Eu tinha alguns colegas que eram agentes comunitários e aí eles faziam um trabalho voluntário e eu sempre me oferecia para fazer esse trabalho voluntário. Aí quando teve um novo concurso para ACS, eles me informaram que eu tinha o perfil. (Cléo-ACS)

Você começa a dizer assim: vou mudar, eu era boazinha, agora eu vou começar a ser ruinzinha […]. Quando chegar ali na mesa para me pedir um favor, eu vou pensar três vezes se eu faço o favor ou não, porque você vai ficando revoltada com certas situações. […] Eu acho assim, que devia ter uma facilidade, para poder motivar a gente fazer mais e mais, porque quanto mais a gente faz, melhoria para o próprio município. (Vanessa-ACS)

Vanessa expressa a condição de “submissão” a que o usuário deve se prestar, caso não sejam oferecidas a ela as “motivações necessárias”. Desconsidera o compartilhar e a troca que devem ser vivenciados na relação entre profissional usuário.

Para lhe dizer a verdade, este trabalho não é para o meu perfil, eu gosto da tranquilidade e segurança que este trabalho dá. (Robson-ACS)

Às vezes eu fico um pouco estressada por conta de alguns concursados, porque não são todos, mas tem alguns que por serem concursados, né, querem fazer e acontecer. (Michele-Gerente)

Robson e Michele retratam o que consideram como as vantagens oferecidas no serviço público, pois, uma vez efetivo, o profissional pode gozar da “tranquilidade e segurança do trabalho”, ou seja, da estabilidade que lhes garante “fazer e acontecer”.

A literatura registra a ideia errônea de que a AB está ligada ao simples, à oferta mínima de ações destinadas a uma população excluída e vulnerável, sem acesso à medicina de mercado (Brasil, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: atenção básica. Brasília, DF, 2010. v. 2. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2nlNo5T >. Acesso em: 7 fev. 2018.
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).

Costa (2016COSTA, N. R. The Family Health Strategy: primary health care and the challenge of Brazilian metropolises. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1389-1398, 2016.) corrobora a ideia, quando propõe que a ampliação da cobertura da ESF nos municípios é proporcional a prevalência da pobreza em sua população, o que dificulta o desenvolvimento e a melhoria da ESF. Na prática, essa ideia foi assimilada pelos gestores, usuários do serviço e, sobretudo, profissionais de saúde que trazem discursos como o de Helen, que diz: Eu gosto muito dessa relação mais próxima com a comunidade e eu acho que eles são extremamente carentes (Helen-Médica).

Então é muito, muito bom trabalhar pelo povo, principalmente pelos necessitados, muito bom conseguir medicamentos que eles não têm condição de comprar. Isso já parte para um trabalho social, mas eu faço com muito carinho, gosto de fazer, entendeu? (Michele-Gerente)

O texto-base da Política Nacional de Humanização para Atenção Básica busca desmistificar a ideia do profissional no serviço público como um ser caridoso, religioso, com atitudes de caráter filantrópico, reveladoras de bondade - que está prestando um “favor” ao realizar o serviço para uma comunidade carente, reforçando uma relação de submissão, dificultando, se não impossibilitando, a construção de cidadania e direito à saúde (Brasil, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: atenção básica. Brasília, DF, 2010. v. 2. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2nlNo5T >. Acesso em: 7 fev. 2018.
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).

Percepções dos trabalhadores de saúde sobre a atuação e os limites da Estratégia Saúde da Família

De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica, a ESF deve ser capaz de resolver a maioria dos problemas de saúde da população (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 out. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2VA3ATz >. Acesso em: 10 set. 2015.
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). Nas narrativas, encontra-se o limite de atuação macropolítica da ESF quando os profissionais descrevem o aumento de doenças crônicas na população de maneira geral, a dificuldade de articulação com os outros níveis de atenção, a aquisição de medicações e a formação acadêmica ainda aquém das mudanças curriculares.

Na minha área, eu tenho oito anos de trabalho, nunca morreu uma criança de parto, nunca. Assim, tem caso de aborto provocado e natural, que a mulher não queria […]. O índice de vacinação a gente consegue abranger bastante as crianças. (Silvana-ACS)

Mas isso não ocorre, porque às vezes a médica passa um cardiologista, um reumatologista e tem demora para esse atendimento, porque são poucos profissionais para uma quantidade muito grande de pessoas, porque essas doenças [diabetes e hipertensão] vêm aumentando na comunidade. (Vanessa-ACS)

Lógico que não dá conta, lógico que não […]. É muita gente, não consegue atender todo mundo, isso não, não tem esse bom! (Angélica-ACS)

Algumas questões limitam a efetivação e aperfeiçoamento da ESF, como a organização do processo de trabalho num formato único para todo o país e todas as equipes, desconsiderando, em parte, as diferenças locais e o manejo no atendimento à demanda espontânea (Malta; Santos, 2003MALTA, D. C.; SANTOS, F. P. O programa de saúde da família (PSF) e os modelos de assistência à saúde no âmbito da reforma sanitária brasileira. Revista Médica de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 13, n. 4, p. 251-259, 2003.).

A sobrecarga de trabalho, advinda de uma grande demanda, principalmente curativa, impede a realização de atividades educativas e de promoção à saúde, algo que transparece na fala da enfermeira Camila:

Porque a gente acaba faltando um pouco na agenda, porque a agenda já é apertada, cinco dias praticamente não dá para nada, a comunidade é grande, então assim, eu queria ter um pouquinho mais de tempo para poder fazer atividade educativa. (Camila-Enfermeira)

O achado coincide com a realidade da pesquisa descrita por Trad e Rocha (2011TRAD, L. A. B.; ROCHA, A. A. R. N. Condições e processo de trabalho no cotidiano do Programa Saúde da Família: coerência com princípios da humanização em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1969-1980, 2011.), em que a sobrecarga de trabalho tem limitado a realização de atividades educativas e, consequentemente, a consolidação de um novo modelo de atenção pautado na promoção da saúde.

A ideia de que a intervenção do profissional no ambiente familiar é capaz de alterar o perfil higiênico da população, na tentativa de mudança de hábitos dos usuários (Malta; Santos, 2003MALTA, D. C.; SANTOS, F. P. O programa de saúde da família (PSF) e os modelos de assistência à saúde no âmbito da reforma sanitária brasileira. Revista Médica de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 13, n. 4, p. 251-259, 2003.), aparece no imaginário dos entrevistados, como descrito por esta agente comunitária:

Como eu observei agora, o mês passado, eu chamei a atenção na reunião, porque o pessoal estava num círculo, virou um círculo vicioso, de só trocar receita, receita. […] Pessoas com mais de seis meses sem vir pra consulta, só no vício de trocar receita. […] Então assim, não é fácil, porque o vício, o hábito, é difícil, muito difícil de lidar. Você dizer para mãe que ela tá acostumada a deixar os filhos descalços, lá o dia todo, a criança já novinha, no chão de qualquer jeito, passar o dia todo sem tomar banho e você dizer: ô menina, porque a criança não tomou banho ainda? - Ah! vai tomar de tarde. Mas de tarde, de tarde já é outro banho. Então assim, eu procuro levar com jogo de cintura, brincadeira e tal, mas fazendo ela entender que é importante, eu procuro sempre explicar a necessidade. (Angélica-ACS)

A ação da agente de saúde é como um confronto sutil que impõe outros valores biossociais. Ou seja, há uma interpretação da agente e esta confere sentidos às suas experiências com os moradores do bairro na mesma realidade circundante. A dimensão sociocultural se mostra na interação entre agente e pessoas da comunidade, tornando possível o sentido partilhado em sua pluralidade. Nesse processo, observa-se a força do diálogo ou a intersubjetividade como resultante do trabalho da agente, em que sujeito e objeto não se separam. Singularidade, em cada caso, e pluralidade, na comunidade, são dimensões que se relacionam, como se indivíduo e sociedade estivessem permanentemente imbricados.

As narrativas adiante mostram alguns dos problemas de gestão ineficaz, como a rotatividade dos profissionais, que limitam a atuação da ESF.

Da enfermeira a gente já não tem tanto respaldo, porque os enfermeiros aqui, eles passam muito rápidos, não tem a mesma permanência. A enfermeira às vezes não dá tempo nem da gente criar vínculo; quando pega, já vem outra. (Robson-ACS)

Tem muita coisa no ser humano que é psicossocial e eu acho que atenção básica tem que ser focada para isso. […] Os gestores ainda não acreditam, eles querem números de atendimentos. (Helen-Médica)

As falas expressam o problema da rotatividade, o que por vezes parece contraditório, já que a USF estudada destacava-se pelo elevado tempo de permanência das médicas - que, concursadas, já trabalhavam há mais de sete anos em ambas as equipes da unidade.

Entraves na prática da saúde da família atual

Apesar de não estar contido no roteiro da entrevista, o termo “ambulatório” emergiu no discurso da maioria dos profissionais investigados e permitiu seguir para outras interpretações. Profissionais que atuam, em média, há seis anos na saúde da família retrataram um passado que diferia muito do contexto presente. A proposta de um “olhar integral e ampliado”, devido às amarras na operacionalização, vem sendo substituído por uma agenda “cheia” de consultas prescritivas; para designar isso, usam o termo “ambulatório”. Angélica, uma agente comunitária significa sua atuação ao dizer:

Nós, os mais velhos, nós tivemos muita sorte. A médica, ela era uma pessoa que fazia PSF com muito gosto, com muito amor […]. Não, não existe mais saúde da família, não existe. O que tem sido feito aqui é ambulatório, com uma esticadinha lá fora, porque a gente está na rua. Então assim, até a gente [ACS] às vezes está fazendo ambulatório lá fora, entregando remédios, receitas. (Angélica-ACS)

Aí não, fica tapando buraco, coloca um médico para trabalhar duas vezes na semana, porque não tem, é ambulatório. O cara [médico] inventa a visita domiciliar. Então assim não leva a sério. (Helen-Médica)

O termo “ambulatório” foi utilizado enfaticamente pelos profissionais do Nasf. Apesar de reconhecerem o apoio matricial como proposta metodológica para desenvolver um trabalho interdisciplinar em saúde, eles não conseguem atuar nessa lógica, sentindo-se muitas vezes compelidos a voltar ao velho atendimento individual, que eles denominam de ambulatório.

Na época de ambulatório, era muita pressão, era muito atendimento individual, era ambulatório que eu fazia e agora por conta de ter mudado esse processo de trabalho, então não há esse entendimento muitas vezes por parte da equipe. Porque há uma pressão muito grande para a gente atender individualmente. (Roberta-Nutricionista)

Porque como a gente é do NASF, o nosso papel não é fazer ambulatório aqui, apesar de que muita gente não entende esse processo do NASF. Não sei se porque o NASF ainda é novinho, enfim. (Luíza-Psicóloga)

A narrativa de Natália, adiante, reafirma o que o PNH discorre sobre a AB não servir à lógica biomédica, centrada no atendimento curativo/assistencial, em que o indivíduo expõe sua queixa e espera como conduta a medicação prescrita (Brasil, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos HumanizaSUS: atenção básica. Brasília, DF, 2010. v. 2. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2nlNo5T >. Acesso em: 7 fev. 2018.
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).

Aqui a marcação com senha é ruim, porque depende da quantidade de vagas que o médico abre. Às vezes são 20 fichas, mais aí fica sobrando dois ou três, aí eu fico: meu Deus do céu! […] hoje eu vejo o PSF como uma emergência, não é mais o PSF de antes, do início que abriu, é mais consulta, ambulatório, [o usuário] chega e quer a sua receita, não sabe que tem que vir pra consulta. As atividades dos grupos funcionavam muito e agora nada. (Natália-Recepcionista)

Para Angélica, que trabalha há 16 anos na ESF, a capacitação atual não muda nada:

Hoje a gente tá parado, estagnado. Mas aí hoje quando eu vejo esses cursinhos, me perdoe, bestas, repetitivos. Todo ano só fala de dengue e tuberculose. Dengue e tuberculose. Nem a forma de passar muda. A gente já sabe qual vai ser a próxima fala, por exemplo, da enfermeira que vai falar de tuberculose. É, porque nem a metodologia muda. Não, não muda nada, a mesma coisa, do mesmo jeitinho. (Angélica-ACS)

Ela fala e interpreta as palavras que escuta na mesma cena da relação mundana em que está imersa. Desse modo, a profissional fala de si e do que vivencia, buscando explicar e compreender, pois acolhe o que faz sentido para apoiar sua própria experiência em meio às dificuldades que relata e percebe. Para ela, as informações atuais são insuficientes para dar continuidade ao modelo explicativo de saúde.

Um dos principais estrangulamentos que têm culminado em retrocesso para a efetivação da ESF é a transferência do modelo clássico biomédico para a AB, refletindo uma nova prática que se encontra ao mesmo tempo em crise e em construção (Junges et al., 2009JUNGES, J. R. et al. Processos de trabalho no Programa Saúde da Família: atravessamentos e transversalidades. Revista da Escola de Enfermagem, São Paulo, v. 43, n. 4, p. 937-944, 2009.; Trad; Rocha, 2011TRAD, L. A. B.; ROCHA, A. A. R. N. Condições e processo de trabalho no cotidiano do Programa Saúde da Família: coerência com princípios da humanização em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1969-1980, 2011.).

E se eu pudesse escolher?

Os profissionais demostraram pouca credibilidade na ESF. Quando questionados, houve dúvidas na escolha quanto à construção de mais unidades de saúde com a estratégia ou de um hospital no município, o que reforça a ideia e valorização do modelo hospitalocêntrico.

Andrade et al. (2018ANDRADE, M. V. et al. Transition to universal primary health care coverage in Brazil: analysis of uptake and expansion patterns of Brazil’s Family Health Strategy (1998-2012). PLoS One, San Francisco, v. 13, n. 8, 2018.) traz em sua discussão, na consolidação da AB, a evidência prática da ampliação da ESF. Destaca a magnitude dessa ampliação em um país com desigualdades, em que muitas vezes, em municípios pequenos, a oferta de serviços primários constitui a maioria, senão a única forma de ter acesso à saúde.

Mesmo quando se optou pela estratégia, esta se baseava numa possibilidade: Então eu acho que se houvesse mais unidades no município teria mais médicos no município (Robson-ACS).

O que falta para a gente também é ambulância. Não adianta colocar um hospital municipal e a pessoa não tem como chegar. […] Aí eu prefiro as unidades de saúde, porque quebra um galho, não é isso? (Silvana-ACS)

Se a gente fosse olhar no aspecto mais abrangente da saúde, eu optaria pelo hospital. Porque o hospital maior que tem aqui está muito precário nos atendimentos, falta de leito, toda essa coisa, entendeu? (Vanessa-ACS)

Porque assim, em termo do município eu acho que a AB está bem assistida, já o hospital está deixando a desejar. (Camila-Enfermeira)

Eu preferia um hospital, porque a demanda é muito grande […]. É porque na verdade as pessoas não entendem o que é PSF, aí vem como se fosse uma urgência. (Natália-Recepcionista)

O discurso de Priscila é o único que reflete uma formação acadêmica condizente com o modelo estabelecido para o funcionamento da ESF.

É muito mais barata a questão da prevenção do que você só pensar na parte da reabilitação. Então, de fato é extremamente importante, mas é importante também que o profissional que esteja inserido nesta ESF consiga trabalhar nesta lógica, ou então ele só vai reproduzir o modelo de atenção antigo e só vai estar com o nome de ESF, mas de fato, não vai atuar nesta lógica. Então tem a formação do profissional que veio de um modelo diferente, de especialidades, daquelas caixinhas, mas acho que tem modificado. (Priscila-Dentista)

As narrativas transcritas revelam quão frágil tal mudança tem sido na prática, apesar de todos os esforços na tentativa de reorientar os modelos de assistência à saúde. Entende-se por modelo de saúde “a organização da produção de serviços a partir de determinado arranjo de saberes da área, bem como de projetos de ações sociais específicos, como estratégias políticas de determinados agrupamentos sociais” (Merhy; Cecílio; Nogueira, 1992MERHY, E. E.; CECÍLIO, L. C. O.; NOGUEIRA, R. C. Por um modelo tecno-assistencial da política de saúde em defesa da vida: contribuição para as conferências de saúde. In: CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 9., 1992, Brasília. Cadernos… Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1992. v. 1. p. 91-97., p. 91). Os profissionais reproduzem suas ações cotidianas, fortemente centradas em médicos e hospitais e voltadas para a doença em detrimento dos condicionantes e determinantes da saúde e do coletivo (Faria et al., 2010FARIA, H. P. et al. Modelo assistencial e atenção básica à saúde. 2. ed. Belo Horizonte: Núcleo de Educação em Saúde Coletiva, 2010.). É notadamente desafiadora a proposta da ESF de incorporar as questões biomédicas e envolvê-las em um novo modelo de atenção que busca o compartilhar dos saberes profissionais, fortalecendo o SUS e transformando o sistema de saúde (Malta; Santos, 2003MALTA, D. C.; SANTOS, F. P. O programa de saúde da família (PSF) e os modelos de assistência à saúde no âmbito da reforma sanitária brasileira. Revista Médica de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 13, n. 4, p. 251-259, 2003.).

Identidades profissionais versus troca dos papéis das categorias profissionais

As narrativas evidenciam a troca dos papéis feita pelos profissionais no contexto da ESF, quando estes se “perdem” nos limites definidos por seus códigos de ética e atuação profissional.

A agente comunitária Vanessa refere dificuldades para desempenhar suas atribuições porque assume outras, não pertencentes a sua categoria. A médica Helen ocupa o papel de referência que deveria ser desenvolvido pela coordenadora/gerente da unidade. Michele, por sua vez, abdica do seu papel de coordenadora em detrimento de um regime de favoritismo e acaba por selecionar e priorizar usuários, contrariando a acessibilidade e universalidade proposta pelo SUS.

Em marcação de consulta eles [usuários] lutam para dormir numa fila e não conseguem, porque você sabe que tem esse problema da regulação. Eu vou lá pego a requisição dele [usuário], vou à regulação com jeitinho e consigo e eles vêm no dia seguinte me agradecer, isso é muito gratificante. (Michele-Gerente)

Então, quando eu comecei a trabalhar eu achei assim, que eu poderia fazer o acesso deles [usuários] mais fácil, que eu poderia estar marcando consultas, marcando exames, já que eu tenho que estar na Unidade todos os dias, facilitaria as coisas. (Vanessa-ACS)

Então eu me sinto valorizada, porque assim, problema na unidade, eu tenho que resolver problemas com os usuários e outras coisas, eu que tenho que resolver, então assim, a gerente vem me procurar, os ACS vêm […]. Não deixa de ser uma valorização. Sobrecarrega […] mas não é ruim, não é ruim. (Helen-Médica)

Falta clareza, independentemente do grau de escolaridade, quanto às atribuições e ao papel que deve ser desempenhado pelos diferentes profissionais. Outro estudo já apontou que, no trabalho multiprofissional da ESF, a identidade dos sujeitos não é tão clara como em outros serviços de saúde (Silva et al., 2006SILVA, L. T. et al. Bioética e atenção básica: um estudo exploratório dos problemas éticos vividos por enfermeiros e médicos no PSF. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 11, n. 2, p. 133-142, 2006.). A profissão dos agentes comunitários de saúde (ACS) permanece sem diretrizes deontológicas, visto ainda estar em construção seu código de ética profissional. Embora tenha suas atribuições bem definidas e descritas na Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 out. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2VA3ATz >. Acesso em: 10 set. 2015.
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), os ACS acabam por vivenciar uma práxis dicotômica entre a conduta adotada na realização do trabalho nas famílias e a preconização da lei, entre o saber-conhecer e o saber-fazer (Siqueira-Batista et al., 2015SIQUEIRA-BATISTA, R. et al. (Bio)ética e Estratégia Saúde da Família: mapeando problemas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 113-128, 2015.; Vidal et al., 2015VIDAL, S. V. et al. Agentes comunitários de saúde: aspectos bioéticos e legais do trabalho vivo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 129-140, 2015.).

Eu queria ter mais liberdade como agente de saúde, para desenvolver o meu trabalho. Não ficar muito dependendo do outro, que apesar de ser uma equipe, às vezes você está com o pensamento mais à frente e o outro tá mais retrógado. Porque tem coisas que eu queria ter esse poder, sabe? (Angélica-ACS)

Muitas são as dificuldades encontradas pelos ACS no seu fazer cotidiano de trabalho, como a atitude de alguns desses profissionais de privilegiar o acesso a pessoas mais próximas ou afins à UBS, sua falta de capacitação prévia e a desvalorização de seu saber (Siqueira-Batista et al., 2015SIQUEIRA-BATISTA, R. et al. (Bio)ética e Estratégia Saúde da Família: mapeando problemas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 113-128, 2015.).

Na narrativa adiante, um agente comunitário de saúde, sem outra formação profissional, se sente prejudicado por não mais ser permitido, como foi no passado, a realizar a aferição da pressão arterial dos usuários sob sua responsabilidade. Embora, para ele, pesar uma criança seja importante, ele quer fazê-lo na residência do usuário e não dentro da unidade de saúde, no Programa Bolsa-Família. Ele deseja oferecer algo mais do que é prescrito; seu discurso e prática cotidiano se mostra como uma ação antagônica sujeita à desordem, interferindo na qualidade do cuidado ofertado.

Destaca-se que as narrativas, embora divergentes com a portaria da atenção básica de 2011, encontram subsídios na nova portaria, de 2017. De acordo com esta, ao ACS é permitido “exercer outras atribuições que lhes sejam atribuídas por legislação específica da categoria, ou outra normativa instituída pelo gestor federal, municipal ou do Distrito Federal” (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 set. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2DdWcaE >. Acesso em: 13 dez. 2017.
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). Isso tem gerado discussões e fragilização do processo de trabalho dos profissionais da ESF.

O Programa Bolsa-Família, instituído pela Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, e regulamentado pelo Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004, visa atender famílias pobres e extremamente pobres na oferta de ações básicas (saúde, educação e assistência social). Para isso, as famílias beneficiárias deverão ser assistidas por uma ESF (Brasil, 2015BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Manual de gestão do Bolsa-Família. 2. ed. Brasília, DF, 2015.).

Por exemplo, hoje nós vamos à casa das pessoas e não temos muito que oferecer, além de informações, de conversas e emprestar o ouvido para as pessoas. […] Hoje nós não podemos nem mesmo aferir a pressão de uma pessoa, não podemos. Hoje nós não temos condição de pesar a criança, nem balança nós temos mais. […] Mas nós temos que pesar Bolsa-Família, que sai totalmente do nosso papel. (Robson-ACS)

Robson, ao dizer que “empresta o ouvido”, expressa a escuta qualificada e o acolhimento que é oferecido pelo profissional de saúde, independentemente de sua categoria profissional; indica o vínculo e o fortalecimento na relação entre o profissional e o usuário.

Os entrevistados se confundem no limite entre a integralidade da atenção e a corresponsabilidade do cuidado, num “trabalho árduo” que não termina após uma consulta ou aplicação de uma vacina, e acabam assumindo responsabilidades que vão além do prescrito:

E acaba que a gente é psicólogo, psiquiatra, terapeuta amoroso, tudo isso a gente faz um pouquinho. Porque a gente trabalha com pessoas, no final das contas. A gente frequenta uma casa, não tem como a gente ficar só na saúde, aí acaba rolando até uma fofoquinha. Ah, meu marido tá assim, assado! (Silvana-ACS)

O médico conversa, também faz um pouco do papel de psicólogo, porque tem usuário que chega muito triste, que chega com muito problema e aí ele vê no médico uma pessoa de confiança pra ele contar a história dele. (Michele-Gerente)

Cogestão e humanização na atenção básica

As coisas aqui não andam: a inadequação do espaço físico de trabalho

Todos os discursos foram unânimes em denunciar a estrutura física inadequada da unidade de saúde na qual trabalham, com números insuficientes de consultórios, ausência de sala para procedimentos como nebulização ou aplicação de medicamentos injetáveis (estes são realizados na sala de vacina) e falta de privacidade conferida pelas divisórias entre os consultórios - em vez de paredes de alvenaria -, dentre outros. O espaço físico foi considerado o maior dificultador nas entrevistas.

Outros estudos já referiram que a precariedade das instalações repercute negativamente na realização de atividades preconizadas pela ESF, desumanizando o trabalho e a atenção à saúde (Nora; Junges, 2013NORA, C. R. D.; JUNGES, J. R. Política de humanização na atenção básica: revisão sistemática. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 47, n. 6, p. 1186-1200, 2013.; Trad; Rocha, 2011TRAD, L. A. B.; ROCHA, A. A. R. N. Condições e processo de trabalho no cotidiano do Programa Saúde da Família: coerência com princípios da humanização em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1969-1980, 2011.).

Uma unidade que precisaria de uma alteração para ontem, para poder fazer um acolhimento melhor, uma triagem melhor, uma parte curativa melhor. […] Você trabalhar em um ambiente que você está sentada numa sala e do nada você sente um mau odor, até você se adoece, trabalhando num ambiente desse. (Vanessa-ACS)

A ambiência, vista como melhoria das condições de trabalho e atendimento, é uma das diretrizes propostas pelo HumanizaSUS: “criar espaços saudáveis, acolhedores e confortáveis, que respeitem a privacidade, propiciem mudanças no processo de trabalho e sejam lugares de encontro entre as pessoas”.44 BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização: HumanizaSUS. Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: <https://bit.ly/2NwlnGK>. Acesso em: 8 jan. 2019. Os problemas relacionados à ambiência, já apontados anteriormente na literatura (Nora; Junges, 2013NORA, C. R. D.; JUNGES, J. R. Política de humanização na atenção básica: revisão sistemática. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 47, n. 6, p. 1186-1200, 2013.), comprometem todo o processo de trabalho na ESF, pois geram desmotivação em profissionais e gestores e desconforto aos usuários, principalmente no que tange à ausência de privacidade. Pela estrutura mesmo do próprio posto, né. […] Porque se falar muito alto, quem está no outro consultório, está ouvindo. Então assim, por essa questão, tem usuários que acabam falando o desconforto que tem nesse sentido. (Cléo-ACS)

A ausência de nebulizador apareceu nos discursos, contrariando o proposto no manual de estrutura física das unidades básicas de saúde da família (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Manual de estrutura física das unidades básicas de saúde: saúde da família. Brasília, DF: Departamento de Atenção Básica, 2008.).

Não adianta fazer uma Unidade Básica e quando chegar aqui não ter uma nebulização. […] Pôxa, ninguém é obrigado a ter um nebulizador em casa, e nem tem dinheiro para isso! (Silvana-ACS)

A gente não consegue resolver aqui; por exemplo, na AB a gente não vê uma nebulização para criança […]. A gente poderia estar realizando aplicação de benzetacil, a gente não pode, não tem como fazer aqui. (Camila-Enfermeira)

O discurso dos entrevistados sobre as condições concretas em que realizam suas práticas cotidianas de trabalho denuncia a falta de salas para a realização de educação em saúde, bem como para aplicação de medicações como benzetacil e reuniões de equipe; há baixa sintonia do processo de trabalho com os pressupostos da humanização. Observou-se visitas domiciliares, reuniões de equipe e educação em saúde sendo deixadas para segundo plano, em detrimento de uma agenda cheia de consultas que eram marcadas em um único dia da semana, gerando filas extensas.

As enfermeiras têm uma relação próxima com a gente, as coisas aqui não andam justamente porque a gente não tem espaço para trabalhar, dificuldade de sala, dificuldade para fazer os grupos, mas isso não é culpa da gerência, é o local que eles estão. (Eliana-Assistente social)

Aqui era para comportar apenas uma equipe, e mesmo assim faltaria espaço […]. Hoje nós não temos como fazer uma simples reunião de equipe; a gente faz na sala, com toda hora alguém batendo na porta. A estrutura física não nos permite… uma sala de espera para fazer, é terrível! (Angélica-ACS)

Camila, em um discurso controverso, justifica a falta de medicação em decorrência da grande demanda de usuários, aspecto também apontado em outros estudos (Nora; Junges, 2013NORA, C. R. D.; JUNGES, J. R. Política de humanização na atenção básica: revisão sistemática. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 47, n. 6, p. 1186-1200, 2013.; Trad; Rocha, 2011TRAD, L. A. B.; ROCHA, A. A. R. N. Condições e processo de trabalho no cotidiano do Programa Saúde da Família: coerência com princípios da humanização em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1969-1980, 2011.). O uso de diminutivos expressa uma percepção que minimiza a violação do direito constitucional à saúde.

De vez em quando falta um contraceptivo, falta uma sinvastatina, coisinha assim, mas coisas poucas, se não tem um, com certeza o outro tem, e o que vai faltar é bem mais baratinho e pode pagar, porque o ideal é não faltar, né… mas a demanda é grande. (Camila-Enfermeira)

Angélica aponta as diversas dificuldades que distanciam o fazer cotidiano dos princípios da humanização em saúde e, com alta sensibilidade, fala do “peso” para poder seguir em frente:

Eu sinto que a gente carrega essa unidade nas costas. O que falta hoje para os gestores entenderem o que falta no PSF é que a estrutura da unidade tem que ser muito melhor, tem que ser muito melhor. […] os arquivos continuam aí adoecendo a recepcionista e a gente, os arquivos quebrados, as gavetas despencando, tudo lotado, falta de ar condicionado naquela sala, a maca está quebrada… (Angélica-ACS)

O maior desafio do SUS é político, pois nenhum dos governos, após a reforma sanitária, tomou como compromisso o SUS em conformidade com o que fora estabelecido na Constituição, haja vista o subfinanciamento do sistema público - o que sugere um cenário não muito otimista para sua sustentabilidade (Paim, 2013PAIM, J. S. A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 10, p. 1927-1953, 2013.).

Doniec et al. (2018DONIEC, K. et al. Brazil’s health catastrophe in the making. The Lancet, London, v. 392, n. 10.149, p. 731-732, 2018.) apontam as prováveis consequências práticas da Emenda Constitucional nº 95/2016, com falta de investimentos em áreas estratégicas na assistência à saúde (Brasil, 2016BRASIL. Presidência da República. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 dez. 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2lGL90C >. Acesso em: 12 nov. 2018.
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). O SUS, que ainda se encontra em construção, se encontra também em situação de crise e retrocesso, revelada pelo aumento das desigualdades sociais, empoderamento do setor privado e redução na qualidade dos serviços públicos.

Sobre a Política Nacional de Humanização (PNH)

Ao serem questionados sobre a PNH, percebeu-se desconhecimento por parte da maioria dos profissionais. Mesmo os que afirmam conhecer a política, numa visão reducionista do escopo de diretrizes e ações, referem-se a ela somente no contexto do acolhimento.

Não, ainda não, aqui não. Só no outro posto que tem o acolhimento, é entregue 20 fichas todos os dias à tarde de segunda a quinta, onde um ACS é escalado para ficar fazendo o acolhimento desse pessoal. (Michele-Gerente)

Eu vejo o acolhimento assim, por exemplo: tem dia que vem mais do que dois de urgência, eu não tenho condições de atender todo mundo, mas a partir do momento que ouço a queixa do usuário, pelo menos eu prescrevo e oriento qual é o local, que existe um local de 24 horas e tal, eu já considero isso o acolhimento, mas acho ainda muito incipiente. (Priscila-Dentista)

Nas percepções citadas, o HumanizaSUS fica reduzido ao acolhimento praticado de forma incipiente, pois obedece a um formato de distribuição de fichas. Este ainda é realizado sem parâmetro pré-estabelecido, desconsiderando todos os profissionais envolvidos na atenção à saúde, o que se opõe ao conceito estabelecido pela PNH. Para esta,55 BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização: HumanizaSUS. Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: <https://bit.ly/2NwlnGK>. Acesso em: 8 jan. 2019. o acolhimento é de forma coletiva, reconhecendo o que o outro traz como legítima e singular necessidade de saúde por meio de uma escuta qualificada, dando prioridades a partir da avaliação de vulnerabilidade, gravidade e risco, construindo uma relação de confiança, compromisso e vínculo entre as equipes e serviços, o trabalhador e as equipes e o usuário com sua rede socioafetiva.

A gente recebeu o curso, fizemos o curso de humanização em saúde, mas […] eu acho que o agente de portaria, ele teria que receber esse curso, ele não recebeu, a recepcionista eu nem lembro se recebeu, porque começa do porteiro para a recepção. Eu vejo, pelo andar da carruagem, que esse curso não foi implantado aqui. (Fabiane-ACS)

Todo mundo sabe ouvir um não. O problema é como o não é dito. […] Às vezes alguém chega à recepção: “ah! Eu tô marcada para médico. Ah, não veio hoje não” […]. A pessoa faltou ao trabalho, às vezes, o patrão lá não quer saber, não aceita atestado, a pessoa perde o dia, é longe, a criança faltou à escola. (Cléo-ACS)

Oh, eu conheço pouco na verdade o Humaniza-SUS mas, pelo que eu conheço, eu acredito que não. Começando por essa falta de diálogo que a gente não tem com a equipe, né? (Luíza-Psicóloga)

Um recente estudo de revisão apontou um engessamento operacional na organização dos serviços, com prejuízo ao acolhimento e integralidade do cuidado-trabalho (Barbosa et al., 2013BARBOSA, G. C. et al. Política Nacional de Humanização e formação dos profissionais de saúde: revisão integrativa. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 66, n. 1, p. 123-127, 2013.). Portanto, para efetivar a PNH, torna-se imprescindível que os trabalhadores sejam capazes de transpor e produzir novas maneiras de conformar o trabalho.

Uma doença sem tratamento: os entraves da referência e contrarreferência

As narrativas descortinam a realidade da contrarreferência dentro do campo da AB e a caracterizam como um entrave na direção de uma atenção humanizada. Robson resume: Não há contra referência. Até vai à referência, mas não volta (Robson-ACS).

Mas isso é uma doença, desde quando a gente começou. Muito já se bateu nesta tecla. Eu já levei um usuário assim, com a fichinha [referência]. Nem leu o que o colega mandou! Depois do atendimento, ele não vai escrever a conclusão dele, para o médico daqui continuar. (Angélica-ACS)

Eu encaminho, eu que faço a ficha, a referência e envio, quando é um caso que a gente não possa resolver aqui. Mas a gente não recebe de volta a contrarreferência; a gente envia, mas nunca recebe. (Camila-Enfermeira)

Eles falam de boca para o usuário, para ele vir falar aqui, mas não volta mais não. (Natália-Recepcionista)

A ausência de um sistema efetivo de referência e contrarreferência aos demais níveis de assistência, principalmente no que se refere a exames e/ou consultas especializadas foi apontado por outros autores (Nora; Junges, 2013NORA, C. R. D.; JUNGES, J. R. Política de humanização na atenção básica: revisão sistemática. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 47, n. 6, p. 1186-1200, 2013.; Trad; Rocha, 2011TRAD, L. A. B.; ROCHA, A. A. R. N. Condições e processo de trabalho no cotidiano do Programa Saúde da Família: coerência com princípios da humanização em saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1969-1980, 2011.).

Considerações finais

Este estudo identificou as dores e alegrias de se trabalhar no SUS e os entraves ao desenvolvimento das ações em saúde na AB. Segundo os profissionais entrevistados, apesar de ser a porta de entrada prioritária ao sistema de saúde, a ESF atual experencia dificuldades e limites à mudança do modelo de saúde. As histórias narradas pelos profissionais expõem que, embora tenham apontado sua atuação nas práticas cotidianas de saúde, eles se perdem no meio de uma infinidade de atribuições e reforçam os limites enfrentados para efetivar as ações. Para esses profissionais, a ESF que vem sendo realizada atualmente descaracteriza a AB e não passa de um ambulatório com consultas previamente agendadas. A atuação dos profissionais que desenvolvem a ESF ainda não alcança integralmente o que é preconizado para a humanização em saúde como princípio norteador da AB. A assistência prestada na unidade de saúde analisada ainda atende ao modelo biomédico e vêm se distanciando da proposta da ESF. É preciso que os profissionais da ESF reconheçam seu fazer em saúde e remodelem suas práticas, de forma a contribuir para a transformação efetiva dos modelos de atenção e gestão dos serviços do SUS.

Referências

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  • BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Manual de estrutura física das unidades básicas de saúde: saúde da família. Brasília, DF: Departamento de Atenção Básica, 2008.
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  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 out. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2VA3ATz >. Acesso em: 10 set. 2015.
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  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF, 2012.
  • BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Manual de gestão do Bolsa-Família. 2. ed. Brasília, DF, 2015.
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  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 set. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2DdWcaE >. Acesso em: 13 dez. 2017.
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  • 1
    Este artigo teve como base a dissertação de mestrado de Patrícia Aparecida da Silva Valadão Bioética e relações de trabalho entre profissionais da Estratégia Saúde da Família, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho da Universidade Federal da Bahia.
  • 2
    BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização: HumanizaSUS. Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: <https://bit.ly/2NwlnGK>. Acesso em: 8 jan. 2019.
  • 3
    BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização: HumanizaSUS. Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: <https://bit.ly/2NwlnGK>. Acesso em: 8 jan. 2019.
  • 4
    BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização: HumanizaSUS. Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: <https://bit.ly/2NwlnGK>. Acesso em: 8 jan. 2019.
  • 5
    BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização: HumanizaSUS. Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: <https://bit.ly/2NwlnGK>. Acesso em: 8 jan. 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Nov 2018
  • Aceito
    05 Dez 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br