Gestão Autônoma da Medicação (GAM) como dispositivo de atenção psicossocial na atenção básica e apoio ao cuidado em saúde mental1Contribuição dos autores Ambos os autores conceberam, redigiram e aprovaram o manuscrito.

Eduardo Caron Laura C.M. Feuerwerker Sobre os autores

Resumo

Discute-se a construção de dispositivos para produção de atenção psicossocial, que são baseados na proposta de Gestão Autônoma da Medicação em Unidades Básicas de Saúde em São Paulo, onde foram constituídos grupos com base em cogestão e compartilhamento de experiências, formados por usuários de medicação psiquiátrica. Os trabalhadores moderaram esses grupos e participaram de oficinas de apoio semanais durante 15 meses. Este processo deu visibilidade a uma condição problemática complexa na qual se conjugam a crescente prescrição maciça de drogas psiquiátricas ao longo dos anos na atenção básica e a concentração da responsabilidade sanitária em saúde mental nos serviços de atenção especializada. A construção destes dispositivos permitiu uma produção comum de cuidado e de apoio fora do campo da medicalização, que desestabilizou barreiras à autonomia, postas pela verticalidade das práticas das equipes de saúde, pelas relações de dominação dos trabalhadores sobre os usuários e pelas relações de poder construídas em torno do saber especializado. O campo comum estabelecido por usuários e trabalhadores nestes processos coletivos tem ampliado a noção de apoio presente no campo da saúde pública brasileira.

Palavras-chave:
Medicalização; Medicação Psiquiátrica; Saúde Mental; Autonomia

Introdução

Nesta pesquisa foram acompanhados processos de construção de dispositivos da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) em unidades da atenção primária à saúde, com trabalhadores e usuários, num campo em que se conjugam a crescente prescrição massiva de psicofármacos, a falta de espaços de cuidado e atenção psicossocial e a concentração da responsabilidade sanitária em saúde mental nos serviços de atenção especializada. Essa orientação pela especialização da assistência e a prescrição de medicamentos se insere num contexto contemporâneo de crescente medicalização da saúde e da vida (Zorzanelli; Ortega; Bezerra Júnior, 2014ZORZANELLI, R. T.; ORTEGA, F.; BEZERRA JÚNIOR, B. Um panorama sobre as variações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 6, p. 1859-1868, 2014.). No campo da saúde mental, ela é impulsionada pela centralidade da psiquiatria e da psicofarmacologia e pela expansão global da prescrição e do uso continuado de medicação psicotrópica num contexto de crescente influência do conhecimento neurocientífico na constituição dos modos de vida (Rose, 2013ROSE, N. Neuro: the new brain sciences and the management of the mind. Nova Jersey: Princeton University Press, 2013.).

A investigação em torno do tema da medicalização no campo da saúde mental se insere num cenário global complexo. Whitaker (2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.) faz um minucioso censo da invenção da psicofarmacologia nos laboratórios da indústria farmacêutica nos anos 1950, envolvendo a criação de uma nova psiquiatria a partir da composição de interesses de mercado e da corporação médica, num campo de produção de verdade constituído pelos meios de comunicação de massa, agências reguladoras (Food and Drug Administration), periódicos científicos, governo e órgãos de saúde mental (National Institute of Mental Health). Desenvolveu-se, então, a ideia de “transtornos mentais” como desordens causadas por desequilíbrios neuroquímicos que poderiam ser corrigidos ou compensados pela ação de medicamentos nas sinapses neuronais. Nesta perspectiva, desde 1953 vem sendo construída uma catalogação desses “transtornos” com base em sintomas, que constitui o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais produzido pela American Psychiatric Association, instrumento de padronização da prescrição psiquiátrica, atualmente na sua quinta edição, com mais de trezentos diagnósticos.

Segundo a Organização Mundial de Saúde o uso de drogas psiquiátricas tornou-se hábito na vida de centenas de milhões de pessoas (Folha…, 2018FOLHA informativa: depressão. Opas, Brasília, DF, mar. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2LTCpNj >. Acesso em: 2 jul. 2019.
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). No Brasil, em 2007 foi desenvolvido e implantado o Sistema Nacional para Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC) para monitoramento e controle de consumo abusivo e indiscriminado dos medicamentos psicotrópicos (Anvisa, 2010ANVISA - AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. SNGPC: resultados 2009. Brasília, DF, 2010. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/30NCxFK >. Acesso em: 7 out. 2019.
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). Em 2015, o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (FMES) divulgou dados consolidados do SNGPC sobre o consumo de psicofármacos no Brasil. Este relatório registra, de 2008 a 2014, um crescimento de 296% do consumo de Ritalina e, de 2009 a 2013, de 531% do consumo de Clonazepam (FMES, 2015FMES - FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE. Nota técnica: o consumo de psicofármacos no Brasil: dados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados Anvisa (2007-2014). [S.l.], 2015. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2FtMGSm >. Acesso em: 2 jul. 2019.
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).

Diante deste cenário global, desde o final do século XX passaram a ser criadas estratégias para possibilitar formas de ação e de cuidado alternativas - Diálogo Aberto (Kantorski; Cardano, 2017KANTORSKI, L. P.; CARDANO, M. Diálogo aberto: a experiência finlandesa e suas contribuições. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 112, p. 23-32, 2017.); Ouvidores de Vozes (Kantorski et al., 2017KANTORSKI, L. P. et al. Grupos de ouvidores de vozes: estratégias e enfrentamentos. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 115, p. 1143-1155, 2017.); Gestão Autônoma da Medicação - baseadas na construção de espaços dialógicos em rede, que contrariam a crescente medicalização no campo da saúde mental.

Gestão Autônoma da Medicação

A GAM foi formulada inicialmente no Quebec em 1993, a partir da mobilização de usuários e trabalhadores de serviços de saúde mental e acadêmicos preocupados com o respeito aos direitos humanos, à cidadania e ao protagonismo de pessoas que fazem uso de medicação psiquiátrica (Rodriguez Del Barrio; Poirel, 2007RODRIGUEZ DEL BARRIO, L.; POIREL, M. L. Émergence d’espaces de parole et d’action autour de l’utilisation de psychotropes: la gestion autonome des médicaments de l’âme. Nouvelles Pratiques Sociales, Montreal, v. 19, n. 2, p. 111-127, 2007.). Neste contexto, a GAM constituiu um posicionamento estratégico na área da saúde que advoga a autonomia - individual e coletiva - e a participação ativa dos usuários nas decisões sobre o uso e o não uso de medicação psiquiátrica; um posicionamento que aposta na ampliação da rede de conexões existenciais (Merhy; Feuerwerker; Silva, 2012MERHY, E. E.; FEUERWERKER, L. C. M.; SILVA, E. Contribuciones metodológicas para estudiar la producción del cuidado en salud: aprendizajes a partir de una investigación sobre barreras y acceso en salud mental. Salud Colectiva, Buenos Aires, v. 8, n. 1, p. 25-34, 2012.) e nas relações de gestão compartilhada de processos coletivos em saúde (Passos et al., 2013PASSOS, E. et al. Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: o dispositivo da Gestão Autônoma da Medicação. Aletheia, Canoas, n. 41, p. 24-38, 2013.).

A estratégia GAM foi inicialmente construída e pesquisada, tanto no Quebec quanto no Brasil, com usuários considerados portadores de “transtornos mentais severos e persistentes” (Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, para atendimento público em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 fev.2002. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2ACrS4N >. Acesso em: 7 out. 2019.
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). A versão brasileira do Guia da GAM foi adaptada a partir de uma pesquisa multicêntrica (Onocko-Campos et al., 2012aONOCKO-CAMPOS, R. et al. Adaptação multicêntrica do guia para a Gestão Autônoma da Medicação. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 16, n. 43, p. 967-980, 2012a.) em Centros de Atenção Psicossocial II (Caps II), serviço de atenção especializada em saúde mental. O Guia da GAM consiste num conjunto de questões para problematizar a relação com o uso de medicamentos psiquiátricos e a autonomia nos processos de cuidado em saúde mental (Onocko-Campos et al., 2012bONOCKO-CAMPOS, R. et al. Guia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM): guia para o cuidado compartilhado de medicamentos psiquiátricos. Campinas: Unicamp, 2012b. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2n1358H >. Acesso em: 7 out. 2019.
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).

Em dez anos, um processo contínuo de pesquisa e implementação da GAM na Rede de Atenção Psicossocial (Renault, 2015RENAULT, L. A análise em uma pesquisa-intervenção participativa: o caso da Gestão Autônoma da Medicação. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.; Silveira; Moraes, 2018SILVEIRA, M.; MORAES, M. Gestão Autônoma da Medicação: uma experiência em saúde mental. Ecos, Campos dos Goytacazes, ano 8, v. 1, p. 138-152, 2018.; Zambillo; Palombini, 2017ZAMBILLO, M.; PALOMBINI, A. L. Autonomias errantes: processos de autonomização em saúde mental. Estudos de Psicologia, Natal, v. 22, n. 1, p. 78-88, 2017.) conduziu a experimentações recentes em diversos serviços da rede - Caps Infantojuvenil (Caliman et al., 2018CALIMAN, L. V. et al. Produção de saúde e participação com usuários de um centro de atenção psicossocial infanto-juvenil. In: GOBO, J. (Org.). A psicologia frente ao contexto contemporâneo. Ponta Grossa: Atena, 2018. v. 2. p. 139-149.); Caps Álcool e outras Drogas e Atenção Básica (Caron, 2019CARON, E. Experimentações intensivas: psicofármacos e produção de si no contemporâneo. 2019. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.). Na pesquisa da qual tratamos aqui foram acompanhados processos de construção de dispositivos GAM em Unidades Básicas de Saúde (UBS) que oportunizaram um trabalho de formação em serviço e apoio e a experimentação de práticas de cuidado compartilhado com trabalhadores, usuários e acadêmicos, que podem contribuir para práticas de atenção psicossocial comunitária na atenção básica. Tais experiências constituíram um processo de capilarização da estratégia GAM em 2017 e 2018 na cidade de São Paulo, no bairro da Vila Brasilândia, em duas UBS e um Caps III Álcool e outras Drogas (Caron, 2019CARON, E. Experimentações intensivas: psicofármacos e produção de si no contemporâneo. 2019. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.).

Procedimentos metodológicos: uma pesquisa-apoio

Consideramos ter sido esta uma pesquisa-apoio, na qual o pesquisador acadêmico, além de estudar a construção da GAM como dispositivo, era também apoiador dos coletivos de trabalhadores, gestores e usuários em quatro espaços de encontro: reuniões regionais; reuniões gerais de equipe; oficinas de apoio com trabalhadores e gestores; grupos GAM com usuários e trabalhadores. Os trabalhadores da área de abrangência da Supervisão Técnica de Saúde (STS) da Freguesia do Ó e Vila Brasilândia interessados em conhecer a GAM participaram de uma formação inicial conjunta. Uma parte deles se organizou para iniciar a construção do dispositivo localmente e o pesquisador-apoiador foi convidado para facilitar oficinas de apoio em cada unidade e acompanhar os grupos GAM com os usuários.

1. Reuniões regionais: realizadas bimensal ou mensalmente. Estes encontros reuniam trabalhadores - agentes comunitários, farmacêuticos, enfermeiras, assistentes sociais, psicólogos, médicos, técnicos - gestores das unidades e da STS, estagiários e docentes da Pontifícia Universidade Católica. Constituiu-se, assim, em cada território um espaço de avaliação dos processos de construção do dispositivo. Após a constituição dos grupos GAM nas unidades, os usuários passaram a participar dos encontros regionais.

2. Reuniões gerais de equipe: em cada unidade eram feitas reuniões gerais com toda a equipe para tratar de questões relativas à GAM na unidade, sem periodicidade definida. Estas reuniões, com 40 a 60 trabalhadores, tratavam de problemas relativos ao medicamento psiquiátrico na rotina de trabalho na UBS e em sua área de abrangência. As reuniões gerais aprofundaram a relação da equipe com a proposta da GAM e se tornaram um espaço de discussão e conhecimento sobre o território e o trabalho.

3. Oficinas de apoio: em cada unidade eram realizadas semanalmente encontros com um grupo de trabalhadores e eventualmente as gestoras das unidades, configurando um coletivo de apoio aos trabalhadores e de problematização da atenção psicossocial naqueles territórios. As oficinas constituíram um dispositivo coletivo transdisciplinar de produção de um plano comum em torno da estratégia GAM. Inicialmente foi feita uma análise do território, notadamente as relações entre o serviço, profissionais e usuários quanto à prescrição e uso de medicação psiquiátrica, o que propiciou formular um desenho dos problemas em torno do uso de psicofármacos e um projeto local baseado na perspectiva GAM. A partir dessa formulação, usuários foram convidados a participar de encontros semanais. Estas oficinas, então, se constituíram em espaço de acompanhamento dos processos instaurados pelo dispositivo.

4. Grupos GAM com usuários e trabalhadores: em cada unidade, semanalmente, trabalhadores eram moderadores de um grupo GAM com usuários de medicação psiquiátrica sobre o uso de medicação e a autonomia do usuário. Os participantes podiam fazer uso auxiliar de uma ferramenta específica - o Guia da GAM (Onocko-Campos et al., 2012bONOCKO-CAMPOS, R. et al. Guia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM): guia para o cuidado compartilhado de medicamentos psiquiátricos. Campinas: Unicamp, 2012b. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2n1358H >. Acesso em: 7 out. 2019.
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). Nestes grupos, os participantes se dispunham em roda e se cultivava um posicionamento de lateralidade com o outro; o modo de relação proposto era de compartilhamento e cogestão (Melo et al., 2015MELO, J. J. et al. Acesso e compartilhamento da experiência na Gestão Autônoma da Medicação: o manejo cogestivo. In: BRASIL. Ministério da Saúde (Org.). Caderno HumanizaSUS. Brasília, DF, 2015. v. 5. p. 233-247.).

Os trabalhadores participantes da pesquisa foram: gestor, farmacêutico, clínico geral ou médico de família, enfermeira, assistente social e trabalhadores com ensino médio - agentes comunitários, técnicas e auxiliares de enfermagem e uma trabalhadora da recepção - e, juntamente com os usuários, foram convidados a serem pesquisadores de um processo investigativo compartilhado da experimentação da GAM em cada unidade, porém essa participação não era exigência para fazer parte do grupo GAM. Os nomes dos participantes-pesquisadores constam como autores de trabalhos apresentados em eventos e anais e foram certificados pelos responsáveis da pesquisa, que foi autorizada e registrada nas instâncias de gestão local e regional aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo - certificado nº 62652516.6.3001.0086 - e CEP da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo - certificado nº 62652516.6.0000.5421.

Elementos de um campo problemático

Na primeira reunião geral em uma das unidades, uma trabalhadora, relatora da reunião, escreveu em folhas de papel pregadas na parede a palavra desmentecalização. Esse ato chamou a atenção dos participantes para o jogo entre a palavra escrita e o termo “desmedicalização” que havia sido citado por um participante da reunião. Na forma de lapso, emergia naquele coletivo um sentido de desmedicalização da mente, anunciando um campo da des-psiquiatria e da des-psicopatologia associado à GAM. Ao se colocar em discussão a prescrição de medicação psiquiátrica no cotidiano do trabalho, veio à tona uma enunciação fora do senso habitual, que desestabilizava os limites do campo da saúde mental quanto à medicalização da vida e do cuidado.

Ao longo dos anos veio se acumulando, na agenda das duas unidades, uma população de usuários de remédios psiquiátricos. Nas farmácias das UBS o registro dos usuários de medicação psicotrópica está disperso e não há dados consolidados da quantidade de usuários. Em uma UBS estimava-se que sete a nove mil usuários retiravam regularmente psicofármacos em sua farmácia. Em outra, foram levantados três mil usuários de benzodiazepínicos.

Uma vez que o usuário recebe uma prescrição - muitas vezes em um serviço de atenção especializada com encaminhamento para a UBS -, as receitas subsequentes são feitas pelo clínico ou médico de família da unidade básica, o qual apenas repete a prescrição. Assim, sucessivamente, a emissão da mesma receita com nova data é realizada em massa, em lotes com dezenas de usuários que periodicamente comparecem à UBS para “troca de receita”, procedimento em que não há objetivo nem tempo para consulta e avaliação. Segundo a gestora de uma unidade,

tem uma lista quilométrica de pacientes tomando psicofármacos, que vem à UBS em busca de troca de receitas, sem avaliação, sem consulta, sem diálogo. Estamos dando remédios sem saber para que. (Gestora da UBS)

Os médicos se queixavam da curta duração das consultas (15 minutos), da escuta reduzida, do diálogo escasso e apontavam o problema da prescrição continuada de medicamentos de protocolo de uso limitado. Um médico dizia que ao longo de 15 anos na mesma UBS, prescreveu psicofármacos para milhares de usuários, buscando aliviar sintomas dos pacientes, sem pensar que isso pudesse se tornar um problema grave. Sentiam-se intimidados quando usuários demandavam o medicamento com agressividade. Nos períodos em que havia falta de medicamentos nas UBS, as agentes comunitárias sofriam ameaças de usuários para obter psicofármacos.

Trabalhadores relatavam que muitas vezes usuários distribuíam medicamentos para outras pessoas, ou usavam maior quantidade de remédios e a quota de medicação era insuficiente. Enfermeiros e agentes comunitários narravam que medicamentos psicotrópicos estavam sendo vendidos no mercado informal de drogas ilícitas. Uma usuária que frequentava o grupo da GAM contava que, quando faltava na UBS, comprava o medicamento no mercado informal por um preço menor do que nas farmácias.

Delimitava-se um campo problemático em torno da cronificação causada pelo uso indiscriminado de psicofármacos, em que milhares de usuários nas áreas de abrangência das unidades davam aos remédios trajetórias e usos sem acompanhamento nem espaços de atenção e cuidado. As narrativas dos trabalhadores deram visibilidade a uma omissão e a um alheamento em relação às condições de vida e necessidades desses usuários de medicação psiquiátrica na rotina de trabalho da UBS. Uma invisibilidade da saúde mental na atenção básica pôde, então, ser visibilizada e conjugada com o consumo em massa de medicação psicotrópica, ambos sustentados por uma rotina de renovação continuada de receitas, configurando uma condição problemática da qual as equipes e as estratégias de apoio em saúde mental não se ocupavam.

Oficinas de apoio e deslocamento dos núcleos de saber

No espaço aberto pelas reuniões gerais e pelas oficinas de apoio havia um grande afluxo de trabalhadores, mobilizado por um desejo de formação e de ação no cuidado em saúde mental. Muitos agentes comunitários, técnicos e auxiliares de enfermagem se apropriaram do espaço de construção da GAM. Essa grande participação de trabalhadores com ensino médio era sinal de um deslocamento da ação dos núcleos de saberes especializados de ensino superior naquele espaço.

Muito embora ocorressem reuniões periódicas com apoio matricial dos Caps, Caps Infanto-juvenil e Caps Álcool e Drogas, e houvesse também o acompanhamento de uma equipe de Núcleo de Apoio à Saúde da Família, os quais têm fundamental importância para o trabalho em saúde mental na atenção básica, essas estratégias não se ocupavam dos problemas em questão.

Além disso, havia antagonismos e críticas mútuas entre as equipes das unidades básicas e a de matriciamento. Os espaços habituais de apoio matricial eram, assim, insuficientes diante das necessidades de formação e ação no campo do cuidado em saúde mental.

As práticas cogestivas nas oficinas de apoio

A vontade de participar de uma produção comum em torno da proposta da GAM, que contagiou muitos trabalhadores, contrastava com uma rotina de trabalho presa a um esquema repetitivo, no qual a relação com o usuário era descrita pelos trabalhadores como viciada, e que resultava em perda de sensibilidade e ânimo pelo trabalho. Assim, o critério da autonomia na gestão de medicamentos, trazido nos debates propiciados pela GAM, fazia ver problemas de poder e saber no cotidiano do serviço e ganhava visibilidade em relação a outras condutas e práticas de controle, entre elas os acompanhamentos de diabetes e hipertensão.

A prática cogestiva nas oficinas de apoio rapidamente abriu a possibilidade de os trabalhadores expressarem sua implicação com o tema da autonomia e da saúde. A discussão sobre o direito à participação nos tratamentos, à informação sobre os procedimentos e medicamentos, à decisão sobre as condutas, configurou-se como um momento de compartilhamento de experiências. Uma participante declarou que nas reuniões de equipe de Saúde da Família a gente não pode falar dos problemas que nós sofremos, só podemos falar dos casos dos pacientes, na GAM a gente pode falar do que nós passamos (Agente Comunitária de Saúde). Nas oficinas de apoio adentrava-se o campo da saúde mental pelo caminho do compartilhamento de experiências de vida.

Obstáculos e resistências

A princípio havia uma resistência das equipes de saúde da família para abrir um diálogo com os usuários sobre suas necessidades e o uso da medicação. As agentes comunitárias apontavam que os profissionais médico e enfermeiro, que são autoridade nas equipes, não se responsabilizavam pela implementação da GAM e, assim, enfraqueciam o convite aos usuários. A justificativa para a hesitação em fazer o convite era de que o usuário precisava do remédio por motivo de saúde, não podia ficar sem e que, então, a GAM era recomendada apenas para quem seria indicado mexer na medicação (Agente Comunitária de Saúde).

Inicialmente, o convite aos usuários era feito durante as visitas domiciliares. Nestas ocasiões, a forma habitual de as equipes da Estratégia Saúde da Família chamarem usuários para ir à UBS era descrita como “dar um recado” que incluía explicar a finalidade e a razão para comparecer. Ou seja, a forma usual pela qual o profissional fala e orienta, enquanto o usuário escuta e segue. Esse recado era suficiente quando o usuário desejava marcar um procedimento ou um exame, no entanto, não surtia efeito como convite para participar de um grupo desconhecido. O convite à GAM requeria um diálogo, uma abertura não habitual à experiência do usuário, uma escuta da pessoa a ser convidada e um interesse pelas suas necessidades.

O principal fator dificultador do ingresso ao grupo da GAM era a falta de acesso ao cuidado em saúde mental que não fosse a renovação de receitas (se é que isso pode ser chamado de cuidado). Buscou-se, então, convidar os usuários que iam à unidade para esse fim. Nestes momentos foi possível criar um espaço para que estas pessoas pudessem expressar suas necessidades e experiências com o uso de medicação e contextualizar o convite ao grupo da GAM.

Repercussões e experiências de deslocamento no campo dialógico

Pessoas que há anos vinham periodicamente à unidade somente para renovar a receita médica dos mesmos medicamentos puderam falar sobre sua vida, ser ouvidas e vistas. Mundos antes imperceptíveis ganhavam visibilidade, deslocando o ponto de vista (e de escuta) daqueles trabalhadores, que se sentiam impotentes diante daquelas narrativas, das quais transcrevemos alguns trechos:

José nunca sai de casa, fica deitado no sofá, sente muito medo. Há 11 anos usa medicamentos que não fazem mais efeito e pede ao grupo ajuda para mudar os remédios.

Na primeira crise Gilmar se pôs a quebrar tudo à sua volta durante o trabalho. Ouve vozes constantemente que falam coisas ofensivas contra ele. Veio ao grupo pois, desde a alta do Caps, nunca mais teve oportunidade de participar de um grupo de pessoas.

Jonas bebia muito até que passou a ter problema mental. Parou de beber e passou a ser viciado em remédios. Sente muito medo e só anda acompanhado pela irmã. Deseja se ver livre desse vício do remédio.

Lúcia separou-se do marido, que a tratava como uma prostituta. Ela se fere fazendo cortes na pele e imagina que, quando na cama, está deitada sobre facas. Alda diz que o remédio é minha droga, e que vem à UBS em busca de receita assim como um noia vai na biqueira.

Lizete vive só e muitas vezes não sai do quarto, não cuida da sua higiene e nem da casa. Sente-se robotizada pelo remédio. Toma remédios para tentar evitar crises em que fica se debatendo no chão. Diz: eu não entendo o que as pessoas falam. Eu ouço, mas esqueço.

Quando alguém vai à sua casa, Iracy fica no quarto com um sentimento muito ruim. Sente que sua vida é controlada por remédios e deseja ter a vida de volta.

No quadro de desconexão entre o trabalho na atenção básica e a atenção psicossocial, de falta de espaços de conversa sobre sofrimento e uso de remédio psiquiátrico, participar da GAM configurou-se como uma experiência inédita.

As narrativas recolhidas davam luz ao lugar invisível de abandono daquelas pessoas em sofrimento, o que causava muito desconforto aos trabalhadores. Alguns pensavam que aqueles usuários deviam ser encaminhados para o atendimento especializado. Reaparecia o equívoco sobre a quem caberia oferecer atendimento adequado a esses “pacientes” vistos como “doentes mentais” e classificados pelo sistema de saúde como portadores de “transtornos mentais severos e persistentes” (Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre os Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, para atendimento público em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 fev.2002. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2ACrS4N >. Acesso em: 7 out. 2019.
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), termo que condensa um espectro problemático.

Uma auxiliar de enfermagem, surpresa e incomodada, disse que fazia visitas domiciliares na casa de uma usuária há três anos e nunca tinha ouvido as coisas que ela falou ali logo na primeira reunião (Auxiliar de Enfermagem). Esse contraste é significativo: logo na primeira reunião, houve espaço para a pessoa dizer o que em três anos a trabalhadora não ouvia. Naqueles encontros, ao se abrir espaço para a expressão e a escuta em saúde mental, se deixava ver que o trabalho usual na atenção básica e das equipes de Saúde da Família não era sensível às necessidades daqueles usuários, e que o compartilhamento proporcionado pela cogestão e a perspectiva da autonomia ofereciam outras possibilidades de trabalho.

Outro ponto que concorria para o desconforto dos moderadores era o deslocamento do profissional da posição de comando. Os moderadores sentiam profundo desconforto em não saber o que responder às narrativas dos usuários. Assim, a reação automática e condicionada era de dizer algo que desviasse a escuta daquilo que a pessoa estava dizendo. A forma corrente de interceptar a escuta era dar uma resposta, uma explicação, falar uma generalidade que fixasse códigos àquele território existencial e destituísse a fala do outro da sua diferença e sua força. Assim, os moderadores atualizavam automatismos que conservavam e produziam ativamente o grupo na posição assujeitada.

Outra forma de assujeitamento também podia se impor pela ausência de responsividade. Quando uma usuária contou que ela piorava quando lembrava que quando criança sofria abusos pela irmã mais velha, e no encontro do grupo relatou quais abusos eram esses, os moderadores não deram ouvidos, não deram ao momento o tempo do silêncio, ou a atenção ao que havia sido dito, e rapidamente mudaram de assunto.

Tais forças de subjetivação por assujeitamento estavam sempre ativas. Os moderadores, o apoiador e acadêmicos em formação puderam experimentar o quanto era difícil escutar e se manter conectado, ao invés de interceptar o campo dialógico, seja respondendo reativamente, seja deixando cair no vazio as demandas de escuta expressas nas narrativas. A sustentação do campo comunicacional requeria lidar com as forças que conservavam os constrangimentos e restringiam movimentos de dessubjetivação. Entendemos “dessubjetivação” como deslocamentos de posição subjetiva em que se passa por uma zona de confusão, um fora de si, e se experimenta uma temporalidade de trânsito e mudança (Pelbart, 2013PELBART, P. P. Foucault versus Agamben? Ecopolítica, São Paulo, n. 5, p. 50-64, 2013.).

É preciso ressaltar que aquelas forças conservadoras dos constrangimentos, ou de produção de assujeitamento, são centrípetas, pois elas se referem a um centro, a uma determinada identidade, à conservação de um estatuto que estava sendo desestabilizado pelo convite à autonomia em compartilhamento posto em ação naquele coletivo. Eram forças reativas que apontavam para a conservação de posições estabilizadas em nós mesmos. Por isso, o trabalho no grupo era também uma relação de força consigo, com os nossos próprios modos de ver e dizer, pensar e reagir.

O campo comunicacional constituído naqueles encontros não era centrado em torno de núcleos de saber estruturados, o que deixava os integrantes menos protegidos por uma racionalidade que, ao explicar, domina o objeto. As experiências narradas escapavam de um lugar diagnosticado, não havia comportamento a ser entendido como sintoma, patologia a ser classificada, nem sujeito a ser explicado. Pode-se dizer que esses encontros eram menos limitados pela racionalidade científica, pela “mentecalização”, a medicalização da mente, e, nessa condição, os integrantes do grupo podiam ser afetados mais diretamente pelas narrativas.

Autonomia coletiva e redução de danos

Ao longo dos encontros era visível e comentado no grupo que algo se modificava. Jonas, que antes só vinha à UBS acompanhado pela irmã, pois sentia muito medo de sair de casa, agora vem sozinho; disse que estava fazendo caminhadas e indo à praça fazer exercícios. Gilmar trouxe a mulher para a reunião da GAM, pois desejava apresentar a ela o grupo com que se reunia semanalmente e que lhe estava fazendo bem. Lucia agora agenciava alegria no grupo, escutava os outros com atenção, passou a se encontrar com Alda durante a semana e voltou para o seu trabalho. Alda, que chegara ao grupo para conseguir a receita da medicação que desejava, agora estava experimentando dormir sem remédios e diminuir o antidepressivo durante o dia. Por terem se conhecido no grupo da GAM, Alda foi com Lizete ao salão de beleza. Lizete, que muitas vezes nem saía do quarto, foi a uma festa junina com Alda. Deixando aquele lugar em que “não entendia” e “esquecia” o que os outros falavam, Lizete passou a prestar atenção no grupo.

A cada encontro se produziam inúmeros pequenos gestos de ampliação de autonomia em meio a uma multiplicidade de necessidades de cuidado. Em uma das unidades foi dado outro nome ao dispositivo: Autonomia na Vida. Afirmava-se um espaço de cuidado em saúde mental para a constituição de territórios existenciais enriquecidos e que favoreciam maior autonomia na vida. Estamos tratando de uma noção de autonomia que ultrapassa o âmbito do indivíduo, embora, como vimos nos processos narrados acima, também se efetuasse uma ampliação de autonomia individual.

Dialoga-se aqui com o conceito de normatividade vital, proposto por Canguilhem (2009CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.), como capacidade inerente a todo ser vivo de construção de normas de vida, de forma que quanto maior a amplitude de relações, maior a rede de conexões do indivíduo, maior a autonomia no seu viver. No sentido de ampliar essa noção no plano coletivo, para além de uma capacidade normativa individual, agregamos a noção de transversalidade proposta por Guattari (1985GUATTARI, F. Revolução molecular. 2. ed. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985.). Essa noção propõe uma dimensão do coletivo que ultrapassa o par de coordenadas - verticalidade e horizontalidade - que regula as relações na forma das hierarquias e identidades. Uma dimensão dinâmica que produz deslocamento, trânsito, desestabiliza os limites dados por um determinado modo de organização e faz entrar em jogo o indeterminado e o fora de sentido. Para Guattari (1985)GUATTARI, F. Revolução molecular. 2. ed. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985., é nessa zona de indeterminação que emergem novas possibilidades existenciais. Essas duas noções - normatividade vital e transversalidade - nos auxiliam a conceber a autonomia como possibilidade de ação coletiva e de ampliação da capacidade normativa no plano comum que, neste caso, incluiu o trabalhador e o acadêmico, além do usuário.

Nesse plano de compartilhamento em rede emergiam novos modos de existência que davam uma nova visibilidade ao dispositivo numa perspectiva que denominamos “redução de danos”, termo que tem sua origem no campo da atenção à saúde integral de pessoas que fazem uso abusivo ou danoso de álcool e outras drogas. As incursões com a proposta da GAM em um Caps Álcool e Drogas apontavam que a contração da grupalidade e o compartilhamento cogestivo produziam efeitos de uma rede de proteção com potencial de redução de danos e ampliação de autonomia na relação com o uso de substâncias psicoativas (Caron, 2019CARON, E. Experimentações intensivas: psicofármacos e produção de si no contemporâneo. 2019. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.).

Na acepção mais próxima do sentido original do termo “redução de danos”, o dispositivo GAM auxilia a invenção de modos de reduzir danos produzidos pelo uso de medicamentos psiquiátricos e outras drogas. As discussões propostas no Guia da GAM e as práticas de cogestão situam um campo político de constituição de um poder de contratualidade destes usuários, primeiramente em relação aos direitos na área da saúde. Mais adiante, esse campo político se estende à constituição de uma cidadania que inclui a defesa de direitos humanos frente ao estigma, a segregação social e abusos físicos e morais. O dispositivo auxilia desestabilizar o estatuto de “doente mental” e da “doença mental” e, assim, promove uma redução de danos iatrogênicos produzidos pelas relações no campo da medicalização da saúde e da vida.

Mas, acima de tudo, a contração da grupalidade em um campo comunicacional em que os diferentes participantes se dispunham lado a lado propiciava uma qualificação nos modos de andar na vida. Cada um a seu modo era inventor daquele território redutor de danos e colhia seus efeitos na vida. Uma afetabilidade envolvia os participantes naqueles encontros. Na medida em que eram deslocadas posições fixadas por regras e coordenadas que regulavam as relações, começava, então, a se intensificar uma conectividade afetiva que se produzia num campo comunicacional sensível às experiências. Nesse campo aberto de sensibilidades apareciam gestos de cuidado com o outro. A prática cogestiva possibilitava um protagonismo dos usuários no compartilhamento do cuidado, uma forma compreensiva de estar junto com o outro em uma experiência redutora de danos.

Dessa perspectiva operamos um reposicionamento do termo “redução de danos” tanto no cuidado com usuários de álcool e outras drogas, quanto no trabalho em saúde de uma forma ampla.

Considerações finais: formação em conjunção e apoio em movimento

Essa experiência de que tratamos aqui dialoga com um campo de produção de aportes teórico-metodológicos que tem contribuído com políticas públicas de formação acadêmica e de educação permanente em saúde na perspectiva da emergência de novas práticas e da integralidade proposta pela Reforma Sanitária Brasileira. Um vasto campo de problematização no qual apenas traçamos algumas linhas quanto ao tema do apoio às práticas de cuidado (Campos, 2000CAMPOS, G. W. S. Um método para análise e cogestão de coletivos. São Paulo: Hucitec, 2000.; Merhy, 2010MERHY, E. E. Micropolítica do encontro intercessor apoiador-equipe, substrato para um agir intensivista. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 86, p. 433-435, 2010.; Merhy et al., 2014MERHY, E. E. et al. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua: implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 52, p. 153-164, 2014.; Novos…, 2014; Passos; Barros, 2006PASSOS, E.; BARROS, R. B. (Org.). Formação de apoiadores para a Política Nacional de Humanização da gestão e da atenção à saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.; Pereira; Feuerwerker, 2018PEREIRA, C. M.; FEUERWERKER, L. C. M. Apoio em saúde: forças em relação. Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 18, n. 42, p. 379-398, 2018.).

Vimos que aqueles encontros afetavam profundamente os trabalhadores e faziam mudar as visões e as condutas no trabalho. No campo aberto pelo dispositivo estava se operando um apoio à atividade do trabalhador que ultrapassava em muito a função de apoio desempenhada pelo apoiador.

Os médicos moderadores, clínicos gerais, se aproximavam da saúde mental não pela porta da psiquiatria ou da psicopatologia, mas pela redução dos danos iatrogênicos causados pelas condutas. Um dos médicos compartilhou que a sua escuta nas consultas tinha mudado e ele estava atendendo as pessoas de um outro modo. Diz que agora está começando a entender a Reforma Psiquiátrica e como pacientes de saúde mental podem ter atenção na UBS (Médico Generalista).

Tratava-se de processos nos quais todos os participantes encontravam-se em formação. Partíamos de uma proposta, uma ideia, mas ninguém sabia o que aquela ideia podia ser, ninguém sabia a priori como fazer a GAM, e esse era exatamente o motivo comum que catalisava os mais variados desejos de participação dos acadêmicos, gestores, trabalhadores e usuários: conhecer, aprender, experimentar uma proposta de trabalho. Essa abertura, que era uma condição inicial de não-saber, posteriormente se mostrou uma qualidade que favorecia a realização do dispositivo e incitava a participação no processo compartilhado de cuidado e produção de saberes.

A formação e o apoio eram gestados e praticados num plano comum, que, como plano, é aberto e sem centro. Tratava-se de um processo de formação e apoio em que a própria experiência era o foco da formação. O processo formativo era um movimento que acontecia quando era possível se deter na experiência, quando se interrogava a experiência e nos permitíamos colher seus efeitos.

Essa atenção sobre a experiência era um convite a uma multiplicidade de olhares e visibilidades, que facilitava o acesso à transversalidade, auxiliava escapar dos enquadres que estabilizam o campo de relações e provocava trânsitos nos quais novos modos de pensar, existir e cuidar eram possíveis.

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  • 1
    Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2019
  • Aceito
    03 Out 2019
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br