Abordagem de segurança alimentar nutricional nos currículos das universidades federais brasileiras: principais enfoques

Célia M. Patriarca Lisbôa Alexandre Brasil Fonseca Sobre os autores

Resumo

O nutricionista é um profissional importante para a promoção da saúde individual e coletiva, tendo em vista a realização da segurança alimentar e nutricional (SAN), que focaliza o direito humano à alimentação adequada (DHAA) e se constitui estratégia de ações e políticas que pautam o próprio DHAA, a soberania alimentar e o enfoque sistêmico. Nesse sentido, a formação do nutricionista deve incluir conteúdos que subsidiem a sua tarefa de promoção da alimentação adequada e saudável, comprometida com os princípios do Sistema Único de Saúde, na perspectiva da SAN. Este estudo analisou 27 projetos pedagógicos do curso de nutrição de universidades federais das cinco regiões do país, visando identificar como a SAN aparece nos currículos e se constitui elemento para a construção do perfil profissional. A análise evidenciou que, apesar de a maioria estar em consonância com as orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais em relação ao perfil esperado para o egresso, o tema é abordado por um número restrito de disciplinas, apontando baixa representatividade dos conteúdos de SAN em relação a outros conteúdos disciplinares. Conclui-se que o fortalecimento do tema na formação refletirá na atuação do profissional engajado e comprometido com a sua realização no cotidiano.

Palavras-chave:
Segurança Alimentar e Nutricional; Formação do Nutricionista; Currículo

Introdução

No Brasil, acesso à alimentação adequada e saudável é um direito garantido pela Constituição, após a Emenda Constitucional nº 64, de 4 de fevereiro de 2010 (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Seção 1, p. 1.), e constitui o principal foco da segurança alimentar e nutricional (SAN), que visa à

realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis. (Brasil, 2006aBRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) com vistas em assegurar o direito humano à alimentação e dá outras providências. Diário Oficial da União , Poder Legislativo, Brasília, DF, 18 set. 2006a.)

O enfoque em SAN no Brasil diz respeito a ações e políticas públicas como estratégias que articulam os princípios do direito humano à alimentação adequada (DHAA), da soberania alimentar e os aspectos sistêmico e intersetorial (Burlandy, 2009BURLANDY, L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 851-860, 2009.; Leão, 2013LEÃO, M. (Org.). O direito humano à alimentação adequada e o sistema nacional de segurança alimentar e nutricional. Brasília, DF: Abrandh, 2013.; Maluf; Reis, 2013MALUF, R. S. J.; REIS, M. C. Conceitos e princípios de segurança alimentar e nutricional. In: ROCHA, C.; BURLANDY, L.; MAGALHÃES, R. (Org.). Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2013. p. 15-42.).

A SAN apresenta questões que se referem ao alimento e à sua relação com o ser humano e a saúde, tais como o combate à fome e ao consumo de alimentos não seguros. Portanto, por sua familiaridade com os temas concernentes à alimentação e à sua qualificação para intervir nos aspectos de alimentação e nutrição, o nutricionista é um profissional importante para a promoção da saúde individual e coletiva, tendo em vista a realização da SAN (Leão, 2013LEÃO, M. (Org.). O direito humano à alimentação adequada e o sistema nacional de segurança alimentar e nutricional. Brasília, DF: Abrandh, 2013.).

Consequentemente, na sua atuação, o nutricionista necessita considerar diferentes aspectos do fenômeno alimentar, contemplando uma visão integral do indivíduo. Em um país marcadamente afetado pelas desigualdades socioeconômicas, é imprescindível que a formação desse profissional inclua conteúdos das ciências sociais e sirvam de apoio aos profissionais na tarefa de promoção da alimentação adequada e saudável (Fonseca; Frozi, 2019FONSECA, A. B. C.; FROZI, D. S. Social and natural sciences in nutrition: studying the opinion of undergraduates from Brazil and Spain. Revista de Alimentação e Cultura das Américas, Brasília, DF, v. 1, n. 1, p. 28-45, 2019.).

Em concordância com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de nutrição, espera-se que o nutricionista seja capaz de atuar visando a SAN e a atenção dietética (Brasil, 2001BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 5, de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Nutrição. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 9 nov. 2001. Seção 1, p. 39.). Nesse sentido, os cursos de nutrição em todo Brasil vêm construindo propostas de reestruturação curricular, em atendimento às recomendações da política de reformulação do ensino superior.

Esses cursos tomam por base referenciais normativos, tais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União , Poder Legislativo, Brasília, DF, 23 dez. 1996. p. 27833.) e as DCN (Brasil, 2001BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 5, de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Nutrição. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 9 nov. 2001. Seção 1, p. 39.), e levam em consideração os redirecionamentos das políticas de educação e de saúde para repensar a educação do profissional nutricionista, a fim de que possa atender às novas demandas sociais.

Entende-se por projeto pedagógico (PP) o instrumento de orientação acadêmica que reflete a proposta educacional da instituição de ensino, definindo sua identidade, diretrizes, metas e métodos. O PP revela bases e pressupostos específicos, que envolvem prioridades sociopolíticas e contribuem para a construção de um perfil profissional que atenda a uma determinada visão de mundo (Mainardes, 2006MAINARDES, J. Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação e Sociedade, Campinas, v. 27, n. 94, p. 47-69, 2006.; Mainardes; Ferreira; Tello, 2011MAINARDES, J.; FERREIRA, M. S.; TELLO, C. Análise de políticas: fundamentos e principais debates teórico-metodológicos. In: BALL, S. J.; MAINARDES, J. (Org.). Políticas educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez, 2011. p. 143-172.).

Desse documento de orientação acadêmica constam, dentre outros elementos: conhecimentos e saberes considerados necessários à formação das competências estabelecidas a partir do perfil do egresso; estrutura e conteúdo curricular; ementário; bibliografias básica e complementar; estratégias de ensino; docentes; recursos materiais; serviços administrativos; serviços de laboratórios; e infraestrutura de apoio ao pleno funcionamento do curso. (Brasil, 2006bBRASIL. Ministério da Educação. Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Instrumento único de avaliação de cursos de graduação. Brasília, DF, 2006b. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2MAfI3v >. Acesso em: 10 maio 2019.
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)

Em relação à saúde, as orientações dos dispositivos legais apontam para uma adequação profissional às exigências do Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 2001BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 5, de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Nutrição. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 9 nov. 2001. Seção 1, p. 39.), requerendo uma formação que o capacite para exercer determinadas competências e habilidades gerais, entre as quais:

Os profissionais de saúde, dentro de seu âmbito profissional, devem estar aptos a desenvolver ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde, tanto em nível individual quanto coletivo. Cada profissional deve assegurar que sua prática seja realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde, sendo capaz de pensar criticamente, de analisar os problemas da sociedade e de procurar soluções para os mesmos. (Brasil, 2001BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 5, de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Nutrição. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 9 nov. 2001. Seção 1, p. 39.)

Inclui-se que o Conselho Federal de Nutricionistas (CFN, 2013CFN - CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS. O nutricionista e as políticas públicas. Revista da Associação Brasileira de Nutrição, São Paulo, ano 5, n. 1, p. 86-88, 2013.) orienta que o profissional esteja preparado para atuar de acordo com as políticas públicas de saúde e suas múltiplas interfaces com alimentação e nutrição, assim como com os princípios do SUS, buscando garantir o DHAA para atingir a SAN, independentemente da área em que atua.

Ainda, o Consenso sobre Habilidades e Competências do Nutricionista no Âmbito da Saúde Coletiva (Recine; Mortoza, 2013RECINE, E.; MORTOZA, A. S. Consenso sobre habilidades e competências do nutricionista no âmbito da saúde coletiva. Brasília, DF: Observatório de Políticas de Segurança e Nutrição, 2013.) é um documento que serve de parâmetro norteador para caracterizar conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias ao fortalecimento da prática profissional no campo da nutrição em saúde coletiva. Ele indica que os princípios e fundamentos de SAN, soberania alimentar e DHAA, devem ser incorporados na prática da nutrição em saúde coletiva, constituindo um dos eixos temáticos do campo.

Somam-se as orientações da Matriz de Ações de Alimentação e Nutrição na Atenção Básica de Saúde (Maanabs) (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Matriz de ações de alimentação e nutrição na atenção básica de saúde. Brasília, DF, 2009. (Série A. Normas e Manuais Técnicos).), que indicam ações a serem incorporadas pelo nutricionista, no intuito de promover uma abordagem transversal das questões nutricionais, buscando impactar positivamente os indicadores de nutrição, saúde e SAN.

Nessa perspectiva, a qualidade do processo de formação é fundamental para prover as habilidades e competências necessárias ao profissional, diante das diferentes dimensões exigidas para atuar em alimentação e nutrição.

Este artigo é parte de uma pesquisa de doutorado e tem por objetivo analisar 27 projetos pedagógicos do curso (PPC) de nutrição de universidades federais das cinco regiões do país, visando evidenciar como a SAN aparece nos currículos de nutrição e se constitui elemento para a construção do perfil profissional. Considera-se que a valorização de um determinado enfoque pode influenciar a formação, com ênfase em diferentes competências e habilidades (Cervato-Mancuso; Coelho; Vieira, 2016CERVATO-MANCUSO, A. M.; COELHO, D. E. P.; VIEIRA, V. L. Segurança alimentar e nutricional: percepções de coordenadores de cursos de nutrição. Revista da Associação Brasileira de Nutrição, São Paulo, ano 7, n. 2, p. 9-17, 2016.).

Metodologia

O universo inicial desta pesquisa inclui as instituições federais de ensino superior (Ifes) do Brasil, devidamente cadastradas e ativas no Ministério da Educação,11 Disponível em: <http://emec.mec.gov.br/>. Acesso em: 5 jun. 2020. que oferecem o curso de graduação em nutrição. Nessa pesquisa elas serão identificadas por universidades federais. Foram encontradas 57 universidades, das quais inicialmente apenas 29 foram selecionadas para análise do PPC. O critério de inclusão foi a disponibilização on-line do PPC na página da instituição de ensino.

No processo de análise documental foram excluídos os PPC da Universidade Federal de Viçosa (UFV), campus Rio Paranaíba e Universidade Federal Fluminense (UFF). As referidas Ifes não disponibilizam as ementas do currículo, oferecem apenas uma listagem com a identificação das disciplinas, impossibilitando a análise mais fidedigna aos propósitos desta pesquisa. Assim, considerando que a UFV-Paranaíba apresenta a mesma estrutura curricular da sede, optou-se por analisar somente o PCC da UFV, por entender que disponibilizaria dados suficientes para a compreensão do perfil profissional idealizado por essa instituição. Em relação à UFF, não houve sucesso a tentativa de contato com a coordenação do curso de nutrição.

Foram analisados, efetivamente, os PPC de 27 universidades federais selecionadas das cinco regiões do Brasil, das quais 15 são resultantes do processo de expansão e interiorização universitária (Quadro 1). A análise permitiu identificar como a SAN se comporta no currículo dos cursos de nutrição das Ifes brasileiras, as principais disciplinas que a abordam, assim como os enfoques de SAN privilegiados por elas. Considerou-se o número total de disciplinas oferecidas no currículo dos cursos de nutrição, incluindo as optativas e excluindo os estágios.

Quadro 1
Distribuição dos projetos pedagógicos do curso de nutrição nas instituições federais de ensino superior do Brasil por região, cidade, expansão/interiorização, ano

O estudo tomou por base os aspectos da SAN apresentados pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) (Brasil, 2006aBRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) com vistas em assegurar o direito humano à alimentação e dá outras providências. Diário Oficial da União , Poder Legislativo, Brasília, DF, 18 set. 2006a.) a seguir: acessibilidade aos modos de produção e distribuição e à promoção da alimentação saudável, considerando os grupos e populações em situação de vulnerabilidade social; a sustentabilidade, com políticas públicas e estratégias sustentáveis; além de assegurar a qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos.

Para a investigação construiu-se um quadro analítico, considerando os seguintes elementos: objetivos do curso, perfil do profissional e estrutura curricular, com foco nas disciplinas presentes no material impresso relacionadas direta ou indiretamente à SAN. Os critérios adotados para determinar relação direta com a SAN foram: emprego das expressões “segurança alimentar” ou “segurança alimentar e nutricional” na descrição do perfil profissional, com base nas DCN; presença da expressão “segurança alimentar” ou “segurança alimentar e nutricional” nas ementas das disciplinas, bibliografia básica e complementar; conteúdo relacionado com as Políticas Públicas de SAN.

Para fins de análise, considerou-se segurança alimentar aquela cuja concepção diz respeito ao alimento seguro, inócuo, sem riscos do ponto de vista sanitário, conforme indicam comumente as pesquisas que focalizam este aspecto dos alimentos (Anjos; Burlandy, 2010ANJOS, L. A.; BURLANDY, L. Construção do conhecimento e formulação de políticas públicas no Brasil na área de segurança alimentar. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 19-30, 2010.). SAN diz respeito a um processo mais amplo, que considera o alimento em suas condições de produção, sua qualidade nutricional e os fatores culturais e socioeconômicos que envolvem o ato de comer (Brasil, 2006aBRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) com vistas em assegurar o direito humano à alimentação e dá outras providências. Diário Oficial da União , Poder Legislativo, Brasília, DF, 18 set. 2006a.). Distinguir as referidas terminologias auxilia a diferenciação dos enfoques abordados nos currículos analisados.

No que diz respeito às disciplinas relacionadas indiretamente com a SAN, foram adotados os seguintes critérios: presença de aspectos relacionados à SAN nos objetivos do curso, estrutura curricular, ementas, bibliografia básica e complementar, tais como direito humano à alimentação adequada, cultura alimentar, agroecologia, sistemas de produção alimentar, indicadores da situação nutricional, vigilância alimentar e nutricional, segurança microbiológica, rotulagem, agrotóxicos, transgênicos e outros.

Resultados

O total de ementas analisadas foi 1.322, das quais 164 se inserem em um ou mais critérios estabelecidos com relação à SAN (12,4%): 58 possuem relação direta (4,38%) e 106 possuem relação indireta (8,01%) (Gráfico 1).

Gráfico 1
Distribuição das disciplinas totais e disciplinas com conteúdo de segurança alimentar nutricional das instituições federais de ensino superior estudadas

Em relação ao Gráfico 1, evidencia-se que as 27 universidades destacam a SAN como tema constituinte em, no mínimo, uma disciplina do curso. Em maioria, as disciplinas que se referem à SAN atingem em torno de 10% a 12% do total de disciplinas disponibilizadas, apontando para a baixa representatividade dos conteúdos desse tema em relação a outros conteúdos disciplinares.

Observa-se ainda que a SAN geralmente se apresenta em disciplinas do campo da nutrição social, tais como: Nutrição em Saúde Pública, Nutrição em Saúde Coletiva, Políticas Públicas de Alimentação e Nutrição, Epidemiologia Nutricional, Alimentação, Nutrição e Sociedade.

Frequentemente a ênfase recai sobre o direito humano à alimentação adequada (27 Ifes), em seus diferentes aspectos (culturais, sociais, consumo alimentar, promoção da alimentação saudável). Destaca-se também o foco nas políticas públicas de SAN (26 Ifes), que dizem respeito aos seus principais aspectos apontados pela Losan (Brasil, 2006aBRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) com vistas em assegurar o direito humano à alimentação e dá outras providências. Diário Oficial da União , Poder Legislativo, Brasília, DF, 18 set. 2006a.).

As disciplinas da área de segurança dos alimentos, como Microbiologia, Higiene e Legislação dos Alimentos, Controle de Qualidade dos Alimentos, Toxicologia dos Alimentos, Administração de Serviços de Alimentação e Nutrição, estão presentes no PPC de 11 universidades (UFS, UFPI, Ufal, UFMA, UFMT, UnB, Ufes, Unirio, UFCSPA, UFFS, Unipampa-Itaqui). Essas disciplinas (n=16) dão ênfase aos aspectos de higiene e inocuidade, na perspectiva do alimento seguro e sem riscos.

No que diz respeito à intersetorialidade, três cursos (UFRB, UFSC, UFRJ-Macaé) dão destaque aos seus aspectos, buscando articular diferentes atores para além dos muros da universidade, com vistas à promoção da saúde.

Em relação à política de SAN, encontramos registros em três cursos (UFSC, UFJF, UFMT) que evidenciam explicitamente a sua integração ao SUS e ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, focalizando ações de promoção da saúde, proteção e recuperação das dimensões envolvidas no processo saúde-doença, assim como aquelas que dizem respeito à interrelação entre produção, abastecimento, comercialização e consumo de alimentos.

A análise evidenciou também a existência de disciplinas que tomam a SAN por assunto principal em sete Ifes (UFT, UFRB, UFTM, UFV, UFFS, UFSC, UFRGS), conforme demonstra o Quadro 2.

Quadro 2
Disciplinas com ênfase em segurança alimentar nutricional, de acordo com região e instituição federal de ensino superior

Em nossa análise, identificamos apenas dois registros que dão visibilidade aos alimentos transgênicos. O primeiro diz respeito a um tópico da disciplina Toxicologia de Alimentos, da UFMT. O segundo aparece na bibliografia da disciplina Vigilância Sanitária Alimentar, da UFSC.

Destaca-se a emergência de disciplinas de cunho biológico em três universidades (UFT, UFS, Unifesp), com foco na adequação nutricional em diferentes fases da vida, como nutrição da criança e do adolescente e nutrição do adulto e do idoso. Essas disciplinas apontam a insegurança alimentar e nutricional, caracterizada pelo desrespeito ao DHAA de forma regular, a indivíduos ou comunidades.

Discussão

Identificamos que todos os PPC analisados estão em consonância com as orientações das DCN no que diz respeito ao perfil esperado para o egresso, seja na apresentação dos objetivos, na composição das disciplinas ou no corpo do texto. Vale destacar que as DCN (Brasil, 2001BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 5, de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Nutrição. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 9 nov. 2001. Seção 1, p. 39.) são documentos legais norteadores para a construção dos currículos dos cursos de nutrição em todo o território nacional e apresentam um delineamento do perfil profissional voltado para a formação comprometida com a SAN, sendo a primeira vez em que a SAN tem destaque na orientação curricular de nutrição, contribuindo para novas possibilidades de construção da identidade profissional.

Esse fato é reflexo da articulação da comunidade disciplinar de nutricionistas, de grupos de pressão e dos movimentos sociais do final dos anos 1990 contra o enfraquecimento da SAN na agenda pública nacional. Os esforços conduziram à formulação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) (Brasil, 2007BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política nacional de alimentação e nutrição. 2. ed. rev. Brasília, DF, 2007. (Série B. Textos Básicos de Saúde)., 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília, DF, 2013. ), que visa à promoção do DHAA e ao enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional da população brasileira. Acrescentou-se a inclusão da SAN na agenda política para a produção do texto normativo das DCN, fortalecendo a identidade do profissional comprometido com as demandas sociais que envolvem o fenômeno alimentar (Alves; Jaime, 2014ALVES, K. P. S.; JAIME, P. C. A Política Nacional de Alimentação e Nutrição e seu diálogo com a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Ciências e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 11, p. 4331-4340, 2014.).

Entretanto, o número restrito de disciplinas que fazem interface com a abordagem de SAN, direta ou indiretamente (12,4%), demonstra baixa representatividade do tema em relação a outros conteúdos disciplinares, o que dificulta a compreensão e reflexão acerca dos determinantes dos problemas nutricionais e da importância da promoção do direito humano à alimentação adequada e saudável. Pode-se inferir que as universidades federais brasileiras ainda privilegiam a vertente biológica do fenômeno alimentar, o que pode refletir os interesses, conflitos e alianças presentes no âmbito dos cursos. Considera-se aqui o contexto de produção de texto, no qual se dá a construção do PPC, uma arena de disputas, poder, culturas, identidades que repercutem no texto relido, reconstruído e recriado no contexto da universidade (Mainardes, 2006MAINARDES, J. Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação e Sociedade, Campinas, v. 27, n. 94, p. 47-69, 2006.; Mainardes et al., 2011MAINARDES, J.; FERREIRA, M. S.; TELLO, C. Análise de políticas: fundamentos e principais debates teórico-metodológicos. In: BALL, S. J.; MAINARDES, J. (Org.). Políticas educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez, 2011. p. 143-172.).

Outra possível explicação está na pequena participação do nutricionista nos fóruns de discussão sobre temas de interesse da categoria e da sociedade como um todo (CFN, 2006CFN - CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS. Perfil da atuação profissional do nutricionista no Brasil. Brasília, DF, 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3euoLPN >. Acesso em: 9 jan. 2019.
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), reflexo da desvalorização das ciências sociais no currículo e do baixo reconhecimento social da profissão nas questões que aludem ao seu campo de formação (Bosi, 1996BOSI, M. L. M. Profissionalização e conhecimento: a nutrição em questão. São Paulo: Hucitec, 1996.; Elias, 2009ELIAS, R. C. Análise da importância das questões socioculturais da alimentação na perspectiva dos estudantes de nutrição: implicações para a formação em saúde. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) - Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.; Fonseca; Frozi, 2019FONSECA, A. B. C.; FROZI, D. S. Social and natural sciences in nutrition: studying the opinion of undergraduates from Brazil and Spain. Revista de Alimentação e Cultura das Américas, Brasília, DF, v. 1, n. 1, p. 28-45, 2019.).

Bosi (1996BOSI, M. L. M. Profissionalização e conhecimento: a nutrição em questão. São Paulo: Hucitec, 1996.) tenta explicar o desprestígio da vertente social na formação e prática do profissional nutricionista a partir dos contextos históricos do surgimento e desenvolvimento da profissão. De acordo com a autora, nos anos 1940 a questão da fome era assunto de importante interesse e reflexão, abordado a partir de premissas de determinação social, e tinha como principais representantes médicos nutrólogos, como Josué de Castro. Porém a partir do golpe militar de 1964, privilegiou-se a assistência médica curativa e a vertente clínico-laboratorial assumiu o lugar de destaque no processo de discussão e produção de conhecimento sobre alimentação e nutrição. Apesar da proposta crítica da medicina social dos anos 1970, comprometida com a transformação social, coube ao nutricionista somente a execução de programas de alimentação, sem a devida participação na discussão dos objetivos e no planejamento das intervenções, sendo aos poucos excluído das arenas de debate.

A predominância da abordagem de SAN nas disciplinas do campo da nutrição social e das políticas públicas corrobora a Maanabs (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Matriz de ações de alimentação e nutrição na atenção básica de saúde. Brasília, DF, 2009. (Série A. Normas e Manuais Técnicos).) e os resultados encontrados nas pesquisas de Bosi e Prado (2011BOSI, M. L. M.; PRADO, S. D. Alimentação e nutrição em saúde coletiva: constituição, contornos e estatuto científico. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 7-17, 2011.), Recine et al. (2012RECINE, E. et al. A formação em saúde pública nos cursos de graduação de nutrição no Brasil. Revista de Nutrição, Campinas, v. 25, n. 1, p. 21-33, 2012.), Recine e Mortoza (2013RECINE, E.; MORTOZA, A. S. Consenso sobre habilidades e competências do nutricionista no âmbito da saúde coletiva. Brasília, DF: Observatório de Políticas de Segurança e Nutrição, 2013.), as quais indicam a SAN como um dos eixos e ações que compõem o campo da saúde coletiva, sobretudo no âmbito das políticas públicas. Porém a pesquisa de Guerra, Cervato-Mancuso e Bezerra (2019GUERRA, L. D. S.; CERVATO-MANCUSO, A. M.; BEZERRA, A. C. D. Alimentação: um direito humano em disputa - focos temáticos para compreensão e atuação em segurança alimentar e nutricional. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 9, p. 3369-3394, 2019.), que analisou estudos sobre a SAN em diferentes países, aponta que o vínculo entre SAN e a saúde pública necessita ser fortalecido, especialmente por uma abordagem que possibilite a compreensão da alimentação como um direito humano, intimamente imbricado em outros direitos sociais fundamentais, como saúde, moradia, educação.

O campo da nutrição social se constitui, tradicionalmente, o lugar privilegiado de atuação profissional com ênfase nos princípios e fundamentos de SAN, soberania alimentar e DHAA (Recine; Mortoza, 2013RECINE, E.; MORTOZA, A. S. Consenso sobre habilidades e competências do nutricionista no âmbito da saúde coletiva. Brasília, DF: Observatório de Políticas de Segurança e Nutrição, 2013.), ainda que os dispositivos legais que orientam o exercício profissional pressuponham uma atuação generalista e crítica, que busca garantir o DHAA e a promoção da SAN em todas as áreas de atuação profissional (Brasil, 2001BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 5, de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Nutrição. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 9 nov. 2001. Seção 1, p. 39.; CFN, 2013CFN - CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS. O nutricionista e as políticas públicas. Revista da Associação Brasileira de Nutrição, São Paulo, ano 5, n. 1, p. 86-88, 2013., 2018CFN - CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS. Resolução CFN nº 600, de 25 de fevereiro de 2018. Dispõe sobre a definição das áreas de atuação do nutricionista e suas atribuições, indica parâmetros numéricos mínimos de referência, por área de atuação, para a efetividade dos serviços prestados à sociedade e dá outras providências. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 20 abr. 2018. Seção 1, p. 157.).

Destaca-se que as disputas que ocorrem nas arenas de debate e ação envolvendo a SAN, contam com a participação ativa de nutricionistas e docentes do campo da saúde coletiva e políticas públicas (Alves; Jaime, 2014ALVES, K. P. S.; JAIME, P. C. A Política Nacional de Alimentação e Nutrição e seu diálogo com a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Ciências e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 11, p. 4331-4340, 2014.). Vale lembrar que o enfoque nutricional da SAN reflete a contribuição de atores ligados ao campo da nutrição em saúde coletiva no seu processo de debate e construção.

Os resultados podem também indicar a urgência da formação voltada para a capacitação profissional no campo das políticas públicas, visando à intervenção nos aspectos de alimentação e nutrição das políticas públicas de saúde, assim como a participação em órgãos descentralizados de gestão de diferentes esferas e em ações de controle social (Conselho Nacional de Segurança Alimentar, Conselhos de Saúde e outros), dada a ampliação da abrangência da atuação profissional no referido campo (CFN, 2013CFN - CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS. O nutricionista e as políticas públicas. Revista da Associação Brasileira de Nutrição, São Paulo, ano 5, n. 1, p. 86-88, 2013.; Recine et al., 2012RECINE, E. et al. A formação em saúde pública nos cursos de graduação de nutrição no Brasil. Revista de Nutrição, Campinas, v. 25, n. 1, p. 21-33, 2012.).

Concordando com o que Cervato-Mancuso, Coelho e Vieira (2016CERVATO-MANCUSO, A. M.; COELHO, D. E. P.; VIEIRA, V. L. Segurança alimentar e nutricional: percepções de coordenadores de cursos de nutrição. Revista da Associação Brasileira de Nutrição, São Paulo, ano 7, n. 2, p. 9-17, 2016.) evidenciaram em sua pesquisa, o DHAA aparece como principal enfoque de SAN nas universidades investigadas. O tema ganha destaque a partir das campanhas de combate à fome e à miséria nos anos 1990, e se amplia para abordar questões referentes à qualidade nutricional e sanitária dos alimentos. Nesse sentido, de acordo com os tratados internacionais de direitos humanos, o DHAA possui duas dimensões indivisíveis. A primeira diz respeito ao direito de estar livre da fome e da má nutrição; e a segunda ao direito à alimentação adequada, que envolve aspectos relacionados ao equilíbrio nutricional, à qualidade sanitária, respeito e valorização da cultura alimentar nacional e regional, acesso a alimentos livres de contaminantes, agrotóxicos e organismos geneticamente modificados, entre outros (Leão, 2013LEÃO, M. (Org.). O direito humano à alimentação adequada e o sistema nacional de segurança alimentar e nutricional. Brasília, DF: Abrandh, 2013.).

Vale ressaltar que o DHAA se insere nos direitos universais basilares da humanidade, que são interdependentes e interrelacionados. Desse modo, quando um direito é violado, provavelmente há concomitante violação de outros. Nesse sentido, o DHAA deve ser garantido a qualquer cidadão e se relaciona a um conjunto de condições necessárias e essenciais para que todos os seres humanos possam desenvolver suas capacidades, participando com dignidade e de forma igualitária da vida em sociedade, como: acesso à saúde, água, moradia, educação, trabalho, lazer e outros (Guerra; Cervato-Mancuso; Bezerra, 2019GUERRA, L. D. S.; CERVATO-MANCUSO, A. M.; BEZERRA, A. C. D. Alimentação: um direito humano em disputa - focos temáticos para compreensão e atuação em segurança alimentar e nutricional. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 9, p. 3369-3394, 2019.; Menezes; Burlandy; Maluf, 2004MENEZES, F.; BURLANDY, L.; MALUF, R. Princípios e diretrizes de uma política de segurança alimentar e nutricional: textos de referência para a II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, 2004.). Um currículo que focaliza o DHAA abre possibilidade para uma formação profissional mais comprometida com as transformações, tendo em vista o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária.

As disciplinas da área de segurança dos alimentos focalizam o aspecto sanitário, na perspectiva do alimento seguro e sem riscos. Anjos e Burlandy (2010ANJOS, L. A.; BURLANDY, L. Construção do conhecimento e formulação de políticas públicas no Brasil na área de segurança alimentar. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 19-30, 2010.) afirmam que, para além dos aspectos de inocuidade e segurança do alimento, a SAN no Brasil se apresenta principalmente sob os enfoques relacionados à qualidade nutricional e aos aspectos de produção, considerando os riscos sociais, ambientais e econômicos relativos ao processo.

Jaime et al. (2018JAIME, P. C. et al. Um olhar sobre a agenda de alimentação e nutrição nos trinta anos do Sistema Único de Saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1829-1836, 2018.) complementam que um conceito ampliado de risco sanitário em alimentos deve incluir as dimensões relacionadas ao controle da qualidade nutricional dos alimentos industrializados, da publicidade e de políticas de rotulagem, tão intimamente imbricados com as estratégias de controle de sobrepeso e obesidade e conscientização sobre alimentação saudável.

A emergência de disciplinas de cunho biológico que articulam a SAN, na perspectiva da insegurança alimentar, evidencia um pequeno avanço, uma vez que interligam conhecimentos biológicos e sociais, tão necessários para a realização da dimensão de integralidade do SUS.

A atuação do nutricionista no SUS inclui os cuidados relativos à alimentação e nutrição voltados para a promoção e proteção da saúde, assim como à prevenção de doenças e agravos à saúde, num atendimento humanizado a indivíduos, famílias e comunidades. Entre os principais desafios relacionados à alimentação estão as doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, hipertensão, obesidade), que acometem cerca de 45% da população (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2017: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2017. Brasília, DF, 2018.), demandando ações de promoção de práticas alimentares saudáveis.

Soma-se a isso os sistemas alimentares, incluindo os processos de produção, distribuição e acesso, tendo em vista que a conformação da sociedade atual é marcada pelo processo de industrialização, desenvolvimento tecnológico e propaganda, que influencia fortemente o consumo alimentar e estimula novas práticas alimentares, provocando significativas transformações nos modos de vida da sociedade.

Desse modo, garantir a SAN implica a implementação de um conjunto de políticas públicas sociais integradas e complementares, que para além do setor saúde, inclui proteção social; regulação e controle dos alimentos; fomento à produção agrícola de base familiar, valorizando as dimensões socioculturais da alimentação e um sistema alimentar justo e sustentável (Jaime et al., 2018JAIME, P. C. et al. Um olhar sobre a agenda de alimentação e nutrição nos trinta anos do Sistema Único de Saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1829-1836, 2018.).

O tema transgênico ainda é pouco discutido no currículo. O assunto é de suma importância e está em debate em nossos dias, sendo motivo de controvérsia sobre biossegurança, especialmente pelas questões acerca dos efeitos do seu consumo sobre a saúde dos seres humanos e a biodiversidade. A relevância do tema na atualidade se apresenta frequentemente nas discussões em torno da rotulagem de alimentos que contenham ou sejam produzidos a partir de transgênicos. Especialmente pela aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 4.148, de 2008 (atualmente, Projeto de Lei da Câmara nº 34, de 2015), em 28 de abril de 2015, na Câmara dos Deputados, o qual ainda se encontra em tramitação no Senado.

O referido PL altera a Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, acabando com a exigência do símbolo da transgenia nos rótulos dos produtos com organismos geneticamente modificados, como óleo de soja, fubá e outros derivados, negando ao consumidor o direito à informação sobre os alimentos que consome. Com as alterações, a lei dispõe que apenas os produtos que apresentem mais de 1% dos transgênicos em sua composição final serão rotulados, abrindo brechas para que alimentos fabricados com matéria-prima 100% transgênica não sejam rotulados.

Em relação à ocorrência da intersetorialidade nas ações, com vistas à promoção da saúde, vale apontar que se trata de uma apropriação brasileira da noção de SAN, que a distingue de outros países e organizações internacionais. Esse enfoque consiste na implementação de ações e programas de diversos setores (saúde, educação, agricultura, economia e outros), que estejam integrados na perspectiva da garantia do DHAA, para atuação no âmbito da produção, comercialização, acesso e consumo do alimento (Burlandy, 2009BURLANDY, L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 851-860, 2009.).

De acordo com Vieira, Utikava e Cervato-Mancuso (2013VIEIRA, V. L.; UTIKAVA, N.; CERVATO-MANCUSO, A. M. Atuação profissional no âmbito da segurança alimentar e nutricional na perspectiva de coordenadores de cursos de graduação em Nutrição. Interface, Botucatu, v. 17, n. 44, p. 157-70, 2013.), a partir da implementação e evolução das políticas na área de alimentação e de nutrição intimamente imbricadas com a SAN, ampliou-se o cenário de atuação do nutricionista, que pode se inserir na área de gestão, de educação, na atenção básica, alimentação escolar, entre outros.

A emergência de disciplinas que focalizam a SAN como principal assunto aponta para um avanço em relação aos achados da pesquisa de Recine et al. (2012RECINE, E. et al. A formação em saúde pública nos cursos de graduação de nutrição no Brasil. Revista de Nutrição, Campinas, v. 25, n. 1, p. 21-33, 2012.), que analisaram cursos de nutrição de universidades públicas e privadas, não identificando qualquer disciplina que tratasse explicitamente de SAN. Sugere-se uma valorização da SAN como área de conhecimento e ação, destacando-se no âmbito da formação profissional.

A concepção da SAN é transversal aos vários campos de saberes e perpassa os âmbitos socioeconômico, biológico, ambiental e cultural. Além disso, as DCN apresentam a promoção da SAN como uma das principais atribuições do nutricionista. A escassa articulação da abordagem entre as disciplinas curriculares indica uma lacuna importante, que vai incidir na formação e no perfil profissional.

Valorizar a transdisciplinaridade auxilia a compreensão e a apropriação das diferentes dimensões da SAN na prática profissional, principalmente quando consideramos as características da transição alimentar, em que o padrão alimentar do brasileiro, baseado no consumo de cereais, feijões, raízes e tubérculos, foi substituído por uma alimentação rica em ingredientes químicos, gorduras, açúcares e sódio, conduzindo a um quadro concomitante de obesidade e desnutrição (Batista Filho; Rissin, 2003BATISTA FILHO, M.; RISSIN, A. A transição nutricional no Brasil: tendências regionais e temporais. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, p. 181-191, 2003. Suplemento 1.; Monteiro et al., 2000MONTEIRO, C. A. et al. Da desnutrição para a obesidade: a transição nutricional no Brasil. In: MONTEIRO, C. A. (Org.). Velhos e novos males da saúde no Brasil. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2000. p. 247-255.).

Considerações finais

A concepção brasileira de SAN focaliza o DHAA nas suas diferentes dimensões, a soberania alimentar e o enfoque sistêmico, com a valorização da intersetorialidade.

No que tange à formação, considera-se a universidade pública um espaço privilegiado e democrático de construção conjunta de conhecimento, contribuindo para a formação de um profissional mais integrado e engajado com as demandas sociais. Nesse sentido, a instituição de ensino compartilha muito mais que conteúdos, mas uma forma de ver o mundo, deslocando o currículo para as relações que se estabelecem no entorno do ato educativo, na vida cotidiana, comprometida com a emancipação do ser humano.

Para fins desta pesquisa, considera-se que o currículo não é neutro, mas construído a partir das concepções da comunidade acadêmica sobre a SAN e do papel do nutricionista na sociedade. A percepção do conceito de SAN influenciará as ações e escolhas do currículo e a visão da universidade sobre o perfil do profissional que se deseja formar.

A análise dos PPC evidenciou que a estruturação das disciplinas nem sempre reflete os conteúdos e articulações necessárias para a concretização das orientações das DCN do curso de nutrição. Nesse sentido, visando à realização da SAN em seus mais diversos aspectos, exige-se uma adequação curricular dos cursos de graduação em nutrição, em que se permita a transversalidade das disciplinas e dos projetos e ações de extensão desenvolvidas no âmbito do curso para a formação de cidadãos críticos e responsáveis, comprometidos com a garantia do DHAA nos seus diferentes aspectos.

Como limitação desta pesquisa, aponta-se que a análise de PPC não demonstra a realidade das práticas curriculares no âmbito das universidades federais, pois o currículo prescrito ou formal dificilmente acompanha a evolução do currículo real, que acontece no cotidiano da sala de aula. Considerando que a prática pedagógica pressupõe uma certa autonomia e concepção acerca do conhecimento, exige-se a realização de investigações que deem visibilidade à realidade local.

A atuação profissional deve estar comprometida com o reconhecimento da alimentação como um direito inalienável, que abrange desde questões relativas à produção e disponibilidade do alimento para atender a sociedade; o combate à fome; até questões que dizem respeito ao consumo e escolhas alimentares intimamente ligados aos aspectos políticos e econômicos que norteiam o mercado. Desse modo, o fortalecimento da SAN na formação é fundamental para atuação profissional crítica e responsável nesta área.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2019
  • Aceito
    22 Abr 2020
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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