Modos de subjetivação e discurso psiquiátrico: implicação e repercussão do diagnóstico psiquiátrico na construção de identidade dolsujeito

Cristiane Davina Redin Freitas Bruna Reuter Sobre os autores

Resumo

O objetivo do artigo é apresentar os resultados da pesquisa que versou sobre o impacto do diagnóstico psiquiátrico nos modos de subjetivação do sujeito. Também se propõe a demonstrar a relação do diagnóstico com o processo de medicalização e a repercussão sobre as relações sociais dos indivíduos. Desse modo, foi realizada uma pesquisa qualitativa exploratória que se baseou nos dados dos prontuários, bem como em entrevistas semidirigidas realizadas com dez usuários de uma unidade básica de saúde com Estratégia Saúde da Família de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. Os principais achados se expressaram em três eixos: subjetivação pela doença, que traz a ideia de que os sujeitos se reconhecem e reproduzem um comportamento coerente ao diagnóstico imposto; medicalização como controle de si mesmo, que discute a dependência dos sujeitos à medicação; e relações interpessoais após o diagnóstico, que alude à mudança de comportamento que as pessoas mais próximas têm com o indivíduo “doente”.

Palavras-chave:
Diagnóstico Psiquiátrico; Subjetividade; Medicalização; Identidade

Introdução

Durante o século XXI, a ciência médica vem tornando patológico algo que é da singularidade do sujeito. Um sentimento advindo de alguma situação estressora torna-se alvo dos vários diagnósticos psiquiátricos produzidos nos consultórios médicos. O modelo biomédico hegemônico enfoca a doença em detrimento da pessoa e, apesar de sua utilidade ao sistema médico, ele desconsidera o valor da experiência subjetiva do paciente (Remen, 1993REMEN, R. N. O paciente como ser humano. São Paulo: Summus, 1993.).

A discussão da biomedicina está acompanhada do crescimento da indicação prioritária da medicalização nas intervenções médico-psiquiátricas. Segundo Gonçalves e Ferreira (2008GONÇALVES, H. C.; FERREIRA, R. G. Os psicofármacos como uma necessidade temporal da atualidade: uma perspectiva psicológica. Fractal: Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 641-642, 2008.), a intensa e pouco criteriosa prescrição de medicamentos tem como propósito dar conta da maioria dos problemas psíquicos e criar um sujeito sem conflitos como um modelo-padrão de normalidade. Com isso, constrói-se a dependência da medicação, já que o sujeito diagnosticado acredita ser incapaz de enfrentar o cotidiano sem estar com suas emoções “controladas”. Além disso, há outras consequências da medicalização, como a dependência química e física quando utilizada por tempo prolongado.

Em oposição ao modelo referido, pode-se mencionar a Reforma Psiquiátrica como um importante movimento político e social, ocorrido no Brasil na década de 1970 e que questionou os pressupostos básicos da psiquiatria e do modelo hospitalocêntrico, trazendo a discussão sobre os direitos dos pacientes psiquiátricos. Contudo, mesmo que as mudanças propostas pela Reforma exigissem a transformação nos modos de agir em relação às questões de saúde mental, ainda se verificam situações em que o diagnóstico psiquiátrico determina os modos de vida e a subjetividade das pessoas (Brasil, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. In: CONFERÊNCIA REGIONAL DE REFORMA DOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL: 15 anos depois de Caracas, 2005, Brasília, DF. Anais… Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2005.; Silva; Brandalise, 2008SILVA, R.; BRANDALISE, F. O efeito do diagnóstico psiquiátrico sobre a identidade do paciente. Mudanças: Psicologia da Saúde, São Bernardo do Campo, v. 16, n. 2, p. 123-129, 2008.).

Nessa perspectiva, este artigo trata da influência do diagnóstico psiquiátrico e sua medicalização na construção e impacto nos modos de subjetivação e nas relações sociais dos indivíduos. Para tanto, esta pesquisa qualitativa e exploratória adotou como método de coleta de dados o levantamento de informações realizado em duas partes: uma documental, baseada em dados de prontuários, e outra de entrevistas semidirigidas, ambas realizadas com usuários de uma unidade da Estratégia Saúde da Família (ESF) de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul.

Para tanto, efetuou-se um apanhado teórico que percorreu as questões referentes ao biopoder e sua relação com o modelo biomédico. Primeiro, pretende-se refletir sobre a ideia de biopoder enquanto controle da vida, no sentido de que, após o recebimento do diagnóstico e da prescrição de medicamentos, a compreensão dos pacientes a respeito de si mesmos se modifica. Depois, são apresentados os resultados e a discussão das análises das entrevistas e, por fim, as considerações finais.

Biopoder

O conceito de biopoder, descrito por Foucault (1994FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994., p. 145), remete à construção de um modelo de centralização e domínio da vida, que o autor chamou de “somatocracia”. Dizia Foucault (1976FOUCAULT, M. Crise da medicina ou crise da antimedicina? Rio de Janeiro: Verve, 1976.) que vivemos sob um regime no qual entre as finalidades da intervenção estatal estão o cuidado do corpo e da saúde. Assim, a vida passa a ser objeto de preocupação do Estado por meio da intervenção médica. Isso pode ser observado na seguinte citação:

Desde o século XVIII, a medicina não cessou de se ocupar daquilo que não concerne, quer dizer, daquilo que não se liga aos diferentes aspectos dos doentes e das doenças, atribuindo a medicalização da medicina, da sociedade e da população a quatro processos ligados à expansão do domínio do saber médico, que são o aparecimento da autoridade médico-política e a instauração da medicina de Estado e da polícia médica; a ampliação dos domínios da medicina para além dos doentes e da doença; a medicalização do hospital e por fim a constituição de mecanismos de administração médica, registro de dados, estabelecimento e comparação de estatísticas, etc. (Foucault, 1976FOUCAULT, M. Crise da medicina ou crise da antimedicina? Rio de Janeiro: Verve, 1976., p. 50)

Em primeira instância, a medicina teria surgido na Alemanha e estava articulada com um saber do Estado nas questões que configuravam as estatísticas sobre os recursos naturais, o funcionamento da máquina política estatal, tornando a saúde da população um objeto de preocupação e avaliação. A polícia médica é introduzida por Johann Peter Frank que, entre 1779 e 1790, publicou cinco volumes que seriam o primeiro tratado de saúde pública, cujas propostas englobavam um projeto enquanto “organização de um saber médico do Estado, da normalização da profissão médica […] e da integração dos médicos numa organização médica do Estado” (Foucault, 1977FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1977., p. 214).

Com o nascimento da medicina urbana, ocorreram transformações nas estruturas urbanas, tornando as grandes cidades centros de produção, favorecendo o crescimento da população pobre e operária. Isso tornou obrigatório um mecanismo de regulação homogêneo e coerente. O sistema de exclusão da lepra e da quarentena da peste nasce desse segundo processo, em que o poder político da medicina dividia a cidade em setores e subsetores, vigiando e controlando a tudo e a todos (Martins; Peixoto Junior, 2009MARTINS, L. A.; PEIXOTO JUNIOR, C. A. Genealogia do biopoder. Psicologia e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 157-165, 2009.).

Outro passo que caracterizou a expansão do saber médico foi a construção do hospital geral (Foucault, 1977FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1977.), que no início do século funcionava como uma instituição de exclusão e de assistência, ao mesmo tempo. Ali se misturavam loucos, doentes, prostitutas e toda sorte de excluídos, submetidos aos instrumentos terapêuticos de cura. O quarto movimento de expansão dos saberes da medicina, articulado a outros, sobretudo à estatística, constituiu organismos de registro e comparação de dados sobre a saúde, a doença e a qualidade de vida da população.

O biopoder, segundo Foucault (1994FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994.), apresenta-se como uma estratégia de regulação/governo de uma população, organização e controle da vida. Caracteriza-se por um cuidado em que a regulação não ocorre apenas sobre o corpo do indivíduo e do que ele produz, mas sobre o nascimento, a mortalidade e a duração de vida das populações (Cardoso, 2005CARDOSO, J. R. H. Para que serve uma subjetividade? Foucault, tempo e corpo. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 18, n. 3, p. 343-349, 2005.). O biopoder torna-se parte de uma tecnologia com dois vértices, que levou o Estado moderno a: (1) assumir a administração dos corpos - a anatomopolítica -; e (2) assumir a gestão da vida e das populações - a biopolítica. Neste prisma, o biopoder se expressa como uma tecnologia de poder que permitiu controlar populações inteiras, sobretudo na proteção de vida, na regulação do corpo e na criação de outras tecnologias enquanto preocupações políticas (Foucault, 1978FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.).

Esse poder provém de um pensamento que utiliza meios de correção e transformação dos indivíduos, determinando modos de vida e comportamentos, ao mesmo tempo que, no interior da sociedade, introduz uma distinção entre o normal e o patológico. Tal poder acaba por impor um sistema de normalização do existir, trabalhar e sentir (Foucault, 1978FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.). Assim, ao analisarmos os impactos da atribuição de um diagnóstico a uma pessoa, como o que este estudo pretende demonstrar, observamos a atuação do biopoder regendo a subjetividade e suas maneiras de atuar.

Na seção a seguir abordaremos o modelo biomédico, instrumento pelo qual se exercem os mecanismos de regência sobre a vida e os corpos - o biopoder. A medicina é referenciada, entre outras atribuições, como instrumento de regulação social e do indivíduo.

Modelo biomédico

A biomedicina é entendida como um conhecimento da dimensão biológica do ser humano. Segundo Moraes (2012MORAES, G. V. Influência do saber biomédico na percepção da relação saúde/doença/incapacidade em idosos da comunidade. 2012. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Fundação Oswaldo Cruz, Centro de Pesquisas René Rachou, Belo Horizonte, 2012.), no século XIX, a medicina passa a produzir um discurso sobre a relação saúde/doença, estabelecendo novas relações de causa e efeito, o que leva à objetivação da análise e à objetificação do paciente, sendo entendida pela concepção do corpo como máquina, pois apresenta uma visão fragmentada do indivíduo, evidenciando apenas uma parte, não a totalidade. Como trata-se de um conhecimento científico, o sujeito aceita o diagnóstico e o torna parte da sua identidade, comportando-se de acordo com a classificação atribuída. Esse fato demonstra a valorização da especialização aplicada ao corpo, bem como a desconsideração do valor da experiência subjetiva e da história de vida do paciente.

Dantas (2009DANTAS, J. B. Tecnificação da vida: uma discussão sobre o discurso medicalização da sociedade. Fractal: Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, p. 563-580, 2009.) afirma que a visão biomédica limita tanto a compreensão que se tem sobre a saúde e a doença como componentes de um mesmo processo quanto a sensibilidade de perceber os recursos positivos do paciente que poderiam auxiliar em sua recuperação. Assim, a maior parte da tomada de decisões sobre um diagnóstico volta-se somente à denominação de uma patologia que dê conta dos sintomas apresentados. Como a formação de muitos profissionais da saúde está baseada no modelo biomédico, suas percepções podem estar voltadas somente aos aspectos reconhecidos como inadequados no comportamento do paciente.

Em contraposição ao modelo biomédico, pode-se afirmar que a saúde não se constitui somente na ausência de doenças. A relação entre saúde e doença ocorre para além das fronteiras internas do organismo, envolvendo aspectos sociais e ambientais somados às características biológicas individuais. Em relação à saúde mental, a Reforma Psiquiátrica, que será discutida a seguir, propõe uma visão diferente.

A Reforma Psiquiátrica: uma nova contextualização da loucura

Ao longo da história, a loucura foi conceituada de diversas formas. Segundo Vechi (2004VECHI, L. G. Iatrogenia e a exclusão social: a loucura como objeto do discurso científico no Brasil. Estudos de Psicologia, Natal, v. 9, n. 3, p. 489-495, 2004., p. 490), “com a noção de doença mental, a loucura foi reduzida (e ainda é) a composições, síndromes e diagnósticos baseados nos aspectos negativos da estrutura, como alienação, a incompreensibilidade, a periculosidade e a incapacidade”. A possibilidade de enquadramento da “doença” em rótulos, mensurações, manuais e código dos transtornos mentais ocorre devido a um enfoque médico-científico. As práticas clínicas realizadas nos manicômios e hospitais psiquiátricos eram fundamentadas na ideia de loucura como sinônimo de incapacidade e improdutividade. Essas percepções, contudo, se modificaram ao longo do tempo e sofreram ressignificações. Neste contexto, a Reforma Psiquiátrica, como movimento político e social, reivindica a desconstrução da relação de tutela e objetificação sustentada pelo saber psiquiátrico, questionando os métodos adotados no atendimento ao doente mental. O referido movimento preconizava a reinserção social do indivíduo com transtorno mental, proposta que colide com o modelo asilar. A reforma também revisou as práticas terapêuticas utilizadas, não se restringindo a uma mera desocupação institucional (Gonçalves Neto; Senna, 2001GONÇALVES NETO, J. U.; SENNA, R. R. A Reforma Psiquiátrica no Brasil: contextualização e reflexos sobre o cuidado com o doente mental na família. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 9, n. 2, p. 48-55, 2001.).

A Reforma Psiquiátrica e a Lei Antimanicomial buscaram a desinstitucionalização, a inclusão social e o provimento de uma rede assistencial psicossocial que supera e substitui os hospitais psiquiátricos. Esses movimentos estão centrados nos usuários enquanto sujeitos de direitos e desejos, cidadãos singulares que protagonizam seus modos de construir a própria vida (Brasil, 2001BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 abr. 2001. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3pr748u >. Acesso em: 20 jan. 2016.
https://bit.ly/3pr748u...
). Diante dos desafios impostos pelo movimento, como o da percepção do “louco” para além do estereótipo de incapacidade, há a garantia da sua reintegração, de acordo com os direitos humanos. Isso significa uma conquista no que se refere aos direitos de cidadania dos pacientes psiquiátricos, além de impor transformações no funcionamento dos tratamentos no Brasil (Ramminger, 2002RAMMINGER, T. A saúde mental do trabalhador em saúde mental: um estudo com trabalhadores de um hospital psiquiátrico. Boletim da Saúde, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 111-124, 2002.). Percebe-se, porém, que o movimento não conseguiu transformar totalmente as concepções sobre a loucura. Mesmo com o advento da reforma, construiu-se outra forma de contenção tal como o crescente consumo de fármacos.

Medicalização da vida

Todos os dias são construídas novas compreensões neuroquímicas de fenômenos psíquicos e patologias que a indústria farmacêutica está disposta a solucionar com medicamentos. Conforme Luz (1988LUZ, M. T. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988.), a medicalização é o processo de apropriação da vida humana pela medicina, o qual interfere na construção de conceitos, regras de higiene, normas morais, costumes e comportamentos sociais pela prescrição e disseminação do uso de psicoativos. O conceito não é uma definição simples, pois se refere a processos complexos no âmbito ético, social, cultural e econômico. Portanto, a medicalização tem como objetivo fundamental a intervenção política no corpo social. Conforme Illich (1975ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. São Paulo: Nova Fronteira, 1975., p. 10),

a medicalização da vida é nociva por três motivos: primeiro, a intervenção técnica no organismo, acima de determinado nível, retira dos pacientes características comumente designadas pela palavra saúde; segundo, a organização necessária para sustentar essa intervenção transforma-se em máscara sanitária de uma sociedade destrutiva, e terceiro, o aparelho biomédico do sistema industrial, ao tomar a seu cargo o indivíduo, tira-lhe todo o poder de cidadão para controlar politicamente tal sistema. A medicina passa a ser uma oficina de reparos e manutenção, destinada a conservar em funcionamento o homem usado como produto não humano. Ele próprio deve solicitar o consumo da medicina para poder continuar se fazendo explorado.

É indiscutível que o biomercado, ao estimular o desenvolvimento de medicamentos pelas indústrias farmacêuticas, estimulou os interesses capitalistas, fazendo com que a medicalização seja um ato comum na prática médica. Além disso, a construção de sintomas e transtornos para renovar os métodos diagnósticos favorecem a criação de novos fármacos (Blank; Brauner, 2009BLANK, D. M.; BRAUNER, M. C. Medicalização da saúde: biomercado, justiça e responsabilidade social. Juris, Rio Grande, v. 14, p. 7-24, 2009.; Hacking, 2013HACKING, I. Sobre a taxonomia dos transtornos mentais (resenha). Revista Discurso, São Paulo, v. 1, n. 43, p. 301-314, 2013. ). Esses aspectos transformam os usuários dos serviços de saúde em consumidores do setor farmacológico quando buscam nos medicamentos a solução para seus “problemas”. Desse modo, os processos de medicalização e psicofarmacologização se tornam equivalentes e se retroalimentam.

O uso abusivo de medicamentos parece ser um dos traços da cultura ocidental, em que impera a convicção de que, seja qual for o sofrimento, deve ser abolido a qualquer preço. Em função disso, a medicalização da vida tem se tornado um dos caminhos mais eficientes para amenizar o sofrimento psíquico que nos assola cotidianamente (Dantas, 2009DANTAS, J. B. Tecnificação da vida: uma discussão sobre o discurso medicalização da sociedade. Fractal: Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, p. 563-580, 2009.). Esse processo ocorre desconsiderando qual é o significado do que está em jogo, dando importância àquilo que é eficaz, o que torna o modelo biomédico preciso na obtenção da suposta “cura”. Dessa forma, observa-se a construção de um instrumento (biopoder) fortemente exercido pela biomedicina para moldar a subjetividade (Foucault, 1976FOUCAULT, M. Crise da medicina ou crise da antimedicina? Rio de Janeiro: Verve, 1976.).

Produção de subjetividades/modos de subjetivação

Para uma melhor compreensão dos modos de subjetivação, é necessário entender a noção de subjetividade: “[ela] não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo” (Guattari; Rolnik, 1986GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986., p. 31). A subjetividade implica uma produção incessante de efeitos, modelados a partir dos encontros que vivemos com o outro. Ao se falar em produção de subjetividades, não a compreendemos como algo pré-concebido, pois ela se caracteriza por um processo social constante. A partir dessa perspectiva, há múltiplas maneiras de se subjetivar no decorrer da história, em que o sujeito pode fixar, manter ou transformar sua identidade (Foucault, 1977FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1977.).

Ao debruçar-se sobre as maneiras de existir do sujeito, Foucault (1985FOUCAULT, M. História da sexualidade: o uso dos prazeres. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. v. 2. , 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal , 1988. v. 1.) resgata dos gregos as práticas de “cuidado de si”, restrita a uma pequena parcela da população, as quais se referem a uma forma de vida na qual as escolhas eram livres e de acordo com o próprio desejo. Contudo, para realizar a análise dos modos de subjetivação, o autor recorre aos estudos sobre o estoicismo, que remetem a uma ruptura, de certa forma, ao “cuidado de si” dos gregos. O estoicismo impôs uma obrigatoriedade à subjetividade das pessoas, acarretando a determinação de comportamentos com base em julgamentos morais que visavam o controle dos sujeitos. A esse respeito, Foucault analisou teoricamente a sociedade disciplinar e as intervenções biopolíticas sobre os corpos dos indivíduos e da população e, concomitantemente, possibilitou compreender como os modos de subjetivação são constituídos e disseminados no decorrer da história. Assim, toda experiência que concretiza uma subjetividade envolve modos historicamente peculiares de se fazer a experiência do si mesmo. A preocupação de Foucault (1985FOUCAULT, M. História da sexualidade: o uso dos prazeres. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. v. 2. , 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. 9. ed. Rio de Janeiro: Graal , 1988. v. 1.) estava vinculada à exposição da determinação eminente e contingente de nossos modos atuais de subjetivação, assim como à possibilidade de construção de novos processos, numa estética da existência.

Se considerarmos que os modos de subjetivação imprimem registros no âmbito psíquico, eles estão ligados aos padrões identitários presentes nas relações entre sujeitos e de acordo com as regras normativas de cada época. Com isso, podem surgir diferentes subjetividades constituídas por práticas de assujeitamento que condizem com o atual capitalismo, favorecendo o surgimento do “sujeito consumidor”. Guattari e Rolnik (1986GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.) afirmam que as forças sociais que administram o capitalismo atual já entenderam, há muito tempo, que a produção de subjetividades é tão importante quanto a produção material dos bens de consumo. Dentre esses bens de consumo, estão os medicamentos e seus efeitos “milagrosos” na vida das pessoas, amplamente divulgados por meio da publicidade farmacêutica. Assim, os modos de subjetivação presentes no cotidiano refletem-se no processo de medicalização, já que o sujeito, para ser considerado “normal”, precisa adaptar-se ao que é prescrito socialmente. Verifica-se, assim, o impacto do diagnóstico e, consequentemente, da medicalização nos sujeitos identificados com um transtorno mental.

Resultados e discussão

Nesta pesquisa, foram analisados os diagnósticos registrados nos prontuários e em seguida foram entrevistados dez usuários de uma unidade básica de saúde (UBS) com ESF em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. As UBS são locais onde são oferecidos atendimentos em saúde à população de determinado território, já a ESF se refere à oferta de uma equipe de agentes comunitários de saúde que realizam visitas domiciliares. O período de realização da pesquisa de campo foi de um ano. Dos participantes, dois eram do sexo masculino e oito do feminino, cuja faixa etária estava entre 20 e 71 anos. O nível de escolaridade dos usuários era variável, desde o ensino fundamental incompleto até o ensino técnico completo. Os dados dos prontuários indicaram diagnósticos caracterizados como: depressão, transtornos de ansiedade associados à bipolaridade, esquizofrenia, retardo mental e deficiência intelectual. A história clínica relacionada a eles iniciou-se de forma distinta entre os participantes, variando entre 15 e 50 anos. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Como resultados, foram construídos três eixos de análise.

Subjetivação pela doença

O eixo “subjetivação pela doença” mostra como os indivíduos se constituíram após o diagnóstico psiquiátrico. Antes de conhecerem sua patologia, há um longo processo de medicalização, social e individual, que se consolida no recebimento do diagnóstico. Nesse momento, os usuários entrevistados se identificam com a doença mental e se confortam com a explicação de seus sintomas. Isso pode ser verificado nas falas que se seguem, quando lhes foi questionado se consentiam com o diagnóstico dado pelo médico: Concordo com o diagnóstico, ele fez eu me levantar de novo. Sinto-me mais calma, mais tranquila (F.D.); Sempre fui ansiosa, desde os 16 anos. Tinha ideação suicida. Era uma coisa que passava pela minha cabeça, mas eu não associava a ideação suicida com alguma patologia (A.W.); Sim, eu tô concordando com ele. Eu tenho que concordar, né? (A.G.).

Percebe-se, nos excertos, que os sujeitos incorporam e aceitam o diagnóstico recebido. A classificação produz efeitos nas maneiras de viver e emerge em conexão com os processos sociais e com o contexto em que se situam esses indivíduos. Aí se percebe a maleabilidade da subjetividade que se reconstrói a partir da classificação atribuída (Foucault, 1984). Complementando a discussão, observa-se nos seguintes fragmentos como alguns participantes se sentiram ou se perceberam após o conhecimento do diagnóstico: Agora eu consigo me controlar, agora eu tenho uma motivação pra não cair de novo na depressão. Transtorno eu tenho, às vezes eu estou alegre, às vezes chorona, mas graças a Deus agora eu estou tranquila (M.); Graças a Deus agora eu me sinto feliz (L.); Me sinto mais calma, mais tranquila (F.D.); Sou bem mais tranquila, né? (A.W.).

As falas remetem à ideia da “tragédia”11Coelho (2012) utiliza o termo “tragédia” para caracterizar a dramatização de como ocorre a subjetivação do paciente com um diagnóstico. da subjetividade contemporânea, caracterizada em quatro atos. Os atos iniciam com o paciente que sente um mal-estar e sai à procura de um profissional para ser ouvido/assistido. A sequência prossegue com a queixa sendo decodificada em alguma categoria nosológica. O terceiro ato acontece quando, após o exame dos sintomas, o paciente é diagnosticado e medicado, para voltar a seu estado normal, sadio. Infelizmente, o sujeito não se dá conta do jogo de poder ao qual está submetido. Ele não se reconhece mais, não sabe o que quer e acaba sendo “escravizado pelo objeto de desejo, pelas imagens associadas aos produtos que interpelam suas emoções e seu imaginário e não consegue ver nem a dominação a que está submetido, nem o que é realmente” (Coelho, 2012COELHO, J. R. A tragicomédia da medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito. Natal: Sapiens, 2012., p. 59).

Neste sentido, ao contatar um médico, o paciente não se reconhece como alguém “normal” e confia que o profissional, detentor do conhecimento científico, tenha uma resposta. O médico, ao classificar os sintomas, exerce sobre o paciente um controle disciplinar. O paciente, por sua vez, julga não ter o poder do conhecimento e que está cansado de se sentir “estranho”. Pela percepção que tem de si e de seu contexto social, acata o saber do profissional, submetendo-se ao tratamento medicamentoso e acreditando que a medicação restabelecerá a “normalidade” perdida e a esperança da resolução de seus problemas que, geralmente, revelam uma condição de dificuldades e sofrimento.

No processo, o paciente deixa de pertencer a si próprio, sua vida passa a ser administrada pelas regras que lhe são ditadas pelo outro, apenas reproduzindo um comportamento que acredita ser compatível com seu diagnóstico. Do mesmo modo, o paciente ressignifica seus valores e a si mesmo de acordo com o diagnóstico e a medicação prescrita. Os relatos demonstram a relação de alguns participantes com o processo medicamentoso que, por vezes, remonta a longos anos de suas vidas: Tenho, tomo remédio faz bastante tempo, desde os 16 anos. Tenho transtorno bipolar, depressão e escuto vozes e vejo, só que não sei o nome, o médico não falou isso. Quem sabe te explicar direito é a mãe (M.); Eu estava tomando um remédio, mas aí por fim ele me dava dois antidepressivos. Por fim não me adiantava mais, aí tenho que tomar. Não quero, mas tenho que tomar (A.G.); Ele [médico] me encaminhou e me deu esses remédios assim, oh? Tomei muito destes faixas preta, tomei muito tempo (A.W.); Teve uma época que eu tomava remédio pra me sentir bem. Melhorei, confesso que eu melhorei (J.H.).

Esses excertos demonstram que, a partir do uso da medicação, os indivíduos naturalmente sentem-se melhor dos sintomas de sua patologia. Observa-se, na íntegra das entrevistas, que quase não aparecem questões críticas ou mesmo explanações a respeito do uso de medicamentos ou mesmo sobre seus efeitos colaterais. Poderíamos inferir que, ao encontrar o médico e ao receber o tratamento medicamentoso, os sujeitos estão diante de um conhecimento verdadeiro e adequado a seu “problema”. O próximo eixo temático prossegue na discussão sobre a medicamentalização e o controle dos sintomas.

Medicamentalização como controle de si mesmo

Nesse eixo, é abordada a questão da medicação associada à cura e ao controle dos sintomas. Para os participantes, a medicação constitui a própria condição para se viver, pois permite a “normalidade” no meio social, ao evitar o aparecimento de alguns comportamentos inadequados. Alguns participantes revelam uma ligação intrínseca entre sua saúde mental e o uso do medicamento: Não conseguiria fazer nada sem tomar o remédio, sou bem dependente deles (F.D.); Tenho medo de voltar a sentir a raiva e tristeza que eu estava sentindo. Às vezes eu penso em não tomar o remédio. Mas preciso deles (M.A.); Nunca paro com os remédios. Se eu parar eu só choro. Choro no ônibus. Sinto vergonha, não consigo segurar (A.); Não conseguiria controlar a doença sem o remédio. Quando eu vou dormir e vejo que não consegui dormir, eu levanto e tomo remédio (F.D.).

Percebe-se que o uso da medicação se torna uma prática comum para indivíduos diagnosticados com alguma “doença mental”, e além disso seu uso é imprescindível para se adequarem ao contexto social. Uma das causas do processo medicalizante tem base nos pressupostos do conceito de saúde ideal, disseminado pela indústria médica, em que qualquer sinal de desvio anormal deve ser corrigido. Menezes (2002MENEZES, F. A. Cuidado de si e gestão da vida: da ética grega ao biopoder. Revista do Departamento de Psicologia, Niterói, v. 14, p. 75-94, 2002.) ressalta que, em uma sociedade atravessada pelo biopoder, o autocuidado é regido por pareceres fornecidos pelo modelo biomédico, por meio do qual se estabelecem formas de vida ideais. Em função disso, a medicalização constitui uma estratégia da biopolítica, tornando-se uma ferramenta de assujeitamento, pois o sofrimento não é mais objeto de reflexão e de produção de novas formas de ser (Ignácio; Nardi, 2007IGNÁCIO, V. T. G.; NARDI, H. C. A medicalização como estratégia biopolítica: um estudo sobre o consumo de psicofármacos. Psicologia e Sociedade, Recife, v. 19, n. 3, p. 88-95, 2007.).

Desse modo, ao notar que sentimentos de tristeza ou raiva, adequados numa situação de perda ou luto, são suavizados pela medicação, os usuários adotam um estilo de vida em que o remédio exerce o controle dessas emoções. Esse fato os torna dependentes da medicação para amenizar sintomas identificados como excessivos ou “anormais”. Essa questão é expressa nestas falas: Fiquei uns dias sem tomar. Fiquei ruim. Tive que voltar a tomar. Daí eu fui ao médico e ele me disse: “Quem que te mandou parar de tomar?” Eu não posso parar, tenho que tomar contínuo (M.A.); A doutora falou que não podia ficar sem tomar esses remédios, sei que um era Risperidona, o outro nem lembro mais (L.); Se eu não tivesse [tomando remédio], minha filha, eu não estaria mais aqui. Passa várias coisas na minha cabeça: me jogar na ponte pra baixo, andar na rua sozinha (M.); Nunca paro com os remédios. Se paro, começo de novo. Fico quase louca sem, caminho pra lá e pra cá e só choro (A.).

Como observamos, o propósito de um tratamento psiquiátrico acaba se tornando a prescrição medicamentosa através do diagnóstico clínico. Com isso, ao tomar a medicação e tentar resolver um problema, o paciente espera que o remédio realize aquilo que ele não soube/pode fazer. Neste sentido, cria-se uma dependência psicológica, pois o paciente não se reconhece sem o medicamento, e também física, porque a interrupção do uso leva ao reaparecimento dos sintomas inconvenientes. Também, nota-se um controle da vida exercido pelo processo da medicalização, que inclui a figura do profissional médico e do próprio uso do psicofármaco (Ignácio; Nardi, 2007IGNÁCIO, V. T. G.; NARDI, H. C. A medicalização como estratégia biopolítica: um estudo sobre o consumo de psicofármacos. Psicologia e Sociedade, Recife, v. 19, n. 3, p. 88-95, 2007.). Esse disciplinamento dos corpos de forma individual (pela via da medicalização) engessa as possibilidades de autonomia do sujeito e a possibilidade de recorrer a outras estratégias de tratamento para além da prescrição medicamentosa. Dessa forma, ele deixa de ser ator principal de sua história e passa a ser um figurante a observar a ação da medicação sobre si mesmo.

Por consequência, o indivíduo se vê envolto em uma rede de poderes, em que os conceitos de saúde, doença, normal e anormal são construídos e produzidos por uma classe (médica) que estabelece padrões a serem seguidos. Nesta perspectiva, o sujeito que não se vê enquadrado nos moldes estabelecidos busca, através das “pílulas mágicas”, uma adequação que o transforme em algo/alguém que tenha aceitação na sociedade.

Relações interpessoais após o diagnóstico

Neste eixo, aborda-se como o sujeito é visto pelos outros nas relações interpessoais (família, vizinhos ou conhecidos) após o recebimento do diagnóstico psiquiátrico. Toma-se em conta que a compreensão do sujeito sobre si e os processos de subjetivação são construídos nas relações sociais e produzidos através dos regimes de verdades e modelos de cada período (Guareschi; Hüning, 2005GUARESCHI, N. M.; HÜNING, S. M. (Org.). Foucault e a psicologia. Porto Alegre: Abrapso Sul, 2005.). Neste sentido, apesar da Reforma Psiquiátrica ter proposto uma nova perspectiva de doença mental, as pessoas em seu cotidiano mantêm a ideia de que a loucura significa anormalidade. Assim, a conotação de doença mental continua repleta de estigmas e preconceitos. Observamos esses aspectos no relato de alguns entrevistados, quando questionados sobre o comportamento da família e de pessoas próximas que tomaram conhecimento de seu diagnóstico:

Eu finjo que não sei nada sobre essa doença que eu tenho pra não complicar a vida deles. Pra eles não ficar nervoso, não ir trabalhar pensando, gosto de deixar eles descansados, passo minhas coisas e fico quieta. Não é a mesma coisa com a vizinhança. Antes era mais tranquilo e agora é eles na casa deles e eu na minha. Tem gente muito falsa que acha que estou fingindo e começa a me tratar diferente. (F.D.)

Quando expliquei que o nome dela não seria revelado, ela disse: “pode revelar, todo mundo me chama de louca mesmo”. (M.)

Como sempre, né?!!! Apontando, “aquela lá é louca”. “Aleijada, não tem cabimento”, mas eu não dou bola. (L.)

Podemos perceber nas falas dos entrevistados que as suas relações se modificam conforme a maneira como são tratados, após o recebimento do diagnóstico. Isso leva os sujeitos, que possuem um comportamento diferenciado, a ser alvo de críticas e rejeição. Segundo Coelho (2012COELHO, J. R. A tragicomédia da medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito. Natal: Sapiens, 2012.), a sociedade possui códigos de ética e conduta, os quais, por meio da educação e da socialização, penetram na mente das pessoas e as regulam. A vida do indivíduo muda em termos sociais, pois as pessoas deixam de se relacionar com um ser humano e passam a interagir com um diagnóstico. Essa constatação pode ser percebida na pesquisa de Silva e Brandalise (2008SILVA, R.; BRANDALISE, F. O efeito do diagnóstico psiquiátrico sobre a identidade do paciente. Mudanças: Psicologia da Saúde, São Bernardo do Campo, v. 16, n. 2, p. 123-129, 2008.), que demonstra uma modificação de forma negativa nas relações interpessoais do paciente psiquiátrico. O estudo revela situações de preconceito, descrédito e uma redução dos atributos dos pacientes ao diagnóstico.

Por outro lado, alguns usuários relatam mudanças positivas no modo como são tratados após o diagnóstico. Alguns, inclusive, mencionam um cuidado maior por parte das pessoas mais próximas: A família me apoia (F.); A família compreendeu um pouco mais, me apoiam. Os vizinhos me tratam como me tratava antes, normal (M.); Na família é bem tranquilo. Me ajudam e tudo mais (R.); Começaram a me tratar com mais cuidado (A.W.). Dessa maneira, a partir do momento em que as pessoas da rede de relações compreendem a situação do usuário, passam a lhe oferecer apoio e solidariedade. Esse estado de coisas pode indicar que a explicação biomédica dos sintomas apresentados também seja reconfortante para familiares e amigos. Contudo, como já discutimos anteriormente, essas pessoas podem reduzir os atributos do paciente a seu diagnóstico e à necessidade do uso da medicação, retirando-lhes as possibilidades de autonomia fora desse âmbito.

Considerações finais

Frente ao processo de desinstitucionalização que ocorreu na Reforma Psiquiátrica, percebemos que a saúde mental vem enfrentando novas formas de controle, por meio da condução de uma psiquiatria ainda baseada na biomedicina, concomitante a um processo de medicalização cada vez maior. As falas dos participantes da pesquisa apontam uma produção de novos modos de subjetivação a partir do recebimento do diagnóstico psiquiátrico. Esse movimento acontece para que o sujeito diagnosticado com algum transtorno fique “adequado” a normas e padrões estabelecidos pela influência da cultura médica.

Diante dos dados obtidos, o diagnóstico psiquiátrico vem se transformando em um instrumento de categorização do sofrimento humano. Este interfere nos modos em que o sujeito se produz e se relaciona com outros, além de ser utilizado como forma de controle e normatização dos indivíduos, por meio da medicalização da vida. Isso faz com o sujeito se torne dependente do saber biomédico e dos fármacos, que se despoje da autonomia para gerir sua própria vida. Espera-se que essas reflexões possam estimular novos estudos sobre a desnaturalização da cultura de diagnósticos psiquiátricos e o estímulo ao uso de medicamentos.

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    Coelho (2012COELHO, J. R. A tragicomédia da medicalização: a psiquiatria e a morte do sujeito. Natal: Sapiens, 2012.) utiliza o termo “tragédia” para caracterizar a dramatização de como ocorre a subjetivação do paciente com um diagnóstico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2020
  • Aceito
    09 Set 2020
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br