“A máscara salva”: representações sociais da pandemia de covid-19 por meio dos desenhos de crianças cariocas

“Mask saves lives”: the social representations of the covid-19 pandemic in drawings by children from Rio de Janeiro

Marcela Alvaro Carolina Folino Luisa Massarani Catarina Chagas Sobre os autores

Resumo

Como os adultos, as crianças tiveram suas relações sociais e rotinas alteradas pela pandemia e são atores sociais fundamentais para se compreender as transformações causadas por essa condição sanitária que afetou o planeta, construindo representações e narrativas próprias. No entanto, poucos estudos de percepção da pandemia focam nas crianças. A fim de analisar a percepção das crianças cariocas sobre a pandemia de covid-19, entrevistamos 20 crianças entre oito e dez anos, moradoras do município do Rio de Janeiro, por meio de plataformas virtuais, utilizando a técnica de desenho comentado. Neste artigo, analisamos em particular os desenhos e as narrativas associadas a eles, definindo as seguintes categorias de análise: rotina; sentimentos durante a pandemia; representação do vírus e novos hábitos. No geral, as crianças retrataram as etapas do seu dia a dia, incluindo as brincadeiras, o uso de eletrônicos e as aulas on-line, bem como as estratégias de enfrentamento do coronavírus usadas em seu entorno familiar e seus sentimentos. As crianças demonstram tanto cautela com a pandemia, indicando ter consciência da importância do distanciamento social, do uso de máscara e da higiene pessoal para o enfrentamento da covid-19, quanto preocupação, medo e até raiva do vírus.

Palavras-Chave:
Coronavírus; Vivências e percepções; Isolamento social; Infância; SARS-CoV-2

Abstract

Although children, like adults, had their social relationships and routines altered by the pandemic and are key social actors to understand the changes caused by this worldwide sanitary crisis, building their own representations and narratives, few studies on the topic focus on children. To analyze children’s perception about the covid-19 pandemic, we interviewed 20 children between 8-10 years old, living in the city of Rio de Janeiro, by means of digital platforms and the commented drawing technique. We mainly analyzed the drawings and narratives associated with the children themselves, by the following categories of analysis: routine, feelings during the pandemic, representation of the virus, and new habits. The children generally drew the stages of their daily lives, including playing, the use of electronics and online classes, as well as the sanitary measures used in their family surroundings and their feelings. Children show caution regarding the pandemic, indicating their awareness on the importance of practicing social distancing, using a mask and maintaining good personal hygiene to combat the covid-19, but they also showed concern, fear and even anger at the virus.

Keywords:
Coronavirus; Experiences and perceptions; Social isolation; Childhood; SARS-CoV-2

Introdução

Desde o começo do ano de 2020, o mundo vem enfrentando uma pandemia desencadeada pela emergência de um novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da covid-19 (Linhares; Enumo, 2020LINHARES, M. B. M.; ENUMO, S.R. F. Reflexões baseadas na Psicologia sobre efeitos da pandemia COVID-19 no desenvolvimento infantil. Estudos de Psicologia (Campinas), v. 37, 2020. DOI: 10.1590/1982-0275202037e200089
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).

Enquanto diversos estudos foram iniciados para desenvolver tratamentos farmacológicos e vacinas, o distanciamento social foi adotado, globalmente, como principal estratégia para frear a disseminação do vírus (Linhares; Enumo, 2020LINHARES, M. B. M.; ENUMO, S.R. F. Reflexões baseadas na Psicologia sobre efeitos da pandemia COVID-19 no desenvolvimento infantil. Estudos de Psicologia (Campinas), v. 37, 2020. DOI: 10.1590/1982-0275202037e200089
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). Ao mesmo tempo, a higienização das mãos com álcool em gel e o uso de máscaras também foram implementadas como medidas de prevenção (Galhardi et al., 2020GALHARDI, C. P. et al. Fato ou Fake? Uma análise da desinformação frente à pandemia da Covid-19 no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, p. 4201-4210, 2020.; OMS, 2021OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Coronavirus disease (COVID-19) advice for the public. Disponível em: <https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/advice-for-public>. Acesso em: 5 mar. 2021.
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).

Nesse cenário, a população mundial vem lidando com o distanciamento físico - em maior ou menor medida -, que acarretou fechamento das escolas, trabalho remoto, mudanças na rotina familiar e outros impactos em nível macro e micro, incluindo recessão econômica e desemprego.

Como os adultos, as crianças tiveram suas relações sociais e rotinas alteradas pela pandemia, passando a viver em um mundo com mais interações digitais, a começar pelo ensino remoto (Werneck; Carvalho, 2020WERNECK, G. L.; CARVALHO, M. S. A pandemia de COVID-19 no Brasil: crônica de uma crise sanitária anunciada. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 5, e00068820, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00068820
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). Alguns estudos se debruçaram sobre os efeitos da pandemia na saúde mental das crianças, alertando para a sua vulnerabilidade frente ao distanciamento social (Aydogdu, 2020AYDOGDU, A. L. F. Saúde mental das crianças durante a pandemia causada pelo novo coronavírus: revisão integrativa. JOURNAL HEALTH NPEPS, Tangará da Serra, v. 5, n. 2, 2020. DOI:10.30681/252610104891
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; Ciuffo; Christoffel; Gomes; Souza, 2020CHRISTOFFEL, M. M; GOMES, A. L. M.; SOUZA, T. V. D; CIUFFO, L. L. A (in)visibilidade da criança em vulnerabilidade social e o impacto do novo coronavírus (COVID19). Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 73, n. 2, e20200302, 2020. DOI: 10.1590/0034-7167-2020-0302
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; Dutra et al., 2020DUTRA, J. L. C; CARVALHO, N. C. C; SARAIVA, T. A. R. Os efeitos da pandemia de COVID-19 na saúde mental das crianças. Pedagogia em Ação, v. 13, n. 1, p. 293- 301, 2020.; Linhares; Enumo, 2020LINHARES, M. B. M.; ENUMO, S.R. F. Reflexões baseadas na Psicologia sobre efeitos da pandemia COVID-19 no desenvolvimento infantil. Estudos de Psicologia (Campinas), v. 37, 2020. DOI: 10.1590/1982-0275202037e200089
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; Lins; Rodrigues, 2020RODRIGUES, J. V. S.; LINS, A. C. A. Possíveis impactos causados pela pandemia da COVID-19 na saúde mental de crianças e o papel dos pais neste cenário. Research, Society and Development,Vargem Grande Paulista, [S. l.], v. 9, n. 8, 2020. DOI: 10.33448/rsd-v9i8.6533
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). Orgilés e colaboradores (2020ORGILÉS, M; MORALES, A; DELVECCHIO, E; MAZZESCHI, C; ESPADA, JP. Immediate Psychological Effects of the COVID-19 Quarantine in Youth From Italy and Spain. Frontiers in Psychology, Lausanne, v. 1, 2020. DOI: 10.3389/fpsyg.2020.579038
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) entrevistaram 1143 pais de crianças e adolescentes italianos e espanhóis entre 3 e 18 anos e identificaram que 85,7 % dos responsáveis perceberam uma mudança no estado emocional e no comportamento das crianças durante a quarentena. Os entrevistados relataram que seus filhos se mostraram mais desatentos, entediados e nervosos, que estiveram em frente a telas - computador, celular, televisão e outros eletrônicos - por períodos mais longos e dormiram mais horas. Grinbergas (2020GRINBERGAS, D. Pequenos confinados: como o isolamento impacta a saúde das crianças. Veja Saúde, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://saude.abril.com.br/familia/pequenos-confinados-como-o-isolamento-impacta-a-saude-das-criancas/ >. Acesso em: 16 mar. 2021.
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) destaca que a família tem um papel importante para ajudar a minimizar os impactos emocionais do isolamento social. Para Werneck e Carvalho (2020WERNECK, G. L.; CARVALHO, M. S. A pandemia de COVID-19 no Brasil: crônica de uma crise sanitária anunciada. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 5, e00068820, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00068820
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), sem a ajuda dos adultos para mediar as informações referentes à pandemia, as crianças podem vivenciar um aumento da carga de estresse e ansiedade. Desse modo, faz-se necessário que elas entendam o que está acontecendo no mundo, isto é, que sejam informadas sobre o porquê de terem que ficar confinadas, mas é igualmente importante que se evite um excesso de informações, para zelar pelo seu bem-estar (Wang et al., 2020WANG, Z. Y; ZHAO, J; ZHANG, J; JIANG, F. Mitigate the effects of home confinement on children during the COVID-19 2020. The Lancet, Londres, v. 395, n. 10228, p. 945-947, 2020. DOI: /10.1016/S0140-6736(20)30547-X
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).

Estudos que buscaram analisar as representações sociais e emocionais da covid-19 por parte das crianças foram menos frequentes (Idoiaga, et al., 2020IDOIAGA, N; BERASATEGI, N; EIGUREN, A; PICAZA, M. Exploring children’s social and emotional representations of the Covid-19 pandemic. Frontiers in Psychology, Lausanne, v. 11, 2021. DOI: 10.3389/fpsyg.2020.01952
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; Ponte; Neves, 2020PONTE, V.; NEVES, F. Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia. Simbiótica. Revista Eletrônica, Vitória, v. 7, n. 1, p. 87-106, 2020.; Penha; Simões, 2020PENHA, R. F.; SIMÕES, P. M. U. A Pandemia Do Covid-19 E As Crianças: Estudo Das Vivências E Representações Em Época De Isolamento Social. In: EPEN - Reunião Científica Regional Nordeste da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, 25., Anais... Salvador, Bahia: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, 2020. Disponível em: Disponível em: http://anais.anped.org.br/regionais/sites/default/files/trabalhos/20/7314-TEXTO_PROPOSTA_COMPLETO.pdf . Acesso em: 25 mar. 2021.
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). Um deles foi realizado no contexto espanhol, por Idoiaga e colaboradoras (2020IDOIAGA, N; BERASATEGI, N; EIGUREN, A; PICAZA, M. Exploring children’s social and emotional representations of the Covid-19 pandemic. Frontiers in Psychology, Lausanne, v. 11, 2021. DOI: 10.3389/fpsyg.2020.01952
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). Ao entrevistar 228 crianças entre 3 e 12 anos, as autoras identificaram que elas estão nervosas, tristes e com receio de sair de casa. Apesar de, em geral, o isolamento social despertar raiva, algumas crianças espanholas também demonstram estar felizes e calmas por ficarem em casa com suas famílias. As autoras destacam, ainda, que o coronavírus evoca sentimentos de medo nas crianças, o que está associado à possibilidade de infectar seus avós - isso porque as crianças podem ser portadoras do vírus de forma assintomática, funcionando como agentes transmissores, embora, geralmente, não manifestem casos graves da covid-19 (Bú et al., 2020; Dutra et al., 2020DUTRA, J. L. C; CARVALHO, N. C. C; SARAIVA, T. A. R. Os efeitos da pandemia de COVID-19 na saúde mental das crianças. Pedagogia em Ação, v. 13, n. 1, p. 293- 301, 2020.).

As crianças são atores sociais capazes de identificar como a realidade impacta as suas vidas e a das pessoas a seu redor, construindo representações e narrativas próprias (Penha; Simões, 2020PENHA, R. F.; SIMÕES, P. M. U. A Pandemia Do Covid-19 E As Crianças: Estudo Das Vivências E Representações Em Época De Isolamento Social. In: EPEN - Reunião Científica Regional Nordeste da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, 25., Anais... Salvador, Bahia: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, 2020. Disponível em: Disponível em: http://anais.anped.org.br/regionais/sites/default/files/trabalhos/20/7314-TEXTO_PROPOSTA_COMPLETO.pdf . Acesso em: 25 mar. 2021.
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; Sarmento; Trevisan, 2017SARMENTO, M. J.; TREVISAN, G. A crise social desenhada pelas crianças: imaginação e conhecimento social. Educar em revista, Curitiba, p. 17-34, 2017. DOI: 10.1590/0104-4060.51387
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). A voz das crianças se manifesta de modos diversos, abrangendo linguagem verbal, gestual e outras formas de expressão, como desenhos e registros feitos por elas (Sarmento; Trevisan, 2017SARMENTO, M. J.; TREVISAN, G. A crise social desenhada pelas crianças: imaginação e conhecimento social. Educar em revista, Curitiba, p. 17-34, 2017. DOI: 10.1590/0104-4060.51387
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). Para Penha e Simões (2020PENHA, R. F.; SIMÕES, P. M. U. A Pandemia Do Covid-19 E As Crianças: Estudo Das Vivências E Representações Em Época De Isolamento Social. In: EPEN - Reunião Científica Regional Nordeste da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, 25., Anais... Salvador, Bahia: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, 2020. Disponível em: Disponível em: http://anais.anped.org.br/regionais/sites/default/files/trabalhos/20/7314-TEXTO_PROPOSTA_COMPLETO.pdf . Acesso em: 25 mar. 2021.
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), ao desenhar, a criança busca ilustrar os seus pensamentos sobre determinada realidade, seja ela pessoal, natural ou social. Deste modo, o desenho pode ser caracterizado como um instrumento de produção de saberes.

De acordo com Sarmento e Trevisan (2017SARMENTO, M. J.; TREVISAN, G. A crise social desenhada pelas crianças: imaginação e conhecimento social. Educar em revista, Curitiba, p. 17-34, 2017. DOI: 10.1590/0104-4060.51387
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), os desenhos contam uma história resultante da transformação da realidade pela imaginação, em que a criança se expressa por meio das formas, linhas e cores que imprime no papel, dando conta de fatos, emoções, sentimentos e desejos.

No caso de estudos acerca da percepção das crianças sobre determinado tema, os desenhos também podem ter como propósito motivar as falas dos participantes, visto que a expressão oral e gráfica se complementam (Gobbi, 2002GOBBI, M. O fascínio indiscreto: crianças pequenininhas e a criação de desenhos. In: MELLO, A. L. G.; FARIA, S. A. (Org.). Territórios da Infância: linguagens, tempos e relações para uma pedagogia para as crianças pequenas. 2. ed. Araraquara: Junqueira & Marin, p. 119-136, 2009.; Silva, 2002SILVA, M. C. A constituição social do desenho da criança. Campinas: Mercado de Letras, 2002.). Ao escutar o que as crianças falam sobre os próprios desenhos, favorecemos uma interpretação menos centrada na visão dos adultos e mais direcionada às crianças (Sarmento; Trevisan, 2017SARMENTO, M. J.; TREVISAN, G. A crise social desenhada pelas crianças: imaginação e conhecimento social. Educar em revista, Curitiba, p. 17-34, 2017. DOI: 10.1590/0104-4060.51387
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). Por meio de desenhos, é possível acessar não somente os pensamentos explícitos e verbalizados pelas crianças, mas também componentes simbólicos que podem contribuir, em determinado grau, na construção do conhecimento científico e na representação social sobre ciência e tecnologia (Castelfranchi et al., 2002CASTELFRANCHI, Y; MANZOLI, F; GOUTHIER, D; CANNATA, I. Ciência, tecnologia e cientistas no olhar das crianças: um estudo de caso. Trieste: Scuola Internazionale Superiore di Studi Avanzati/Gruppo Innovations in the Communication of Science, 2002.).

Metodologia

Este artigo faz parte de um estudo qualitativo mais amplo que tem como objetivo analisar a percepção das crianças sobre o SARS-CoV-2, a covid-19 e os vírus em geral. Utilizamos uma abordagem qualitativa, visando descrever e explorar significados atribuídos pelas crianças à pandemia de covid-19. Realizamos entrevistas semiestruturadas via plataformas de serviços de conferência Zoom e Google Meet, dependendo da preferência e da disponibilidade dos participantes, nos meses de julho e agosto de 2020.

Optamos por entrevistar crianças entre 8 e 10 anos de idade, faixa etária que, conforme Davis, Fiori e Rappaport (1988RAPPAPORT, C. R; FIORI, W. R; DAVIS, C. Psicologia do Desenvolvimento. Teorias do desenvolvimento: conceitos fundamentais. São Paulo: E.P.U, v. 1, 1988.) descreve ao dissertar sobre o modelo piagetiano, corresponde ao período das operações concretas. Segundo a classificação dos níveis de desenvolvimento cognitivo estabelecida por Piaget, nesta fase, as explicações que misturam realidade e imaginação dão lugar a interpretações mais lógicas e, assim, as crianças desenvolvem uma atitude mais crítica diante da realidade, expressando suas ideias e ações mais claramente.

Tendo em vista que diferentes estados e cidades brasileiros tiveram medidas distintas de enfrentamento do novo coronavírus, optamos por focar nosso estudo em crianças que residem no município do Rio de Janeiro. No período da coleta, o município estava retomando, gradualmente, as atividades econômicas da cidade, mas as escolas se mantinham fechadas (Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, 2020RIO DE JANEIRO. Decreto Rio Nº47.282, de 21 de março de 2020. Determina a adoção de medidas adicionais, pelo Município, para enfrentamento da pandemia do novo Coronavírus - covid-19, e dá outras providências. Rio de Janeiro: Prefeitura Rio, 2020. Disponível em: Disponível em: https://prefeitura.rio/cidade/decreto-da-prefeitura-do-rio-determina-novas-medidas-para-o-combate-a-pandemia-do-novo-coronavirus/ . Acesso em: 1 abr. 2021.
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).

Optamos, ainda, por não incluir crianças que fossem filhas de profissionais da saúde ou de cientistas. Em nossa avaliação, filhos desses profissionais - que têm atuado na linha de frente do combate à pandemia - poderiam ter uma visão particular do que está acontecendo no mundo, diante de relatos do trabalho diário de seus pais.

A fim de obter diversidade de vivências e experiências ao longo da pandemia de covid-19, selecionamos vinte crianças de perfis variados. Entrevistamos dez meninos e dez meninas, de bairros e situações socioeconômicas distintos, levando em consideração o Índice de Desenvolvimento Social (IDS) da região metropolitana do Rio de Janeiro. Este indicador é determinado a partir do Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e leva em consideração dados referentes a coleta de lixo, abastecimento de água, esgoto adequado, taxa de analfabetismo, rendimento médio por domicílio, entre outros (Data Rio, 2020RIO DE JANEIRO (Município). Data Rio. Índice de desenvolvimento social da região metropolitana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.data.rio/datasets/fa85ddc76a524380ad7fc60e3006ee97 .Acesso em: 1 abr. 2021.
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).

Por conta da necessidade de distanciamento social durante a pandemia, todas as etapas da pesquisa foram realizadas de maneira não presencial. O convite foi feito aos responsáveis das crianças por meio de correio eletrônico e WhatsApp . Neste primeiro contato, apresentamos a pesquisa aos responsáveis de potenciais participantes indicados por colegas, familiares e outros participantes, em uma abordagem semelhante à da “bola de neve” (Ratner, 2013RATNER, B. Statistical and Machine-Learning Data Mining: Techniques for Better Predictive Modeling and Analysis of Big Data. Hoboken: Taylor and Francis, 2013.). Após o aceite, era pedido que preenchessem um formulário on-line, criado na plataforma Google Forms , em que solicitamos algumas informações gerais, como data de nascimento das crianças, escola em que estudam, profissão dos responsáveis e bairro em que residem. Também buscamos identificar os meios pelos quais os responsáveis se informam sobre covid-19 e a frequência com que buscam informações.

Após o preenchimento do formulário, as entrevistas eram agendadas e era solicitado aos responsáveis que nos encaminhassem um desenho feito pelas crianças sobre “como está o seu dia a dia durante a pandemia do coronavírus”. O desenho deveria ser enviado antes da realização da entrevista, para que tivéssemos a oportunidade de observá-lo antecipadamente; durante a entrevista, pedimos que as crianças explicassem o que haviam desenhado.

As entrevistas, realizadas em tom de conversa informal, foram divididas em três blocos. No primeiro bloco, perguntamos informações gerais sobre as crianças, como nome, idade e profissão dos pais. Essa breve apresentação tinha como objetivo quebrar o gelo e deixar os entrevistados mais à vontade. O segundo bloco dizia respeito às percepções das crianças sobre a covid-19; nesta etapa, questionávamos se as crianças estavam saindo de casa e se algo havia mudado em suas rotinas. Então, mostrávamos o desenho enviado pelos responsáveis e pedíamos às crianças que descrevessem o desenho. Caso surgisse espontaneamente alguma referência à pandemia de covid-19 durante a descrição do desenho, as crianças eram instigadas a continuar a conversa; caso contrário, o assunto era trazido à pauta pelas entrevistadoras. O terceiro e último bloco se concentrou em conhecer as percepções das crianças sobre vírus em geral, doenças transmitidas por vírus e como se dá a transmissão.

Neste artigo, analisamos os desenhos feitos pelas crianças, representando o que elas têm experienciado no contexto da pandemia de covid-19. A análise resultante das demais partes das entrevistas foi consolidada em outro artigo (Folino, et al., 2021FOLINO, C. H.; ALVARO, M. V.; MASSARANI, L.; CHAGAS, C. A percepção de crianças cariocas sobre a pandemia de COVID-19, SARS-CoV-2 e os vírus em geral. Cadernos de Saúde Pública, v. 37, n. 4, 2021. DOI: 10.1590/0102-311X00304320
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).

Para a análise dos desenhos, definimos categorias de análise a partir dos objetivos da pesquisa, das características dos desenhos e das explicações que as crianças deram para eles. Assim, a análise se deu em quatro eixos: rotina; sentimentos durante a pandemia; representação do vírus e novos hábitos. Houve casos em que os desenhos foram incluídos em mais de um eixo.

Para garantir o anonimato das crianças, nos resultados a seguir usamos nomes fictícios.

Resultados

Todas as crianças participantes da pesquisa indicaram que estavam cumprindo com as medidas de distanciamento social, ou seja, estavam em casa, sem frequentar a escola ou a casa de parentes e amigos.

Foram analisados 22 desenhos das vinte crianças11Duas crianças fizeram dois desenhos cada, por isso o número de desenhos é maior que o número de crianças entrevistadas (20). que participaram de nosso estudo. Refletindo nossa solicitação de que desenhassem o seu dia a dia durante a pandemia do coronavírus, no geral, os desenhos retrataram aspectos do cotidiano, de forma mais sistemática - ilustrando suas rotinas diárias - ou fazendo referência a novos hábitos adquiridos durante a pandemia. Também observamos a representação dos sentimentos evocados durante esse período, tanto em relação ao distanciamento social e ao uso de máscaras de proteção facial quanto ao novo coronavírus, com as crianças expressando como se sentem ou como enxergam o vírus. A seguir, detalhamos nossos resultados.

Rotina

Não surpreendentemente, muitas crianças seguiram de modo literal nossa solicitação de que fizessem um desenho sobre o seu dia a dia durante a pandemia do coronavírus: 15 crianças ilustraram suas rotinas no papel. No Desenho 1, por exemplo, a participante retratou as diversas etapas do seu dia, desde o café da manhã até a hora de dormir.

Desenho 1
Representação do cotidiano na pandemia de covid-19

Quatro crianças também desenharam o momento de estudar, de assistir às aulas on-line e fazer o dever de casa. Momentos de lazer foram retratados, incluindo jogar bola e videogame, ver televisão e ler.

Ao desenhar seus cotidianos durante a pandemia, 19 crianças ilustraram aspectos que mudaram em suas rotinas. No Desenho 2, por exemplo, a criança explicitou as brincadeiras feitas ao longo do dia, como pular corda e jogar futebol. Indagada sobre as motivações para o desenho, a criança mencionou que, antes da pandemia, não tinha tempo para brincar, porque tinha que ir para a escola. Inclusive, segundo um dos participantes, durante as aulas presenciais, o café da manhã era feito rapidamente, mas, com as aulas on-line, a refeição tem sido feita com mais calma.

Desenho 2
Brincadeiras do dia a dia

Sentimentos durante a pandemia

As representações gráficas das crianças contemplam, também, a identificação de sentimentos e angústias geradas pela pandemia, com cinco desenhos representando sentimentos como tristeza e raiva. É o caso do Desenho 3, em que os elementos desenhados, como o sol, demonstram tristeza, com as bocas desenhadas para baixo. Conforme explicado pela criança, “Eu desenhei um menininho ali na janela de um prédio porque ele estava triste olhando como estava lá fora. Aqui é uma menina fazendo a mesma coisa [...]. O sol está triste vendo a situação e tudo mais”.

Desenho 3
Sentimentos gerados pela pandemia

O Desenho 4 também retrata a tristeza, como relatou a criança: “Eu com uma cara triste, de máscara, porque a gente tem que ficar de máscara. Quando a gente sai a gente não pode tirar. É isso, eu triste, de máscara, sem poder sair”.

Desenho 4
A tristeza, um autorretrato

Um dos desenhos ilustrou o luto por um vizinho que morreu vítima da covid-19. A criança se mostrou preocupada com as pessoas que negam a letalidade do vírus, como pode ser visto em sua fala: “Era eu na janela fazendo panelada, enlouquecia porque o cara do lado espirrava muito e tossia. E todo mundo debaixo nem aí e lá no apartamento no prédio onde mora, já levou a óbito, já morreu uma pessoa. Aí eu botei o luto. Aí tinha um cara que falava o tempo todo: ah, é só uma gripezinha, não é pra se preocupar e tal. Aquela coisa de não se preocupar com nada, né? De deixa pra lá, é só uma gripezinha”.

Representação do vírus

Três desenhos trouxeram representações do novo coronavírus. Duas crianças afirmaram ter se inspirado em imagens vistas na internet, em redes sociais como Pinterest, para desenhar o vírus.

No Desenho 5, uma criança retratou os cientistas desenvolvendo a vacina: “Esses daqui são os cientistas, eles estão fazendo uma vacina e, quando eles fizerem, eles vão dar pro médico e o médico vai dar uma injeção na gente que vai matar o vírus. Só que, enquanto eles não fazem essa vacina, a gente tem que ficar um metro de distância”. Para representar esse processo, ela desenhou dois coronavírus, um maior, com uma expressão malvada, com sobrancelhas levantadas e sorrisinho, e um menor, com os olhos com dois X, representação que costuma ser usada em animações e quadrinhos para ilustrar a morte. O coronavírus “morto” está próximo de uma seringa segurada pela figura do cientista, o que indica que foi “vacinado”. Ao ser questionada sobre o desenho, a criança afirmou ter ilustrado o vírus da forma como o havia visto em algumas imagens na internet. A representação ilustra, ainda, os cuidados citados na explicação, como o distanciamento social de pelo menos um metro.

Desenho 5
O desenvolvimento da vacina contra a COVID-19

Como mencionado anteriormente, uma das crianças optou por apresentar dois desenhos. Em um deles, representou o planeta Terra usando uma máscara, cercado por coronavírus; no outro, representou apenas coronavírus, sendo um maior, ao centro, e outros menores ao seu redor (Desenho 6).

Desenho 6
A máscara salva

Perguntada sobre a motivação para o desenho, Sofia respondeu: “eu fiz o mundo usando máscara, porque está todo mundo usando máscara, e a máscara salva, sabe? O do coronavírus eu fiz representando o corona, fiz o coronavírus e várias bolinhas do coronavírus.” Mais uma vez, o coronavírus foi representado com uma fisionomia de maldade, com sobrancelhas levantadas, enquanto a Terra ganhou um olhar preocupado, com as sobrancelhas curvadas. A autora do desenho explicou que decidiu fazer o coronavírus porque ninguém gosta dele.

Também foi interessante notar que uma criança utilizou da fantasia ao desenhar um bruxo congelando o coronavírus na tentativa de matá-lo (Desenho 7). Além disso, a ilustração fez distinção, por meio de cores, entre o coronavírus e o “novo coronavírus”, conforme mencionado pelo autor do desenho ao ser questionado sobre o que cada cor representava.

Desenho 7
A “morte” do coronavírus

Tanto o Desenho 5 quanto o Desenho 7 retrataram a morte do coronavírus, seja pelo uso da vacina criada pelos cientistas, seja pelo congelamento do vírus por meio do uso de magia. Essas representações possivelmente demonstram o desejo de se ver livre do vírus, a esperança de que a vida volte ao normal.

Novos hábitos

Com a emergência da pandemia, novos hábitos passaram a fazer parte da vida cotidiana, como o uso de máscaras e a higienização frequente das mãos. Cinco crianças representaram esses novos cuidados em seus desenhos, como ilustrado no Desenho 8, no qual a criança representou as pessoas utilizando máscaras durante uma atividade rotineira no local onde mora: soltar pipa.

Desenho 8
Entre pipas e máscaras

Uma criança desenhou cuidados para além do uso de máscara (Desenho 9), como a higiene de objetos de uso pessoal: “Isso daqui é eu andando de patinete no parquinho, isso daqui é no elevador, esse daqui sou eu limpando o meu chinelo e minha máscara. E aqui eu tô lavando a máscara numa bacia e aqui sou eu me secando e aqui sou eu trocando de roupa.”

Desenho 9
Medidas de prevenção à COVID-19

Discussão

Nossos resultados dialogam com os de Gomes (2010GOMES, Z. F. F. Desenho Infantil - Modos de interpretação do mundo e simbolização do real: um estudo em sociologia da infância. 2010. Dissertação (Mestrado em Sociologia da Infância) - Instituto de Estudos da Criança, Universidade do Minho, Braga, 2010.), que, ao estudar a cultura geracional da infância a partir do desenho infantil, mostrou que os desenhos das crianças refletem vivências importantes em seu cotidiano, experiências e interações vividas em vários contextos. Observamos desenhos muito diferentes, oriundos de crianças que vivem em uma mesma cidade, passando pela mesma emergência sanitária, mas com realidades e contextos diferentes. Enquanto algumas crianças preferiram retratar sistematicamente o seu cotidiano, outras destacaram partes dele, de modo a inserir o conhecimento que possuem da sua comunidade e do seu ambiente físico. Um exemplo foi a representação de uma atividade de lazer comum nas comunidades cariocas, soltar pipas, com os cuidados necessários para o enfrentamento da pandemia, como o uso de máscaras. Outro, o resgate do jardim do prédio, com o desenho do novo balanço criado durante a pandemia.

Para Coates e Coates (2011COATES, A.; COATES, E. The subjects and meanings of young children’s drawings, In:FAULKNER, D.; COATES E. (Ed.). Exploring Children’s Creative Narratives. London: Routledge, 2011. p. 86-110.), crianças baseiam os seus desenhos nos que elas veem e se lembram, e isso inclui elementos que elas conhecem mas que não necessariamente são visíveis, como é o caso dos sentimentos e dos vírus - organismos invisíveis a olho nu mas cuja representação da estrutura observada em microscópios é amplamente divulgada -, ambos evocados nos desenhos aqui analisados. Os autores destacam, ainda, que as crianças também tendem a exagerar nas partes importantes do desenho, com a escala dos elementos sendo proporcional ao seu significado emocional. De fato, observamos isso em alguns desenhos, com o vírus sendo representado em tamanhos e cores diferentes. Ao representar o coronavírus, as crianças utilizaram as imagens vistas na mídia como base, mas também personificaram o agente infeccioso, atribuindo-lhe características humanas como expressões faciais.

Como destacado por Idoiaga e colaboradores (2020IDOIAGA, N; BERASATEGI, N; EIGUREN, A; PICAZA, M. Exploring children’s social and emotional representations of the Covid-19 pandemic. Frontiers in Psychology, Lausanne, v. 11, 2021. DOI: 10.3389/fpsyg.2020.01952
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), o coronavírus é representado, pelas crianças, como um inimigo a ser enfrentado e como algo que pode ser contagioso. No âmbito da luta contra o inimigo, surgiram os desenhos que ilustram atores sociais que, na percepção das crianças, poderiam ajudar no combate ao vírus, como cientistas ou magos. O medo do contágio é ilustrado nos cuidados que vêm sendo tomados para se evitar a transmissão do vírus, em que o uso das máscaras ganha papel importante, aparecendo em sete desenhos. Uma das crianças mencionou ter representado o planeta Terra usando máscara pois “a máscara salva”.

Penha e Simões (2020PENHA, R. F.; SIMÕES, P. M. U. A Pandemia Do Covid-19 E As Crianças: Estudo Das Vivências E Representações Em Época De Isolamento Social. In: EPEN - Reunião Científica Regional Nordeste da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, 25., Anais... Salvador, Bahia: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, 2020. Disponível em: Disponível em: http://anais.anped.org.br/regionais/sites/default/files/trabalhos/20/7314-TEXTO_PROPOSTA_COMPLETO.pdf . Acesso em: 25 mar. 2021.
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), ao analisar as narrativas gráficas de sete crianças brasileiras, entre 4 e 6 anos de idade, sobre a pandemia e o isolamento social, perceberam que o cotidiano foi simbolizado como um momento de tensão, tristeza e apreensão, o que também foi observado no nos desenhos aqui analisados. Bem como em nosso estudo, as autoras também observaram a apresentação do espaço da casa como um lugar de múltiplas atividades, brincar, estudar e assistir às aulas, de modo que o confinamento vem causando mudanças na vivência familiar, com a moradia ganhando novas funções.

Observamos que o uso de eletrônicos - celular, televisão, videogame, computador etc. - foi muito citado e ilustrado. Alguns participantes mencionaram que antes não jogavam tanto videogame, mas, como em casa não tem muita coisa para fazer, estão jogando por mais tempo. Alguns estudos indicam que a mudança de rotina causada pelo isolamento social vem fazendo com que as crianças permaneçam mais tempo na frente de telas do que o habitual (Deslandes; Coutinho, 2020DESLANDES, S. F.; COUTINHO, T. O uso intensivo da internet por crianças e adolescentes no contexto da COVID-19 e os riscos para violências autoinflingidas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, p. 2479-2486, 2020.; Mata, et al., 2020MATA, IR S; DIAS, L. S. C; SALDANHA, C. T; PICANÇO, M. R. A. As implicações da pandemia da COVID-19 na saúde mental e no comportamento das crianças. Residência Pediátrica, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, 2020. DOI: 10.25060/residpediatr-2020.v10n3-377
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; Ponte; Neves, 2020PONTE, V.; NEVES, F. Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia. Simbiótica. Revista Eletrônica, Vitória, v. 7, n. 1, p. 87-106, 2020.; Orgilés, et al., 2020ORGILÉS, M; MORALES, A; DELVECCHIO, E; MAZZESCHI, C; ESPADA, JP. Immediate Psychological Effects of the COVID-19 Quarantine in Youth From Italy and Spain. Frontiers in Psychology, Lausanne, v. 1, 2020. DOI: 10.3389/fpsyg.2020.579038
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). Para Ponte e Neves (2020PONTE, V.; NEVES, F. Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia. Simbiótica. Revista Eletrônica, Vitória, v. 7, n. 1, p. 87-106, 2020.), em tempos de isolamento social, as crianças encontraram na tecnologia uma forma de se conectar com o mundo, ainda que confinadas em casa. Assim, os computadores e celulares surgem como meios de comunicação e entretenimento. Mata e colaboradores (2020MATA, IR S; DIAS, L. S. C; SALDANHA, C. T; PICANÇO, M. R. A. As implicações da pandemia da COVID-19 na saúde mental e no comportamento das crianças. Residência Pediátrica, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, 2020. DOI: 10.25060/residpediatr-2020.v10n3-377
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) defendem que a tecnologia pode ser uma forte aliada na manutenção da interação social, fazendo com que as crianças se sintam menos isoladas e mais acolhidas. Mas os autores destacam que é importante que haja uma supervisão, por parte dos responsáveis, sobre os conteúdos acessados e compartilhados pelas crianças.

Ponte e Neves (2020PONTE, V.; NEVES, F. Vírus, telas e crianças: entrelaçamentos em época de pandemia. Simbiótica. Revista Eletrônica, Vitória, v. 7, n. 1, p. 87-106, 2020.), ao analisar vídeos protagonizados por crianças no Youtube e no Instagram sobre a pandemia, observaram que elas não só percebem a importância da quarentena, mas também se preocupam em seguir e compartilhar as medidas de prevenção. Isso está em consonância com o observado nos desenhos e falas das crianças participantes do nosso estudo: as crianças demonstraram estar respeitando as medidas de distanciamento social, mantendo a higiene pessoal, lavando as mãos, utilizando álcool em gel e máscara. Nesse contexto, alguns participantes foram além das suas próprias experiências e retrataram os impactos da pandemia na vida coletiva: é o caso dos desenhos que trouxeram o planeta cercado pelo coronavírus, os moradores da comunidade usando máscara, o sol e as outras crianças tristes por não poderem sair de casa, pelas mortes, entre outros. Portanto, as crianças se mostram atentas às mudanças que vêm ocorrendo no mundo, tanto nas suas rotinas e sentimentos quanto nas questões e dores coletivas.

Considerações finais

Em tempos de isolamento social, em que as crianças estão confinadas em casa com suas famílias, novos modos de convivência são produzidos, brincadeiras precisam ser reinventadas, o aprendizado escolar presencial se transforma em aulas on-line e o convívio social diminui. Essa nova realidade se expressa nos desenhos e nas narrativas das crianças, tanto do ponto das atividades quanto dos sentimentos associados a essa situação.

Deste modo, ao analisar a percepção das crianças cariocas sobre a pandemia de covid-19, utilizando a técnica de desenhos comentados, observamos que, em alguma medida, elas têm buscado se adaptar à situação atual, aproveitando o maior tempo em casa para fazer atividades que não eram usuais com as aulas presenciais, como brincadeiras e videogames. Os participantes da pesquisa demonstraram cautela com a pandemia e indicaram estar conscientes da importância do distanciamento social, do uso de máscara e da higiene pessoal para o enfrentamento da covid-19.

Por outro lado, não surpreendentemente, a pandemia também parece ter afetado os sentimentos das crianças de nosso estudo, com muitas delas demonstrando preocupação, medo e até raiva do vírus. Desse modo, as crianças se mostram atentas à complexidade da situação, conscientes das mudanças que ocorreram em suas vidas e preocupadas com a disseminação da doença.

Por fim, ressaltamos a riqueza da combinação das duas ferramentas de coleta de dados utilizadas: os desenhos e as entrevistas com as crianças. Como vem sendo dito pela literatura que respalda essa abordagem, os desenhos permitiram dar voz às crianças, revelando sua percepção da pandemia, e a análise deles, associada com a entrevista, permitiu uma compreensão mais aprofundada de suas visões, suas narrativas e seus sentimentos. Tendo em vista que se trata de um estudo qualitativo, os resultados não podem ser generalizados para a população de crianças do Rio de Janeiro - e nem foi nosso objetivo. Entretanto, o estudo fornece informações que podem nos ajudar a refletir sobre a percepção de crianças sobre a pandemia e os vírus em geral.

Agradecimentos

As autoras agradecem à Faperj e ao CNPq por terem apoiado este estudo, realizado no escopo do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia. Marcela Alvaro agradece à Faperj pela bolsa TCT5. Luisa Massarani agradece à Faperj pela bolsa Cientista do Nosso Estado e ao CNPq pela bolsa Produtividade em Pesquisa 1B. As autoras agradecem às crianças e suas famílias por terem participado do estudo.

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  • 1
    Duas crianças fizeram dois desenhos cada, por isso o número de desenhos é maior que o número de crianças entrevistadas (20).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2021
  • Aceito
    06 Jul 2021
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br