A atenção básica na perspectiva de gestores públicos do sistema único de saúde: estudo qualitativo

Karine Nicolau Bruna Faria Cassia Palos Sobre os autores

Resumo

A Atenção Básica (AB) refere-se ao nível de atenção que permite cidadãos(ãs) acessarem o Sistema Único de Saúde (SUS) longitudinal e continuadamente. A proposta e operacionalização da gestão em Saúde reafirmam valores sociais como o direito à saúde. Com o objetivo de analisar qualitativamente perspectivas relacionadas a este nível de atenção entrevistou-se gestores(as) de diferentes níveis hierárquicos da AB de um município de Mato Grosso. As informações produzidas foram submetidas à Análise de Conteúdo na modalidade temática, referenciada pelo pensamento e planejamento estratégicos em saúde, no âmbito da Saúde Coletiva. Os dados relativos à gestão em saúde na AB e ao atendimento à população produziram núcleos temáticos envolvendo gestão rotativa, atuação fragmentada e emergencial; oposição entre humanização e técnica; promoção vertical da saúde. Os(as) gestores(as) demonstraram compromisso e busca pela manutenção dos serviços por meio de ações assistenciais e pontuais. A organização top-down, na qual não está prevista a participação dos usuários(as) como condição para o planejamento, parece ter reforçado incoerências entre a proposta abrangente da AB e os diuturnos imprevistos estruturais, dificultando a problematização necessária à transformação dos processos de trabalho. Fortalecer institucionalmente a rede de AB exige investimento, qualificação profissional permanente e participação ativa dos sujeitos.

Palavras-chave:
Atenção Básica em Saúde; Gestão em Saúde; Planejamento Estratégico

Introdução

A Atenção Primária em Saúde (APS), no Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil denominada Atenção Básica (AB), refere-se ao primeiro nível de atenção em saúde (Starfield, 2002STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: UNESCO/Ministério da Saúde, 2002.). No país, a AB expande-se e consolida-se a partir da década de 1990, inicialmente com o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), em 1991; e com o Programa Saúde da Família (PSF) em 1994. Em 2006, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) transforma o PSF oficialmente em Estratégia Saúde da Família (ESF), modelo substitutivo de reorganização da AB, com equipes multiprofissionais e atividades junto a uma população adscrita (Brasil, 2006aBRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF, 2006a.).

Melo et al. (2018MELO, E. A. et al. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 1, p. 38-51, 2018. Número especial. DOI: 10.1590/0103-11042018S103
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) analisaram as duas revisões pelas quais a PNAB passou: em 2011, na qual se buscou aperfeiçoar e qualificar a AB; e em 2017, cujas alterações em relação à edição anterior foram, dentre outras, a retirada da palavra democrática para as práticas de cuidado e de gestão; e da palavra humanização para os princípios da PNAB; além de conferir maior autonomia e flexibilidade para a gestão municipal, a qual possui papel central na condução e gestão da AB.

De acordo com Starfield (2002STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: UNESCO/Ministério da Saúde, 2002.), a APS apresenta como principais atributos o primeiro contato com a rede de atenção à saúde pela população; longitudinalidade (ou vínculo longitudinal do cuidado), identificando o acompanhamento dos(as) usuários(as) ao longo do tempo, com responsabilização profissional e confiança; integralidade, que pressupõe a existência de uma rede de serviços em distintos níveis de complexidade e de competências, ações integradas nos diversos níveis de atenção à Saúde, em atendimento às distintas demandas dos(as) usuários(as). Para a autora, a APS também requer coordenação do cuidado por meio de registros, informações claras e precisas; e articulação entre os serviços. Integrariam também as atribuições da APS a abordagem familiar e o enfoque comunitário, balizados pela competência cultural do(a) profissional que atua na AP, considerando os sujeitos em suas singularidades e inserções socioculturais, crenças, valores, sentidos da saúde e do adoecimento etc.

Convém ressaltar que a APS não se mostra homogênea, organizando-se em fluxos diferenciados em cada país. Giovanella (2018) relembra que a AB idealizada para o Brasil, após a Constituição de 1988, não se orientava por uma abordagem seletiva, com cesta de serviços focalizada e restrita, mas por uma concepção ampliada e abrangente de saúde, constituída por componentes essenciais, trazidos pela histórica Conferência Internacional de Atenção Primária à Saúde de Alma-Ata, ocorrida em 1978, envolvendo acesso universal e primeiro ponto de contato do sistema de saúde; indissociabilidade entre saúde e desenvolvimento socioeconômico, reconhecendo-se os chamados Determinantes Sociais em Saúde (DSS); e participação social.

Diante do exposto, pode-se deduzir que a AB expressa um nível de atenção de notória complexidade, que requer dos(as) profissionais desempenhos que ultrapassem as técnicas e os procedimentos, ainda que estes sejam imprescindíveis. No âmbito da gestão, trata-se de um exercício de poder inseparável das questões políticas envolvidas, conforme apontado por Campos e Onocko-Campos (2008CAMPOS, G. W. S.; ONOCKO-CAMPOS, R. T. Gestão em Saúde. In: PEREIRA, I. B.; LIMA, J. C. F. Dicionário da educação profissional em saúde. 2.ed. Rio de Janeiro: EPSJV, 2008.), notadamente pela orientação societária do SUS para acesso universal e integralidade do cuidado.

Por meio de revisão integrativa, Pires et al. (2019PIRES, D. E. P. et al. Gestão em saúde na atenção primária: o que é tratado na literatura. Texto & Contexto: Enfermagem, Florianópolis, v. 28, 2019. DOI: 10.1590/1980-265X-TCE-2016-0426
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) buscaram estudos produzidos entre 2006 e 2016 sobre gestão na AB e identificaram que o tema foi abordado nos artigos científicos nacionais e internacionais por aspectos relacionados à política de saúde e aos desafios da prática de gestão. Dentre as lacunas, a ausência de investigações que ampliassem conceitualmente a gestão na AB. Os autores reafirmaram a relevância do assunto para o setor saúde e destacaram que a definição de políticas e o fazer em Saúde seriam mediados pela gestão, envolvendo a coordenação do trabalho coletivo e o provimento de ambientes de prática profissional. Ratificaram também o impacto direto da gestão nos serviços de saúde.

A administração sanitária, surgida nas primeiras décadas do século XX, foi precursora da atual rede de AB (Campos, 2007CAMPOS, C. E. A. As origens da rede de serviços de atenção básica no Brasil: o Sistema Distrital de Administração Sanitária. História, Ciências, Saúde, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 877-906, 2007. DOI: 10.1590/S0104-59702007000300011
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). Com características normativas, higienistas e centralizadoras, mostrou-se insuficiente para atender à organização da AB nos moldes do SUS e suas diretrizes políticas de participação, controle social dos(as) gestores(as) pela sociedade civil, cogestão e democratização do acesso à saúde, na qualidade de direito social previsto constitucionalmente.

Nessa direção, Guizardi e Cavalcanti (2010GUIZARDI, F. L.; CAVALCANTI, F. O. A gestão em saúde: nexos entre o cotidiano institucional e a participação política no SUS. Interface: comunicação, saúde educação, Botucatu, v. 14, n. 34, p. 633-45, 2010. DOI: 10.1590/S1414-32832010005000013
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) defendem a ideia de que não se trata apenas de aprimorar o SUS, mas de compreendê-lo como um campo de produção de novas subjetivações para revolucionar a vida. Em acréscimo, os autores alertam para o fato de que a gestão em saúde não se resume a um ato estritamente técnico, normativo, nem é exclusivo do(a) gestor(a). De acordo com os autores, a gestão envolveria uma ação que seria, por definição, normativa, residindo nisto sua dimensão política, mas que não poderia jamais ser isolada das implicações em rede nas quais se tecem as relações humanas.

Assim, para além da letra fria da regulamentação legal, Bousquat et al. (2017BOUSQUAT, A. et al. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciência &Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 4, p. 1141-1154, 2017. DOI: 10.1590/1413-81232017224.28632016
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) investigaram perspectivas de usuários(as) e gestores(as) da AB. Os resultados produzidos sugeriram diferenças acentuadas. Enquanto gestores(as) reconheciam a AB como porta de entrada da Rede de Atenção à Saúde (RAS),11Rede de Atenção à Saúde é definida como arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado (BRASIL, 2010, p. 4). ainda que cientes das dificuldades de efetivação, como os mecanismos de continuidade informacional, usuários(as) não a consideravam nem como porta de entrada, nem ponto regular de cuidado, assim como também não a percebiam como espaço para tratamentos clínicos. Estudos dessa natureza alertam para a necessidade de pesquisas que abordem a perspectiva dos envolvidos na AB, sejam usuários(as) ou gestores(as), sob pena de se ignorar elementos que conferem sentido à gestão e às experiências em saúde.

O campo da saúde coletiva e seu clássico tripé, representado pelas ciências sociais e humanas em saúde - política, planejamento e gestão em saúde, e epidemiologia - reconhece a importância de estudos e de práticas que valorizem, para além das questões técnicas e normativas, dos protocolos e dos sistemas de informação, a subjetividade na gestão organizacional e os aspectos intersubjetivos que amiúde compõem o planejamento e as ações estratégicas desenvolvidas (Rivera; Artmann, 2019RIVERA, F. J. U.; ARTMANN, E. Planejamento e gestão em saúde: conceitos, história e propostas. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2019.).

Considerando o pensamento e o planejamento estratégicos na saúde coletiva, cujas formulações procuram romper com a normatividade de um dever que se impõe sobre a realidade a fim de transformar configurações de poder (Matus, 1993MATUS, C. Política, planejamento e governo. Brasília: IPEA, 1993.; Testa, 2020TESTA, M. Pensar em salud. Buenos Aires: Universidad Nacional de Lanús, 2020.), as diferentes perspectivas relativas à AB, além da necessidade de que a implementação das políticas de saúde também seja orientada por abordagens bottom-up, cujo foco está nos subsistemas de políticas públicas e nas estratégias dos envolvidos(as) (Lima; D’ascenzi, 2013LIMA, L. L.; D’ASCENZI, L. Implementação de políticas públicas: perspectivas analíticas. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 21, n. 48, p. 101-110, 2013. DOI: 10.1590/S0104-44782013000400006
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), realizou-se pesquisa de campo com gestores(as) de um município do estado de Mato Grosso, com o objetivo de compreender em que termos ocorria sua atuação na AB. Espera-se que os dados produzidos fomentem transformações e aperfeiçoamentos na temática, ainda pouco explorada qualitativamente. Buscou-se responder à questão: Como gestores(as) da AB perspectivam esse nível de atenção, incluindo a gestão em saúde e o atendimento à população?

Convém esclarecer que a Norma Operacional Básica 96 (Brasil, 1996BRASIL. Ministério da Saúde. Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde/NOB-SUS 96. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 6 nov. 1996., p. 8) diferenciou os termos gestão e gerência, sendo o primeiro relacionado à “responsabilidade de dirigir um sistema de saúde (municipal, estadual ou nacional)”; e o segundo à “administração de uma unidade ou órgão de saúde”. No entanto, para atender ao objetivo de analisar perspectivas da AB por envolvidos(as) na sua condução, seja na administração de unidades de saúde ou em nível central, todos(as) os(as) entrevistados(as) foram denominados(as) gestores(as).

Percurso metodológico

Trata-se de pesquisa qualitativa, de tipo descritivo-exploratório, desenvolvida em um município do estado de Mato Grosso, região centro-oeste do Brasil, apresentando como cenário de estudo a AB. Elencou-se como possíveis participantes da pesquisa gestores(as), em exercício, de diferentes níveis hierárquicos. Ainda que essa diversidade expresse diferentes graus de poder decisório dos(as) entrevistados(as), justifica-se tal indiferenciação por participarem da mesma rede pública de saúde, com ressonância entre si, de caráter intersubjetivo na composição da AB municipal. De acordo com Minayo (2017MINAYO, M. C. S. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa, São Paulo, v. 5, n. 7, p. 1-12, 2017.), as relações entre as pessoas sugerem interdependência e, desse modo, entrevistar o(a) representante de um determinado grupo produz, ao mesmo tempo, um depoimento pessoal e coletivo.

Como técnicas e instrumentos de pesquisa foram utilizados: observação, registrada em diário de pesquisa; entrevistas semiestruturadas, gravadas e transcritas integralmente no software Word para posterior processamento por Análise de Conteúdo na modalidade temática, nos termos de Minayo (2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec , 2014.). O roteiro das entrevistas foi elaborado com perguntas orientadas por dois eixos: a) ideário da gestão em saúde, em especial na AB; e b) atendimento prestado à população na AB.

A observação, ocorrida pelo contato direto e presencial com os(as) gestores(as) em seu ambiente de trabalho, por um período superior ao tempo destinado à entrevista, apresentava como objetivo estabelecer maior vinculação entre os sujeitos observados e a pesquisadora; e produzir informações que ficariam invisibilizadas por outros meios (Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec , 2014.). Isso significou acompanhar as relações profissionais no ambiente de trabalho, fluxos rotineiros para atendimento das demandas, priorização de respostas institucionais, dentre outros aspectos do cotidiano dos(as) gestores(as) entrevistados(as).

Após as entrevistas utilizou-se a seguinte sequência para a análise proposta: (1) pré-análise: realizadas as transcrições, procedeu-se à aproximação com o conteúdo das entrevistas e dos registros em diário de pesquisa; (2) exploração do material: buscou-se compreender os conteúdos produzidos para elaboração dos núcleos temáticos, realizando releituras do material transcrito, do diário de pesquisa e novas escutas dos áudios; (3) tratamento dos resultados produzidos, associando os núcleos temáticos com os referenciais teóricos.

Em relação aos aspectos éticos, convém destacar que a pesquisa integra o Projeto Governança, Regiões e Redes em Mato Grosso, alinhado à pesquisa nacional multicêntrica Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil, aprovada na Chamada MCTI/CNPq/ CTSaúde/MS/SCTIE/Decit Nº 41/2013., aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP SAÚDE UFMT), por meio do parecer n.º 2437262 , atendendo aos preceitos éticos da Resolução nº 466/2012, da Conselho Nacional de Saúde (CNS).

O projeto solicitou a colaboração da Secretaria de Saúde do município selecionado no estado de Mato Grosso , devidamente registrada em Termo de Anuência à Pesquisa.

Resultados e discussão

No último trimestre de 2019 foram entrevistados(as) 10 gestores(as) da AB do município selecionado, sendo oito deles(as) com graduação em enfermagem; um em psicologia; um em nutrição; oito especialistas, nenhum com formação específica (lato ou stricto sensu) em gestão; apenas quatro estatutários(as); seis com tempo de atuação em cargos de gestão superior a cinco anos, porém, em caráter rotativo, na própria RAS municipal.

Para o encerramento das entrevistas, observou-se os critérios de volume e qualidade, balizadas pela reincidência e complementaridade de informações (Minayo, 2017MINAYO, M. C. S. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa, São Paulo, v. 5, n. 7, p. 1-12, 2017.).

A análise dos dados resultou em cinco núcleos temáticos: (1) rotatividade na gestão da AB; (2) fragmentação de ações; (3) emergência na atuação; (4) oposição entre humanização e técnica e (5) promoção vertical da saúde, conforme descrito no Quadro 1.

Quadro 1
Eixos de análise e núcleos temáticos baseados nas entrevistas e observação

A rotatividade da gestão referiu-se à mudança na função, seja do(a) próprio(a) gestor(a) entrevistado(a) ou do nível central, fragilizando o processo de trabalho e dificultando a problematização e o acompanhamento dos resultados alcançados, seja para a melhoria ou para o atendimento das necessidades de saúde da população, de forma territorializada e oportuna. “E o que acontece aqui hoje na gestão, como a gente tem muita rotatividade de pessoas, tá bem complicado fazer gestão […] cuido dos programas especiais, mas alguns, se muda o gestor, muda tudo. Se muda o Secretário […] Mas, a gente tenta deixar tudo certo.” (Gestor 5).

Verificou-se que nesse cenário rotativo foram desenvolvidas majoritariamente ações pontuais, pautadas no atendimento aos imprevistos de cada Unidade Básica de Saúde (UBS) ou setor da AB em nível administrativo central. Essas situações contribuíam para que o planejamento ficasse em segundo plano, com vários focos de atendimento, descoordenados entre si.

O núcleo temático envolvendo a fragmentação de ações foi elaborado com base na menção recorrente dos(as) gestores(as) a práticas pontuais, por exemplo, focalizadas em procedimentos específicos, como a realização do exame preventivo de câncer de colo uterino (CCO) e campanhas de vacinação. Observou-se também que se referiam a práticas isoladas, desenvolvidas na UBS sem articulação com outros pontos da RAS. A desarticulação intersetorial em campanhas, programas e procedimentos isolados não gerou menor volume de trabalho, mas pareceu apontar para menor integralidade do cuidado em saúde. A atuação relatada majoritariamente pelos(as) gestores(as) orientava-se por indicadores, programas ministeriais, linhas de cuidado, referências e contrarreferências no atendimento a demandas por meio de práticas pontuais, isoladas e desarticuladas. “Aqui somos muito de olhar os nossos indicadores. Olhamos o número de CCOestá baixo? Então, o que vamos fazer? Mutirão aos sábados? […] a campanha de vacinação, as crianças não estão indo vacinar, muitos cartões atrasados… sábado nós vamos abrir?” (Gestor 5).

Entende-se que a AB, como parte da RAS, deve atuar em formato de rede, ou seja, com maior abrangência, efetividade e diversidade possível para o atendimento das demandas em Saúde. Não se trata de menosprezar procedimentos pontuais, mas de alertar para sua centralidade em um cenário onde há previsão legal para a abrangência e para a articulação de ações, como a AB, conforme definido pela Portaria 4.279/2010 (Brasil, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF, 2010.) e pelo Decreto 7.508/2011 (Brasil, 2011BRASIL. Presidência da República. Decreto n.º 7508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde (SUS), o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 jun. 2011.). “Em muitos casos, em muitas situações, a nossa APS não é ordenadora da rede, eu tenho essa percepção de que nós não trabalhamos ainda em rede. A ausência de linhas de cuidado é um problema, né?” (Gestor 4).

O caráter emergencial das ações cotidianas, conforme relatado pelos(as) gestores(as), compõe o núcleo seguinte, cujo conteúdo traduziu a fórmula da gestão e do planejamento na AB, adotando-se como norteadora a noção de fórmula trazida por Alice Krieg-Planque (2010)KRIEG-PLANQUE, A. A noção de fórmula em análise do discurso: quadro teórico e metodológico. São Paulo: Parábola, 2010., que se refere a uma espécie de slogan não previsto, que surge no decorrer da pesquisa e que sintetiza elementos variados dos conteúdos produzidos na investigação, com o propósito de condensar uma determinada mensagem coletiva. Entre seus elementos, o caráter relativamente cristalizado, “lugar-comum para debate, como significante partilhado” (Krieg-Planque, 2010KRIEG-PLANQUE, A. A noção de fórmula em análise do discurso: quadro teórico e metodológico. São Paulo: Parábola, 2010., p. 74); uma dimensão discursiva, sem necessariamente apresentar sentido literal, porém, sempre orientado; a referência social, a qual é capaz de ser entendida por muitos(as) em determinado momento; e, por fim, seu aspecto polêmico, em graus variados, relacionado às questões sociopolíticas que evoca. Deve-se observar que a fórmula não é algo estabelecido antes do processo de pesquisa, mas que surge ao longo da investigação. Tal fórmula pode nem estar presente literalmente em uma produção de resultados e não emergir diretamente das narrativas ou dos discursos.22Considerou-se que a noção de fórmula,- ainda que comumente vinculada ao campo da Análise de Discurso de inspiração francesa -,poderia contribuir com a análise temática proposta ao organizar e sintetizar elementos tanto das entrevistas quanto dos registros das observações realizadas.

Verificou-se entre os(as) gestores(as) a fórmula apagar incêndio, associada ao descontrole, situação perigosa, desespero, ação impulsiva e reativa, ideia que os(as) entrevistados(as) relacionaram às ações desenvolvidas na gestão em saúde na AB. Na análise da fórmula, identificou-se também a predominância do aspecto polêmico, retratando uma situação intensamente relacionada às questões sociopolíticas da gestão da AB no município, como, por exemplo, a rotatividade da gestão no setor (debatida em núcleo temático anterior), problemas administrativos envolvendo ações não planejadas e repasse de verbas.

A fórmula em questão parece remeter tanto à justificativa de não planejamento e de não execução das ações eventualmente planejadas, quanto aos impeditivos para se planejar e executar as ações correspondentes. Desse modo, apagar incêndio parecia tanto proteger e justificar quanto condenar o(a) gestor(a).

As entrevistas e a observação evidenciaram situações de angústia, aflição, respostas rápidas e pontuais dos(as) gestores(as) na gestão cotidiana em saúde. Relacionadas à fórmula apagar incêndio, indicaram problemas e riscos representados pelos resultados decorrentes da ausência de um planejamento estratégico que permitisse exercer ações coordenadas e articuladas a outros níveis de atenção. De acordo com os(as) gestores(as), o planejamento, quando ocorre, parece subsumir ao próximo imprevisto.

De acordo com os(as) entrevistados(as),

A gente tá aqui gerenciando, é como eu digo, a gente apaga incêndio ali e planeja aqui. (Gestor 4)

Então assim, são coisas que a gente tá tentando mudar, mas é muito complexo. Aqui é dinâmico e como o SUS já vem de um passado meio complicado, no dia a dia a gente acaba apagando incêndio. Aí, tem que planejar e apagar fogo, planejar e apagar fogo. Complicado. (Gestor 2)

Nessa direção, relembrar fundamentos do pensamento e planejamento estratégicos em saúde, nos termos de Testa (2020TESTA, M. Pensar em salud. Buenos Aires: Universidad Nacional de Lanús, 2020.) e de Matus (1993MATUS, C. Política, planejamento e governo. Brasília: IPEA, 1993.), torna-se relevante para materializar mudanças, reconhecidas como necessárias pelos(as) gestores(as) e legitimadas pela população. Para Testa (2020)TESTA, M. Pensar em salud. Buenos Aires: Universidad Nacional de Lanús, 2020., pensar em saúde é reconhecer a determinação social de suas práticas, nas quais a gestão está incluída como ação política guiada pelas relações de poder estabelecidas e pela ideologia que as fundamenta, expressando valores e crenças que afetam as concepções de mundo dos sujeitos. Isso significa afirmar que o pensar em saúde envolve uma postura reflexiva, com tempo e espaço suficientes para a maturação de propostas e para o reconhecimento e análise da situação de saúde com a qual os(as) gestores(as) se deparam.

O planejamento estratégico de Matus (1993MATUS, C. Política, planejamento e governo. Brasília: IPEA, 1993.) refere-se a um processo complexo, dinâmico e contínuo que precede e preside a ação, envolto por múltiplos atores que interagem na realidade social que os condiciona, em diferentes graus de governabilidade. O autor argumenta que é imprescindível identificar, descrever e analisar o conjunto de problemas que emergem de uma situação em análise, trabalhando-os em quatro momentos distintos: explicativo, com análises para levantamento dos problemas da situação inicial; normativo, definindo-se quais operações deverão ser realizadas para o enfrentamento dos problemas identificados, considerando-se o tempo político em que a situação-objeto está inserida; estratégico, no qual se identifica a viabilidade das estratégias e das operações propostas; e tático-operacional, que deve executar, monitorar e avaliar a gestão do plano.

É preciso destacar que os momentos não são etapas sequenciais, pois se desenvolvem, na realidade, de maneira simultânea e integrada, podendo existir apenas o predomínio de um momento sobre o outro (Rivera; Artmann, 2019RIVERA, F. J. U.; ARTMANN, E. Planejamento e gestão em saúde: conceitos, história e propostas. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2019.). A fórmula apagar incêndio dificulta o pensar para agir, aspecto central das elaborações teóricas de Testa (2020TESTA, M. Pensar em salud. Buenos Aires: Universidad Nacional de Lanús, 2020.) e Matus (1993MATUS, C. Política, planejamento e governo. Brasília: IPEA, 1993.).

No cenário em que os gestores(as) estavam imersos(as), as problemáticas referiam-se desde questões estruturais até a escassez da força de trabalho. As dificuldades estruturais e a falta de recursos foram apontadas pelos(as) gestores(as) como impeditivos para uma AB de maior qualidade. A melhoria dos processos de trabalho, linhas de cuidado, articulação da RAS exige estrutura33Estrutura foi considerada força de trabalho, insumos, estrutura física e tecnologias variadas. suficiente para o atendimento das demandas das UBS. A análise dessa questão remeteu ao histórico de subfinanciamento do SUS (Ugá et al., 2012UGÁ, M. A. et al. Financiamento e alocação de recursos no Brasil. In: GIOVANELLA, L. et al. (Org.). Políticas e sistema de saúde no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012. p. 395-426.) e renova a necessidade, sempre presente, de se lutar por avanços estruturais como condição imprescindível e inseparável do direito à saúde no país.

A fórmula apagar incêndio também condensou elementos da atuação dos gestores entrevistados na AB, com destaque para a aparente impossibilidade de execução do planejamento em Saúde quando este é realizado pro forma. Disso resultou seu caráter polêmico, pois, de acordo com o referencial teórico adotado, o planejamento precede e preside a ação, não se desenvolve em etapas sequenciais e não se refere apenas a uma etapa avaliativa. É preciso, portanto, desnaturalizar a noção de incêndio na atuação em saúde. Embora soe heroico e muitas vezes seja esperado em relação aos problemas institucionais, justifica ações emergenciais que descaracterizam o trabalho em saúde ordenado e planejado estrategicamente, dificultando o reconhecimento das relações de poder no setor e do próprio trabalho na conformação do ser social. Ou seja, apagar incêndio pode invisibilizar para os(as) gestores(as) o modo como participam da estrutura e do modelo de atenção à saúde.

A oposição entre o uso de tecnologias relacionais, envolvendo comunicação, escuta, empatia e acolhimento (Coelho; Jorge, 2009COELHO, M. O.; JORGE, M. S. B. Tecnologia das relações como dispositivo do atendimento humanizado na atenção básica à saúde na perspectiva do acesso, do acolhimento e do vínculo. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 1523-1531, 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000800026
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) e a aplicação técnica de procedimentos, como tecnologias leve-duras e duras, nos termos de Merhy (2002)MERHY, E. E. Saúde: cartografia do trabalho vivo em ato. São Paulo: Hucitec , 2002., expressaram o núcleo temático que registrou a equivocada oposição entre humanização e técnica na AB, na perspectiva dos(as) gestores(as). Nas entrevistas a seguir nota-se claramente essa oposição, como segue:

Porque técnica, para você trabalhar dentro de um hospital, você tem que ter uma técnica muito boa de procedimentos, né? Você tendo uma boa técnica de procedimentos pra cuidar de um paciente, ali você deslancha. Mas, AB não. AB é coração! (Gestor 1)

[…] pelo menos a humanização a gente batalha todos os dias, que o paciente muitas vezes não tem nenhuma doença. Mas, ele chega na unidade, senta e conversa, sempre, bato muito duro com relação a isso. De chegar lá, um bom dia que você dá para ele, ele já sai de lá. Não precisa nem de uma receita. Já sai de lá satisfeito. (Gestor 2)

Tais discursos contribuem para fortalecer o modelo biomédico em outros níveis de atenção à saúde, gerando incoerências na proposta abrangente da AB e nas ações de integralidade que a sustentam como método para efetivá-la, nos termos de Testa (2020TESTA, M. Pensar em salud. Buenos Aires: Universidad Nacional de Lanús, 2020.).

Desvia-se o atendimento, isola-se o corpo e suas respostas biológicas pela minimização de sua importância para a saúde do(a) usuário(a).

Como contraponto às considerações anteriores, a ausência de uma escuta humanizada, ativa e qualificada também pode dificultar o diálogo com os(as) usuários(as) nas construções de caminhos possíveis e alternativas, inclusive para além do setor saúde. Assim, deve-se ter em mente que tratamento humanizado não significa excluir nenhuma intervenção em saúde.

No campo da saúde coletiva, o conceito transversal de humanização carrega consigo o ideário de transformação dos modelos de atenção e de gestão, com a qualidade necessária e capaz de favorecer encontros e interações entre usuários(as) e trabalhadores, ambos protagonistas e corresponsáveis pela universalidade do acesso, integralidade do cuidado e equidade das ofertas em saúde (Campos, 2012CAMPOS, G. W. S. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paideia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: CAMPOS, G. W. S. et al. Tratado de saúde coletiva. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2012. p. 39-78.).

No entanto, inspirando-se nas originais considerações do casal Lefèvre (2004)LEFEVRE, F.; LEFEVRE, A. M. C. Promoção de saúde: a negação da negação. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004., isso não significa excluir da AB a manifestação do adoecimento, mas de compreendê-la como um significante ou interpretante do que não caminha bem na vida de usuários(as), para assim buscarem algo melhor, em amplo sentido e sempre de modo transitório. Para Campos (2012CAMPOS, G. W. S. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paideia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: CAMPOS, G. W. S. et al. Tratado de saúde coletiva. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2012. p. 39-78.), desvalorizar a clínica na produção de saúde significa reduzir a complexidade do processo saúde-doença, em qualquer nível de atenção do sistema público de saúde.

A elaboração do último núcleo temático orientou-se por uma aparente contradição entre termos ao se apresentarem associadas, nos relatos dos(as) gestores(as), a promoção da saúde e a verticalidade de ações. Nomeado promoção vertical da saúde, esse núcleo trouxe à tona um aspecto da promoção em saúde nem sempre reconhecido, que se refere à normatização e imposição de boas práticas e afins no âmbito da saúde, comumente orientados por noções epidemiológicas de risco que não conseguem abarcar a complexidade do processo (Czeresnia, 2020CZERESNIA, D. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. Promoção da saúde: conceitos, reflexões e tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020.).

Os elementos identificados nas entrevistas, associados pelos(as) gestores(as) à promoção da saúde, para compor esse núcleo, envolvem o cumprimento de metas dos programas ministeriais, preconizadas nos instrumentos de planejamento; foco na doença, por meio de ações voltadas aos sinais e sintomas; referência às Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS); grupos de caminhada; grupos de Reiki; busca ativa para a realização de CCO; atualização do cartão de vacinas; administração de medicamentos vermífugos e para tratamento de pediculose. Verificou-se indistinção entre promoção e prevenção da saúde.

Embora a promoção da saúde esteja representada no Pacto pela Saúde, especificamente na diretriz operacional apresentada pelo componente Pacto em Defesa da Vida (Brasil, 2006bBRASIL. Ministério da Saúde. Diretrizes operacionais dos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão. Brasília, DF, 2006b.), por ações que envolvem incentivos à atividade física e hábitos saudáveis de alimentação, controle do tabagismo, controle do uso abusivo de bebidas alcoólicas e cuidados especiais no processo de envelhecimento, vinculadas à noção de saúde como direito humano e de cidadania, há que se recordar as considerações realizadas por Czeresnia (2020CZERESNIA, D. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. Promoção da saúde: conceitos, reflexões e tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020.). Segundo a autora, a prevenção é definida por intervenções destinadas a evitar o surgimento de determinadas doenças, buscando a redução de sua incidência e prevalência nas populações, orientando-se pelo conhecimento epidemiológico.

A promoção da saúde, por sua vez, relaciona-se a medidas que utilizam o conhecimento científico (assim como ocorre na prevenção de agravos) para fortalecer a capacidade individual e coletiva de enfrentamento dos múltiplos condicionantes da saúde (Czeresnia, 2020CZERESNIA, D. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. Promoção da saúde: conceitos, reflexões e tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020.), considerando a participação e as opções concretas dos envolvidos, suas subjetividades, valores, autonomia e diferenças produzidas no cotidiano.

No estudo realizado, a reduzida participação popular e a precária construção coletiva de políticas públicas na saúde foram agrupadas como promoção vertical da saúde, dado o seu caráter prescritivo e pré-orientado, ou seja, como expressões de uma abordagem top-down da gestão da política pública de saúde (Lima; D’Ascenzi, 2013LIMA, L. L.; D’ASCENZI, L. Implementação de políticas públicas: perspectivas analíticas. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 21, n. 48, p. 101-110, 2013. DOI: 10.1590/S0104-44782013000400006
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), que poderia ser traduzida por um dever ser .

Essa imposição parece comprometer a legitimidade das ações desenvolvidas pelo(a) gestor(a) e descaracterizar a promoção da saúde como exercício da cidadania para além dos modos institucionalizados de controle social. Os(as) gestores(as) também mencionaram planejamentos anuais pro forma como ações protocolares pouco incorporadas e que ratificavam o reduzido envolvimento de grupos organizados e de movimentos sociais no processo de formulação e de implementação da política pública de saúde no município, distanciada da participação cidadã, elemento essencial para a promoção da saúde.

De acordo com Campos (2012CAMPOS, G. W. S. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paideia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: CAMPOS, G. W. S. et al. Tratado de saúde coletiva. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2012. p. 39-78.), algumas abordagens de promoção da saúde tenderiam a subestimar conflitos sociais e fatores macropolíticos na genealogia dos estados sanitários, além de valorizarem modificações pontuais, sem alterações no status quo; e sem enfatizar a importância estratégica de sistemas públicos de saúde, que apresentam grande impacto na expectativa e na qualidade de vida da população.

Por outro lado, Buss et al. (2020BUSS, P. M. et al. Promoção da saúde e qualidade de vida: uma perspectiva histórica ao longo dos últimos 40 anos (1980-2020). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 12, p. 4723-4735, 2020. DOI: 10.1590/1413-812320202512.15902020
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), mais recentemente, afirmaram que a promoção da saúde pode representar uma estratégia promissora para o enfrentamento dos problemas de saúde que afetam a população quando orientada pela articulação entre saberes técnicos e populares, mobilização de recursos institucionais e comunitários, públicos e privados a favor da qualidade de vida. Os(as) autores(as) relembraram proposições de sanitaristas do século XIX, como Villermé, na França; Chadwick, na Inglaterra; Virchow e Neumann, na Alemanha, para quem as causas das epidemias eram tanto sociais e econômicas como físicas; e que os remédios para estas seriam prosperidade, educação e liberdade. Na atualidade, destacaram o movimento dos municípios saudáveis, as ações intersetoriais, a saúde contemplada em todas as políticas e o enfrentamento dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS), concretizados por ações de promoção da saúde relacionadas às inovações na gestão pública para o desenvolvimento local integrado e sustentável.

Contudo, em ambos os posicionamentos, a participação social pode ser invisibilizada pela prescrição unilateral, seja quando se refere a mudanças sociais e do status quo de formas preconcebidas; seja quando empreende ações de promoção da saúde incapazes de reconhecer o outro nesse processo. Assim, como afirmam Heidemann et al. (2014HEIDEMANN, I. T. S. B.; WOSNY, A. M.; BOEHS, A. E. Promoção da saúde na atenção básica: estudo baseado no método de Paulo Freire. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 8, p. 3553-3559, 2014. DOI: 10.1590/1413-81232014198.11342013
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), promoção da saúde refere-se a um conceito abrangente que, para se materializar na prática, exige articulação intersetorial e envolve essencialmente o relacionamento com pessoas.

Considerações finais

No âmbito da saúde coletiva, pensar e planejar estrategicamente em saúde significa considerar propostas que materializem o direito social à saúde, em diferentes graus, ratificando seu caráter eminentemente público e valorizando a participação social, sem a qual as políticas de saúde perdem o sentido de atender necessidades humanas coletivas sob as quais se fundamentam e que devem orientá-las.

O estudo desenvolvido com os(as) gestores(as) públicos municipais reafirmou a complexidade da AB e da gestão em saúde neste nível de atenção. Verificou-se que a atuação dos(as) gestores(as) entrevistados refletiu dialeticamente a organização do sistema de saúde, ultrapassando a direção meramente volitiva44Relativo à vontade. de suas ações.

Observou-se que os(as) gestores(as) perspectivaram a AB como um nível de atenção que exige compromisso e dedicação acentuados, porém, sem muitas possibilidades de planejamento estratégico em razão das múltiplas demandas resultantes de deficiências na estrutura das UBS e no acesso integrado à RAS. Em acréscimo, a atuação na AB parece ter sido identificada pelos(as) gestores(as) com ações que excluem a necessidade de maior resolutividade para o adoecimento, como se o vínculo pessoal pudesse substituí-la, de alguma forma, nesse nível de atenção em saúde.

Nessa lógica, outros níveis de atenção seriam os responsáveis pelos sintomas apresentados pelos usuários(as). À AB caberia a prevenção de agravos, representada por ações estabelecidas pelos programas ministeriais e por campanhas pontuais. Merecem destaque as ações de promoção da saúde, mencionadas também pelos(as) gestores(as) como integrantes da AB, mas que se expressam verticalmente, estabelecendo uma contradição entre termos, caso a promoção seja compreendida em seu caráter intersetorial e participativo.

A investigação sugere a necessidade de maior qualificação para a gestão na AB, criação de espaços que fortaleçam a comunicação e a interação na RAS; e a inclusão de usuários(as) como cidadãos(ãs) ativos(as) e capazes de responder por aquilo que os(as) afeta e do qual participam diretamente, no âmbito dos serviços de saúde.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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  • 1
    Rede de Atenção à Saúde é definida como arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado (BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF, 2010., p. 4).
  • 2
    Considerou-se que a noção de fórmula,- ainda que comumente vinculada ao campo da Análise de Discurso de inspiração francesa -,poderia contribuir com a análise temática proposta ao organizar e sintetizar elementos tanto das entrevistas quanto dos registros das observações realizadas.
  • 3
    Estrutura foi considerada força de trabalho, insumos, estrutura física e tecnologias variadas.
  • 4
    Relativo à vontade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2021
  • Revisado
    01 Jun 2021
  • Aceito
    18 Jul 2021
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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