Grupos virtuais no enfrentamento do medo e da morte durante a epidemia de covid-19: contribuições da saúde coletiva11A pesquisa a que o projeto está vinculado foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa - CEP/UFRGS CAAE:36041520.5.0000.5334. Todos os participantes autorizaram a gravação de suas conversas e o uso dos dados em relatos de pesquisa.

Virtual groups in coping with fear and death during the covid-19 epidemic: contributions from public health

Stela Nazareth Meneghel Rafael Henrique Ribeiro Daniel Canavese de Oliveira Sobre os autores

Resumo

Este texto apresenta uma atividade grupal desenvolvida durante a epidemia de covid-19 em espaço virtual, com 13 participantes, estudantes e professores universitários. O objetivo foi oferecer um espaço de escuta protegido e criar estratégias para enfrentar a angústia e o medo decorrentes da epidemia. A ferramenta metodológica utilizada foi a intervenção grupal, realizada entre maio e agosto de 2020, que operou como uma rede de conversação. No grupo, produziu-se um diálogo horizontal com temas escolhidos conjuntamente e buscando soluções compartilhadas para diversos problemas. Este artigo analisa o diálogo ocorrido nos encontros em que se falou sobre o medo. Neles, os(as) participantes identificaram o medo da morte e da perda de pessoas amadas como aquele que desperta maior sofrimento, acentuado quando as pessoas estão distantes geograficamente. A avaliação mostrou que os encontros e os diálogos produziram alívio e bem-estar, e que trabalhar em plataforma virtual não constituiu empecilho à comunicação. Grupos de intervenção desenvolvidos em espaço virtual compõem metodologias de baixo custo, porém potentes, fáceis de operar e possíveis de serem nucleadas nos mais diversos coletivos.

Palavras-chave:
Grupos; Intervenções; Covid-19; Saúde Mental

Abstract

This paper describes a virtual group activity developed during the covid-19 pandemic with 13 university students and professors. Based on a group intervention operating as a conversation network, carried out between May and August 2020, the goal was to offer a safe listening space and to create strategies to cope with the anguish and fear resulting from the pandemic. The group engaged in horizontal dialogue on topics chosen jointly, seeking shared solutions to various problems. This article analyzes the dialogue that took place during meetings where fear was discussed. In these meetings, participants identified the fear of death and loss of loved ones as the feelings that arouse the most suffering, heightened when people are geographically distant. The analysis showed that such meetings and dialogues produced relief and well-being, and that working on a virtual platform did not hinder communication. Intervention groups developed virtually are low-cost yet powerful methodologies, easy to operate and possible to be implemented in the most diverse collectives.

Keywords:
Groups; Interventions; Covid-19; Mental Health

Introdução

Este texto apresenta uma atividade grupal realizada durante a epidemia de covid-19, aberta a estudantes e membros da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), cujos encontros ocorreram de maneira virtual.

As medidas de distanciamento social e isolamento recomendadas nos primeiros momentos da epidemia (Aquino et al., 2020AQUINO, E. M. L. et al. Medidas de distanciamento social no controle da pandemia de COVID-19: potenciais impactos e desafios no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, Supl. 1, p. 2423-2446, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020256.1.10502020
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) tiveram impacto imediato em alunos e professores, implicando um processo de reorganização da vida acadêmica, que passou a utilizar o ensino remoto e as tecnologias de ensino à distância de modo mais intenso. Rapidamente os estudantes manifestaram o desejo de retornar às atividades presenciais e de reencontrar colegas e professores, sentindo o peso do isolamento social e mostrando interesse em se manterem conectados com a universidade.

Epidemias de doenças infecciosas ao longo da história e mesmo na atualidade produzem, além da doença e da morte, grandes impactos econômicos e psicossociais. Em relação à epidemia de covid-19, acrescentam-se ao medo concreto de morrer as angústias provocadas pela desorganização familiar, pelo desemprego e perdas econômicas, além da necessidade de distanciamento social. As pessoas afetadas, principalmente em áreas de maior incidência da doença, as que pertencem a grupos de risco, as que estão em isolamento ou que perderam familiares podem apresentar níveis muito altos de sofrimento mental, incluindo depressão, angústia, irritabilidade, insônia, medo, pânico e estresse pós-traumático, presentes em pessoas saudáveis, mas agravados em pessoas com antecedentes psiquiátricos (Brooks et al., 2020BROOKS, S. K. et al. The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence. The Lancet, London, v. 395, n. 10227, p. 912-920, 2020. DOI: 10.1016/S0140-6736(20)30460-8
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; Faro et al., 2020FARO, A. et al. COVID-19 e saúde mental: a emergência do cuidado. Estudos de Psicologia , Campinas, v. 37, e200074, 2020. DOI: 10.1590/1982-0275202037e200074
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; Limcaoco et al., 2021LIMCAOCO, S. G. et al. Perceived stress in different countries at the beginning of the coronavirus pandemic. International Journal of Psychiatry in Medicine, Los Angeles, p. 1-14, 16 jul. 2021. DOI: 10.1177/00912174211033710
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; Ornell et al., 2020ORNELL, F. et al. “Pandemic fear” and COVID-19: mental health burden and strategies. Brazilian Journal of Psychiatry, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 232-235, 2020. DOI: 10.1590/1516-4446-2020-0008
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).

As perdas massivas de vidas humanas ocasionadas pelas pandemias alteram as expectativas relacionadas ao futuro, acarretando medo da própria morte ou de familiares, amigos e conhecidos. Na epidemia da covid-19, acentuou-se o medo de morrer no domicílio sem assistência médica, acrescido do temor de não poder participar dos ritos fúnebres e se despedir dos que morreram, dificultando o processo do luto (Eisma; Boelen; Lenferink, 2020EISMA, M. C.; BOELEN, P. A.; LENFERINK, L. I. M. Prolonged grief disorder following the Coronavirus (COVID-19) pandemic. Psychiatry Research, Amsterdam, v. 288, 113031, 2020. DOI: 10.1016/j.psychres.2020.113031
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). Mesmo as pessoas que não tiveram perdas concretas sofrem pelo medo de morrer e por empatia aos que perderam membros da rede socioafetiva (Crepaldi et al., 2020CREPALDI, M. A. et al. Terminalidade, morte e luto na pandemia de Covid-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas. Estudos de Psicologia, Campinas, v. 37, e200090, 2020. DOI: 10.1590/1982-0275202037e200090
https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e...
; Weir, 2020WEIR, K. Grief and COVID-19: mourning our bygone lives. American Psychological Association. 1 abr. 2020. APA News. Disponível em: <Disponível em: https://www.apa.org/news/apa/2020/04/grief-covid-19 >. Acesso em: 16 fev. 2022.
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).

Buscando acolher estudantes e membros da comunidade acadêmica e propiciar um espaço de escuta protegido para a expressão de sentimentos de angústia e medo, desencadeados pela pandemia de covid-19, organizou-se uma atividade grupal denominada “Falando sobre medos, angústias e violências”. Essa atividade de extensão foi pautada em um projeto de pesquisa mais amplo, adaptando a metodologia focada em grupos presenciais e organizando a proposta desses encontros em cenário virtual.

A ideia era fortalecer os(as) participantes frente à epidemia de covid-19, oferecer um espaço de escuta protegido, manter e reforçar o vínculo dos estudantes com a universidade no momento de trabalho remoto evitando a evasão e, se possível, criar estratégias para enfrentar a dor, a angústia, a tristeza e o medo.

O objetivo deste artigo é relatar parte da experiência dessa atividade de extensão, focando a discussão e os relatos sobre os sentimentos de medo e sobre a morte, procurando entendê-los e divulgar as estratégias realizadas para seu enfrentamento. Espera-se que o estudo possa contribuir e estimular a construção de outros grupos de apoio neste momento de epidemia.

Metodologia

Este relato de experiência faz parte de uma pesquisa denominada Rotas críticas: grupos de mulheres no enfrentamento às violências 2 . A proposta metodológica da pesquisa é usar o dispositivo grupal - o grupo intervenção - para a construção de estratégias coletivas de resistência em relação a mulheres em situação de violência. A adaptação dessa ferramenta para o meio virtual fez com que se ampliassem os sujeitos da pesquisa para incluir não apenas mulheres, mas também alunos e alunas da universidade com variadas orientações sexuais.

O grupo é entendido no seu aspecto social como uma estrutura básica de trabalho e investigação, uma instância de ancoragem do cotidiano e um espaço protegido. As forças interacionais internas dos grupos implicam sustentação e apoio socioemocional, comunicação aberta, compromisso, responsabilidade e participação efetiva, podendo, ainda, se constituir em espaços de compartilhamento de ideias, produções e criação artística (Benevides de Barros, 2013BENEVIDES DE BARROS, R. Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina, 2013.).

Buscou-se inspiração nos grupos organizados por mulheres desde a segunda onda do feminismo, em que as participantes partilhavam histórias de vida, problemas do cotidiano e investiam no cuidado de si. Esse tipo de grupo se propõe a um diálogo horizontal entre os(as) participantes com temas escolhidos conjuntamente e que os(as) afetam, buscando soluções compartilhadas para diversos problemas. Embora não se tratem de grupos psicoterápicos, eles podem produzir efeitos terapêuticos (Meneghel, 2014MENEGHEL, S. N. Contadores de histórias: uma experiência de grupos de mulheres. Athenea Digital, Barcelona, v. 14, n. 4, p. 113-128, 2014.).

Ana María Fernández (2006FERNÁNDEZ, A. M. O campo grupal: notas para uma genealogia. São Paulo: Martins Fontes, 2006.) utiliza a metáfora do nó para indicar os enodamentos-desenodamentos de subjetividades, os enlaces-desenlaces que se produzem nos acontecimentos grupais. Acontecimentos que são sempre coletivos, tensionando o singular-social em redes transdisciplinares e alinhados a epistemologias críticas.

Os grupos podem estimular a emersão de estratégias de resistência, na medida em que constituem espaços protegidos em que as pessoas podem falar dos problemas que as afligem, incluindo as angústias e os medos, e buscarem coletivamente caminhos e soluções para dar resposta a esses sentimentos (Meneghel; Iñiguez, 2007MENEGHEL, S. N.; IÑIGUEZ, L. Contadores de histórias: práticas discursivas e violência de gênero. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 8, p. 1815-1824, 2007. DOI: 10.1590/S0102-311X2007000800008
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).

O grupo referido neste trabalho se iniciou em maio de 2020 e perfez um total de dez encontros semanais com três horas de duração cada, sendo aberto à comunidade acadêmica da universidade. O trajeto do grupo compreendeu as seguintes etapas:

  1. (1) nucleação: esta etapa correspondeu aos primeiros encontros, em que houve a explanação da proposta e dos objetivos, apresentação dos coordenadores e participantes e exposição dos motivos que levaram as pessoas a buscar o grupo;

  2. (2) foco e enquadre: os temas geradores foram conceituados e relataram-se experiências e vivências relacionadas a esses temas; e

  3. (3) construção do caminho: a partir das reflexões e dos temas elencados, foi construído coletivamente o itinerário grupal.

Os encontros ocorreram em uma plataforma virtual da universidade, disponibilizando áudio e vídeo para os(as) participantes. Houve mais de 80 solicitações para participar da atividade e foram selecionados os 15 primeiros inscritos. A coordenação foi realizada por dois professores da universidade. Quatro pessoas deixaram de participar porque pensavam que seriam encontros de teor acadêmico, os demais permaneceram assíduos até o final da atividade. Foi organizado um grupo de WhatsApp, vigente até o momento da elaboração deste artigo.

As conversas foram gravadas e o texto resultante foi utilizado para a identificação dos temas discutidos e dos efeitos produzidos no grupo (Denzin; Lincoln, 2006DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Org.) O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.; Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9. ed. Rio de Janeiro: Hucitec, 2014.). Neste artigo, foram selecionados o conceito e as vivências referentes ao medo e analisadas as falas produzidas nos encontros em que esse assunto foi abordado, entendidas como um diálogo único.

Será reproduzido o diálogo em que os participantes falaram de seus medos, com o grupo operando como uma rede de conversação (Merhy et al., 2014MERHY, E. E. et al. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, v. 52, p. 153-164, 2014.) ou um espaço protegido, em que as pessoas contavam excertos de suas histórias de vida e se exercitava a dialogicidade no plural, procurando ouvir, acolher e aceitar.

Falando de medos e da morte

O grupo constituiu uma estratégia de intervenção em que os(as) participantes se reuniram semanalmente para conversar sobre si mesmos, suas vidas, afetos e trabalhos. Desde o início, o objetivo era saber como cada um estava vivendo o isolamento e propiciar um espaço para falar sobre os medos e as angústias, durante a epidemia de covid-19. Alguns seguiam trabalhando presencialmente em atividades essenciais no campo da saúde, usando transporte coletivo e os riscos e os medos, a princípio, eram diferentes entre os(as) participantes.

O grupo iniciou com 15 pessoas interessadas, porém alguns pensavam que seriam encontros teóricos, e, frente à proposta de experiência existencial, se afastaram após as primeiras sessões, permanecendo 13 pessoas: 11 estudantes de graduação, pós-graduação e ex-estudantes da universidade e dois professores. Os participantes eram oriundos das áreas de psicologia, enfermagem, direito, ciências sociais, comunicação, linguística, pedagogia e saúde coletiva. Havia cinco participantes do sexo masculino e oito do sexo feminino. A idade média dos estudantes era 31 anos e a dos professores, 52 anos. Todos participaram de todos os encontros e seguem se comunicando por meio eletrônico.

Nos primeiros encontros, as pessoas se apresentaram e falaram sobre suas expectativas; a seguir, discutiu-se o itinerário a ser percorrido e escolheu-se um conceito para ser abordado em cada encontro. O trabalho com os conceitos envolveu os aspectos teóricos pautados em leituras e escritas, acrescidos dos relatos de sentimentos, vivências e experiências em relação aos conceitos. Neste artigo, foca-se o medo e a morte, abordando os aspectos conceituais e as narrativas pessoais.

Os encontros eram dialógicos, funcionando como uma roda de conversa ou uma rede de conversação (Merhy et al., 2014MERHY, E. E. et al. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, v. 52, p. 153-164, 2014.) em que qualquer um poderia tomar a palavra e relatar suas experiências. Além disso, todos poderiam contribuir ou enunciar comentários sobre as falas do outro, mesclando com suas próprias reflexões e percepções, sempre seguindo as premissas da ética, da confidencialidade e do respeito.

Neste texto reproduziremos o diálogo ocorrido em dois encontros, em que se falou sobre o medo. As falas foram produzidas em um diálogo coletivo e quase todos os participantes se referiam ao(s) turno(s) de fala anterior(es). Para entender o processo em sua totalidade, serão reproduzidos excertos de todas as conversas, mostrando como as falas foram elaboradas e encadeadas.

Para realizar essa análise, nos pautamos nos conceitos de redes vivas ou redes de conversação, formulados por Merhy et al. (2014MERHY, E. E. et al. Redes Vivas: multiplicidades girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do cuidado e a produção do conhecimento em saúde. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, v. 52, p. 153-164, 2014.). Essa perspectiva considera que os discursos se mesclam ou se transversalizam em multiplicidades que operam na constituição de redes vivas, estabelecidas entre os falantes no território das conexões existenciais.

O grupo com que trabalhamos produziu narrativas de si, vivas, dolorosas e confessionais, em que os narradores se perscrutaram a si mesmos. Orientados pelas reflexões de Gomes e Merhy (2014GOMES, M. P. C.; MERHY, E. E. (Org.) Pesquisadores In-Mundo: um estudo da produção do acesso e barreira em saúde mental. Porto Alegre: Rede Unida, 2014., p. 161), nos deixamos “guiar pelas trajetórias, pelos caminhares dos indivíduos nas produções de si, na micropolítica dos encontros que compõe uma existência”, em que os participantes foram os guias para delinear os caminhos, escolher o que dizer e contar as histórias.

A conversa começa com uma participante, que assume publicamente, em um depoimento que teve o efeito de uma denúncia, o quanto ela sente medo por conta de ser uma mulher negra vivendo em um país racista, “um país mico”, diz ela, usando ironia. Ela enfatiza três palavras: medo, mico e negra. Nesse depoimento que abriu a discussão, a participante não teve medo de usar as palavras e funcionou como um gatilho para a eclosão da conversa e das emoções que atravessaram os relatos:

Eu tenho medo, óbvio que eu tenho medo, muito MEDO. Eu moro no Brasil, um país MICO, esse país não nos ajuda e eu sou uma mulher NEGRA e nós temos uma máxima entre nós, é nós por nós, se nós não fizermos alguma coisa ninguém vai fazer. […] Eu tenho muito medo sim, mas eu vou ficar com mais medo e sou capaz de ter pensamento suicida se ficar dentro de casa, então eu vou ajudar as pessoas que estão numa situação pior que a minha, pessoas que não conseguem se defender, então é isso que eu vou externar: eu tenho medo, mas eu consigo me defender, tem pessoas que têm medo e não conseguem se defender. (EK, mulher, negra, aluna da pós-graduação)

A segunda participante a falar, cujo enunciado constitui o par adjacente ou uma resposta ao primeiro turno de conversação (Ostermann; Meneghel, 2012OSTERMANN, A. C.; MENEGHEL, S. N. (Org.). Humanização, gênero, poder: contribuições dos estudos de fala-em-interação para a atenção à saúde. Campinas: Mercado de Letras; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012.), fala do medo usando um sonho como tela de projeção. Essa referência ao sonho parece ter apontado o caminho para que vários participantes fizessem referências oníricas, usando os sonhos como material de análise para falar de seus medos:

Por estar em isolamento, eu acho que consigo maturar todos esses sentimentos. Eu tenho um sonho que me persegue desde sempre e que me causa muito medo: eu estou no breu e vejo alguns rostos familiares da minha família e eu tento me comunicar com essas pessoas e elas não me ouvem e nem me veem. É um completo isolamento e esse é um dos sonhos que me aterrorizam. (KS, mulher, negra, aluna e servidora)

O relato desse sonho, mas principalmente o termo maturar, provocou uma observação de uma das coordenadoras da atividade grupal, reforçando a atitude de autoconhecimento da sonhadora:

Oportuno esse verbo que você usou em relação aos sentimentos: você disse que teve um tempo para maturar os sentimentos. Quando a gente matura os sentimentos, eles podem se tornar mais claros, mais prontos para serem colhidos e para serem entendidos. (SN, mulher, branca, professora)

O verbo em questão, maturar, seguiu sendo usado no diálogo, agora para introduzir a morte na conversa. O medo, o tema em pauta, não é mencionado nesta fala que produz uma crítica ao estilo de vida da sociedade no sistema capitalista, que não permite que as pessoas tenham tempo para ir ao velório de um ente querido. Fazendo uma comparação, na epidemia as pessoas também não são autorizadas a permanecer muito tempo nos funerais, rápidos e despersonalizados, para se despedir de pessoas que partiram:

Sobre essa questão de maturar os sentimentos que ela falou, eu fico pensando quando uma pessoa próxima morre a gente pensa em dar só uma passada no velório na hora do almoço ou entre fazer uma coisa e outra. A gente tem uma vida tão absurdamente cheia de tarefas que não pode estar perto de quem a gente gosta que está sofrendo e não consegue parar nem quando alguém perto da gente morre. (AL, mulher, branca, ex-aluna)

A próxima participante continua a reflexão sobre os rituais de morte, questionando o porquê de ir ao enterro de uma pessoa com quem o contato era superficial em vida, mas ainda não há menção ao medo:

Eu vou começar a minha fala com essa última fala da AL e pergunto qual é o significado de eu ir no velório de uma pessoa para quem eu deixei de mandar uma mensagem ou de procurá-la quando estava em vida? (G, mulher, branca, aluna da pós-graduação)

De qualquer maneira, referências a velórios e funerais nos fazem pensar na morte e sinalizam o medo que nos assombra neste momento da epidemia, denominada uma “epidemia de medo” (Ornell et al., 2020ORNELL, F. et al. “Pandemic fear” and COVID-19: mental health burden and strategies. Brazilian Journal of Psychiatry, São Paulo, v. 42, n. 3, p. 232-235, 2020. DOI: 10.1590/1516-4446-2020-0008
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). Nas duas falas anteriores, a morte não é mencionada diretamente, mas ao trazer a questão do desaparecimento das pessoas amadas e do questionamento de que se vive em uma sociedade em que não há mais tempo para ir ao velório de pessoas queridas, fica implícito que o medo de perder essas pessoas é o medo de que elas morram. O medo da morte que a epidemia escancarou tornou-se real, no aqui e no agora (Eisma; Boelen; Lenferink, 2020EISMA, M. C.; BOELEN, P. A.; LENFERINK, L. I. M. Prolonged grief disorder following the Coronavirus (COVID-19) pandemic. Psychiatry Research, Amsterdam, v. 288, 113031, 2020. DOI: 10.1016/j.psychres.2020.113031
https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020....
; Weir, 2020WEIR, K. Grief and COVID-19: mourning our bygone lives. American Psychological Association. 1 abr. 2020. APA News. Disponível em: <Disponível em: https://www.apa.org/news/apa/2020/04/grief-covid-19 >. Acesso em: 16 fev. 2022.
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).

O próximo turno de fala, de um jovem do sexo masculino, volta a trazer para a roda e para a rede a questão do medo. A construção da fala começa com a asserção de que o falante tem muito medo, mas em vez de dizer o que ele teme, o jovem prefere fazer uma afirmação genérica dizendo que “as mães têm medo de que os filhos morram, de enterrar os filhos”. Depois dessa explicação, menciona o “seu” medo, que se inverteu, já que a epidemia acena para os mais velhos como grupo em maior risco, então o medo que o assombra é o de que os pais, ou mais especificamente a mãe, possam morrer:

Uma situação que eu tenho muito medo é que, por exemplo, os pais e as mães têm muito medo de perder os seus filhos, de enterrar os seus filhos, mas no meu caso é o contrário como eu sou muito apegado à minha mãe eu tenho muito medo de perder ela, eu morro de medo dela falecer agora. (RH, homem, negro, aluno da pós-graduação)

AH, estudante da pós-graduação, cuja família vive no Nordeste brasileiro, a partir da deixa do participante anterior, conta a longa história de um amigo, nordestino como ele, que não pôde ir ao enterro da mãe, devido à situação da epidemia. O temor é o mesmo: o medo da morte, da morte próxima de uma pessoa amada. A epidemia rasga a venda diante dos olhos acerca do momento da morte, distante e impessoal, para trazê-la ao tempo presente, despertando uma angústia e um sofrimento agudos e, como mencionado em pesquisas, às vezes incontroláveis (Brooks et al., 2020BROOKS, S. K. et al. The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence. The Lancet, London, v. 395, n. 10227, p. 912-920, 2020. DOI: 10.1016/S0140-6736(20)30460-8
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30...
; Mertens et al., 2020MERTENS G. et al. Fear of the coronavirus (COVID-19): predictors in an online study conducted in March 2020. Journal of Anxiety Disorders, Amsterdam, v. 74, 102258, 2020. DOI: 10.1016/j.janxdis.2020.102258
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):

Eu quero pegar esse comentário do RH que tem a ver com o que eu estava pensando, quando você fala no medo que você tem de perder a sua mãe. Tenho um amigo que está morando aqui em Porto Alegre e a mãe dele faleceu de covid em Fortaleza. Fazia sete meses que ele não via a mãe e ele não pôde ir. Pelo contexto da covid, mesmo que fosse, ele não ia conseguir enterrar a mãe porque não pode ter velório. E eu fiquei assim, gente, eu também estou aqui em Porto Alegre e a minha mãe lá no Ceará. E ou a gente vai enterrar a mãe da gente ou ela vai ter a gente vivo. (AH, homem, pardo, aluno da pós-graduação)

O diálogo grupal permite que os sentimentos venham à tona, mesmo os escondidos, temidos e vergonhosos. Verbalizar, quebrar o silêncio, contar para o outro, publicizar significam também romper o medo de se expor, deixar a palavra aflorar e poder sentir o alívio. O mesmo sentimento de RH, o medo de não ver mais a mãe e não poder ir ao funeral se ela morrer, reverbera e repercute em BM, estudante de enfermagem, que relata uma vivência similar, temendo pela vida do pai, que mora no Norte do país:

Eu queria pegar o gancho dos meus colegas que acabaram de falar, me vem isso na cabeça, o meu pai mora em Manaus e eu sempre tive, que nem o RH, o medo de perder meu pai e nessa quarentena logo que começou não tinha tido muitos casos e, de repente, Manaus virou um colapso e aquilo me deu um medo que eu já tinha e qualquer coisa que acontecer, como é que eu vou falar com meu pai? Eu já tinha todas as angústias, todas as questões do próprio isolamento. Como eu vou domar isso para não se tornar algo que ultrapasse a minha capacidade de suportar? Algo que me consuma demais, isso me afeta muito e o medo é muito real mesmo. (BM, mulher, branca, aluna da graduação)

BM pergunta, na polifonia do grupo, como ela vai fazer para “domar” o medo e a angústia que a assaltam e podem ultrapassar sua capacidade de suportar. Ninguém no grupo se atreve a responder, não há resposta. Há apenas o espaço de escuta solidária, atenta e emocionada.

No turno seguinte da conversação, AT faz coro com BM, acrescentando o medo de não poder ir ao encontro da filha, que também mora longe, caso ela precise, e usa para a epidemia e para o medo que ela desperta a metáfora de “monstro grande que a faz sentir-se pequena”:

Sem dúvida, domar é usada para algo horrível, algo que nos ameaça e BM falou isso e me lembrou que uma de minhas filhas mora longe e nesse momento me dá muito medo porque se acontecer alguma coisa eu não vou poder ir lá, se ela precisar de mim, antigamente se ela precisasse de mim por mais que fosse caro, por mais que demorasse a gente dava um jeito, mas agora não dá, se eu precisar dela ela também não vai poder vir, então é um monstro bem grande sabe eu chego me encolher ao falar porque é uma coisa que assusta bastante mesmo. (AT, mulher, branca, graduanda em saúde coletiva)

A ansiedade e o medo que ocorrem quando pessoas queridas estão em risco têm sido acontecimentos comuns nesta e em outras epidemias (Mertens et al., 2020MERTENS G. et al. Fear of the coronavirus (COVID-19): predictors in an online study conducted in March 2020. Journal of Anxiety Disorders, Amsterdam, v. 74, 102258, 2020. DOI: 10.1016/j.janxdis.2020.102258
https://doi.org/10.1016/j.janxdis.2020.1...
; Raony et al., 2020RAONY, I. et al. Psycho-neuroendocrine-immune interactions in COVID-19: potential impacts on mental health. Frontiers in Immunology, Lausanne, v. 11, 1170, 2020. DOI: 10.3389/fimmu.2020.01170
https://doi.org/10.3389/fimmu.2020.01170...
) e estudos apontam situações de medos similares às narrações ouvidas no grupo. Nessas pesquisas, dentre os fatores que aumentam a vulnerabilidade das pessoas, aparece a dificuldade em tolerar incertezas, a preocupação com a saúde e o acompanhamento contínuo de mídias sociais (Lung et al., 2009LUNG, F. W. et al. Mental symptoms in different health professionals during the SARS attack: a follow-up study. The Psychiatric Quarterly, New York, v. 80, n. 2, p. 107-116, 2009. DOI: 10.1007/s11126-009-9095-5
https://doi.org/10.1007/s11126-009-9095-...
; Mertens et al., 2020).

AH retoma a palavra e faz a síntese: o monstro que assusta e apavora, o monstro que precisa ser domado, e talvez não haja força para tal, é a constatação da nossa finitude, é a morte que ronda lá fora e colocou sua cara na porta:

Esse momento que a gente está vivendo da pandemia dá uma ideia da nossa finitude, agora parece que ela está gritando ao nosso lado. No começo era só um número, não gente, agora acho que todos nós temos alguém próximo, já chegou na gente então quando chega,fica claro essa coisa da finitude. O medo para mim nesse momento não tem como desassociar da morte. Talvez se eu estivesse em outra ocasião não fosse assim, mas nesse momento o medo que eu tenho é o medo da morte. (AH, homem, pardo, aluno da pós-graduação)

No relato seguinte à constatação do medo da morte, o participante, embora inicie o depoimento dizendo que, após vivências que lhe produziram muito sofrimento, poucas coisas lhe produzem medo atualmente, assume que não teme a morte em si, mas a forma como ela pode ocorrer. Porém, encarar a possibilidade da nossa própria morte e das pessoas que amamos é quase da ordem do insuportável, sobretudo quando se leva em consideração o atual contexto cultural em que vivemos (Barbosa; Francisco; Efken, 2008BARBOSA, L. N. F.; FRANCISCO, A. L.; EFKEN, K. H. Morte e vida: a dialética humana. Aletheia, Canoas, v. 28, p. 32-44, 2008.).

Temer uma morte ruim, suplicar e pedir por uma boa morte é uma preocupação milenar da humanidade, aparecendo inclusive em relatos literários (Camus, 1947CAMUS, A. La peste. Paris: Gallimard, 1947.). A epidemia de covid-19 fez com que as pessoas voltassem a sentir pavor de uma morte dolorosa, solitária, sufocante e com falta de ar. O vírus tem a cara da época em que estamos, diz o filósofo Han (2021HAN, B. C. Teletrabalho, zoom e depressão: o filósofo Byung-Chul Han diz que exploramos a nós mesmos mais do que nunca. El País, Madrid, 22 mar. 2021. Cultura. Ideias. Disponível em: <Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2021-03-23/teletrabalho-zoom-e-depressao-o-filosofo-byung-chul-han-diz-que-nos-exploramos-mais-que-nunca.html >. Acesso em: 11 fev. 2022.
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), em que vivemos e morremos solitários:

Depois que a gente vive um pesadelo, poucas coisas podem te dar medo. Quando eu digo que eu vivi o meu pior pesadelo eu me refiro ao suicídio de minha mãe, uma coisa devastadora na minha vida. Ainda vivo um processo de luto e, quando eu pensei que poucas coisas poderiam me dar medo depois disso, eu vi que estava errado, pois eu ainda sinto muitos medos. […] Eu não tenho medo da morte em si, mas sim da forma como isso vai acontecer. […] Eu agradeço a vocês por poder compartilhar essa pequena parte da história, por me sentir confiante para compartilhar, isso me traz alívio. (FB, homem, branco, ex-aluno)

A menção ao suicídio abriu a possiblidade de incluir a violência na conversa e AL, que havia feito uma crítica acerca da sociedade capitalista em que a vida é pautada pelo trabalho e não sobra tempo nem para ir ao funeral de um amigo, fala do suicídio do avô, mas também do pânico que começou a sentir depois que seu pai morreu durante uma viagem e ela não chegou a tempo para o funeral. Aparece outra vez o medo de ter que viajar para atender uma situação de gravidade e não haver possibilidade, devido ao isolamento demandado pela epidemia:

Meu avô também se suicidou, para mim foi mais fácil porque eu entendi que ele estava pondo fim no sofrimento que a doença tinha imposto para ele. Eu também tenho esse medo de um dia me suicidar. […] Eu queria compartilhar mais uma coisa, eu tenho medo de me expor, mas depois do primeiro encontro eu entendi a proposta do grupo e a fala de vocês me deixou com coragem de compartilhar a minha história, é que o meu pai faleceu quando eu não estava perto. Dois anos atrás eu fui para um congresso e o meu irmão me liga e me diz: o pai enfartou e não resistiu. Foi difícil sair de lá e esta é uma coisa que não está bem resolvida para mim. Depois disso, eu não consegui mais fazer viagens longas, eu fico em pânico. (AL, mulher, branca, ex-aluna)

A intervenção de uma das proponentes da ação, talvez extemporânea, expressa em palavras o desejo de consolar e de acolher:

A gente demora às vezes para metabolizar, que é a palavra que eu uso, não sei se é a mais apropriada, quando ouvimos relatos tão verdadeiros e tão intensos, que causaram tanto sofrimento. As situações que vocês trazem e que todos vivemos outras parecidas, elas nos tocam, às vezes volta a dor, volta o medo, mas o fato de compartilharmos e os sentimentos serem semelhantes, de certa maneira, nos conforta e nos consola. (SN, mulher, branca, professora)

BK gentilmente sinaliza que sim, que processar o sofrimento não é algo rápido, não é fácil. BK retoma o sentimento de medo da morte de um familiar querido, sua mãe:

Como tu falou, demora para processar os relatos e me vêm muitas memórias com os relatos de vocês, tem muitas coisas que já aconteceram e muitas situações que me puseram medo. Alguns de vocês disseram que tinham dificuldade para encontrar situações de medo e eu fiquei pensando: “nossa, eu tenho muitos exemplos de situações que já passei de medo”. A mais recente é sobre minha mãe que é profissional de saúde, este medo é parecido com o que o RH sente, esse temor em relação à pandemia porque minha mãe está na linha de frente e ela já teve contato com pessoas que se contaminaram. Nesta semana a primeira paciente que ela teve contato faleceu e aí essa espera para aguardar o resultado do exame. É uma agonia misturada com medo. Justamente agora que as coisas se acalmaram e a gente está bem, alguma coisa se atravessa e enfim esse é o medo que tem sido constante durante essa pandemia. (BK, homem, branco, aluno da pós-graduação)

Na tessitura grupal, na polifonia do grupo, em cada turno de conversação fez-se referência à palavra do outro, à palavra que reverbera em cada um e volta acrescida da singularidade do narrador. Na conversa que segue, há novas referências aos sonhos, ao onírico, ao caminho do inconsciente e das imagens:

Nesse período eu também tenho tido pesadelos ou sonhos que me fazem perder o sono e acordo para trabalhar. Eu tenho trabalhado incessantemente e eu nunca tinha passado por isso: perder o sono por causa dos pesadelos e ficar trabalhando durante noites inteiras. Por outro lado, eu tenho tido mais produções e ideias nesse período, em que acordo assustado e fico trabalhando até o dia raiar… (DC, homem, branco, professor)

Os sonhos são muito ricos, são polissêmicos, podem ter muitos sentidos inclusive para o sonhador, em momentos diferentes da vida. Neste grupo a gente vai se abastecendo com as memórias e os sonhos uns dos outros. Vamos trabalhando como se estivéssemos tecendo num tear. Vivemos em uma sociedade que as pessoas não têm tempo para o outro, não têm tempo para si. Aqui no grupo há a possibilidade de um tempo para nós. (SN, mulher, branca, professora)

Os sentimentos de angústia e medo e as violências, que eram a chamada para esses encontros, acrescidos pela presença da morte, foram expressos durante todo o trajeto e os(as) participantes continuam se encontrando em espaço virtual, mantendo o grupo vivo até o momento da escrita deste relato.

A discussão sobre o medo, que trouxe a morte como referência principal aos sentimentos de angústia e ao sofrimento intenso que todos afirmaram estar vivendo, talvez tenha sido capaz de produzir algum alívio, como expressou um dos participantes:

Eu estava pensando nas coisas que vocês disseram e não quero generalizar, mas todas as histórias que nós compartilhamos uns com os outros nos tornam pessoas mais fortes. Agradeço às pessoas que comentaram minha história, mas o principal foi poder ter conseguido compartilhar com vocês. Eu sei que todos que estão aqui ouviram assim como eu ouvi as histórias de vocês. Um dos passos mais importantes no meu processo de cura e recuperação é estar aqui com vocês. (FB, homem, branco, ex-aluno)

A rede de conversação permitiu que esses sentimentos fossem expressos, compartilhados e, de certa maneira, redimensionados e aceitos, já que as tensões presentes entre a produção da vida e da morte, agudizadas pela epidemia, estão presentes no modo de levar a vida de todos nós, de suportar o isolamento, de fazer frente aos medos e de encarar a morte.

Alunos ou professores, em isolamento ou na linha de frente, jovens ou velhos, ninguém está livre dessas afecções, pelo contrário, muitas vezes é com base nelas que a produção do cuidado de si e do outro é construída, inclusive nos encontros virtuais, como o que relatamos aqui.

Considerações finais

Muitos dos relatos, como os sumarizados anteriormente, foram escritos e lidos nas rodas de conversa. Escrever sobre eles foi uma ideia que partiu dos próprios participantes do grupo. Poderíamos então afirmar que o processo grupal constituiu, embora não se tenha pensado nisso ao iniciar o trabalho, uma oficina de escrita de sentimentos (Meneghel et al., 2020MENEGHEL, S. N. et al. (Org.) Antimanual para enfrentar a covid-19: falando de medos, angústias e violências. Porto Alegre: Rede Unida , 2020.), em que o ato de escrever acenou para a perspectiva de ressignificação de dores, violências e preconceitos sofridos ao longo das vidas, e de antídoto - se é que se pode usar essa palavra - para as angústias e o medo desencadeados pela epidemia.

Uma questão operacional que nos inquietava ao propor essa atividade era o quanto as pessoas participariam e se vinculariam a um grupo virtual, principalmente no que tange à confiança para narrar episódios pessoais, sentimentos e experiências dolorosas. Essa preocupação se mantinha, mesmo sabendo que as plataformas e mídias sociais têm sido cada vez mais utilizadas no campo da saúde e da educação, que desenvolvem iniciativas criativas, inovadoras e ousadas, fortalecendo a interface entre comunicação, ciência e sociedade (Curran et al., 2017CURRAN, V. et al. A review of digital, social, and mobile technologies in health professional education. The Journal of Continuing Education in the Health Professions, Philadelphia, v. 37, n. 3, p. 195-206, 2017. DOI: 10.1097/CEH.0000000000000168
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).

Acreditamos que a plataforma virtual funcionou e permitiu uma troca inclusive energética e afetiva entre membros e membras do grupo. Apesar de alguns pensadores acreditarem que o virtual permanece seco e formal, incapaz de transmitir sentimentos e criar laços, funcionando como uma selfie, solitária e narcísica, em que cada um olha só para sua imagem ad nauseam (Han, 2021HAN, B. C. Teletrabalho, zoom e depressão: o filósofo Byung-Chul Han diz que exploramos a nós mesmos mais do que nunca. El País, Madrid, 22 mar. 2021. Cultura. Ideias. Disponível em: <Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2021-03-23/teletrabalho-zoom-e-depressao-o-filosofo-byung-chul-han-diz-que-nos-exploramos-mais-que-nunca.html >. Acesso em: 11 fev. 2022.
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), consideramos que mesmo atrás do écran do computador é possível romper o isolamento e se aproximar. Como na Matrix, afirmamos - esperançosos - em outro texto (Meneghel et al., 2020MENEGHEL, S. N. et al. (Org.) Antimanual para enfrentar a covid-19: falando de medos, angústias e violências. Porto Alegre: Rede Unida , 2020.).

Para reforçar a asserção da possibilidade de comunicação virtual, na medida em que se consolidava como coletivo e rede, o grupo se configurou de maneira tal que estabeleceram relacionamentos horizontais e não hierárquicos entre os participantes, ressaltando-se o reconhecimento, o respeito e a aceitação do outro; o interesse em relação à história de vida dos participantes entre si; a escuta ativa; e o diálogo e o compartilhamento de experiências, de vivências, de sentimentos e de aflições (França; Rabello; Magnago, 2019FRANÇA, T.; RABELLO, E. T.; MAGNAGO, C. As mídias e as plataformas digitais no campo da educação permanente em saúde: debates e propostas. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 1, p. 106-115, 2019. Edição especial. DOI: 10.1590/0103-11042019S109
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; Recuero, 2014RECUERO, R. Curtir, compartilhar, comentar: trabalho de face, conversação e redes sociais no Facebook. Verso e Reverso, São Leopoldo, v. 28, n. 68, p. 114-124, 2014. DOI: 10.4013/ver.2014.28.68.06
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).

As oficinas e os grupos, usando o diálogo e as mais variadas possibilidades de produções, facilitam o insight e a elaboração de questões subjetivas, interpessoais e sociais (Meneghel, 2014MENEGHEL, S. N. Contadores de histórias: uma experiência de grupos de mulheres. Athenea Digital, Barcelona, v. 14, n. 4, p. 113-128, 2014.). Além disso, constituem uma ferramenta pedagógica potente, que possibilita a transferência de saberes segundo o eixo da metáfora e não da analogia, a modo de uma epistemologia crítica (Fernández, 2006FERNÁNDEZ, A. M. O campo grupal: notas para uma genealogia. São Paulo: Martins Fontes, 2006.). Diante dos resultados e dos efeitos, pensando na facilidade e no baixo custo de operar esses grupos, que podem ser organizados nos mais diversos coletivos, entre alunos, professores, profissionais, trabalhadores, dentre outros, espera-se que experiências como esta sejam reproduzidas, adaptadas, refeitas e disseminadas.

Por fim, ainda pensando no medo e querendo aceitá-lo, expô-lo, não ter vergonha de senti-lo, desafiá-lo e vencê-lo, sem medo de ser feliz, mesmo que temporariamente, “vale a pena lembrar que se o medo é contagioso a coragem também o é” (Agualusa, 2021AGUALUSA, J. E. A orquestra imaginária. O Globo, Rio de Janeiro, v. 96, n. 32.009, 27 mar. 2021. O Globo Cultura, p. 6 ., p. 6 ).

Referências

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  • 1
    A pesquisa a que o projeto está vinculado foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa - CEP/UFRGS CAAE:36041520.5.0000.5334. Todos os participantes autorizaram a gravação de suas conversas e o uso dos dados em relatos de pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2021
  • Revisado
    23 Set 2021
  • Aceito
    08 Nov 2021
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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