Dinâmica entre potenciais de fortalecimento e desgaste na vida de jovens da escola pública: pesquisa-ação com oficinas emancipatórias

Sheila Aparecida Lachtim Carla Andrea Trapé Heitor Martins Pasquim Cássia Baldini Soares Sobre os autores

Resumo

O objetivo desta pesquisa é analisar a dinâmica entre os potenciais de fortalecimento e desgaste inerentes às condições de reprodução social de jovens escolares. Com base no Materialismo Histórico-Dialético, em particular, na Teoria da Determinação Social da Saúde, a análise considerou as dimensões universal, particular e singular da totalidade social. Trata-se de pesquisa-ação, desenvolvida em 13 oficinas emancipatórias, durante um período de cinco meses, com 12 alunos do ensino médio de uma escola pública da cidade de São Paulo, Brasil. As condições de reprodução social expuseram as configurações familiares dos participantes, que sofrem com a precarização do trabalho e o desemprego, a ausência ou inconsistência de apoio paterno e o precário processo de ressocialização e sociabilidade. Os jovens discutiram as inseguranças e dificuldades que enfrentam nos territórios onde vivem, os conflitos familiares, as repercussões das pressões sociais para enfrentar o futuro, o lugar da escola e da família em suas vidas, além de dúvidas sobre sexualidade e uso de drogas. A pesquisa-ação emancipatória permitiu aos participantes irem além da aparência, e revelou a essência da realidade dos jovens, mostrando que a perspectiva da emancipação está pautada no entendimento das dimensões singular, particular e universal das relações sociais.

Palavras-chave:
Juventude; Saúde Coletiva; Reprodução Social; Pesquisa Ação

Introdução

A juventude vem sendo cada vez mais atingida pelas desigualdades sociais no capitalismo neoliberal, deparando-se com intensa desvalorização social, dificuldades de participar da riqueza socialmente produzida, por meio da inserção no mercado de trabalho, e, em última instância, de perspectivar o futuro (Selau; Kovaleski; Paim, 2020SELAU, B. L.; KOVALESKI, D. F.; PAIM, M. B. Promoção da saúde de crianças e adolescentes em uma Organização da Sociedade Civil: refletindo sobre os valores e a formação profissional. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, e00303135, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00303
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol003...
).

Em todo o mundo, entre os(as) jovens, 30% das mulheres e 13% dos homens estavam sem emprego, educação ou treinamento para o mundo do trabalho, em 2018, e não há perspectiva de melhora dessa situação (ILO, 2019ILO - INTERNATIONAL LABOUR OFFICE. World employment and social outlook: trends 2019. Geneva: International Labour Office, 2019.), pois as políticas neoliberais incentivam empregos temporários, de baixa qualificação e baixos salários, e dessa forma agudizam o ciclo de desigualdades (Selau; Kovaleski; Paim, 2020SELAU, B. L.; KOVALESKI, D. F.; PAIM, M. B. Promoção da saúde de crianças e adolescentes em uma Organização da Sociedade Civil: refletindo sobre os valores e a formação profissional. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, e00303135, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00303
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol003...
).

No Brasil, a taxa de desocupação de jovens de 14 a 29 anos vem crescendo, e observa-se descumprimento de metas educacionais, visto que quase 13% dos jovens de 15 a 17 anos permanecem fora da escola (Falcão; Díaz, 2019FALCÃO, M. C.; DÍAZ, L. A. Aprendizagem profissional inclusiva como estratégia de combate ao trabalho infantil e promoção do emprego juvenil. In: IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Mercado de trabalho: conjuntura e análise. Brasília, DF: Ministério do Trabalho, 2019. p. 105-113.). Na faixa etária de 20 a 24 anos, 27% não estudam, nem trabalham e nem se capacitam (Costa; Rocha; Silva, 2018COSTA, J.; ROCHA, E.; SILVA, C. Voces de la juventud en Brasil: aspiraciones y prioridades. In: NOVELLA, R. et al. (Eds.). Millennials en América Latina y el Caribe: ¿trabajar o estudiar? Washington, D.C.: BID, 2018. p. 75-120.). Além disso, os(as) jovens brasileiros(as) têm quatro vezes mais probabilidade do que os adultos de ficarem desempregados (S4YE, 2015S4YE - Solutions for Youth Employment. Toward solutions for youth employment: a 2015 baseline report. Washington, DC: International Labour Organization, 2015.).

A mortalidade precoce compõe a trágica realidade juvenil. Relatório da Organização Pan-Americana de Saúde (OPS, 2018OPS - ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD. La salud de los adolescentes y jóvenes en la región de las Américas: la aplicación de la estrategia y el plan de acción regionales sobre la salud de los adolescentes y jóvenes (2010-2018). Washington, DC: Organización Panamericana de la Salud; Organización Mundial de la Salud, 2018.) mostra que metade de todas as mortes entre jovens se deve a acidentes de trânsito, suicídios e homicídios.

A taxa de homicídio brasileira alcançou 69,9 para cada 100 mil jovens (Ipea, 2019IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência 2019. Brasília, DF; Rio de Janeiro; São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.), evidenciando a dramática violência com arma de fogo que atinge os(as) jovens (Pinto et al., 2020PINTO, I. V. et al. Adolescências feridas: retrato das violências com arma de fogo notificadas no Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 23, supl. 1, e200002, 2020. DOI: 10.1590/1980-549720200002.supl.1
https://doi.org/10.1590/1980-54972020000...
). São os(as) jovens dos espaços periféricos que estão perdendo suas vidas de forma violenta, como resultado da dinâmica entre concentração de capital e desigualdade social, que se reproduz por meio de forte hierarquização e segregação racial. O capital demanda do Estado processos que intervenham sobre esse grande contingente de indivíduos que não “contribuem” com a reprodução do capital, o que é realizado pelo massacrante exercício do poder punitivo que recai sobre a juventude das periferias das grandes cidades (Morais, 2018MORAIS, R. F. As relações entre punição e estrutura social no Brasil: a prática de extermínio e o racismo como “modo de ser” do sistema penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 139, p. 247-276, 2018.).

A implementação de políticas e diretrizes para a operacionalização de ações de proteção aos(às) jovens no Brasil continua precária, ainda que o Estatuto da Juventude tenha sido promulgado no início deste século (Ribeiro; Macedo, 2018RIBEIRO, E.; MACEDO, S. Notas sobre políticas públicas de juventude no Brasil: conquistas e desafios. Revista de Ciências Sociais, Montevideo, v. 31, n. 42, p. 107-126, 2018. DOI: 10.26489/rvs.v31i42.5
https://doi.org/10.26489/rvs.v31i42.5...
), e há fortes evidências do caráter compensatório, focalizado e fragmentado da proteção oferecida (Pasquim; Campos; Soares, 2016PASQUIM, H. M.; CAMPOS, C. M. S.; SOARES, C. B. Projetos voltados aos jovens em instituições sociais: atividades fragmentadas e desresponsabilização do poder público. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 198-205, 2016. DOI: 10.1590/S0104-12902015139991
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201513...
).

O acirramento do neoliberalismo no país trouxe mais retrocesso às políticas para a juventude (Selau; Kovaleski; Paim, 2020SELAU, B. L.; KOVALESKI, D. F.; PAIM, M. B. Promoção da saúde de crianças e adolescentes em uma Organização da Sociedade Civil: refletindo sobre os valores e a formação profissional. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, e00303135, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00303
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol003...
). Após as eleições de 2018, a articulação de bancadas conservadoras e neoliberais, que ampliou sua representação política no parlamento brasileiro, vem cada vez mais interferindo deleteriamente nos principais temas sociais, culturais e educacionais (Lima; Hypolito, 2019LIMA, I. G.; HYPOLITO, A. M. A expansão do neoconservadorismo na educação brasileira. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 45, e190901, 2019. DOI: 10.1590/S1678-463420194519091
https://doi.org/10.1590/S1678-4634201945...
), situação que se agrava pela proposição de parceria entre o setor militar e as secretarias de educação para o exercício do controle sobre os(as) jovens, por meio da reintrodução de dispositivos disciplinares (Martins, 2019MARTINS, A. A. Sobre os dias atuais: neoconservadorismo, escolas cívico-militares e o simulacro da gestão democrática. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, v. 35, n. 3, p. 689-699, 2019.).

Neste estudo, parte-se do pressuposto de que para responder às necessidades em saúde da juventude é necessário considerar a dimensão geracional na sua relação com a reprodução social. Esta é tomada, nos moldes da epidemiologia crítica latino-americana, como o conjunto da vida social composta pelas formas de produzir/trabalhar e de consumir/viver das classes sociais, pelas relações que estas classes instauram ao produzir a vida social e pelo grau de organização que alcançam (Viana; Soares; Campos, 2013VIANA, N.; SOARES, B. S.; CAMPOS, C. M. S. Reprodução social e processo saúde:doença: para compreender o objeto da Saúde Coletiva. In: SOARES, C.B.; CAMPOS, C. M. S. (Orgs.). Fundamentos de Saúde Coletiva e o Cuidado de Enfermagem. Barueri: Manole, 2013. p. 107-142.). Nessa perspectiva teórico-metodológica, Queiroz e Salum (1997) introduziram a expressão potencial de fortalecimento e desgaste para enfatizar a relação dialética entre processos que mediam as formas de produzir e viver e o processo saúde-doença. Neste trabalho, que se agrega às pesquisas sobre juventude do Grupo de Pesquisa Fortalecimento e desgaste no trabalho e na vida: bases para a intervenção em Saúde Coletiva assume-se que a experiência geracional dos(as) jovens é estabelecida a partir dos potenciais de fortalecimento e de desgaste inerentes às condições de reprodução social da classe social a que suas famílias pertencem (Santos; Soares, 2017SANTOS, V. E.; SOARES, C. B. Valores sociais de jovens de diferentes grupos sociais: em pauta a educação. Sociologia em Rede, Goiânia, v. 7, n. 7, p. 37-57, 2017.).

Conhecer as condições de reprodução social de jovens escolares que frequentam a escola pública pode proporcionar linhas de ação para a organização de jovens da classe trabalhadora, bem como apoiar trabalhadores de saúde e outras áreas sociais nas ações de fortalecimento dos(as) jovens, além de oferecer subsídios para a elaboração de políticas públicas. A pergunta desta pesquisa é: quais são e como se relacionam os potenciais de fortalecimento e de desgaste inerentes às condições de reprodução social de jovens escolares da classe trabalhadora que frequentam a escola pública na maior e mais rica capital brasileira?

Esta pesquisa tem como objetivo analisar a dinâmica entre potenciais de fortalecimento e desgaste inerentes às condições de reprodução social de jovens de uma escola pública de ensino médio da capital paulista.

Metodologia

Trata-se de pesquisa de abordagem qualitativa, fundamentada no Materialismo Histórico-Dialético, que se desenvolveu conforme as diretrizes da Pesquisa-Ação Emancipatória (PAE), metodologia que requer participação ativa dos pesquisadores externos (proponentes) e dos internos (que vivenciam a realidade em estudo) para problematizar o recorte do objeto, primeiramente trazido na sua aparência, de forma a compreendê-lo como parte da totalidade social, buscando a essência, a partir das conexões com as demais dimensões da vida social (Soares et al., 2018SOARES, C. B. et al. Pesquisa-ação emancipatória: metodologia coerente com o materialismo histórico e dialético. In: TOLEDO, R. F. et al. (Org.). Pesquisa participativa em saúde: vertentes e veredas. São Paulo: Instituto de Saúde, 2018. p. 153-165.).

O artigo seguiu as recomendações do Standards for Reporting Qualitative Research (O’Brien et al., 2014O’BRIEN, B. C. et al. Standards for reporting Qualitative Research: a synthesis of recommendations. Academic Medicine, Washington, v. 89, n. 9, p. 1245-1251, 2014. DOI: 10.1097/ACM.0000000000000388
https://doi.org/10.1097/ACM.000000000000...
).

Local de estudo

A pesquisa foi realizada na Escola Estadual Fernão Dias, localizada no bairro de Pinheiros, São Paulo-SP, selecionada por ser um dos símbolos das manifestações dos estudantes secundaristas, em 2015 e 2016, indicativo tanto para o acolhimento ao projeto quanto para o potencial crítico dos estudantes.

Procedimentos ético-legais

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da USP (Parecer nº 1.969.846) e conduzido em conformidade com as exigências éticas que envolvem as pesquisas com seres humanos. A direção da Escola Estadual Fernão Dias autorizou a realização da pesquisa. Todos os(as) jovens que aceitaram participar das oficinas assinaram o Termo de Assentimento, e seus responsáveis o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Este estudo teve financiamento próprio e decorreu da tese de doutoramento da primeira autora.

Participantes da pesquisa

Os pesquisadores externos são profissionais da saúde com experiência nas áreas da Saúde Coletiva e Juventude. Os pesquisadores internos são estudantes de ensino médio. O convite para participação na pesquisa foi feito nas salas de aula, para estudantes do segundo ano. Naquele momento, apresentaram-se os objetivos e métodos da pesquisa, após o convite 12 jovens se mostraram motivados a participar.

Os(as) jovens secundaristas tinham entre 15 e 16 anos e eram de diferentes turmas. Apesar do local nobre da cidade em que a escola se situa, a maior parte dos(as) jovens não morava nas proximidades e despendia até 1h30 no trajeto diário de casa para a escola.

Produção e organização dos dados

Para compreender a reprodução social das famílias, os(as) jovens preencheram um formulário com variáveis que compõem o Índice de Reprodução Social (IRS) (Arruda et al., 2017ARRUDA, M. S. B. et al. Crackland: beyond crack cocaine. Social Medicine, New York, v. 11, n. 1, p. 8-17, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.socialmedicine.info/index.php/socialmedicine/article/view/867 >. Acesso em: 30 mar. 2022.
https://www.socialmedicine.info/index.ph...
).

As oficinas emancipatórias, que são estrategicamente usadas na PAE, são conduzidas de forma a propiciar a participação plena e radical dos pesquisadores, por meio da exposição de opiniões e convicções em espaços pedagogicamente planejados e, ao mesmo tempo, contribuir para a compreensão da realidade por meio da instrumentalização vigorosa dos participantes do processo educativo (Soares et al., 2018SOARES, C. B. et al. Pesquisa-ação emancipatória: metodologia coerente com o materialismo histórico e dialético. In: TOLEDO, R. F. et al. (Org.). Pesquisa participativa em saúde: vertentes e veredas. São Paulo: Instituto de Saúde, 2018. p. 153-165.).

As oficinas ocorreram durante cinco meses, entre abril e setembro de 2017 fora do horário das atividades escolares. Nos 13 primeiros encontros, de aproximadamente duas horas cada, as condições de vida e saúde dos(as) jovens foram constantemente debatidas. As 11 oficinas posteriores tiveram natureza operacional, com a finalidade de produzir tecnicamente um aplicativo de celular e por isso não fazem parte deste artigo. Não havia um roteiro preestabelecido para as oficinas. A condução tomou por referência a experiência dos pesquisadores externos e os interesses e necessidades teórico-práticas do grupo, aferidos em cada encontro.

Análise dos dados

A análise dos dados foi realizada durante o processo de pesquisa, a partir do método dialético, que não admite fragmentação abstrata entre o singular, particular e universal já que essas são dimensões da mesma totalidade social. A dialética marxista assume como pressuposto que a realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que temos sobre ela e, uma forma de produzir sínteses é promovendo aproximações sucessivas que relacionam as dimensões do fenômeno em processo de totalização que nunca alcança uma etapa definitiva. “É a partir da visão do conjunto que podemos avaliar a dimensão de cada elemento”, conforme orienta Konder (2017KONDER, L. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 2017., p. 35) e a modificação estrutural acontece a partir das mudanças das partes que compõem o todo.

Assim, as oficinas emancipatórias têm potencialidade para analisar a relação entre os potenciais de fortalecimento e desgaste das famílias dos(as) jovens (dimensões singular e particular) e a organização social determinada pelo modo de reprodução capitalista - geradora de desigualdades (dimensão universal), manifestações parciais e mediadoras que compõem a totalidade social. A oficina emancipatória configura-se como um instrumento de processos educativos emancipatórios que tem por objetivo explicitar e provocar a reflexão de contradições sociais, com a finalidade de tornar os envolvidos conscientes do objeto e finalidade das práticas sociais em que estão implicados, e livres para a crítica social e proposições para a transformação da realidade (Soares et al, 2018SOARES, C. B. et al. Pesquisa-ação emancipatória: metodologia coerente com o materialismo histórico e dialético. In: TOLEDO, R. F. et al. (Org.). Pesquisa participativa em saúde: vertentes e veredas. São Paulo: Instituto de Saúde, 2018. p. 153-165.).

Partiu-se do pressuposto de que a PAE permitiria evidenciar essa dinâmica entre os potenciais de fortalecimento e desgaste nas condições de trabalho, de vida e de saúde dos (as) jovens. Tais condições são distintas para as diferentes classes sociais e resultam dos processos de reprodução social dos grupos sociais a que as famílias pertencem (Breilh, 2015BREILH, J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015.). Assim, a análise sobre a dinâmica entre os potenciais de fortalecimento e de desgaste permite tornar visível a essência contraditória da organização social e as suas marcas nas condições de vida e saúde dos (as) jovens e de suas famílias.

O Quadro 1 apresenta os temas abordados e as estratégias adotadas nas oficinas.

Quadro 1
Temas e estratégias utilizadas nas oficinas com jovens

Resultados

Índice de Reprodução Social dos jovens

As famílias dos(as) jovens foram classificadas em quatro grupos sociais que apresentam homogeneidade interna para os modos de trabalhar e de viver. GI é o grupo mais estável. Apenas um jovem foi classificado nesse grupo (8,3%). Nele, o(a) responsável pela unidade familiar tem um trabalho qualificado, formal e com benefícios; a família tem a propriedade da casa e acesso aos serviços de água e energia elétrica. O GII apresentou menor estabilidade nas formas de viver e trabalhar que o GI. Sete jovens estavam neste grupo (58,3%). De forma geral, os(as) responsáveis pela unidade familiar tinham trabalhos semiqualificados e carteira assinada; viviam mais frequentemente em casas alugadas. Os GIII (16,6%) e GIV (16,6%) eram os grupos com maiores instabilidades. À época da pesquisa, os membros das famílias desses jovens estavam desempregados e sobreviviam de trabalhos esporádicos. Pode-se dizer que os(as) jovens compunham famílias da classe trabalhadora com alguma instabilidade de reprodução social, ou seja, apresentavam formas de trabalhar e de viver suscetíveis de mudanças, em função de crises econômicas ou outros problemas que possam afetar membros da família.

Análise do processo de oficinas

A apresentação da análise respeita a ordem de desenvolvimento das oficinas, destacando-se as dinâmicas entre os potenciais de fortalecimento e de desgaste expostas durante o processo.

Na oficina 1 retomou-se a apresentação dos objetivos e métodos da pesquisa, bem como o caráter voluntário da participação na pesquisa. Reforçou-se que a participação significaria dividir com os pesquisadores externos a responsabilidade pelos rumos que a investigação tomaria.

Durante o diálogo inicial, os(as) jovens expuseram as inseguranças e as dificuldades que enfrentam nos territórios onde moram e estudam, e refletiram sobre o quanto essa insegurança afeta suas vidas e saúde.

Logo nas primeiras oficinas (2 e 3), os(as) jovens abordaram a dificuldade de relacionamento com os pais, o que foi por eles considerado problema comum na atualidade; eles compreendiam os conflitos intrafamiliares como expressão de um problema grave de inabilidade na comunicação, e, ao mesmo tempo, reconheciam que a família ocupava lugar fundamental na manutenção de suas expectativas de sobrevivência e futuro. Nesse sentido, argumentaram que os membros da família deveriam se unir, por meio do diálogo, o que poderia ser facilitado por técnicas de comunicação e/ou jogos.

Essa questão foi especialmente abordada a partir da estratégia de construção coletiva de avatares. Nesse exercício, o avatar era uma representação em forma de figura, que emprestava sua imagem para a construção da identidade do grupo. Para isso, os avatares deveriam ter características singulares (tipo de cabelo, cor de olhos, estilo de roupas, orientação sexual etc.) e trazer elementos de reprodução social, expressos no detalhamento do contexto (moradia, ocupação, acesso ou não à cultura e à educação etc.).

A estratégia de construção dos avatares atravessou dois encontros, que, por sua vez, garantiram a criação livre e a discussão aprofundada das histórias, a partir da vivência e imaginação dos jovens. Esse tempo permitiu que eles trouxessem novas considerações e aprofundassem as características dos avatares.

A discussão que se seguiu conectou características pessoais à reprodução social das famílias inseridas em diferentes classes sociais, o que colocou em xeque a explicação inicial de que os conflitos familiares decorrem primordialmente da falta de habilidade comunicacional.

A noção de que as famílias pertencem a uma classe social e que a depender das condições e repercussões particulares sofrem mais ou menos privações foi sendo elaborada ao longo das oficinas, delimitada pela instrumentalização teórica apresentada na Oficina 4. Neste caso, enquanto discutiam temas atuais lançavam mão de reflexões sobre a própria experiência e capacidade para enfrentar o mundo adulto.

O tema família retornou na oficina 9 pela necessidade de compreensão da decomposição da família extensa. Nela, os(as) jovens denunciaram graves tensões e conflitos familiares, como o abandono paterno e a violência doméstica, que reconheciam como expressões de conflitos agravados por dificuldades e privações. As agressões presenciadas não foram acompanhadas de denúncia de violência doméstica, e na maior parte das vezes as histórias não pareciam evidenciar o reconhecimento de um crime, mas apenas uma reprovação moral da violência contra a figura da mãe. Nesse sentido, a separação do casal era vista como a única solução definitiva.

Os discursos dos jovens sobre as dificuldades de manutenção das famílias traziam com frequência relatos sobre a ausência do Estado na vida da família e a presença inabalável das mães, descritas quase sempre como responsáveis pela unidade familiar uma vez que se incumbiam de pagar os “bagulho” (contas).

A oficina 5 deu início à discussão sobre o trabalho como elemento fundamental para viabilizar o futuro. A questão que mais gerava preocupações e medos estava em torno da dificuldade para acessar o mercado de trabalho, dificuldade que se mantinha apesar do acesso à educação formal e de algumas políticas públicas, consideradas insuficientes.

Os participantes sinalizaram que a causa do desemprego seria a falta de estudo ou o despreparo individual do trabalhador; afirmavam que a vontade e o mérito seriam cruciais para uma boa colocação, mesmo que a formação escolar não garantisse uma inserção imediata. Essa crença produzia mais sofrimento entre os(as) jovens cujas famílias apresentavam maiores instabilidades nas formas de reprodução social.

Os(as) jovens mostravam conhecer parcialmente os movimentos estudantis, populares e sindicalistas, entretanto não se viam vinculados a eles. O próprio grupo citou as associações de bairro e estudantis como opção para estar protegido e pertencer a uma coletividade. Os(as) jovens sabiam que qualquer pessoa poderia participar, mas eles, individualmente, não participavam; apontaram, como justificativa, o descrédito das associações e das formas tradicionais de luta social e política, relatando que as pessoas que estavam à frente dessas organizações faziam pouco e/ou davam pouca abertura para a gestão coletiva.

Aparentemente, os(as) jovens mostravam pouca disposição de contribuir com novas experiências, mesmo que reconhecessem que as organizações políticas resistiam a contradições estruturais, como a fragmentação e a burocracia, e que esses fóruns de participação teriam a potencialidade do conjunto dos envolvidos na sua construção.

Os(as) jovens contaram ainda que nenhum deles havia participado da ocupação dos secundaristas, que ocorreu no segundo semestre de 2016 na escola em que estudam, e em outras, uma vez que à época eram muito novos. Mesmo sem terem participado, reconheceram aquela luta como uma vitória histórica dos estudantes, mas avaliaram que aquela mobilização não deixou legado na escola, para além da liberação formal de eleição do Grêmio Estudantil. Essa avaliação dos(as) jovens parece reduzir a importância da liberação do grêmio.

Outros encontros (oficinas 6 e 7) propuseram discussões que aprofundaram o debate sobre o futuro almejado pelos jovens. O sucesso foi sendo desconstruído como o resultado direto do mérito. Mesmo assim, foi descrito como um “fardo pesado demais”, relacionado ao medo do fracasso. Nesse sentido, eles(as) elencaram diversas situações de pressão, como o vestibular, a entrada no mercado de trabalho, a promessa e a ameaça da vida adulta. Os(as) jovens relacionaram essas pressões às exigências que vinham deles mesmos, da escola, das famílias e da sociedade, e mostraram que elas estariam na causa dos sintomas ansiosos e depressivos de muitos jovens.

Por meio da troca de relatos e da catarse foi possível ampliar a compreensão inicial sobre o mérito como competição social. A partir dessa ampliação da compreensão, o grupo relatou alívio e reconheceu a urgência de cuidados com a saúde mental e de respostas coletivas para problemas gerados pela sociedade.

O projeto de futuro foi abordado durante a realização do jogo educativo sobre frases valorativas (oficina 6) e da roda de conversa na oficina 7. Chama atenção o relato de que as oficinas desenvolvidas durante a pesquisa foram a única experiência de educação conscientemente emancipatória de que eles participaram.

A sexualidade também se mostrou um assunto sensível, sendo tematizada no jogo educativo Cidade Dorme (oficina 8) e aprofundada na estratégia lúdica de memes em bexigas (oficina 10).

Apesar de importante, o grupo afirmou que o tema não é discutido na escola, em casa ou em qualquer outro espaço que eles participem. Durante o desenvolvimento do jogo educativo, o grupo sentiu segurança para dar exemplos pessoais e demonstrar suas dúvidas em relação à própria orientação sexual.

Na oficina 10, os memes foram utilizados como recursos de comunicação para transmitir uma mensagem rápida utilizando, normalmente, o humor. Essa estratégia foi desenvolvida em dois momentos.

No primeiro momento a pesquisadora externa separou alguns memes que abordavam questões de gênero, Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), e saúde sexual e reprodutiva. Nesse dia, cada jovem amarrou uma bexiga no pé e teve que defendê-la dos colegas. Dentro de cada bexiga havia um meme. Quando uma bexiga era estourada, todos se sentavam para ler o meme e refletir sobre o assunto em questão.

No segundo momento, foi proposto que o grupo construísse memes sobre a sexualidade e questões de gênero. Eles apresentaram três memes sobre o assunto: dois sobre o machismo e um sobre a gravidez. As discussões foram alavancadas pelos memes, suscitando novos elementos e possibilitando que o grupo chegasse a novas sínteses sobre os temas já discutidos.

As reflexões geradas pelo debate em grupo ajudaram a dirimir dúvidas sobre métodos contraceptivos, a desmistificar o significado de vivência plena da sexualidade e a trazer para o plano da consciência a importância da liberdade para fazer projetos de vida e futuro, sem opressão.

Alguns assuntos surgiram como velhos tabus já superados (virgindade e padrões de beleza) e foram sendo contextualizados. Outros geraram discussões intensas, na medida em que mobilizaram convicções conflitantes, como os temas identitários sobre o machismo, o exercício da sexualidade feminina e questões relacionadas à heteronormatividade (conceito que descreve situações que transformam em desviantes aqueles que não são cisgênero e heterossexuais).

Outra questão importante discutida pelo grupo foi o papel das plataformas de mídias sociais, como Facebook e Instagram (oficina 11). Para os(as) jovens, elas servem tanto para passar o tempo e manter contato com amigos quanto para promover o consumo de uma determinada felicidade, satisfação de desejos inatingíveis para a maior parte da população. Segundo os jovens, as fotos e os comentários nas mídias sociais não condizem com a vida real dos colegas.

As drogas foram citadas pontualmente em diferentes oficinas, mas foram diretamente abordadas apenas na oficina 12. Para abordar o tema foi realizada uma apresentação dialogada com a presença de uma especialista convidada. Durante essa apresentação, os jovens foram sendo provocados a participar.

Inicialmente, eles descreveram a experimentação de drogas como algo negativo, mas também como prática corriqueira ligada à curiosidade juvenil. Reproduzindo conhecimento de senso comum, os(as) jovens classificaram algumas drogas como pesadas e outras leves, a partir do que consideravam ser os efeitos esperados de cada substância no organismo. Essa classificação, segundo eles, orientava as experimentações. Já a dependência química foi descrita pelos(as) jovens como consequência do abuso, que, por sua vez, poderia gerar outros problemas sociais, incluindo o afastamento social e a violência familiar. Alguns jovens lembraram a polêmica sobre a regulamentação das drogas, mas em geral apontavam a abstinência como a única forma de resolver o problema.

Nesta primeira aproximação com o conteúdo citaram o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd) como única ação educativa que conheciam sobre o assunto e descreveram o programa como estratégia instrutiva, mas houve quem apontasse a ineficiência do programa.

A partir desses diálogos, foi problematizado o fato de que o uso de drogas pode ter um caráter recreativo, terapêutico, laboral, enfim, não-problemático, mesmo que, na atualidade, o consumo de droga assuma a forma alienada de alívio ao mal-estar social, predominando, portanto, falsas concepções sobre o fenômeno.

A especialista convidada abordou o assunto, a partir do movimento de redução de danos, apontando a guerra proibicionista como parte do problema da droga. Ela apresentou esse problema como um constructo histórico intimamente ligado ao metabolismo social capitalista.

Em geral, o diálogo provocado pela especialista permitiu trazer à tona elementos da realidade vivida por todos. A partir deles, os(as) jovens relataram a presença constante das drogas no cotidiano e a facilidade do acesso. Exemplificam com os casos frequentes de embriaguez do pai ou do padrasto, seguidos de agressões psicológicas e/ ou físicas. Segundo os(as) jovens, as brigas se repetiam com naturalidade, justificadas pelo consumo de álcool.

Ao longo dessa oficina, os(as) jovens puderam conhecer e discutir coletivamente algumas estratégias emancipatórias do movimento de redução de danos, que visa fortalecer pessoas e grupos sociais para responder a problemas associados ao consumo de drogas.

As estratégias oficineiras utilizadas serviram para introduzir e aprofundar diversos temas. Em geral, elas permitiram sensibilizar, estruturar e sistematizar as ideias coletivas; permitiram ainda instrumentalizar com conhecimentos específicos que eram requeridos para adensar as potencialidades de formular um quadro mais abrangente do problema discutido.

Na oficina 13 foi proposto que os(as) jovens listassem coletivamente os conteúdos essenciais para construir um aplicativo de celular voltado para a educação em saúde de jovens. Nem todos os conteúdos que inicialmente foram propostos ou discutidos no conjunto das oficinas se mostraram relevantes. Alguns, como meritocracia e proibicionismo, foram identificados como ideologia, no sentido de falseamento da realidade, e outros como temas importantes, mas secundários (habilidade de comunicação e autoestima).

O aplicativo planejado por eles foi denominado “Fala Sério” e apresentou as seguintes abas, escolhidas pelos(as) jovens: família; pressões sociais; drogas; corpo; e sexualidade.

Discussão

A reflexão engendrada nas oficinas sobre os potenciais de desgaste e fortalecimento dos(as) jovens e suas famílias relacionaram-se de imediato, como não poderia deixar de ser, ao que concretamente os jovens experimentam no cotidiano.

Dessa forma, a família sobressaiu, mostrando-se uma instituição essencial na vida dos(as) jovens desta pesquisa, e apresentando-se como tema principal ou subjacente em várias oficinas. Num primeiro momento, a concepção fetichizada de família repercutiu nos discursos dos(as) jovens, sendo identificada, por exemplo, quando o papel forte da mãe, a violência doméstica e o abandono paterno foram interpretados como atributos pessoais e/ou desvios morais. Com a análise que as oficinas propiciaram e o consequente movimento feito pelos(as) jovens de aprofundar a compreensão sobre as famílias na sociedade, veio à tona o lugar estrutural fundante da família no capitalismo e as funções que assume na reprodução social dos seus membros.

Subsidiados pelo debate do serviço social (Mioto; Dal Prá, 2015MIOTO, R. C. T.; DAL PRÁ, K. R. Serviços sociais e responsabilização da família: contradições da política social brasileira. In: MIOTO, R. C. T.; CAMPOS, M. S.; CARLOTO, C. M. Familismo, Direitos e Cidadania: contradições da política social. São Paulo: Cortez, 2015. p. 147-178.), foi possível compreender que, em função do neoliberalismo, os parcos programas sociais existentes não somente deixam de apoiar as dificuldades de reprodução social das famílias, como também atribuem a ela a responsabilidade pela proteção social dos seus membros. Nessa perspectiva, também a saúde coletiva contribui com a crítica às práticas em saúde, especialmente no contexto da Atenção Primária em Saúde, que tomam as famílias com problemas, como famílias desestruturadas, desajustadas ou disfuncionais (Campos et al., 2020CAMPOS, C. M. S. et al. Necessidades em saúde de famílias na atenção primária à saúde. In: FRACOLLI, L. A.; PADOVESE, M. C.; SOARES, C. B. (Org.). Tecnologias de sistematização da assistência de enfermagem a famílias na atenção primária à saúde. São Paulo: EEUSP, 2020. v. 1. p. 15-23.).

A exigência social de um grande esforço altruísta das famílias das classes trabalhadoras, assim como a resignação e a necessidade de sacrifícios de seus membros, são diretrizes ideológicas que justificam as únicas políticas adotadas pelo Estado neoliberal, as de caráter compensatório e focalista.

Na atual conjuntura, a maior parte dos gastos das famílias brasileiras se concentra em compensar a ausência dos direitos sociais, previstos na Constituição Federal, de 1988, mas não supridos pelo Estado. Nesse sentido, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019IBGE - INSTITUTO BRASILEIRA DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018: primeiros resultados. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.), mostra o comprometimento do gasto e consumo das famílias brasileiras. Coerente com a tendência histórica, os principais gastos da família seguem sendo habitação, alimentação, transporte e saúde.

Na compreensão do grupo participante das oficinas, a família é importante, entretanto, a discussão sobre a realidade concreta das famílias permitiu verificar o quanto estão sobrecarregadas, e sofrem desgastes profundos e violentos, sem que consigam viabilizar a reprodução social e a sociabilização dos seus membros. Nesta pesquisa, foi possível reconhecer barreiras para o fortalecimento da família, assim como perceber os limites da função protetora dessa instituição e o caráter meramente ideológico do discurso dos esforços individuais e dos rearranjos familiares.

Nas oficinas, a crença inicial de que o aumento dos anos escolares poderia garantir uma boa posição no mercado de trabalho não resistiu aos elementos da realidade que foram sendo trazidos pelos participantes. Dessa forma, o medo de cada um de “não dar conta” das pressões para viabilizar um futuro promissor e acessar o mercado de trabalho foi logo explicado pela análise dos dados de desemprego e das ocupações mais comuns aos alunos provenientes de escolas públicas brasileiras. O mercado de trabalho atual exige formação técnica específica e ao mesmo tempo e capacidade para a multifuncionalidade, o que desfavorece o jovem proveniente da escola pública, ainda que este se esforce individualmente (ILO, 2019ILO - INTERNATIONAL LABOUR OFFICE. World employment and social outlook: trends 2019. Geneva: International Labour Office, 2019.).

Com a promessa capitalista de qualificação para o trabalho cada vez mais longínqua, em função dos rearranjos do regime de acumulação, a escola ficou reduzida a um espaço para ocupar o tempo dos(as) jovens, mantendo-os afastados da rua e/ou de outros perigos comuns aos espaços marginalizados (Mészáros, 2012MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2012.). A educação de qualidade está longe do alcance da maior parte dos(as) jovens que frequentam a escola pública, sendo as poucas exceções utilizadas para disseminar narrativas ideológicas sobre o esforço individual dos que romperam o filtro social.

No que diz respeito ao trabalho juvenil, diante da realidade globalizada em que diversos países passam por crise econômica que se transformou em crise democrática, os jovens são reduzidos a contribuintes por meio do trabalho juvenil e/ou meros sustentadores do equilíbrio demográfico, principalmente em países europeus. Assim, identifica-se uma tendência de se utilizar o trabalho juvenil para interesses econômicos e políticos no lugar de construir uma política voltada para instrumentalizar os(as) jovens, por meio do trabalho, a se tornarem cidadãos críticos (Connolly, 2017CONNOLLY, N. Key challenges of youth work today: an introduction. In: SCHILD, H. et al. (Org.). Thinking seriously about youth work: and how to prepare people to do it. [S.l.]: Council of Europe and European Commission; Council of Europe, 2017. p. 161-168.).

Os(as) jovens discutiram o despertencimento que sentem, o que foi exposto como descrença nas formas conhecidas de participação e luta social por direitos. A literatura trata de explicar que a participação do jovem é limitada por suas dificuldades de reprodução social (Paula; Afonso, 2018PAULA, M. T.; AFONSO, M. L. M. Formação de Jovens para a Participação Política e o Exercício da Cidadania: uma intercessão entre direito e educação. Revista de Educação da Universidade Federal do Vale do São Francisco, [S.l.], v. 8, n. 16, p. 56-78, 2018.).

Essa pesquisa disponibilizou aos(às) jovens algumas ferramentas teórico-práticas para reconhecer e intervir sobre a realidade, e proporcionou o fortalecimento do vínculo intra-grupal.

Apoiados na advertência de Stotz (2007STOTZ, E. N. Enfoques sobre educação popular e saúde. In: REIS, A. et al. (Org.). Caderno de Educação Popular e Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2007, p. 46-57.), de que é a consciência de classe que permite identificar a perspectiva de emancipação humana, sem ignorar a potência transformadora da comunicação e do diálogo e a vocação transformadora da educação como práxis, para além da escola (Freire, 2019FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 75. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.), compreendendo o mal-estar na atualidade como resultado da ausência de projeto social comum, capaz de trazer sentido amplo à existência humana e fazendo eco à “educação para além do capital” (Mészáros, 2012MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2012.), advoga-se nesta linha de pesquisa o desenvolvimento e adoção, pelas instituições sociais voltadas aos jovens, de práticas críticas à ideologia dominante, que exponham com clareza os obstáculos cotidianos, para além da dimensão individual, o que é potencialmente fortalecedor, na medida em que desnaturaliza-se a alienação que produz conflitos e frustrações que esgarçam as relações sociais nessa dimensão e eximem as demais instituições sociais da busca por soluções radicais.

Outras experiências de instrumentalização de jovens Paixão et al. (2018PAIXÃO, I. R. et al. Drogas e sociedade: material de apoio a atividades educativas na perspectiva emancipatória. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 621-641, 2018. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00108sol00129
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol001...
) e David et al. (2018DAVID, H. M. S. L. et al. Curso para a Formação Histórico-política na Graduação em Saúde: análise de uma construção partilhada. Trabalho, Educação, Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 997-1015, 2018.) caminharam na mesma direção deste estudo e se mostraram igualmente potentes para a sensibilização de estudantes sobre temas relativos à totalidade social, como a organização da sociedade capitalista, a produção de desigualdades e sua relação com a saúde, o contexto das políticas e as lutas sociais pela defesa dos direitos no Brasil. A experiência do protagonismo juvenil discutida por Tasca, Brandão e Branco (2020TASCA, B. G.; BRANDÃO, E. R.; BRANCO, V. M. C. Protagonismo juvenil: análise do projeto Rede de Adolescentes e Jovens Promotores da Saúde (RAP da Saúde) do município do Rio de Janeiro, na perspectiva de seus participantes. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 29, n. 4, e200070, 2020. DOI: 10.1590/S0104-12902020200070
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202020...
) ilustra os desafios de fomentar a presença dos jovens nos serviços de saúde e sua importância para a formação de trajetórias mais autônomas.

É importante ressaltar que as oficinas contaram com a ampla participação e comparecimento dos(as) 12 jovens que se comprometeram a participar integralmente do processo, contrariando falsas narrativas que pressupõem que os jovens são alienados e não se interessam por debater temas relacionados às dimensões particular e universal.

Nesse sentido, as oficinas emancipatórias mostram-se ferramenta potente para sintetizar fortalecimentos e desgastes socialmente determinados, o que pode instrumentalizar a ação coletiva para responder às necessidades em saúde de jovens.

Considerações finais

O processo de pesquisa ação emancipatória propiciou resultados, para além da aparência, revelando a essência da dinâmica entre potenciais de desgaste e fortalecimento inerentes à realidade dos(as) jovens, ou seja, apoiou o processo de compreensão de que essa dinâmica não se altera essencialmente na dimensão singular, pelo esforço individual e familiar.

Os(as) jovens, que frequentam a escola pública paulistana e cujas famílias pertencem a grupos sociais com condições instáveis de reprodução social, identificaram as consequências das formas de trabalho e vida de suas famílias, relacionando-os à classe social e ao modo de produção como um todo e, dessa forma, compreendendo a importância de considerar a dimensão particular e geral na análise da realidade em que se inserem.

O resultado reflete as dificuldades de outros grupos que vivem condições semelhantes de reprodução social. O processo emancipador da crítica ao modo de produção social, a partir da teoria da Determinação Social da Saúde, oferece subsídios para orientar os processos de trabalho em saúde voltados aos(às) jovens, notadamente, os processos de educação em saúde.

Referências

  • ARRUDA, M. S. B. et al. Crackland: beyond crack cocaine. Social Medicine, New York, v. 11, n. 1, p. 8-17, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.socialmedicine.info/index.php/socialmedicine/article/view/867 >. Acesso em: 30 mar. 2022.
    » https://www.socialmedicine.info/index.php/socialmedicine/article/view/867
  • BREILH, J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015.
  • CAMPOS, C. M. S. et al. Necessidades em saúde de famílias na atenção primária à saúde. In: FRACOLLI, L. A.; PADOVESE, M. C.; SOARES, C. B. (Org.). Tecnologias de sistematização da assistência de enfermagem a famílias na atenção primária à saúde. São Paulo: EEUSP, 2020. v. 1. p. 15-23.
  • CONNOLLY, N. Key challenges of youth work today: an introduction. In: SCHILD, H. et al. (Org.). Thinking seriously about youth work: and how to prepare people to do it. [S.l.]: Council of Europe and European Commission; Council of Europe, 2017. p. 161-168.
  • COSTA, J.; ROCHA, E.; SILVA, C. Voces de la juventud en Brasil: aspiraciones y prioridades. In: NOVELLA, R. et al. (Eds.). Millennials en América Latina y el Caribe: ¿trabajar o estudiar? Washington, D.C.: BID, 2018. p. 75-120.
  • DAVID, H. M. S. L. et al. Curso para a Formação Histórico-política na Graduação em Saúde: análise de uma construção partilhada. Trabalho, Educação, Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 997-1015, 2018.
  • FALCÃO, M. C.; DÍAZ, L. A. Aprendizagem profissional inclusiva como estratégia de combate ao trabalho infantil e promoção do emprego juvenil. In: IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Mercado de trabalho: conjuntura e análise. Brasília, DF: Ministério do Trabalho, 2019. p. 105-113.
  • FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 75. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.
  • IBGE - INSTITUTO BRASILEIRA DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018: primeiros resultados. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.
  • ILO - INTERNATIONAL LABOUR OFFICE. World employment and social outlook: trends 2019. Geneva: International Labour Office, 2019.
  • IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência 2019. Brasília, DF; Rio de Janeiro; São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.
  • KONDER, L. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 2017.
  • LIMA, I. G.; HYPOLITO, A. M. A expansão do neoconservadorismo na educação brasileira. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 45, e190901, 2019. DOI: 10.1590/S1678-463420194519091
    » https://doi.org/10.1590/S1678-463420194519091
  • MARTINS, A. A. Sobre os dias atuais: neoconservadorismo, escolas cívico-militares e o simulacro da gestão democrática. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, v. 35, n. 3, p. 689-699, 2019.
  • MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2012.
  • MIOTO, R. C. T.; DAL PRÁ, K. R. Serviços sociais e responsabilização da família: contradições da política social brasileira. In: MIOTO, R. C. T.; CAMPOS, M. S.; CARLOTO, C. M. Familismo, Direitos e Cidadania: contradições da política social. São Paulo: Cortez, 2015. p. 147-178.
  • MORAIS, R. F. As relações entre punição e estrutura social no Brasil: a prática de extermínio e o racismo como “modo de ser” do sistema penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 139, p. 247-276, 2018.
  • O’BRIEN, B. C. et al. Standards for reporting Qualitative Research: a synthesis of recommendations. Academic Medicine, Washington, v. 89, n. 9, p. 1245-1251, 2014. DOI: 10.1097/ACM.0000000000000388
    » https://doi.org/10.1097/ACM.0000000000000388
  • OPS - ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD. La salud de los adolescentes y jóvenes en la región de las Américas: la aplicación de la estrategia y el plan de acción regionales sobre la salud de los adolescentes y jóvenes (2010-2018). Washington, DC: Organización Panamericana de la Salud; Organización Mundial de la Salud, 2018.
  • PAIXÃO, I. R. et al. Drogas e sociedade: material de apoio a atividades educativas na perspectiva emancipatória. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 621-641, 2018. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00108sol00129
    » https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00108sol00129
  • PASQUIM, H. M.; CAMPOS, C. M. S.; SOARES, C. B. Projetos voltados aos jovens em instituições sociais: atividades fragmentadas e desresponsabilização do poder público. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 198-205, 2016. DOI: 10.1590/S0104-12902015139991
    » https://doi.org/10.1590/S0104-12902015139991
  • PAULA, M. T.; AFONSO, M. L. M. Formação de Jovens para a Participação Política e o Exercício da Cidadania: uma intercessão entre direito e educação. Revista de Educação da Universidade Federal do Vale do São Francisco, [S.l.], v. 8, n. 16, p. 56-78, 2018.
  • PINTO, I. V. et al. Adolescências feridas: retrato das violências com arma de fogo notificadas no Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 23, supl. 1, e200002, 2020. DOI: 10.1590/1980-549720200002.supl.1
    » https://doi.org/10.1590/1980-549720200002.supl.1
  • QUEIROZ, V.M.; SALUM, M.J.L. Reconstruindo a intervenção de Enfermagem em saúde coletiva. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ENFERMAGEM, 48., 1996, São Paulo. Anais... São Paulo: ABEn, 1996. p. 347.
  • RIBEIRO, E.; MACEDO, S. Notas sobre políticas públicas de juventude no Brasil: conquistas e desafios. Revista de Ciências Sociais, Montevideo, v. 31, n. 42, p. 107-126, 2018. DOI: 10.26489/rvs.v31i42.5
    » https://doi.org/10.26489/rvs.v31i42.5
  • SANTOS, V. E.; SOARES, C. B. Valores sociais de jovens de diferentes grupos sociais: em pauta a educação. Sociologia em Rede, Goiânia, v. 7, n. 7, p. 37-57, 2017.
  • SELAU, B. L.; KOVALESKI, D. F.; PAIM, M. B. Promoção da saúde de crianças e adolescentes em uma Organização da Sociedade Civil: refletindo sobre os valores e a formação profissional. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, e00303135, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00303
    » https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00303
  • SOARES, C. B. et al. Pesquisa-ação emancipatória: metodologia coerente com o materialismo histórico e dialético. In: TOLEDO, R. F. et al. (Org.). Pesquisa participativa em saúde: vertentes e veredas. São Paulo: Instituto de Saúde, 2018. p. 153-165.
  • STOTZ, E. N. Enfoques sobre educação popular e saúde. In: REIS, A. et al. (Org.). Caderno de Educação Popular e Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2007, p. 46-57.
  • S4YE - Solutions for Youth Employment. Toward solutions for youth employment: a 2015 baseline report. Washington, DC: International Labour Organization, 2015.
  • TASCA, B. G.; BRANDÃO, E. R.; BRANCO, V. M. C. Protagonismo juvenil: análise do projeto Rede de Adolescentes e Jovens Promotores da Saúde (RAP da Saúde) do município do Rio de Janeiro, na perspectiva de seus participantes. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 29, n. 4, e200070, 2020. DOI: 10.1590/S0104-12902020200070
    » https://doi.org/10.1590/S0104-12902020200070
  • VIANA, N.; SOARES, B. S.; CAMPOS, C. M. S. Reprodução social e processo saúde:doença: para compreender o objeto da Saúde Coletiva. In: SOARES, C.B.; CAMPOS, C. M. S. (Orgs.). Fundamentos de Saúde Coletiva e o Cuidado de Enfermagem. Barueri: Manole, 2013. p. 107-142.

  • 1
    Ver: YONEKURA, T.; SOARES, C. B. The Educative Game as a Sensitization Strategy for the Collection of Data with Adolescents. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 18, n. 5, p. 968-974, 2010.
  • 2
    Ver: SOARES, C. B. Cidade Dorme - representações cotidianas sobre drogas. Universidade de São Paulo, São Paulo, [20--]. Disponível em: <https://bit.ly/3tMXl1W>.
  • 3
    Ver: DOWDOR, L. A economia da família. Psicologia USP, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 15-26, 2015.
  • 4
    Ver: SALAS, J. Instagram é a pior rede para a saúde mental dos adolescentes. El País, [s.l.], 22 maio 2017. Disponível em: <https://bit.ly/35ih4Nm>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2021
  • Revisado
    25 Nov 2021
  • Aceito
    15 Jan 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br