Caracterização de atores e práticas de Redução de Danos na região Sul do país

Characterization of actors and practices of Harm Reduction in the South region of Brazil

Luciane Raupp Lucas de Amorim Juliana Corrêa Pacheco Daniel Lomonaco Fábio Lopes Daniela Ribeiro Schneider Sobre os autores

Resumo

O uso de conceitos e práticas de Redução de Danos (RD) na atenção às pessoas que usam drogas foi iniciado no Brasil nos anos 1990, como resposta preventiva à propagação do HIV/aids. Ao longo dos anos, ganhou espaço em outros campos de ação, como a saúde mental e a proteção social. Em 2019, com as mudanças no governo federal, esta prática foi retirada da definição da política sobre drogas. Com foco nos reflexos dessas mudanças, este estudo visou caracterizar quem atua e quais ações são desenvolvidas junto às pessoas que usam drogas, sob a perspectiva da RD, em municípios da região Sul do Brasil (RS, SC e PR). Trata-se de um estudo exploratório descritivo e transversal, que usou um questionário virtual composto por questões abertas, fechadas e métodos mistos de análise de dados. Os participantes foram recrutados por meio do método Snowball Sampling, de forma virtual, alcançando 72 questionários validados. Foi desenvolvida uma análise exploratória dos dados quantitativos. Para as respostas qualitativas foi usada a Análise Textual Discursiva e o software NVivo (versão 12). Os resultados demonstraram o perfil dos profissionais; mudanças ao longo dos anos e a necessidade de ampliar investimentos em pesquisas sobre RD.

Palavras-chave:
Substâncias psicoativas; Redução de Danos; Políticas públicas

Abstract

Harm Reduction (HR) concepts and practices in the care of people who use drugs stared being used in Brazil in the 1990s, as a preventive response to the spread of HIV/AIDS. Over the years, it gained space in other fields, such as mental health and social protection. In 2019, with changes in the federal government, this practice was removed from the definitions of the drug policy. Focusing on the consequences of these changes, this study aimed to characterize who works and what actions are developed with the people who use drugs, in the HR perspective, in the southern region of Brazil. This is a descriptive and cross-sectional exploratory study, which used an online questionnaire with open and closed questions, and mixed methods of data analysis. Participants were recruited using the Snowball Sampling method, by virtual means, reaching 72 validated questionnaires. An exploratory analysis of the quantitative data was developed. For the qualitative data, the Discursive Textual Analysis and NVivo software (version 12) were used. The results showed the profile of professionals; the changes over the years; and the need to expand investments in HR research.

Keywords:
Psychoactive Substances; Damage Reduction; Public policy

Introdução

A Redução de Danos (RD) comemorou 30 anos no Brasil em 2019. Apesar dessa considerável trajetória, é ainda pouco conhecida e cercada de preconceitos entre profissionais do campo da saúde e da atenção psicossocial. Mesmo com considerável literatura sobre o tema no país, ainda são escassos os estudos de caráter quantitativo, misto ou longitudinal, o que dificulta a necessária produção de evidências dessas práticas. Dificuldades relativas a falta de sistematização de dados e ações, baixos investimentos na área, problemas no acesso a fontes e ausência de indicadores de avaliação das intervenções são alguns dos possíveis motivos relacionados a essa lacuna na produção científica nacional sobre o tema (Paula; Moreira; Andreoli, 2016PAULA, T.C.S,; MOREIRA, F.G.; ANDREOLI, S. B. Efetividade do atendimento psicossocial na continuidade escolar de adolescentes em vulnerabilidade social. Epidemiologia e Serviços de. Saúde, Brasília, v. 25, n. 4, p. 789-798, 2016.).

A RD pode abarcar um conjunto amplo de práticas, projetos e ações de atendimento no campo de atenção a pessoas que usam drogas, posto que a diversidade de ações é uma de suas características (Marlatt; Larimer; Witkiewitz, 2012MARLATT, G. A.; LARIMER, M. E.; WITKIEWITZ, K. Harm reduction: Pragmatic strategies for managing high-risk behaviors. 2. ed. New York: The Guilford Press, 2012.). O termo designa: “um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao uso de substâncias psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas” (International Harm Reduction Association, 2010IHRA - INTERNATIONAL HARM REDUCTION ASSOCIATION. O que é Redução de Danos? Uma posição oficial da Associação Internacional de Redução de Danos. Londres: IHRA, 2010., p.1). As intervenções nessa perspectiva tomam por base o compromisso com a saúde pública e com os direitos humanos e têm por foco a diminuição de riscos e danos associados ao uso de substâncias psicoativas, além de visar construir horizontalmente estratégias singulares para melhoria da qualidade de vida. Trata-se de ações plurais, unidas pelos princípios do: pragmatismo, tolerância, acolhimento à diversidade, e humanização da atenção, tomando por base o respeito aos valores, a dignidade e os direitos dos usuários(as) (Cruz, 2017CRUZ, M. A redução de danos no cuidado ao usuário de drogas. Brasília: SENAD - Portal Aberta, 2017. ).

Como prática, a RD surgiu na Europa a partir dos anos 1960, quando programas de substituição de heroína por metadona foram implantados. A partir de 1980, surgiram os programas pioneiros na Holanda e Inglaterra, que ofereciam troca de seringas para usuários de drogas injetáveis (UDIs), além de facilitar o acesso a terapias, emprego e abrigo, inovando de forma efetiva no controle e na prevenção da contaminação pelo HIV, com aplicação de metodologias de educação entre pares (Kleiman; Hawdon, 2011KLEIMAN, Mark; HAWDON, James (ed.). Encyclopedia of drug policy: the war on drugs past, present, and future. Thousand Oaks: Sage, 2011.).

No Brasil, foi a partir da disseminação do vírus HIV entre usuários(as) de drogas injetáveis que este segmento passou a ser um público estratégico para ações de prevenção à doença (Inglez-Dias, 2014INGLEZ-DIAS, A. et al. Políticas de redução de danos no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 147-158, 2014.). Esse desafio abriu caminho para a expansão da RD nos anos 1990, quando em torno de 200 Programas de Redução de Danos (PRDs) foram implantados e a prática regulamentada em vários estados (Fonseca; Bastos, 2005FONSECA, E. M.; BASTOS, F. I. Políticas de redução de danos em perspectiva: comparando as experiências americana, britânica e brasileira. In: ACSELRAD, G. (Org.) Avessos do prazer: drogas, Aids e direitos humanos. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. p. 289-319.). Os PRDs foram a principal estratégia de implantação da RD até meados dos anos 2000, sua existência visava a formação de vínculos em cenas de uso de drogas, distribuição de insumos para uso seguro, atividades de informação, educação e comunicação, aconselhamento, encaminhamento, vacinação, entre outras (Nardi; Rigoni, 2006, p. 275).

Esse cenário começa a mudar durante a primeira década dos anos 2000, quando os PRDs começaram a diminuir, ao mesmo tempo em que a RD foi assumida como orientação da política do Ministério da Saúde (MS) para atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas (Brasil, 2003). Esse documento constituiu um marco histórico, pois foi quando o Governo Federal assumiu o tema como uma questão de saúde pública e garantiu maior sustentabilidade aos trabalhadores por meio da implementação de Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). A partir de 2006, a RD também foi incorporada como uma das diretrizes da Atenção Primária em Saúde (APS) (Brasil, 2017BRASIL. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a política nacional de atenção básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da atenção básica, no âmbito do sistema único de saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 Set 2017.), criando formas de cuidado ampliado, para além dos aspectos físicos e encaminhamentos para internações (Engstrom; Teixeira, 2016ENGSTROM, E. M.; TEIXEIRA, M. B. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 6, p. 1839-1848, 2016. Disponível em: < Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232016000601839&lng=pt&nrm=iso >. Acesso em 19 jan. 2021.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Outro marco importante ocorreu em 2006, quando surgiu o primeiro coletivo de redução de danos em contextos festivos no país, o Coletivo Balance, inspirado por ações semelhantes já em andamento em outros países (Reis; Raupp, 2020REIS, K.; RAUPP, L. Harm reduction in rave in Rio Grande do Sul: conceptions of an action. Pesquisa e práticas psicossociais , São João del Rei, v. 15, n. 1, p. 1-18, 2020.). No Mapa Nacional dos coletivos de RD que atuam em contexto de festa11Mapa nacional de coletivos de Redução de Danos. Disponível em: < https://associacaopsicodelica.org/rd-psicodelicos/mapa-de-reducao-de-danos-em-festas/ > Acesso em: 15 jun. 2021, atualizado em 2020, foram contabilizados 40, distribuídos em 16 estados, seis deles sendo localizados nos estados da Região Sul.

Em suma, desde seu surgimento no país, a Redução de Danos se expandiu, qualificou e diferenciou, mais recentemente assumindo pautas interseccionais, como raça, gênero, classe social etc., adentrando no campo dos direitos humanos e sociais, como demonstrou a experiência de programas de geração de trabalho, renda e moradia para pessoas que usam drogas, como o “Programa Atitude”, de Pernambuco, e o “De Braços Abertos”, em São Paulo (Petuco, 2020PETUCO, D. As Três Ondas da Redução de Danos no Brasil. Boletim do Instituto de Saúde BIS, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 94-103, 2020. ). Entretanto, por mais que a RD tenha sido o princípio que regeu as políticas públicas no campo desde 2003, nunca foi hegemônica, pois o modelo de cuidado marcado pelo hibridismo entre a lógica biomédica, característica da atenção psiquiátrica; e o modelo moral, característico dos grupos de 12 passos e das Comunidades Terapêuticas, sempre teve força política no país, colocando-se como oposição ao modelo da RD (Schneider, 2011).

Sendo assim, no contexto do impeachment presidencial de 2016, os movimentos relacionados a este modelo biomédico e moral aliam-se ao poder público para instituir mudanças nas políticas de saúde mental e drogas. A nota técnica 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS exprime a lógica deste movimento, por meio do que pode ser definido como o retorno do velho modelo manicomial (Brasil, 2019). Na verdade, essa ‘nova política de saúde mental’ se caracteriza pela retomada na ênfase da internação psiquiátrica, por separação da política sobre álcool e outras drogas, com ênfase no financiamento de comunidades terapêuticas e na retomada da abordagem proibicionista e punitivista das questões AD, e com a retirada da Redução de Danos como princípio e estratégia de cuidado (Cruz; Gonçalves; Delgado, 2020CRUZ, N. F. de O.; GONÇALVES, R.W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, p. 1-19, 2020. ).

A fim de ampliar a compreensão sobre o impacto dessa mudança nas estratégias de prevenção e cuidado às pessoas que usam drogas, esse artigo apresenta os resultados de uma investigação que buscou caracterizar os atores e suas práticas desenvolvidas, tendo a RD como diretriz de trabalho ou como perspectiva ético-política, a partir da elaboração do perfil dos profissionais e da caracterização das ações que desenvolvem, em termos de objetivos: composição, insumos utilizados e fontes de financiamento. A Região Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) foi o alvo da presente pesquisa, preparando terreno para uma pesquisa no âmbito nacional. Esse estudo é relevante por apresentar uma contribuição quantitativa para a produção de conhecimentos brasileiros sobre RD, área em que investigações desse tipo são escassas.

Método

Pesquisa exploratória, descritiva, de corte transversal, com utilização de métodos mistos. A amostra foi de conveniência, frente à ausência de dados sobre a população total que atua com Redução de Danos na região estudada, sendo que procurou-se abarcar participantes oriundos de instituições públicas, privadas, organizações do terceiro setor, autônomos e integrantes de coletivos. Este universo total que não está quantificado no Brasil, até a presente data, contribuindo para a escassez de estudos quantitativos sobre RD.

Esse estudo teve a coleta de dados realizada de forma virtual, refletindo tendências de utilizar a via digital para facilitar a realização de estudos empíricos, servindo como meio para a coleta e divulgação de resultados (Costa, 2018COSTA, B. R. L. Bola de Neve Virtual: O Uso das Redes Sociais Virtuais no Processo de Coleta de Dados de uma Pesquisa Científica. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, [S.l.], v. 7, n. 1, 2018). O recrutamento empregou o método Snowball (Fernandes e Carvalho, 2003FERNANDES, L.; CARVALHO, T. Consumos Problemáticos de Drogas em Populações Ocultas. Lisboa: Instituto da Droga e da Toxicodependência, 2003. ), adaptado para o uso em redes sociais virtuais como meio de coleta de dados e disseminação de resultados científicos (Costa, 2018COSTA, B. R. L. Bola de Neve Virtual: O Uso das Redes Sociais Virtuais no Processo de Coleta de Dados de uma Pesquisa Científica. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, [S.l.], v. 7, n. 1, 2018). Foi conduzido por meio do envio virtual de convites para participar da pesquisa com explicações sobre ela, link para termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e, após esse passo, acesso às questões. Os convites foram enviados de maio a outubro de 2019, via redes sociais virtuais pessoais, profissionais e temáticas. As plataformas de envio dos convites foram Gmail, WhatsApp e as redes sociais Instagram e Facebook, nessas, os membros da equipe de pesquisa disparavam os convites a seus contatos pessoais, solicitando o repasse para outros contatos. Os convites também foram enviados a grupos virtuais temáticos, ligados aos temas Saúde Mental, Atenção Psicossocial, drogas, políticas sobre drogas e Redução de Danos. A pesquisa contou com um total de 72 participantes, de ambos os sexos, residentes em municípios da região sul do Brasil, com diferentes níveis de formação, que atuam como redutores(as) de danos ou utilizam a RD como diretriz de atuação.

O instrumento de pesquisa foi um questionário virtual feito pelos pesquisadores, inserido na plataforma Google Forms e constituído por questões abertas e fechadas. O uso de questionários virtuais tem se afirmado como um meio eficaz para a captação de sujeitos em pesquisas acadêmicas, pois o ambiente virtual proporciona, de forma dinâmica, a formação e o acesso a redes de pessoas que compartilham ideias e experiências (Faleiros et al., 2016FALEIROS, F. et al. Uso de questionários online e divulgação virtual como estratégia de coleta de dados em estudos científicos. Texto & Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 25, n. 4, p. 1-6, 2016.). O instrumento foi construído pela equipe de pesquisa, a partir de revisão de literatura da área sobre as características da redução de danos no Brasil e do conhecimento pessoal da equipe sobre a área. Era constituído por quatro sessões, a saber: dados sociodemográficos, visava traçar o perfil geral dos(as) respondentes; ações de redução de danos, sessão que visava conhecer as principais características e a estrutura das ações realizadas, com questões sobre vinculação institucional, financiamento, características da equipe, remuneração, etc.; caracterização da atuação em RD, visava desvelar como as ações eram realizadas, incluindo a questão de insumos distribuídos e suas características; e informações adicionais, em que se perguntava acerca da conceptualização de RD e a indicação do contato de outras pessoas que poderiam responder a pesquisa.

O modelo de análise foi o de triangulação concomitante, desenvolvido em duas etapas;1) Etapa quantitativa: para a análise estatística dos dados, foi utilizado o software SPSS (versão 26), fazendo a transposição dos dados do questionário realizado via Formulários Google para o SPSS. Foi desenvolvido também um Codebook em que constam as especificações de cada variável e suas recodificações. Para a análise descritiva foram geradas tabelas de distribuição de frequências, gráficos, medidas de tendência central (Média, Mediana e Moda) e identificação de normalidade. O teste de correlação estatística utilizado foi o teste qui-quadrado de Pearson. 2) Análise qualitativa: para a análise das questões de tipo aberto do questionário foi utilizado o método de Análise Textual Discursiva (Moraes; Galeazzi, 2011MORAES, R., GALIAZZI, M. C. Análise textual discursiva. 3. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2011). Neste método, a análise se organiza em torno de quatro focos: desmontagem dos textos; estabelecimento de relações; captação do novo emergente; e processo auto-organizado (Moraes; Galiazzi, 2016). Utilizou-se o software de análise de conteúdo NVivo (versão 12) para organização e sistematização dos dados. Os procedimentos de análise foram executados separadamente por duas pesquisadoras, sendo posteriormente unificados a partir das concordâncias na análise, visando qualificar sua confiabilidade.

O projeto seguiu todas as normativas éticas e foi submetido ao Comitê de Ética em pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo sido aprovado com número CAE 35164220.1.0000.0121.

Resultados: caracterização da amostra

Os(as) participantes da pesquisa apresentavam o seguinte perfil: predomínio do sexo feminino; e oriundos de 40 municípios dos três estados da Região Sul, sendo o Rio Grande do Sul o estado com mais participantes. A maioria dos profissionais possuía, pelo menos, nível superior completo; e trabalhava com RD relativamente a pouco tempo, com até cinco anos de atuação no campo, ou seja, pessoas que estão iniciando suas atividades nesta perspectiva, como se verifica na Tabela 1.

Tabela 1
Perfil dos profissionais respondentes que atuam com Redução de Danos no Sul do Brasil. Frequências relativas e absolutas das características gerais da amostra.

A maioria dos participantes tinha vínculos profissionais com serviços públicos municipais. Interessante destacar a descrição de ações em RD em quase todos 40 municípios com respondentes (91,7%) e do seu pertencimento a equipes ou organizações que atuam efetivamente na área de RD (83,3%), o que mostra que apesar das mudanças recentes na política de drogas, essa estratégia ainda segue sendo utilizada. Há também outra parcela dos participantes (16,7%) que atuam em organizações da sociedade civil, como coletivos, ONGs, entre outras formas de organização que atuam na RD.

Caracterização das ações de Redução de Danos

As respostas às questões dessa seção se referem às ações/serviços em que os(as) participantes atuam com RD. Busca-se caracterizar estas ações por: tipo de vínculo; nível de atenção; ações de promoção, prevenção ou cuidado ofertados; insumos e materiais distribuídos; e outras ações executadas.

Quanto ao tipo de vinculação, em termos organizacionais, 52 profissionais afirmaram que as ações de RD estavam vinculadas ao setor público (49 ao âmbito municipal e ao estadual), em geral no setor de saúde; e 14 vinculados à sociedade civil; sendo dois a instituições de ensino superior. Em relação, especificamente, ao grupo ou serviço de atuação pessoal de cada respondente, 35 atuavam no serviço público, com destaque para a equipes da atenção psicossocial, atenção básica e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Por outro lado, 30 respondentes atuavam em Organizações da Sociedade Civil (OSC), sendo formadas por coletivos, fóruns, institutos e Organizações não Governamentais (ONGs) voltados à ação direta em RD. Dentre esses, destacam-se coletivos de atuação em contextos festivos, com atuação de 13 participantes, oriundos de quatro coletivos distintos. Alguns participantes atuavam no serviço público e, também, em coletivos ou movimentos sociais da área, além dos que não responderam, o que fez com que a somatória das frequências das variáveis descritas acima englobasse mais de 72 respostas.

A respeito da descrição das ações executadas, a maioria dos locais promovia ações educativas (91,2%); rodas de conversa (85%); palestras (70%); e oficinas (56,7%). Foram mencionadas também ações de cuidado clínico: atendimento individual (90,6%); atendimento coletivo (67,9%); e acompanhamento terapêutico (64,2%).

Uma das formas mais conhecidas de abordagem de equipes de RD em cenas de uso de drogas é a distribuição de insumos para reduzir riscos e danos à saúde, agindo como fator de produção de vínculo e acesso ao cuidado em saúde (Machado e Simas, 2017). No questionário, estes materiais foram divididos em duas categorias: insumos para uso seguro de drogas e insumos para o autocuidado (materiais que são distribuídos para uso pessoal sem, no entanto, servirem para a prática de uso de drogas). Em relação ao total da amostra, 33,3% afirmaram que distribuem insumos para uso de drogas ou testagens de substâncias, dentre os quais a testagem colorimétrica foi mais referida (56,5%); seguida por Kit Sniff (26,1%); sal/açúcar, pirulito/bala/chiclete (21,7% cada) e troca de seringa e cachimbo (17,4% cada). Dentre os insumos para autocuidado mencionados (69,4%), 100% dos(as) profissionais com este tipo de ação distribuem preservativos, sendo que, entre todos, 73,5% têm nos preservativos o único item de autocuidado dispensado. do restante, 26,5%, distribui também protetor labial, protetor solar, produtos de higiene bucal e pessoal, alimentos e água, gel lubrificante e/ou testes de gravidez, como se vê na Tabela 2:

Tabela 2
Tipos de ações de redução de danos realizadas pelos profissionais respondentes do Sul do Brasil. Frequências relativas e absolutas.

Se seccionarmos os dados pela variável ‘possuir ou não ações de RD em equipamentos públicos’, percebe-se que os municípios que disponibilizam essas ações de forma pública distribuem menos insumos para autocuidado se comparados aos demais, e realizam mais ações educativas, encontros, atuação em rede e cuidados clínicos, se comparados às OSC, conforme Tabela 3.

Tabela 3
Relação das ações de redução de danos em geral entre Serviços Públicos e Organizações da Sociedade Civil (OSC). Frequências relativas, absolutas e valor de p.

Um recorte ainda mais evidente pode ser identificado ao estratificar os municípios entre aqueles que possuem, ou não, ações em contexto de festa. Pode-se perceber que nestes municípios a distribuição de insumos e materiais informativos é ainda mais acentuada, alguns, além de ações em contexto de festa, também possuem ações em dispositivos públicos. Porém, o primeiro contexto parece ser mais relevante do que o segundo, se analisada a distribuição dos resultados. Isso pode indicar que as ações que partem da sociedade civil surgem exatamente nos locais - nesse caso o contexto de festa - e agem utilizando estratégias - no caso a distribuição de insumos - exatamente onde o sistema público não chega.

Além disso, o fato do nível percentual de pessoas que consomem algum tipo de substância psicoativa ser quase o dobro entre os respondentes que atuam em municípios com ações em contexto de festa pode indicar a influência da cultura de uso de drogas nesse meio, dado que ações de RD em contextos festivos iniciaram-se em festas de música eletrônica como raves, nas quais comumente até o cenário é marcado por alusões às experiências psicodélicas (Reis; Raupp, 2020REIS, K.; RAUPP, L. Harm reduction in rave in Rio Grande do Sul: conceptions of an action. Pesquisa e práticas psicossociais , São João del Rei, v. 15, n. 1, p. 1-18, 2020.), como se vê na Tabela 4.

Tabela 4
Ações de redução de danos nos municípios que realizam ações em contexto de festa. Frequências relativas e absolutas, valor de p.

Discussão dos resultados

Os resultados apresentados permitem compreender, em linhas gerais, o perfil das pessoas que atuam com Redução de Danos nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná e conhecer as ações que estes desenvolvem.

Questões que se destacaram quanto ao perfil dos(as) participantes foram o sexo e idade, dado que 76,4% das participantes se declararam mulheres e jovens, situação talvez relacionada às áreas de formação mais representadas no estudo serem, tradicionalmente, ligadas a estereótipos de papeis sociais femininos, como a áreas ligadas ao cuidado, entre elas a Psicologia. Esse fator foi destacado em estudo da Fiocruz sobre a participação das mulheres no mercado de trabalho em saúde, área em que já são maioria e cuja sua presença aumentou recentemente (Wermelinger et al, 2010WERNELINGER, M. et al. A Força de Trabalho do Setor de Saúde no Brasil: Focalizando a Feminização. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 45, p. 54-70, 2010.).

Por outro lado, a tendência decrescente do número de participantes em relação ao aumento da idade pode indicar duas tendências. Uma delas pode indicar um aumento histórico do interesse e acesso à RD na última década, com o aumento de oportunidades de contratos de trabalho na área. Este pode ser o caso entre pessoas que atuam junto a OSCs, como coletivos e ONGs, em geral, voluntárias ou que possuem formas de contratação precarizadas e descontínuas. Por outro lado, pode representar uma lacuna no tempo de atuação, ou seja, pessoas que trabalham no campo acabam, após um certo período, abandonando a prática ou migrando para outras áreas. Como lembram Nardi e Rigoni (2009NARDI, H. C.; RIGONI, R. Q. Mapeando programas de redução de danos da Região Metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 382-392, 2009.), a falta de estabilidade nos financiamentos, causada pelos cortes sofridos nas políticas públicas de DST/aids no início dos anos 2000, representou um fator de ameaça à continuidade do trabalho na Região Metropolitana de Porto Alegre, muito ligada à militância e ao voluntariado, acabando por colocar a população atendida e os(as) trabalhadores(as) em situação de fragilidade.

Ainda no tocante ao perfil, destaca-se a categoria ‘agente redutor de danos’ como uma identificação profissional para uma minoria da amostra. Dentre os(as) que se identificaram como redutores(ras) de danos, a maioria não possuía ensino superior completo e trabalhava, no máximo, há cinco anos na mesma equipe. Segundo Petuco (2010PETUCO, D. R. da S. Entre macro e micropolíticas: O movimento social de redução de danos e o campo político reflexivo das drogas. In: GOLDMAN, C. et al. (Org.). Subjetividade do consumo de álcool e outras drogas e as políticas públicas brasileiras. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia, 2010. p. 75-88.), a figura do redutor(a) de danos surge com o SUS, ligado à epidemia de HIV/aids, processo que deu visibilidade a outros segmentos envolvidos, como profissionais do sexo e a comunidade LGBTQIA+. Nesse contexto os(as) redutores(as) de danos surgiram como porta-vozes das pessoas que usavam drogas, devido à necessidade de vínculo com o território e conhecimento das particularidades locais (Rigoni; Nardi, 2009NARDI, H. C.; RIGONI, R. Q. Mapeando programas de redução de danos da Região Metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 382-392, 2009.). Da mesma forma, como apontado anteriormente, a pouca representatividade deste segmento pode estar ligada tanto ao fim do financiamento de ações como a política pública nacional, quanto ao encerramento, em torno dos anos 2000, dos PRDs, nos quais estes profissionais eram elementos centrais.

A ampliação do alcance da RD no Brasil nas últimas décadas e, em especial, a aproximação ao campo da saúde mental, é singular e compreendida de forma controversa. Autores como Petuco (2010PETUCO, D. R. da S. Entre macro e micropolíticas: O movimento social de redução de danos e o campo político reflexivo das drogas. In: GOLDMAN, C. et al. (Org.). Subjetividade do consumo de álcool e outras drogas e as políticas públicas brasileiras. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia, 2010. p. 75-88.), por exemplo, consideram que diferenciar a categoria dos(as) agentes redutores(as) de danos das demais profissões seria um meio de defender a categoria e evitar que:

(…) toda e qualquer pessoa que saiba acolher a pessoas que usam drogas, sem lhes exigir abstinência, seria um redutor de danos (…)”. Tal definição traz elementos interessantes, mas também um problema: ao fazer isto, colocamos um manto de invisibilidade sobre pessoas que atendem especificamente pela definição de redutoras/es de danos, e que estão nos territórios, nos locais e nos momentos em que as pessoas estão usando drogas (Petuco, 2010PETUCO, D. R. da S. Entre macro e micropolíticas: O movimento social de redução de danos e o campo político reflexivo das drogas. In: GOLDMAN, C. et al. (Org.). Subjetividade do consumo de álcool e outras drogas e as políticas públicas brasileiras. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia, 2010. p. 75-88., p. 81).

Entre os(as) participantes, predominaram pessoas que atuam em serviços públicos municipais, revelando a força que a política de atenção integral a usuários de álcool e outras drogas teve para impulsionar a área e adesão, mesmo por outras categorias profissionais, a despeito do declínio dos PRDs e equipamentos semelhantes. Sendo assim, no tocante à caracterização dos serviços, destacaram-se alguns pontos, tais como, a importância da rede de serviços ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) para a implantação de práticas que tem por base a RD, nos diferentes níveis de atenção. Essa ampliação para as redes intersetoriais no Rio Grande do Sul, por exemplo, foi apontada por Conte et al. (2004CONTE, M. et al. Redução de danos e saúde mental na perspectiva da atenção básica. Boletim da Escola de Saúde Pública do estado do Rio Grande do sul (RS), Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 10-19, 2004.) como forma privilegiada para executar práticas de RD no trabalho em parceria com agentes comunitários de saúde e equipes de Consultório na Rua.

Por outro lado, é destacada a presença de participantes que se auto-organizam em coletivos atuantes em contextos de festa, portanto, junto a um público diferente do geralmente acessado via rede SUS e SUAS. Nesta pesquisa, esses grupos se mostraram importantes atores para a ampliação do alcance e das práticas em RD, por exemplo, em termos de distribuição de insumos e na inventividade de suas práticas. Nessas ações, o intuito é prevenir e minimizar os danos causados pelo uso de substâncias em festas, estimular o autocuidado e o conhecimento sobre as drogas que são utilizadas nesses contextos (Reis; Raupp, 2020REIS, K.; RAUPP, L. Harm reduction in rave in Rio Grande do Sul: conceptions of an action. Pesquisa e práticas psicossociais , São João del Rei, v. 15, n. 1, p. 1-18, 2020.).

Também foram relatadas práticas de RD junto a pessoas em situação de rua ou em vulnerabilidade social, bem como o papel de advocacy, controle social e fomento à RD realizada pelas OSCs e coletivos da amostra, alguns dos quais ocupavam espaços de representação em conselhos municipais e regionais sobre drogas, como ocorria no estado do Rio Grande do Sul.

A atuação em serviços públicos ou em coletivos e ONGS na região estudada apresentou diferenças quanto a materiais e métodos usados. Como referido nas ações executadas por serviços públicos, havia menor distribuição de insumos em geral e maior distribuição de insumos para autocuidado, quando comparados aos entregues para uso seguro de substâncias. Quanto a este ponto, nota-se que a distribuição de insumos de autocuidado é realizada por todos os serviços públicos, mas que, em sua maior parte, acaba por ser sinônimo de distribuição de preservativos. Dados semelhantes já haviam sido apontados em equipes de saúde no Rio de Janeiro (Vallim, 2017VALLIM, D. et al. Experiências do Rio de Janeiro e Nova Iorque com o trabalho de pessoas em situação de rua. In: Dalla Vechia, M. et al. (Org.) Drogas e Direitos Humanos: reflexões em tempos de guerra às drogas. Porto Alegre: Rede Unida, p. 347-372, 2017.).

Os resultados também apontaram que os equipamentos públicos realizavam mais ações educativas e de cuidado clínico, com destaque para a educação permanente, realizada por meio de diferentes métodos, como rodas de conversa junto a trabalhadores. Aliás, a educação permanente mostrou-se um importante dispositivo de fortalecimento da estratégia de RD, como apontado em estudo conduzido em Florianópolis, meio pelo qual profissionais da atenção primária conheceram a abordagem e buscaram implementá-la em suas práticas ou por meio de parcerias com o Programa de Redução de Danos.

A distribuição de insumos para uso seguro de drogas se mostrou escassa nos serviços públicos da região, mas presente entre os coletivos de festa. Esses, realizavam testagem colorimétrica de substâncias e distribuíam kits para uso seguro de diferentes substâncias, como o kit sniff para usuários de cocaína aspirada. Já os insumos distribuídos em cenas públicas de uso de drogas foram os cachimbos ou piteiras para prevenção de doenças transmissíveis pelo compartilhamento desses itens. Apenas dois pesquisados citaram distribuir seringas individualmente para (poucos) usuários remanescentes de cocaína injetável. Cabe destacar que, apesar de existente, a distribuição de insumos para prevenção de tuberculose e hepatite C entre usuários de crack (tais como, cachimbos, piteiras, máscaras faciais), mostrou-se escassa na região estudada, a despeito dos problemas associados ao uso abusivo da droga, e da existência de evidências sobre a eficácia desses insumos na prevenção (Mainline, 2020).

Considerando as diferenças de cada época, os resultados acerca dos insumos refletem os desafios que a RD enfrentou nacionalmente durante a transição do foco inicial, a prevenção à aids, para a expansão do uso de crack no país e a necessária adaptação da estratégia ao novo contexto social e epidemiológico, chamado de segunda onda da RD por Petuco (2020PETUCO, D. As Três Ondas da Redução de Danos no Brasil. Boletim do Instituto de Saúde BIS, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 94-103, 2020. ). Assim, de estratégias preventivas que tinham por base a distribuição ou troca de seringas e outros apetrechos para uso injetável de drogas, durante a chamada primeira onda da RD (Petuco, 2020PETUCO, D. As Três Ondas da Redução de Danos no Brasil. Boletim do Instituto de Saúde BIS, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 94-103, 2020. ), passou-se a construir formas de lidar com esse novo desafio (Domanico, 2006DOMANICO, A. “Craqueiros e cracados: Bem vindo ao mundo dos nóias!” - Estudo sobre a implementação de estratégias de redução de danos para usuários de crack nos cinco projetos-piloto do Brasil. 2006. 220 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006.).

Por outro lado, chamou a atenção a ausência de políticas caracterizadas por programas de baixa exigência que privilegiam a garantia de direitos como moradia e alimentação, sem exigir abstinência. Na região estudada, os chamados Housing First (Gilmer et al., 2014GILMER, T. et al. Fidelity to the housing firsting model and effectiveness of permanent supported housing programs in California. Psychiatric Services, Washington, DC, v. 65, n. 11, p. 1311-1317, 2014.; Sam, 2010) são programas que fazem parte do que Petuco (2020PETUCO, D. As Três Ondas da Redução de Danos no Brasil. Boletim do Instituto de Saúde BIS, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 94-103, 2020. ) chamou de terceira onda da RD, na qual, a partir dos acúmulos anteriores, percebe-se que para promover saúde é preciso reduzir os danos da desigualdade social, da violência, do racismo institucional e estrutural e do encarceramento. É preocupante que nos três estados estudados não tenha sido feita nenhuma referência a ações desse tipo.

Por último, destacou-se que quase metade dos locais onde os(as) participantes atuavam não possuía ações de geração de renda (número igualmente baixo no setor público e da sociedade civil), e mais da metade também não realizava encontros de educação permanente ou capacitação da equipe. Estes fatores refletem a falta de investimentos em políticas e capacitação de profissionais na perspectiva da RD na região em foco, que se aperfeiçoa por meio de ações inovadoras, como dos coletivos de festa que sobrevivem de forma precária e existem ainda em pequeno número na região.

Considerações finais

Apesar de não ser possível falar em representatividade da amostra desse estudo, pois não há dados disponíveis que caracterizem quantitativamente esse universo, até mesmo devido à expansão de categorias profissionais que incorporaram a perspectiva em suas práticas a partir dos anos 2000, foi produzido um dos poucos mapeamentos que sistematizaram dados quantitativos sobre o tema na região estudada. Nesse sentido, poderá servir como uma fonte inicial para que estudos posteriores amplifiquem a coleta e tragam maiores dados sobre o campo no país, destacando a necessidade de ampliação dos investimentos em pesquisas na área, dado que vários fatores contribuem para a dificuldade de produzir estudos com amostras da realidade em questão, principalmente a falta de sistematização de dados e ações, a falta crônica de financiamento para pesquisas na área, problemas no acesso a fontes, etc (Paula; Moreira; Andreoli, 2016PAULA, T.C.S,; MOREIRA, F.G.; ANDREOLI, S. B. Efetividade do atendimento psicossocial na continuidade escolar de adolescentes em vulnerabilidade social. Epidemiologia e Serviços de. Saúde, Brasília, v. 25, n. 4, p. 789-798, 2016.).

Uma das dificuldades em coletar dados para a produção de conhecimento em Redução de Danos é a dificuldade de acesso a informações sobre os programas/ações ativos. Esse fato pode estar relacionado às mudanças nas questões políticas sobre drogas em nosso país, principalmente no contexto atual. Mas, também, ao fato de a introdução da RD como diretriz da atenção na Saúde Mental ter expandido as categorias profissionais que a incorporaram, sob o embalo da municipalização da assistência à saúde. Essa expansão trouxe profissionais com curso superior para atuar em equipes de CAPS e Atenção Básica que afirmavam assumir essa perspectiva em seu fazer profissional, apesar de não ser incomum a realização de ações tidas como de RD, mas realizadas sem um conhecimento mais aprofundado do tema, na maior parte das vezes limitando-se à prática de trabalho informativo/educativo (Queiroz, 2007QUEIROZ, I. S. Adoção de ações de redução de danos direcionadas aos usuários de drogas: concepções e valores de equipes do programa de saúde da família. Pesquisa e práticas psicossociais, São João del Rei, v. 2, n. 1, p. 152-163, 2007.), o que se reflete, por exemplo, na baixa distribuição de insumos para uso de seguro de drogas entre participantes atuantes no serviço público.

Apesar dessas limitações, os dados dessa investigação permitiram conhecer o perfil dos(as) participantes e, por meio desse, compreender as mudanças na RD desde sua implantação até os contornos atuais. Tais mudanças se refletiram também em câmbios nos insumos distribuídos, destinados inicialmente à prevenção da aids entre UDIS, para a atual dificuldade em propor ações de prevenção junto aos usuários de crack, como refletido nas poucas equipes que possuíam insumos como piteiras ou cachimbos para distribuição. Como também referido, essas mudanças se refletiram positivamente na inventividade e vitalidade que os coletivos de atuação em contexto de festa deram à RD na região estudada.

Espera-se que este estudo, feito a partir de um mapeamento na Região Sul, auxilie no conhecimento da realidade das ações de Redução de Danos e forneça subsídios para auxiliar no planejamento e ampliação de políticas públicas e ações de cuidado e defesa de direitos das pessoas que usam drogas. Isto só pode ocorrer a partir de uma perspectiva que as coloca como protagonistas de suas vidas e de seu cuidado, não focando na ênfase recorrente dos tratamentos tradicionais no campo, que enfatizam a estigmatização e a dependência (Raupp, Schneider, Pereira, 2021RAUPP, L.; SCHENEIDER, D.; PEREIRA, G.T. A Redução de Danos como metodologia de promoção à saúde com pessoas em situação de rua. Revista Debates Insubmissos, Curuaru, v. 4, n. 14, 2021.).

Considera-se que os resultados obtidos apontam para a necessidade de revitalizar a figura do(a) agente redutor(a) de danos, de tanta importância para a construção das políticas de RD no país, o que só será possível com o efetivo investimento nessa estratégia mundialmente reconhecida e que, no Brasil, está ameaçada de desaparecer, pelo menos em sua face de trabalho de campo, e em especial entre os serviços de saúde mental, com as recentes mudanças nas políticas do setor. No entanto, os dados também apontam que os modelos que guiam as práticas cotidianas dos(as) profissionais transcendem as linhas das políticas que lhes orientam, ainda mais quando pautadas em concepções historicamente enraizadas em racionalidades e práticas que sustentaram lutas e movimentos sociais. Portanto, a RD segue viva e presente no fazer de profissionais do campo das políticas públicas, transversalizando as ações do cuidado com pessoas que usam álcool e outras drogas, ao promover intervenções que fortaleçam o protagonismo e a capacidade de transformação da vida dessas pessoas em situação de vulnerabilidade psicossocial (Brasil, 2003).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2021
  • Revisado
    21 Nov 2021
  • Aceito
    24 Jan 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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