Análise do processo de formulação do Programa Mais Médicos

Heider Pinto Soraya Vargas Côrtes Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar o processo de formulação do Programa Mais Médicos (PMM). O estudo procurou responder: (1) Por que o PMM foi formulado com seu formato específico e (2) Quais atores, ideias e instituições influenciaram seu processo de formulação? Para isso, foram analisadas as soluções presentes no debate público para as insuficiências na oferta e formação de médicos, desde os anos 1960 até a criação do PMM. O método adotado foi de process tracing, com uso de análises bibliográfica, documental e de entrevistas. Foram utilizados, principalmente, os recursos teóricos oferecidos pelos estudos sobre processo político e a Teoria da Mudança Institucional Gradual. Dentre os principais resultados, destacam-se os seguintes: o desenho do programa foi modificado significativamente desde sua proposição pelo Poder Executivo até sua aprovação como lei; a conjuntura favorável, caracterizada pela aprovação popular e política do programa, junto à ação estratégica de seus formuladores, permitiu a ampliação de escopo, aproximando o PMM dos princípios defendidos pela Comunidade de Políticas Movimento Sanitário; o seu formato foi influenciado por políticas implementadas em períodos anteriores e por ideias defendidas anteriormente pelos seus principais formuladores.

Palavras-chave:
Recursos Humanos em Saúde; Educação Médica; Política Pública

Introdução

O artigo tem como objetivo analisar o processo de formulação do Programa Mais Médicos (PMM), buscando entender por que ele ganhou o formato específico com o qual foi implementado e quais atores, ideias e instituições influenciaram seu processo de formulação. Fruto de uma pesquisa realizada para tese de doutorado, o artigo refuta uma visão presente na literatura de que o PMM foi formulado às pressas como uma resposta intempestiva às grandes manifestações de rua denominadas “Jornadas de Junho”, de 2013 (Couto; Salgado; Pereira, 2015COUTO, M; SALGADO PEREIRA, A. O Programa Mais Médicos: a formulação de uma nova política pública de saúde no Brasil. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, DF, v. 9, n. 4, p. 97-113, 2015. DOI:10.18569/tempus.v9i4.1728
https://doi.org/10.18569/tempus.v9i4.172...
; Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.). Ao contrário, há evidências de que seu processo de formulação demorou, aproximadamente, um ano e meio e tomou como base legados históricos derivados de décadas de formulações e programas que buscaram enfrentar a questão das insuficiências na oferta e formação médicas. Além disso, seu formato somente pode ser compreendido quando se analisa as ideias defendidas e a ação estratégica de seus formuladores em um contexto político favorável, no qual foi possível superar resistências das entidades médicas e chegar a um formato próximo do defendido pelo Movimento Sanitário.

A questão (policy issue) das insuficiências na oferta e formação médicas é objeto de diversos estudos, de recomendações internacionais de organismos multilaterais da área da saúde e esteve presente na agenda de discussão governamental no Brasil desde o fim dos anos 1960 (Maciel, 2007). No Brasil, o Congresso Nacional legisla sobre as profissões, cabendo aos conselhos profissionais, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), fazerem a regulação infralegal e fiscalizarem o exercício dos profissionais. As decisões sobre a formação médica em nível de graduação e pós-graduação, incluindo a residência médica, cabem ao Ministério da Educação (MEC), mas são entidades médicas como o CFM e a Associação Médica Brasileira (AMB) que certificam quais médicos são reconhecidos como especialistas. Nesse arranjo institucional, o Ministério da Saúde (MS) decide pouco sobre a política para a força de trabalho médica, sendo suas atribuições: opinar sobre mudanças na legislação que trata das profissões de saúde em tramitação no Congresso, participar de fóruns de discussão no MEC que tratam da formação médica, bem como propor programas que estimulem médicos a atuarem onde o Sistema Único de Saúde (SUS) tem necessidade e que induzam as instituições de ensino superior a implementarem mudanças que busquem responder às necessidades do SUS (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.).

Os conceitos de comunidade política e de redes temáticas são centrais para analisar os atores mais relevantes na questão em estudo. Comunidades políticas são grupos mais ou menos coesos de atores individuais e coletivos, com diferentes posições institucionais (Estado, mercado e sociedade civil) e relações entre si, que compartilham ideias, valores, se especializam sobre uma questão, desenhos e resultados de políticas setoriais e atuam de maneira coordenada para tornar suas propostas e posicionamentos predominantes no governo (Côrtes; Lima, 2012CÔRTES, S; LIMA, L. A contribuição da sociologia para a Análise de Políticas públicas. Lua Nova, São Paulo, v. 87, p. 33-62, 2012. DOI:10.1590/S0102-64452012000300003
https://doi.org/10.1590/S0102-6445201200...
). Existem, ainda, as Redes Temáticas, entendidas como grupos com participação e interação flutuantes de vários membros, que se envolvem, discutem e formulam diversas soluções relacionadas a um tema nos quais há ausência de consenso (Côrtes, 2009CÔRTES, S. Sistema Único de Saúde: espaços decisórios e a arena política de saúde. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 25, n. 7, p. 1626-1633, 2009. DOI:10.1590/S0102-311X2009000700022
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200900...
).

Desde a década de 1980, a Comunidade Política Movimento Sanitário (CP-M Sanitário) (Côrtes, 2009CÔRTES, S. Sistema Único de Saúde: espaços decisórios e a arena política de saúde. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 25, n. 7, p. 1626-1633, 2009. DOI:10.1590/S0102-311X2009000700022
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200900...
), constituída por intelectuais, pesquisadores, trabalhadores, usuários e gestores do SUS e suas organizações, tem defendido o acesso universal à saúde, a prioridade da Atenção Básica e o papel do SUS de “ordenar as políticas de recursos humanos em saúde”. De outro lado, a Comunidade Política Defesa da Medicina Liberal (CP-M Liberal) - liderada pelas entidades médicas e composta por sujeitos que atuam em espaços institucionais do MS e MEC, no Congresso Nacional e em posições de liderança em IES, programas de residência e importantes hospitais públicos e privados - vinha conseguindo bloquear mudanças que tentassem alterar o status quo da profissão médica e de sua regulação (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.; Pinto; Côrtes, 2022aPINTO, H. A.; CÔRTES, S. V. Tendência à estabilidade institucional: regulação, formação e provimento de médicos no Brasil durante o governo Lula. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2022. 27:2531-2541. DOI:10.1590/1413-81232022277.18332021EN
https://doi.org/10.1590/1413-81232022277...
). A Comunidade Política Defesa da Regulação pelo Mercado (CP-R Mercado) (Pinto, 2021), composta por atores econômicos do complexo médico-industrial-financeiro na saúde, das mantenedoras e instituições superiores privadas e seus apoiadores nos meios de comunicação, academia, Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, também atuou no processo de formulação do PMM.

Desde a década de 1960, a CP-M Liberal tem: sido contra propostas de provimento médico que não respeitem a livre escolha do profissional e que não sejam uma “carreira médica” em nível nacional; defendido a regulamentação do ato médico, como forma de assegurar o monopólio de exercício da profissão; se oposto à ampliação do número de vagas de graduação em medicina; defendido o controle da profissão sobre a formação de especialistas; e lutado contra medidas que aumentem a quantidade de médicos no mercado de trabalho, dentre elas, a autorização do exercício no país de médicos formados no exterior, brasileiros ou estrangeiros. A CP-M Liberal atua articulando lobbies nos poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, principalmente junto a colegas de profissão; ocupando espaços institucionais no Estado, especialmente em áreas às quais são delegadas decisões sobre “assuntos médicos”; influenciando ou coagindo os profissionais por meio das entidades médicas; e dirigindo-se à sociedade pela importante ocupação de espaços nos veículos de comunicação (Campos, 1988CAMPOS, G. Os médicos e a política de saúde. São Paulo: Hucitec, 1988.; Carapinheiro, 2005CARAPINHEIRO, G. Saberes e poderes no hospital: uma sociologia dos serviços hospitalares. 4. ed. Porto: Afrontamento, 2005.; Gomes, 2016GOMES, L. B. A atual configuração política dos médicos brasileiros: uma análise da atuação das entidades médicas nacionais e do movimento médico que operou por fora delas. 2016. Tese (Doutorado em Clínica Médica) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.; Machado, 1997MACHADO, M. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. E-book. Disponível em: <Disponível em: https://books.scielo.org/id/bm9qp >. Acesso em: 2 nov. 2021.
https://books.scielo.org/id/bm9qp...
; Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.).

Até o ano de 2010, com exceção da expansão de vagas de graduação em medicina, na década de 2000, e da criação, em 2010, do Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos (Revalida), nenhuma mudança na política para a força de trabalho médica, pretendida por dirigentes do Ministério da Saúde e contrária aos objetivos e ideias da CP-M Liberal, conseguiu ser implementada (Pinto; Côrtes, 2022aPINTO, H. A.; CÔRTES, S. V. Tendência à estabilidade institucional: regulação, formação e provimento de médicos no Brasil durante o governo Lula. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2022. 27:2531-2541. DOI:10.1590/1413-81232022277.18332021EN
https://doi.org/10.1590/1413-81232022277...
). O posicionamento de novos atores na direção do governo federal, em 2011, o agravamento da questão da insuficiência de médicos e suas consequências, bem como o aumento da importância dada a ela, resultaram na decisão do núcleo do governo de ultrapassar limites estabelecidos pela CP-M Liberal e implementar o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab), em 2011, o que criou uma bonificação no concurso de residência médica como modo de atrair médicos para um programa de provimento em áreas subatendidas, e o Plano Nacional de Educação Médica, em 2012, que criou 1.063 vagas de graduação em Medicina (Pinto; Côrtes, 2022bPINTO, H. A.; CÔRTES, S. V. O que fez com que o Programa Mais Médicos fosse possível? Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2022b. 27: 2543-2552. DOI:10.1590/1413-81232022277.22322021
https://doi.org/10.1590/1413-81232022277...
).

Frente aos resultados insuficientes das ações implementadas, “empreendedores de política” buscaram e obtiveram o apoio da presidenta Dilma e, utilizando o aprendizado de políticas pretéritas, iniciaram, em fevereiro de 2012, a formulação do PMM. Entende-se como empreendedores de políticas agentes-chave para criar ou aproveitar “janelas de oportunidade” - oportunidades passageiras nas quais novas questões e soluções têm a chance de ganhar a atenção de decisores de políticas e entrar na agenda governamental -, dar visibilidade e conformar a abordagem de questões (Kingdon, 2011KINGDON, J. Agendas, Alternatives and Public Policies. Washington: Longman, 2011.). A situação conjuntural de 2013, caracterizada pela posse dos novos prefeitos, pelas “Jornadas de Junho” e pela aproximação das eleições de 2014, favoreceu a que o PMM fosse lançado, por meio de uma Medida Provisória (MP), em julho de 2013 (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.; Pinto; Côrtes, 2022bPINTO, H. A.; CÔRTES, S. V. O que fez com que o Programa Mais Médicos fosse possível? Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2022b. 27: 2543-2552. DOI:10.1590/1413-81232022277.22322021
https://doi.org/10.1590/1413-81232022277...
).

No Congresso Nacional, o processo de conversão da MP-621/2013 resultou na Lei-12.871/2013 que, em 22 de outubro, instituiu o PMM. O programa foi composto com três eixos: “Provimento”, que realizou um recrutamento nacional e internacional de médicos para atuarem em áreas subatendidas em mais de quatro mil municípios; “Infraestrutura”, que repassou recursos aos municípios para construir, ampliar e reformar Unidades Básicas de Saúde (UBS); e “Formação”, que promoveu a expansão de vagas de graduação e residência médica e determinou a criação de novas diretrizes curriculares para o curso de Medicina, integrando mais a formação ao SUS (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.).

Existem diversos estudos que descreveram o PMM, mas poucos se propuseram a analisar seu processo de formulação. Destacam-se, dentre eles, um com foco no papel das evidências científicas (Oliveira et al., 2018OLIVEIRA, A et al. Fatores que influenciaram o processo de formulação de políticas de recursos humanos em saúde no Brasil e em Portugal: estudo de caso múltiplo. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 34, n. 1, 2018. DOI:10.1590/0102-311X00220416
https://doi.org/10.1590/0102-311X0022041...
), outro no das entidades médicas (Silva, 2018SILVA, L. N. Programa Mais Médicos: embates políticos entre entidades médicas e o Estado. 2018. Tese (Doutorado em Medicina Social) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.) e outro, no processo parlamentar de modificação da MP em Lei (Couto; Salgado; Pereira, 2015COUTO, M; SALGADO PEREIRA, A. O Programa Mais Médicos: a formulação de uma nova política pública de saúde no Brasil. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, DF, v. 9, n. 4, p. 97-113, 2015. DOI:10.18569/tempus.v9i4.1728
https://doi.org/10.18569/tempus.v9i4.172...
). A contribuição original do artigo está em examinar o processo de formulação do PMM buscando responder por que o programa teve o formato com o qual foi instituído e quais atores, ideias, instituições e acontecimentos influenciaram sua formulação. As seções seguintes tratam, respectivamente, dos métodos utilizados no estudo, dos resultados encontrados e da discussão à luz do referencial teórico utilizado.

Métodos

A pesquisa foi desenhada como um estudo de caso que utilizou como estratégia metodológica o process tracing (Bennett; Checkel, 2015BENNETT, A.; CHECKEL, J. T. Process tracing: From Metaphor to Analytic Tool. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.). A estratégia examina trajetórias históricas, documentos, transcrições de entrevistas e outras fontes para analisar se possíveis explicações derivadas de teorias são válidas ou devem ser modificadas ou refinadas, considerando as diversas variáveis intervenientes em um caso, visando identificar cadeias e mecanismos causais. Conforme mostra o Quadro 1, foram analisadas três dimensões explicativas, consideradas hipotéticas, que poderiam explicar o processo: (1) atores, seus interesses e suas ideias, que agiam nos subsistemas de saúde e de educação superior, se posicionando, problematizando e disputando a política vigente; (2) mudanças no arcabouço institucional desses subsistemas e legados históricos que influenciaram na formulação do PMM; (3) contexto político, padrões institucionalizados de relação entre decisores governamentais e atores societais, bem como estratégias de ação utilizadas pelos atores neste contexto político-institucional. No processo em análise, esses fatores se alternaram ou se combinaram afetando os momentos de decisão e os decisores formando a trajetória de formulação do PMM.

Quadro 1
Estratégia de reunião de evidências no estudo

A análise documental compreendeu os períodos do governo Lula e Dilma, de 2003 a 2016. Foram examinados documentos oficiais que normatizavam a Política para a Força de Trabalho Médica (PFTM) (leis, decretos, portarias, resoluções e outros documentos de instituições estatais), documentos de organizações da sociedade civil (entidades médicas e da “Reforma Sanitária”), bem como discursos dos atores analisados publicados na mídia e em meios próprios de comunicação. Foi analisada, também, a literatura que tratou da PFTM não apenas no processo de formulação do PMM, mas desde a segunda metade do século XX, quando se ampliou no país o debate sobre a formação de recursos humanos em saúde, e sobre o posicionamento das organizações médicas em relação à questão.

As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com 19 informantes-chave que tiveram papel na formulação governamental das PFTM no período de 2003 a 2018, cuja posição institucional é apresentada no Quadro 2. Diversos sujeitos estiveram presentes em mais de um dos três períodos analisados, sendo que 15 deles ocuparam posições com poder de decisão no período focalizado neste artigo, de 2011 a 2013.

Quadro 2
Entrevistados

Utilizaram-se técnicas de análises de conteúdo (Bardin, 2014BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições, 2014.) e de discurso político (Fairclough; Fairclough, 2013FAIRCLOUGH, I.; FAIRCLOUGH, N. Political discourse analysis: a method for advanced students. New York: Routledge , 2013.) nas entrevistas, construindo categorias para análise transversal e premissas discursivas para compreender posições e ações de cada ator. A ação analítica empreendida teve base nos referenciais teóricos dos estudos sobre processo político (public policy process) (Birkland, 2016BIRKLAND, T. An introduction to the policy process - theories, concepts, and models of public policy making. New York: Routledge, 2016.) e na Teoria da Mudança Institucional Gradual (TMIG) (Mahoney; Thelen, 2010MAHONEY, J.; THELEN, K. A theory of gradual institutional change. Explaining institutional change: Ambiguity, agency, and power, [s.l.]. Cambridge: Cambridge University Press , 2010.). Os estudos sobre processo político permitiram caracterização das trajetórias das relações sociais estabelecidas entre organizações e atores, individuais e coletivos, societais e estatais, considerando interesses, ideias e ações, que se expressavam sob certas regras e em determinados contextos, buscando influenciar os rumos das políticas públicas (Birkland, 2016BIRKLAND, T. An introduction to the policy process - theories, concepts, and models of public policy making. New York: Routledge, 2016.). Com base na TMIG, as instituições foram analisadas como instrumentos distributivos carregados de implicações de poder e, por isso, repletas de tensões. Na teoria, as regras institucionais dão condição a certos atores em posições dominantes de projetarem instituições que correspondem às suas preferências para que realizem seus objetivos e mantenham sua condição privilegiada. Contudo, a manutenção da estabilidade desse arranjo institucional exige a mobilização permanente de apoio político. Há oportunidades para a mudança quando são rompidos os equilíbrios vigentes devido a fatores externos ou internos ao arranjo institucional. Assim, é necessário analisar tanto o arranjo institucional quanto as ações estratégicas dos atores no processo político, buscando promover desequilíbrios e aproveitar oportunidades políticas e institucionais (Mahoney; Thelen, 2010MAHONEY, J.; THELEN, K. A theory of gradual institutional change. Explaining institutional change: Ambiguity, agency, and power, [s.l.]. Cambridge: Cambridge University Press , 2010.).

Utilizando esse referencial, foram analisadas as trajetórias de enfrentamento da questão das insuficiências na oferta e formação médicas e de formulação da PFTM da década de 1960 a 2013, nos subsistemas saúde e educação superior. Entende-se os subsistemas como estruturas de poder estratificadas que distribuem recursos políticos e materiais desiguais; trata-se de arenas de embate entre atores que defendem diferentes soluções para problemas de políticas públicas, bem como unidades setoriais de nível mesossocial de produção de políticas, com autonomia relativa em relação ao macrossistema político, e com arranjos institucionais, regras e dinâmicas próprias (Adam; Kriesi, 2007ADAM, S; KRIESI, H. The network approach. Theories of the policy process, California, v. 2, p. 189-220, 2007.; True; Jones; Baumgartner, 2007TRUE, J; JONES, B; BAUMGARTNER F. Punctuated-Equilibrium Theory: explaining stability and change in public policy making. In: SABATIER, P. A. (Org.). Theories of the policy process . Cambridge: Westview Press, 2007. p. 155-188.). Focou-se a análise no processo de formulação do PMM, no período de janeiro de 2011 a outubro de 2013, tendo sido identificados atores que formularam, posicionaram-se e disputaram as soluções apresentadas, principalmente, aqueles pertencentes à CP-M Sanitário e CP-M Liberal, em um contexto conflituoso no qual teve alteração do equilíbrio de forças e foram criadas oportunidades políticas e institucionais de mudança.

Resultados

A análise de atores, interesses e ideias que agiam em ambos os subsistemas é central para compreender as formas que o PMM ganhou, na MP-621/2013, e na conversão desta na Lei-12.871/2013. No Governo Dilma, alguns indivíduos que faziam parte da CP-M Sanitário e que tinham histórico de atuação conjunta no movimento estudantil de medicina e na Rede Temática Educação Médica (Rede-EM), em prol de reformas na formação e profissão médicas, assumiram a direção do Ministério da Saúde e posições estratégicas no MEC e no Congresso Nacional (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.). Esses indivíduos, agindo estrategicamente como empreendedores, protagonizaram a formulação do Provab, em 2011, e coordenaram a elaboração e a implementação do PMM, em consonância com propostas e ideias que defendiam desde os anos 1990. Dentre esses Empreendedores, destacam-se o então Ministro Alexandre Padilha, o Secretário do Ministério Mozart Sales e o Deputado Rogério Carvalho, relator da Lei no Congresso Nacional (Entrevistas 1;2; 5;7; 10-12; 15-19).

Ocupando uma posição dominante entre as profissões da saúde e conseguindo controlar a regulação do exercício profissional, a CP-M Liberal viu o Provab e, principalmente, o PMM como ameaças. Foi a principal opositora do programa, desenvolveu forte embate público defendendo o status quo da profissão e teve atuação voltada para a limitação do alcance do PMM (Gomes, 2016GOMES, L. B. A atual configuração política dos médicos brasileiros: uma análise da atuação das entidades médicas nacionais e do movimento médico que operou por fora delas. 2016. Tese (Doutorado em Clínica Médica) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.; Silva, 2018SILVA, L. N. Programa Mais Médicos: embates políticos entre entidades médicas e o Estado. 2018. Tese (Doutorado em Medicina Social) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.; Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.; Entrevistas 1-3; 5-8; 10-19).

A CP-R Mercado defendia que cabia ao mercado e seus mecanismos regular a distribuição e remunerações dos profissionais de saúde, o escopo de práticas, a quantidade e perfil de formação dos profissionais. A CP-R Mercado se opôs tanto à intervenção do Estado, defendida pela CP-M Sanitário, quanto às condicionantes, defendidas pela CP-M Liberal, que visavam reservar o mercado e controlar preços da força de trabalho e dos serviços médicos. A CP-R Mercado centrou sua ação no Eixo Formação do PMM, garantindo que as medidas de regulação das vagas de graduação em medicina não afrontassem objetivos e ideias do setor privado de educação superior (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.; Entrevistas 1;12;15;16).

Os legados históricos relacionados às PFTM são, também, essenciais na compreensão do formato do PMM. A literatura em recursos humanos em saúde e organismos multilaterais, como a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), formaram um conjunto ideacional que chamava atenção para a insuficiência de médicos em diversos países, resultando em deficiências no atendimento em saúde; os programas desenvolvidos em diferentes regiões do mundo que buscaram enfrentar o problema, alguns deles na década de 1930 (OMS, 2010OMS - Organização Mundial da Saúde. Increasing access to health workers in remote and rural areas through improved retention: global policy recommendations. Geneva, 2010.). A influência dessas ideias sobre o desenho do PMM fica evidenciada, de um lado, no uso que delas fizeram os Empreendedores e membros do CP-M Sanitário, muitos deles integrantes da Rede Observatório de Recursos Humanos, ao municiarem o governo com pesquisas, justificativas para promover mudanças e com propostas de solução (Entrevistas 1;2;5;10;18); de outro, ela se manifesta nas semelhanças entre as propostas apresentadas no “Seminário de Provimento”, realizado em 2011, e os desenhos do Provab e do PMM. No Seminário, organizado pelo Ministério da Saúde, foram discutidas políticas nacionais e de outros países para enfrentamento da questão, como: recrutamento nacional e de médicos estrangeiros, concessão de bolsa para integração ensino-serviço e incentivos para atrair médicos para programas de provimento e formação.

Programas anteriores, que combinavam a formação e o provimento de médicos, também tiveram influência sobre o desenho do PMM. Eles compõem o início de uma trajetória de aprendizados institucionais que se inicia no “Projeto Rondon”, de 1967, segue com o “Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento”, de 1979, e o “Programa de Interiorização do SUS”, de 1990. Prossegue com autorização da atuação de médicos cubanos, nos estados de Tocantins, Acre, Roraima e Pernambuco, ao final da década de 1990, e com o “Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde” (PITS), criado em 2001. Os resultados insuficientes desses programas motivaram a formulação e a implementação do Provab. Ele ofereceu aos médicos todos os benefícios disponibilizados no PITS - bolsa, curso de especialização, tutoria à distância e auxílio moradia - e mais uma pontuação adicional de 10% para ingresso nos programas de residência.

Mecanismos presentes no Provab formaram a base do Eixo Provimento do PMM, que foi acrescida, ainda, com o recrutamento internacional de médicos, com e sem registro para atuação no país, e a autorização do Ministério para a realização de cooperação internacional, como a que foi estabelecida com a OPAS e Cuba. Esta cooperação foi um recurso estratégico decisivo na formulação do programa porque, sem a possibilidade de contar com um grande contingente de médicos acionáveis, caso o recrutamento de brasileiros e estrangeiros não atendesse à demanda dos municípios, dificilmente teria saltado do Provab ao PMM (Entrevistas 1;5;7;10;16;18). O Eixo Infraestrutura foi construído incorporando e aumentando em três vezes o orçamento o Programa Requalifica-UBS, criado em 2011. Ele repassava recursos para reforma, ampliação e construção de UBS. O Eixo Infraestrutura constituía-se como um Requalifica-UBS ampliado, oferecendo uma reposta à explicação da CP-M Liberal para a insuficiência de médicos nas áreas mais vulneráveis: a “estrutura precária” dos serviços de saúde. O Eixo Formação, presente na MP, procurava superar limites na expansão de vagas de graduação, pois o Plano Nacional de Educação Médica, criado em 2012, havia, em 2013, atingido menos da metade da meta. O PMM criou uma nova regulação para as IES privadas, orientando a expansão privada de vagas de graduação para as áreas com necessidade social e estabeleceu metas ousadas de expansão pública de vagas de graduação e residência.

A decisão de fazer um recrutamento internacional no primeiro trimestre de 2012, ante os resultados insuficientes do Provab (Pinto; Côrtes, 2022bPINTO, H. A.; CÔRTES, S. V. O que fez com que o Programa Mais Médicos fosse possível? Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2022b. 27: 2543-2552. DOI:10.1590/1413-81232022277.22322021
https://doi.org/10.1590/1413-81232022277...
), demandou a alteração da legislação. Entretanto, deslocar a arena de formulação do Executivo para o Legislativo significava ampliar o número e a diversidade de atores envolvidos no processo. A CP-M Liberal exercia forte influência no Congresso Nacional, uma arena política costumeiramente conservadora em temas relacionados à manutenção das regras e aos privilégios profissionais (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.). Quando em junho de 2013 o governo decidiu lançar o PMM, o modo escolhido para mudar a legislação foi uma MP que, diferentemente de um projeto de lei, tem efeito imediato, mas deve ser convertida em lei em um prazo máximo de 180 dias. Tinha-se urgência em implementar o PMM no contexto político de 2013, marcado pelas “Jornadas de Junho” e pela queda de aprovação do governo. Avaliava-se que a chegada dos médicos às áreas subatendidas aumentaria o apoio ao programa (Entrevistas 1;5;7;10;16;18), como afirma o dirigente do Ministério da Saúde no período: “tinha sido feito um cálculo importante […] porque a gente sabia que o que ia virar a opinião pública era a chegada dos médicos nos locais” (Entrevista 18).

As decisões de ampliar ao máximo os municípios participantes e a quantidade de médicos e obras do Eixo Infraestrutura em cada um deles visaram, também, ampliar o apoio político para enfrentar o debate público e favorecer a aprovação da Lei no Congresso (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.). A implementação rápida e abrangente do PMM produziu efeitos na opinião pública e aumentou seu apoio social e político, influenciando as posições dos parlamentares sobre o programa (Entrevistas 1;5-7;10;15;16;18). Junto com outros fatores - como as estratégias adotadas pelos Empreendedores de (1) construírem a Lei com base em legislações e normas infralegais consolidadas e (2) de organizar uma defesa do programa junto às instituições jurídicas e órgãos de controle (Entrevistas 5; 7; 10; 12) - a implementação rápida do PMM também dificultou a sua contestação legal: apesar de ações contra o programa terem sido ajuizadas em diversas unidades da federação, ele não sofreu nenhum revés na justiça no ano de sua implementação (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.).

Os Empreendedores conseguiram manter o protagonismo no processo legislativo devido a dois fatores principais: a organização de um núcleo de inteligência estratégica, que coordenou as ações no Executivo e no Legislativo, e o fato de a relatoria da Lei ter ficado a cargo de um dos Empreendedores, o deputado Rogério Carvalho (Entrevistas 7;10;15;16;18). Coerente com suas trajetórias de atuação na Rede-EM, os Empreendedores identificaram uma “janela de oportunidades” para ampliar o escopo do PMM e incluir na Lei mais medidas relacionadas à regulação e formação médicas (Entrevistas 1;5;10;15;16;18), considerando que pesquisas de opinião mostravam um progressivo aumento do apoio popular ao PMM (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.). Quatro elementos podem ser relacionados a essa mudança: os efeitos da implementação do PMM; a repercussão midiática desses efeitos; e as percepções, pela população, de que os médicos brasileiros não queriam atender nas áreas mais vulneráveis e que as críticas dos “representantes” médicos era motivada por interesses corporativos (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.).

A decisão da ordem de prioridade de ocupação das vagas - primeiro médicos com registro no Brasil, depois médicos brasileiros formados fora do Brasil, depois médicos estrangeiros e, por fim, médicos da cooperação com a OPAS e Cuba - foi importante para construir essa percepção sobre os médicos brasileiros, pois estes ocuparam somente 6% das vagas abertas no primeiro ciclo de provimento em 2013. Isso ajudou no convencimento da população de que a “importação de médicos” era uma necessidade, como mostra um dirigente do Ministério da Saúde:

Foi muito inteligente aquela fórmula com prioridade para os médicos brasileiros. […] Do ponto de vista tático, porque tudo demonstrava […] que os médicos brasileiros não iriam assumir. […] Mas você tem que garantir que os médicos brasileiros fossem ser os primeiros chamados e isso, inclusive politicamente, ia demonstrar que não era um Programa para trazer médicos cubanos. (Entrevista 7)

A estratégia adotada pela CP-M Liberal enfraqueceu sua própria posição. Teve destaque negativo na mídia e grande impacto na opinião pública o fato de centenas de médicos não poderem atuar no PMM porque os Conselhos de Medicina se negaram a emitir o registro profissional, como previsto na MP, bem como cenas de médicos e representantes de entidades médicas estaduais agredindo verbalmente profissionais cubanos. A literatura aponta que a maioria dos grandes veículos de comunicação foi abandonando os argumentos da CP-M Liberal e ajudando a consolidar a imagem de que seu interesse ao criticar o PMM era estritamente corporativo (Gomes, 2016GOMES, L. B. A atual configuração política dos médicos brasileiros: uma análise da atuação das entidades médicas nacionais e do movimento médico que operou por fora delas. 2016. Tese (Doutorado em Clínica Médica) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.; Menezes, 2018MENEZES, V. P. A influência da mídia no processo de formação da agenda de políticas públicas na área de saúde: um enfoque sobre o Programa Mais Médicos. 2018. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2018.; Silva, 2018SILVA, L. N. Programa Mais Médicos: embates políticos entre entidades médicas e o Estado. 2018. Tese (Doutorado em Medicina Social) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.).

As circunstâncias de negociação das mudanças na MP para a Lei no Congresso foram caracterizadas por recuperação parcial da aprovação popular do governo federal, em setembro de 2013, apoio crescente ao PMM entre prefeitos e opinião pública e fortalecimento do bloco favorável à aprovação do PMM, composto pelo CP-M Sanitário, prefeitos, secretários municipais de saúde e parlamentares apoiadores do programa (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.). Com a formação de maioria no Congresso em favor do programa, seus opositores - CP-M Liberal, incluindo parte da bancada médica e partidos de oposição ao governo, especialmente o Democratas (DEM) e Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) - passaram a negociar mudanças no Projeto do Lei e tiveram de aceitar medidas que, em outras circunstâncias, não aceitariam.

Na negociação no Congresso, os Empreendedores desenvolveram estratégias de ação que são chave para compreender o formato que assumiu o PMM na Lei n. 12.871, que foi aprovada. Houve a definição de um núcleo essencial ao funcionamento do programa e o governo atuou para impedir sua alteração (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.). Com isso, foram rejeitadas todas as emendas que tentaram inviabilizar o Eixo Provimento, como a exigência de revalidação de diploma para médicos estrangeiros ou tentativas de impedir que o Ministério da Saúde firmasse acordos de cooperação internacional (Oliveira et al., 2017OLIVEIRA, F. P. et al. Análise das emendas parlamentares ao Programa Mais Médicos: o modelo de formação médica em disputa. Saúde em Debate, São Paulo, v. 41, p. 60-73, 2017. DOI:10.1590/0103-11042017S305
https://doi.org/10.1590/0103-11042017S30...
). Os Empreendedores aproveitaram a opinião pública favorável ao PMM e incluíram na Lei dispositivos para solucionar conflitos com os Conselhos de Medicina acontecido na implementação inicial do programa. Aumentaram o poder do Ministério na regulação do mercado de trabalho médico ao incluir na Lei a competência do deste de emitir registro autorizando o exercício de médicos estrangeiros no país. Os Empreendedores perceberam a reação negativa à proposta do “Segundo Ciclo”, que estendia o curso de Medicina em dois anos, e decidiram usá-lo como “bode na sala” para poder substituí-lo por medidas que ampliassem o escopo do PMM para as dimensões de regulação da formação e do trabalho médicos. Outras medidas foram utilizadas como “bodes na sala”, que no jargão parlamentar, refere-se a algo colocado em uma negociação que chama a atenção e torna-se o principal incômodo e, assim, vira objeto de troca. São exemplos a criação do “Fórum Nacional de Ordenação de Recursos Humanos na Saúde” (Fórum), proposta pelo relator da Lei para regular as práticas do conjunto das profissões de saúde. Tal medida foi vista com desconfiança pelos demais conselhos profissionais e rechaçada pela CP-M Liberal como uma medida que daria ao Ministério da Saúde poderes de transferir ou dividir atividades atualmente praticadas pelos médicos com outros profissionais de saúde (Jornal Medicina, 2013JORNAL MEDICINA. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 2013. (v. 23, n. 224).). A negociação da retirada dessas medidas permitiu inserir outras relacionadas às mudanças na graduação e residência, bem como à criação do Cadastro Nacional de Especialistas, que fizeram o Eixo Formação na Lei ficar razoavelmente diferente daquele que constava na MP.

Entretanto, embora não tenha impedido a aprovação da Lei, a CP-M Liberal teve êxito em suprimir alguns pontos que constavam na MP, como o “Segundo Ciclo”, bloquear a entrada de outros, como o Fórum, bem como incluir medidas que exigiram concessões dos Empreendedores, como a delimitação de quantidade máxima e tempo para atuação de médicos estrangeiros. Dirigentes e parlamentares entrevistados afirmaram que a Lei só pôde ser aprovada quando foi possível construir um acordo com a CP-M Liberal, representada principalmente pelo CFM, que sinalizou aos parlamentares apoio à versão final do relator (Entrevistas 5-7;10;15;18).

Discussão e considerações finais

Os resultados contestam a visão de que o PMM teria sido formulado às pressas para responder às “Jornadas de Junho” de 2013. A realização de uma análise que inseriu a criação do programa em uma trajetória institucional pretérita, não focada unicamente no contexto do seu lançamento, permitiu considerar legados históricos e ações de comunidades políticas, que atuam há décadas na PFTM, que influenciaram fortemente o desenho, bem como o processo de formulação do PMM, iniciado em fevereiro de 2012.

Conforme observado, também, por Oliveira et al. (2018OLIVEIRA, A et al. Fatores que influenciaram o processo de formulação de políticas de recursos humanos em saúde no Brasil e em Portugal: estudo de caso múltiplo. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 34, n. 1, 2018. DOI:10.1590/0102-311X00220416
https://doi.org/10.1590/0102-311X0022041...
), constatou-se a influência de ideias que eram debatidas no campo de conhecimento sobre recursos humanos em saúde, em diversos países e órgãos multilaterais, na formulação do PMM. Como determinadas evidências e propostas estão mais em acordo com as preferências e interesses de alguns atores que de outros (Birkland, 2015), foi necessário analisar a relação das ideias com os objetivos, as propostas e atuações que as comunidades políticas defenderam e desenvolveram ao longo do tempo.

A pesquisa bibliográfica mostrou que a maioria dos estudos que analisa o PMM trabalha com a díade governo-entidades médicas e considera períodos de até quatro anos (Pinto, 2021PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.). A análise da atuação das comunidades políticas ao longo das últimas décadas permitiu identificar que suas posições e ações foram consistentes, coerentes e que seus membros compartilharam ideias, propostas e as defenderam ao ocuparem posições institucionais. É possível afirmar que os objetivos e ideias que mais influenciaram o desenho do PMM foram aqueles da CP-M Sanitário que, no caso do Eixo Formação, foram combinados com os da Rede-EM. Ademais, a análise do papel dos Empreendedores que lideraram o processo de formulação do PMM foi necessária para compreender momentos decisivos desse processo e as características fundamentais do programa. Estudos como o de Gomes (2016GOMES, L. B. A atual configuração política dos médicos brasileiros: uma análise da atuação das entidades médicas nacionais e do movimento médico que operou por fora delas. 2016. Tese (Doutorado em Clínica Médica) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.) e de Paula (2017PAULA, J. Análise do ciclo de política do Programa Mais Médicos no Brasil: Cooperação Cuba Brasil e seus efeitos para o trabalho médico. 2017. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.) identificaram esses indivíduos como protagonistas na implementação do PMM, porém sem analisar seu papel na sua formulação. Posicionados em locais estratégicos no Ministério da Saúde, MEC e no Congresso Nacional, a partir do início do Governo Dilma, eles agiram estrategicamente, trabalharam para criar e aproveitar “janelas de oportunidade”, visando mudanças em um arranjo institucional estável até então (Pinto; Côrtes, 2021aPINTO, H. A.; CÔRTES, S. V. Tendência à estabilidade institucional: regulação, formação e provimento de médicos no Brasil durante o governo Lula. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2022. 27:2531-2541. DOI:10.1590/1413-81232022277.18332021EN
https://doi.org/10.1590/1413-81232022277...
). Os Empreendedores, integrantes da CP-M Sanitário, atuaram para ampliar o escopo do PMM para além da questão da insuficiência de médicos, que motivou originalmente sua entrada na agenda governamental. A universalização da residência, o estabelecimento das novas diretrizes e do novo processo de avaliação da formação médica na Lei 12.871 são exemplos de proposições associadas a ideias e propostas que os Empreendedores desenvolveram em experiências na Rede-EM, na década de 1990.

Não obstante, tanto a CP-M Liberal quanto a CP-R Mercado tiveram poder de veto, devido às posições privilegiadas que ocupavam no arranjo institucional. Embora não tenha conseguido impedir a aprovação da Lei, o desenho do PMM só é compreensível analisando o que a CP-M Liberal conseguiu suprimir, bloquear e incluir na Lei. O papel da CP-R Mercado no desenho do programa ficou mais circunscrito ao Eixo Formação, vetando medidas que prejudicassem interesses do setor privado de educação superior.

Legados ideacionais e institucionais do que foi estudado, debatido, formulado e implementado anteriormente relacionado à PFTM, influenciaram e deram viabilidade político-institucional à criação, primeiro, do Provab, depois, do PMM. As políticas anteriores promoveram aprendizados, criaram condições de implementação e geraram instrumentos que viabilizaram o programa.

Embora se esperasse que, com a mudança da arena de formulação para o Congresso Nacional, o PMM viesse a ter seu desenho alterado pelas ideias e propostas da CP-M Liberal, dada a influência desta comunidade no Legislativo, isso não ocorreu. A Lei recebeu ainda mais influência da CP-M Sanitário, criando instrumentos que ampliaram a capacidade do Estado de “ordenar a formação em saúde”. A escolha do formato MP, as estratégias de implementação rápida e abrangente do PMM e de negociação no Congresso, as ações da CP-M Liberal que criaram uma imagem negativa de sua atuação e posições junto à opinião pública e o crescente apoio popular a ele, foram decisivos, tanto para a aprovação da Lei quanto para uma segunda janela de oportunidade que se abriu para ampliar o seu escopo com medidas dirigidas à formação e planejamento da força de trabalho em saúde.

Assim, a pesquisa mostrou que, para compreender como foi possível construir o PMM com seu desenho específico, foi necessário colocar no centro da análise: o contexto político e a correlação de forças em determinados momentos do processo de formulação do PMM e as ações estratégicas dos atores em momentos decisivos da sua construção. Logo, o artigo pretende contribuir para a dimensão da produção de políticas que focaliza o papel da agência de indivíduos e grupos sem desconhecer a importância das estruturas e dos processos macropolíticos.

Referências

  • ADAM, S; KRIESI, H. The network approach. Theories of the policy process, California, v. 2, p. 189-220, 2007.
  • BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições, 2014.
  • BENNETT, A.; CHECKEL, J. T. Process tracing: From Metaphor to Analytic Tool. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.
  • BIRKLAND, T. An introduction to the policy process - theories, concepts, and models of public policy making. New York: Routledge, 2016.
  • CAMPOS, G. Os médicos e a política de saúde. São Paulo: Hucitec, 1988.
  • CARAPINHEIRO, G. Saberes e poderes no hospital: uma sociologia dos serviços hospitalares. 4. ed. Porto: Afrontamento, 2005.
  • CÔRTES, S. Sistema Único de Saúde: espaços decisórios e a arena política de saúde. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 25, n. 7, p. 1626-1633, 2009. DOI:10.1590/S0102-311X2009000700022
    » https://doi.org/10.1590/S0102-311X2009000700022
  • CÔRTES, S; LIMA, L. A contribuição da sociologia para a Análise de Políticas públicas. Lua Nova, São Paulo, v. 87, p. 33-62, 2012. DOI:10.1590/S0102-64452012000300003
    » https://doi.org/10.1590/S0102-64452012000300003
  • COUTO, M; SALGADO PEREIRA, A. O Programa Mais Médicos: a formulação de uma nova política pública de saúde no Brasil. Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, DF, v. 9, n. 4, p. 97-113, 2015. DOI:10.18569/tempus.v9i4.1728
    » https://doi.org/10.18569/tempus.v9i4.1728
  • FAIRCLOUGH, I.; FAIRCLOUGH, N. Political discourse analysis: a method for advanced students. New York: Routledge , 2013.
  • GOMES, L. B. A atual configuração política dos médicos brasileiros: uma análise da atuação das entidades médicas nacionais e do movimento médico que operou por fora delas. 2016. Tese (Doutorado em Clínica Médica) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
  • JORNAL MEDICINA. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 2013. (v. 23, n. 224).
  • KINGDON, J. Agendas, Alternatives and Public Policies. Washington: Longman, 2011.
  • MACHADO, M. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. E-book. Disponível em: <Disponível em: https://books.scielo.org/id/bm9qp >. Acesso em: 2 nov. 2021.
    » https://books.scielo.org/id/bm9qp
  • MACIEL, R. Estratégias para a distribuição e fixação de médicos em sistemas nacionais de saúde: o caso brasileiro. 2017. Tese (Doutorado em Medicina Social) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
  • MAHONEY, J.; THELEN, K. A theory of gradual institutional change. Explaining institutional change: Ambiguity, agency, and power, [s.l.]. Cambridge: Cambridge University Press , 2010.
  • MENEZES, V. P. A influência da mídia no processo de formação da agenda de políticas públicas na área de saúde: um enfoque sobre o Programa Mais Médicos. 2018. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2018.
  • OLIVEIRA, A et al. Fatores que influenciaram o processo de formulação de políticas de recursos humanos em saúde no Brasil e em Portugal: estudo de caso múltiplo. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 34, n. 1, 2018. DOI:10.1590/0102-311X00220416
    » https://doi.org/10.1590/0102-311X00220416
  • OLIVEIRA, F. P. et al. Análise das emendas parlamentares ao Programa Mais Médicos: o modelo de formação médica em disputa. Saúde em Debate, São Paulo, v. 41, p. 60-73, 2017. DOI:10.1590/0103-11042017S305
    » https://doi.org/10.1590/0103-11042017S305
  • OMS - Organização Mundial da Saúde. Increasing access to health workers in remote and rural areas through improved retention: global policy recommendations. Geneva, 2010.
  • PAULA, J. Análise do ciclo de política do Programa Mais Médicos no Brasil: Cooperação Cuba Brasil e seus efeitos para o trabalho médico. 2017. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
  • PINTO, H. O que tornou o Programa Mais Médicos possível? Análise da formação da agenda e do processo de formulação do Programa Mais Médicos. 2021. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.
  • PINTO, H. A.; CÔRTES, S. V. Tendência à estabilidade institucional: regulação, formação e provimento de médicos no Brasil durante o governo Lula. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2022. 27:2531-2541. DOI:10.1590/1413-81232022277.18332021EN
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232022277.18332021EN
  • PINTO, H. A.; CÔRTES, S. V. O que fez com que o Programa Mais Médicos fosse possível? Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2022b. 27: 2543-2552. DOI:10.1590/1413-81232022277.22322021
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232022277.22322021
  • SILVA, L. N. Programa Mais Médicos: embates políticos entre entidades médicas e o Estado. 2018. Tese (Doutorado em Medicina Social) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
  • TRUE, J; JONES, B; BAUMGARTNER F. Punctuated-Equilibrium Theory: explaining stability and change in public policy making. In: SABATIER, P. A. (Org.). Theories of the policy process . Cambridge: Westview Press, 2007. p. 155-188.

  • Contribuição dos autores
    Pinto e Côrtes participaram ativamente de todas as etapas de elaboração do manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2022
  • Revisado
    08 Abr 2022
  • Aceito
    05 Maio 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br