A cotidianidade do cuidado na vida de mulheres familiares de crianças atendidas em um CAPSi de Santos

Carolina Claudio Bisi Eunice Nakamura Sobre os autores

Resumo

A saúde mental infantil tem ganhado notório espaço em pesquisas brasileiras e internacionais. Sabe-se que o cuidado com crianças, além de requerer certas especificidades, exige uma consolidada rede de apoio, sendo um dos agentes cuidadores a família. Nota-se, no cuidado realizado pela família, um processo de feminização: mães, avós, irmãs ou outras familiares estão marcadamente mais presentes nos grupos para familiares oferecidos pelos CAPSi. Este artigo apresenta alguns resultados de uma pesquisa de iniciação científica, cujos objetivos foram identificar e compreender quais são as práticas cotidianas de cuidado realizadas por mulheres familiares, cuidadoras das crianças atendidas em um CAPSi de Santos e os apoios recebidos dentro e fora do serviço. A pesquisa qualitativa utilizou como técnica entrevistas em profundidade, com roteiro semiestruturado, realizadas por telefone, para a escuta dessas mulheres, escolhidas com base em informações dadas por profissionais do serviço. Identificou-se, nos relatos, categorias nativas em relação ao cuidado: rotina, normal e apoio. Essas categorias foram mencionadas pelas mulheres para definir o cuidado cotidiano com as crianças. Percebeu-se que a cotidianidade do cuidado o caracteriza como “normal” para elas, não sendo considerado como um fardo em suas vidas e sequer problematizado.

Palavras-chave:
Cuidado; Mulheres; Crianças; Saúde Mental Infantil; CAPSi

Introdução

A luta pela desinstitucionalização e a superação de pressupostos que impediam a inserção social de pessoas com transtornos mentais, na perspectiva da cidadania, foram norteadores do movimento da Reforma Psiquiátrica, iniciado na década de 1980. Havia uma preocupação com a estruturação do cuidado à saúde mental, até então marcada pela separação de seus agentes (louco - familiar - profissional) e centralização na prática psiquiátrica. Tenório (2002TENÓRIO, F. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, v. 9, n. 1, p. 25-59, 2002., p. 35) esclarece que o objetivo principal da reforma psiquiátrica era “substituir uma psiquiatria centrada no hospital por uma psiquiatria sustentada em dispositivos diversificados, abertos e de natureza comunitária ou ‘territorial’[…]”.

Dessa forma, o surgimento de políticas públicas e serviços - como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF) - transformou o cenário não só da saúde mental, como também da saúde em geral. A busca por autonomia e compreensão do cotidiano do agora usuário, e não mais paciente, fez do cuidado um exercício conjunto entre agentes e, na medida do possível, inseriu-o na realidade da pessoa que o recebe.

A população que passou a utilizar os CAPS se mostrou diversa e complexa, e, a fim de suprir as especificidades de cada um desses grupos, outras modalidades de atenção surgiram, como o CAPS Álcool e Drogas (CAPS AD) e o CAPS Infantojuvenil (CAPSi). Em relação à particularidade da população infantil, Vicente, Higarashi e Furtado (2015VICENTE, J. B.; HIGARASHI, I. H.; FURTADO, M. C. C. Mental disorder in childhood: family structure and their social relations. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 107-114, 2015. DOI: 10.5935/1414-8145.20150015
https://doi.org/10.5935/1414-8145.201500...
) argumentam que, historicamente, a saúde mental da criança foi confiada às instâncias de assistência social e educacional, sendo recente o reconhecimento dessa temática como uma demanda da saúde pública. As dificuldades do cuidado de adolescentes e crianças advêm do fato de que, segundo Couto, Duarte e Delgado (2008COUTO, M. C. V.; DUARTE, C. S.; DELGADO, P. G. G. A saúde mental infantil na Saúde Pública brasileira: situação atual e desafios. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 30, n. 4, p. 384-389, 2008. DOI: 10.1590/S1516-44462008000400015
https://doi.org/10.1590/S1516-4446200800...
, p. 391):

na população de crianças e adolescentes, os tipos de transtorno, principais fatores de risco e de proteção, estratégias de intervenção e organização do sistema de serviços têm especificidades que não podem ser contempladas pela simples extensão das estratégias de cuidado da população adulta à população infantil e juvenil.

Esses autores apontam também que, no diagnóstico de crianças, as fontes de informação do histórico de saúde são as mais diversas, dentre elas a família, que “passa a ser considerada uma aliada essencial no processo terapêutico, de modo a contribuir com a reabilitação de seu ente” (Vicente; Higarashi; Furtado, 2015VICENTE, J. B.; HIGARASHI, I. H.; FURTADO, M. C. C. Mental disorder in childhood: family structure and their social relations. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 107-114, 2015. DOI: 10.5935/1414-8145.20150015
https://doi.org/10.5935/1414-8145.201500...
, p. 108).

Portanto, o cuidado de um usuário do CAPSi é constituído, principalmente, pelo tripé que o envolve com a equipe de saúde e a família. Logo, a importância da compreensão e análise sobre como os familiares lidam com crianças com transtornos mentais pode auxiliar na melhora do serviço oferecido nos CAPSi e, também, esclarecer sobre as formas de cuidado e as práticas que estão ao alcance destes familiares.

Na literatura a respeito do cuidado, Bustamante e McCallum (2014BUSTAMANTE, V.; MCCALLUM, C. Cuidado e construção social da pessoa: contribuições para uma teoria geral. Physis, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 673-692, 2014. DOI: 10.1590/S0103-73312014000300002
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201400...
, p. 674) afirmam que há uma dificuldade na definição do termo, com uma “tendência a propor definições universalizantes […] ou atreladas ao senso comum”. Essa dificuldade também é apontada pela socióloga Carol Thomas (1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993.), que argumenta que as definições de cuidado por ela analisadas, atribuídas a Roy Parker e Hilary Graham, se mostraram parciais, não abarcando a totalidade do cuidado.

Segundo a autora, a perspectiva de Parker enfatiza a identidade social de quem é cuidado, sendo que o objetivo principal dessa elaboração é a possibilidade da construção de políticas públicas adequadas às necessidades do dependente. Parker não se reduz à família e inclui “diferentes graus de familiaridade” (Thomas, 1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993., p. 655, tradução nossa): entre estranhos, vizinhos, amigos e familiares. Dessa perspectiva, o cuidado pode ou não ser remunerado, além de poder existir tanto na esfera privada quanto na pública.

Graham, ainda segundo Thomas (1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993.), se dedica ao cuidado no âmbito familiar, considerado por ela como quintessencial, embora possa ser realizado em outros contextos. Para a autora, “o cuidado é igualado a processos feitos por mulheres […] ‘Cuidadora’ é uma das facetas do papel da mulher adulta, intimamente ligado com as de ‘mãe’ e ‘esposa’” (Thomas, 1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993., p. 655, tradução nossa). O cuidado, portanto, é definido como um trabalho não remunerado, que será realizado na esfera privada.

No entanto, posteriormente, Graham anuncia a intenção de rever sua proposição sobre o cuidado, em decorrência da limitação do conceito por ela apresentado: restringindo-se ao cuidado ligado ao parentesco familiar há uma exclusão do cuidado formal e remunerado, realizado majoritariamente por mulheres negras, reiterando a necessidade de uma análise do ato que abranja o seu aspecto racial. Resumidamente, nessa reconceituação, Graham passa a referir o cuidado ao trabalho de mulheres de etnias e classe sociais distintas.

É por meio desses exemplos que Thomas (1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993.) justifica sua afirmativa de que essas elaborações se mostram fragmentárias e, portanto, a concepção por ela apresentada pretende estabelecer uma acepção única e total do termo. A autora argumenta que cuidado seria um “conceito descritivo”, ou seja, empírico, e “que, por propósitos sociológicos, têm de ser alocado em um contexto teórico” (Thomas, 1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993., p. 666, tradução nossa). Então, o cuidado é:

o fornecimento de apoio, remunerado ou não, envolvendo atividades de trabalho e estados de sentimento. É provido majoritária, mas não exclusivamente, por mulheres, para adultos e crianças, fisicamente aptos e dependentes, tanto na esfera pública quanto doméstica, e em uma variedade de cenários institucionais. (Thomas, 1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993., p. 665, tradução nossa).

Além disso, a socióloga sugere que o fato de o cuidado ser exercido em grande parte por mulheres deveria ser explicado pela articulação histórica e contemporânea da divisão sexual do trabalho.

O papel das mulheres no cuidado tem sido abordado em estudos que buscam compreendê-lo, de uma perspectiva histórica e sociocultural, revelando as consequências desse lugar atribuído e assumido por mulheres, conforme apontado por Thomas (1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993.). Dentre os estudos que relacionam o cuidado a questões de gênero, destaca-se a recente obra de Guimarães e Hirata (2020GUIMARÃES, N. A.; HIRATA, H. O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades. Cotia: Ateliê Editorial, 2020.), na qual se salienta a importante articulação entre essas dimensões, em análises sobre o cuidado como trabalho. Como evidenciado por Thomas (1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993.), as autoras ressaltam a centralidade das mulheres no trabalho do cuidado, entendido como trabalho doméstico e/ou profissional, realizado como atividade essencial para a sociedade e o bem-estar de seus membros. As questões sobre o trabalho do cuidado, da perspectiva da sociologia do trabalho, são aprofundadas pelas autoras na análise crítica das relações interseccionais, envolvendo as desigualdades de gênero, de raça e classe, colocando a necessidade do diálogo, em estudos sobre o cuidado ou sobre o trabalho do cuidado, com outros campos do conhecimento.

O lugar das mulheres no cuidado e a sobrecarga por elas vivida são aspectos abordados em estudos sobre o cuidado na área da saúde mental. Pegoraro e Caldana (2006PEGORARO, R. F.; CALDANA, R. H. L.. Sobrecarga de familiares de um centro de atenção psicossocial. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 3, p. 569-577, 2006.), ao analisarem a sobrecarga vivida por familiares em um CAPS (adulto) do interior paulista, identificaram que dos nove familiares participantes entrevistados, oito eram mulheres.

Muitos estudos enfatizam a sobrecarga vivenciada por familiares em relação ao cuidado de entes adultos com transtornos mentais e a presença marcadamente feminina no exercício de cuidadora. Santin e Klafke (2011SANTIN, G.; KLAFKE, T. E. A família e o cuidado em saúde mental. Barbaroi, Santa Cruz do Sul, n. 34, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-65782011000100009&lng=pt&nrm=iso >. Acesso em: 26 dez 2022
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
), embora não se refiram ao cuidado feito por mulheres, enfatizam, por meio de revisão teórica, questões relacionadas ao cuidado realizado pela família:

[…] sendo abordados aspectos como a sobrecarga e as dificuldades encontradas pelas famílias; as redes de apoio e o suporte aos familiares; o impacto causado pela doença mental na família, entre outros. (Santin; Klafke, 2011SANTIN, G.; KLAFKE, T. E. A família e o cuidado em saúde mental. Barbaroi, Santa Cruz do Sul, n. 34, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-65782011000100009&lng=pt&nrm=iso >. Acesso em: 26 dez 2022
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 146)

A literatura utilizada reitera uma feminização do cuidado, não só nos CAPS, como também em outras instituições, devido à divisão sexual do trabalho, como anteriormente mencionado. Uma pesquisa realizada em 2009, em 19 unidades de CAPSi no estado de São Paulo, apontou que as mães são as principais responsáveis pelo cuidado (56,9%), quando comparadas aos avós (7,8%) e ao pai (2,6%) (Muylaert; Delfini; Reis, 2015MUYLAERT, C. J.; DELFINI, P. S. S.; REIS, A. O. A. Relações de gênero entre familiares cuidadores de crianças e adolescentes de serviços de saúde mental. Physis, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 41-58, 2015. DOI: 10.1590/S0103-73312015000100004
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201500...
, p. 47). Os dados apresentados no estudo vão ao encontro do que tem sido apontado na literatura acerca da responsabilidade atribuída às mulheres, no tocante ao cuidado de familiares, em especial crianças e adolescentes.

Uma revisão bibliográfica realizada por Campelo, Costa e Colvero (2014CAMPELO, L. L. C. R.; COSTA, S. M. E.; COLVERO; L. A. Dificuldades das famílias no cuidado à criança e ao adolescente com transtorno mental: uma revisão integrativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP. v. 48, n. spe, p. 192-198, 2014. DOI: 10.1590/S0080-623420140000600027
https://doi.org/10.1590/S0080-6234201400...
) identificou algumas dificuldades enfrentadas por familiares de crianças, sendo o estresse e a sobrecarga do cuidador pontuados mais explicitamente em oito das 11 produções analisadas, destacando, também, a feminização do cuidado. Ressalta-se que, das produções analisados, apenas uma era brasileira.

Percebeu-se, entretanto, certa escassez de estudos recentes sobre familiares mulheres, cuidadoras de crianças, necessitadas de assistência de profissionais da saúde mental no Brasil, justificando-se estudos que ampliem o conhecimento sobre o tema, principalmente porque quando se trata de crianças portadoras de transtornos mentais, o cuidado é singular.

Neste artigo, são apresentados dados de uma pesquisa que teve como objetivo geral compreender o cotidiano do cuidado realizado por familiares mulheres a crianças acompanhadas num Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) em Santos-SP, além de identificar apoios recebidos dentro e fora do serviço para a sua realização .

Metodologia

Para o desenvolvimento desta pesquisa, priorizou-se a pesquisa qualitativa. A possibilidade deste tipo de estudo significa inserir o pesquisador no mundo e, assim, buscar interpretá-lo. Um dos desafios apresentados por este método, então, é compreender os significados que as pessoas atribuem às suas próprias experiências.

A pesquisa foi realizada em um CAPSi do município de Santos-SP, ao qual estão vinculados bairros ligados a regiões da orla, morros e parte da região central. No contato com as familiares de crianças acompanhadas no serviço, buscou-se “desenvolver um nível de detalhes sobre a pessoa ou sobre o local e estar altamente envolvido nas experiências reais dos participantes” (Creswell, 2007CRESWELL, J. W. Projeto de pesquisa: método qualitativo, quantitativo e misto. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2007., p. 186), ou seja, seus contextos, na medida em que:

Pesquisa qualitativa envolve o uso de estudos e coleções de uma variedade de materiais empíricos - estudos de caso, experiência pessoal, introspecção, história de vida, entrevistas, […] que descrevem a rotina, momentos problemáticos e seus significados na vida de indivíduos. (Denzin; Lincoln, 2000DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Introduction: the discipline and practice of qualitative research. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Ed.) The SAGE Handbook of Qualitative Research. London: SAGE Publications, 2005. p. 1-33. Disponível em: <Disponível em: https://uk.sagepub.com/sites/default/files/upm-binaries/40425_Chapter1.pdf >. Acesso em: 26 dez 2022.
https://uk.sagepub.com/sites/default/fil...
, p. 3-4, tradução nossa)

Por essa razão, foram utilizadas como instrumento entrevistas em profundidade com roteiro semiestruturado, com familiares mulheres de crianças atendidas no serviço. A escolha da entrevista semiestruturada se justificou porque “está focalizada em um assunto sobre o qual confeccionamos um roteiro com perguntas principais, complementadas por outras questões inerentes às circunstâncias momentâneas à entrevista” (Manzini, 2004MANZINI, E. J. Entrevista semi-estruturada: análise de objetivos e roteiros. In: Seminário internacional sobre pesquisa e estudos qualitativos, 2, 2004, Bauru. A pesquisa qualitativa em debate. Anais… Bauru: USC, 2004. CD-ROOM. p. 1-10., p. 2), centrando-se, dessa forma, em questões específicas e, ao mesmo tempo, naquelas que permitiram a liberdade de discurso para as entrevistadas.

Fraser e Gondim (2004FRASER, M. T. D.; GONDIM, S. M. G. Da fala do outro ao texto negociado: discussões sobre a entrevista na pesquisa qualitativa. Paidéia, v. 14, n. 28, p. 139-152, 2004., p. 149) indicam a entrevista individual “quando o objetivo da pesquisa é conhecer em profundidade os significados e a visão da pessoa”, como foi o caso deste trabalho. Essa modalidade pode oferecer, inclusive, uma maior flexibilidade de agendamento, dependendo das características do entrevistado. As autoras citam “o caso de pessoas mais idosas, doentes e crianças pequenas” e, também, é possível estender essa realidade para mulheres (mães ou familiares) cuidadoras de crianças (6 a 11 anos) que utilizam os serviços do CAPSi.

A princípio, tinha-se previsto a seleção das entrevistadas a partir de sua participação em grupos realizados no CAPSi, os quais, entretanto, foram interrompidos, a partir de março de 2020, devido ao contexto da pandemia de covid-19. Pelo mesmo motivo, as entrevistas precisaram ser adaptadas, os encontros entre as mulheres participantes da pesquisa e a pesquisadora, que aconteceriam no serviço, se tornaram possíveis através de contato telefônico, mantendo-se os princípios norteadores da metodologia qualitativa.

Jonatas Dornelles (2004DORNELLES, J. Antropologia e Internet: quando o “campo” é a cidade e o computador é a “rede”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 10, n. 21, p. 241-271, 2004. DOI: 10.1590/S0104-71832004000100011
https://doi.org/10.1590/S0104-7183200400...
) traz uma reflexão bastante importante a respeito da “desterritorialização em potencial” trazida pelo uso de outras tecnologias que não o encontro nas pesquisas qualitativas. O autor se refere especificamente à internet como mediadora de trocas entre indivíduos geograficamente distantes, que assumimos aqui valer também para o uso de telefones: “importa é que estão cultivando uma interação, independentemente da proximidade geográfica e dependentes do espaço virtual de trocas que se forma” (Dornelles, 2004DORNELLES, J. Antropologia e Internet: quando o “campo” é a cidade e o computador é a “rede”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 10, n. 21, p. 241-271, 2004. DOI: 10.1590/S0104-71832004000100011
https://doi.org/10.1590/S0104-7183200400...
, p. 249). O potencial de tal desterritorialização pôde ser observado na medida em que obtivemos boa receptividade das entrevistadas ao contato com a pesquisadora e à pesquisa em si.

Como critérios para inclusão das entrevistadas, utilizaram-se as seguintes caracterizações: mulheres familiares de crianças atendidas no CAPSi que aceitassem colaborar com a pesquisa. Funcionários do serviço fizeram a mediação entre as mulheres e a pesquisadora, fornecendo os números de telefones das possíveis entrevistadas para contato. A partir das mulheres que aceitaram participar das entrevistas, a pesquisadora verificou a possibilidade de que elas indicassem outras colaboradoras, fornecendo outros contatos telefônicos. A recusa em participar da pesquisa foi adotada como principal critério de exclusão.

Foram entrevistadas quatro mulheres familiares de crianças acompanhadas no serviço. Antes do início das entrevistas, foram feitas perguntas para a caracterização dessas mulheres e de suas famílias, bem como sobre a situação da criança acompanhada no CAPSi.

Na entrevista, foram abordadas questões sobre como se dava o cuidado da criança no dia a dia, como era visto o cuidado no CAPSi e quais eram as orientações recebidas do serviço. A existência de apoios a essas mulheres fora do serviço também foi um tema a ser perguntado, além de como era para a mulher e para a família lidar com o cuidado da criança.

A análise dos dados coletados se deu pela leitura das entrevistas realizadas. Foram identificadas nas falas das entrevistadas as práticas de cuidados exercidas em seu cotidiano, dentro e fora do serviço.

Minayo (2012MINAYO, M. C. S. Qualitative analysis: theory, steps and reliability. Ciência e saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 621-626, 2012. DOI: 10.1590/S1413-81232012000300007
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201200...
, p. 624) enumera alguns passos a respeito das práticas metodológicas qualitativas. Em relação à ordenação organizativa das entrevistas, ela afirma que “dizem respeito ao conteúdo das falas e das observações que a partir de então devem ter prioridade numa leitura atenta, reiterativa e cheia de perguntas. A esse movimento costumo chamar de ‘impregnação’ ou ‘saturação’”.

A autora ainda propõe que, de maneira mais densa, procurem-se temas recorrentes nas falas dos entrevistados, para que, numa análise ainda mais minuciosa, se interprete aquilo que foi dito de maneira que os entrevistados compartilhariam ou até se surpreenderiam com a fidedignidade da compreensão.

A pesquisadora buscou cumprir tais proposições, analisando cuidadosamente o conteúdo das falas das mulheres que participaram do estudo.

Para garantir o anonimato das mulheres e crianças, foram utilizados nomes fictícios, seguindo-se, assim, os preceitos éticos. A pesquisa foi submetida à Secretaria de Saúde do Município de Santos e ao Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo, conforme preconizam as normas da Resolução n. 510 de 7 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido aprovada (CAAE 27889320.4.0000.5505).

Discussão e resultados

Foram realizadas quatro entrevistas durante os meses de abril e maio de 2020. Três das entrevistadas eram mães e uma era avó de crianças atendidas no CAPSi.

O fato de as entrevistas terem sido realizadas no início da pandemia de covid-19 não pareceu ter influenciado a receptividade das entrevistadas e seu lugar de fala, mesmo por telefone. Pelo contrário, talvez devido ao contexto particular do isolamento social, percebeu-se em algumas entrevistadas o desejo de falar sobre o cuidado às crianças e adolescentes. Além disso, a restrição de atividades presenciais no CAPSi, limitadas ao atendimento às situações mais graves e urgentes, o contato com usuários e familiares mantido via telefone e serviços de mensagens online e a suspensão dos atendimentos em grupos foram aspectos que possibilitaram às entrevistadas falarem sobre os apoios que vinham, então, recebendo, dentro e fora do serviço.

De acordo com as respostas às perguntas de caracterização das entrevistadas, identificou-se que essas mulheres tinham entre 40 e 65 anos e em suas casas moravam de três a cinco pessoas, entre elas maridos, outros filhos, uma tia e uma irmã. Todas as entrevistadas afirmaram que eram elas as acompanhantes das crianças no serviço, o que nos possibilitou obter algumas informações mais detalhadas (Quadro 1).

Quadro 1
Características das mulheres e das crianças acompanhadas

Em relação às crianças, ressalta-se que elas tinham entre 7 e 12 anos de idade e o tempo em que eram acompanhadas no serviço variava de menos de 1 ano a 3 anos.

Durante a realização das entrevistas, foi possível reconhecer algumas categorias nativas relativas ao cuidado na fala das entrevistadas, entre elas “rotina”, “normal” e “apoio”, sobre as quais discutiremos a seguir.

O cuidado como rotina e como algo “normal”

As entrevistadas relataram sobre o acompanhamento e ajuda às crianças com deveres da escola, além disso enfatizaram a importância do cumprimento de uma rotina com horas de estudos e de lazer. As mulheres também relataram práticas como colocar comida no prato durante as refeições e ajuda na hora do banho: “eu levava na escola, na fono, […] e no CAPS. E no balé, essa é a rotina. Em casa, é mais banho assim, que ela não conse… que eu ajudo ainda né.” (Márcia, 41 anos)

A partir desse relato, “é possível refletir teoricamente, considerando, ao mesmo tempo, que o cuidado é sempre diferente, pois é construído cotidianamente” (Bustamante; Mccallum, 2014BUSTAMANTE, V.; MCCALLUM, C. Cuidado e construção social da pessoa: contribuições para uma teoria geral. Physis, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 673-692, 2014. DOI: 10.1590/S0103-73312014000300002
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201400...
, p. 688). O fato de as mulheres descreverem práticas do seu dia a dia para responderem “como” se dá o cuidado nos mostra que, de fato, o entendimento e significado que elas lhe atribuem são uma construção cotidiana.

Todas as entrevistadas utilizaram a categoria “normal” para explicar como se dava o cuidado. Essa categoria era mencionada por algumas mulheres em frases como “[o cuidado é normal], é tranquilo” e “[o cuidado é normal], cuidados da idade mesmo”, outras diziam “é complicado, [é normal]”, “os cuidados que eu tenho com ele são os cuidados dispensado ne, a um adolescente de 12 anos”. Portanto, o caráter “normal” do cuidado estava atrelado tanto ao fluxo diário de atividades delas como às dificuldades que enfrentavam, em função das pessoas sob seus cuidados: “cuidados da idade mesmo” e “cuidados dispensados a um adolescente de 12 anos”.

O cuidado como algo “normal” parece reforçar a tendência à naturalização desse ato como uma responsabilidade das mulheres, indicando, assim, a feminização do cuidado, como apontado por Thomas (1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993.).

Contribui para esta análise o fato de que a categoria “rotina” também foi utilizada pelas mulheres repetidas vezes, como apontado. O cuidado das crianças é facilitado com o estabelecimento de rotinas e, assim, normalizado no dia a dia dessas mães e dessa avó.

Percebeu-se, por exemplo, o estabelecimento de uma rotina quando Rita, uma avó, descreve a organização do dia de Giovana, que começa com o café da manhã, segue por um espaço de tempo de estudos da neta, tem momentos de brincadeira até a hora de dormir a tarde e termina com programas e desenhos na televisão.

A questão da rotina e dos horários também é enfatizada por uma mãe:

Ele vai pra escola, é… sempre que possível ele faz alguma atividade desportiva, é, eu acompanho bastante a evolução dele no colégio, é… ele tem o horário dele de lazer, de distrair em casa com o irmão, vê desenhos. (Solange, 45 anos)

Assim, percebe-se que a rotina parece ter um importante significado na prática cotidiano do cuidado com crianças: “pra eles [filhos], né, a coisa da rotina é muito importante.” (Marcela, 40 anos)

Assim, as categorias nativas mencionadas contribuem para a compreensão a respeito das práticas de cuidado, que Bustamante e McCallum (2014BUSTAMANTE, V.; MCCALLUM, C. Cuidado e construção social da pessoa: contribuições para uma teoria geral. Physis, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 673-692, 2014. DOI: 10.1590/S0103-73312014000300002
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201400...
) entendem como construções do cotidiano. O entendimento de que a manutenção do dia a dia garante uma organização e facilita o cuidado das crianças parece trazer para essas mulheres certa estabilidade e segurança. Não há estranhamento aparente nas falas sobre essa cotidianidade, mas sim na falta de rotina ou apoio do CAPSi, como veremos adiante.

Nesse sentido, é possível observar um contraponto bastante interessante em relação à sobrecarga sofrida por familiares cuidadores, tão presente na bibliografia como apontado na introdução do presente trabalho (Santin; Klafke, 2011SANTIN, G.; KLAFKE, T. E. A família e o cuidado em saúde mental. Barbaroi, Santa Cruz do Sul, n. 34, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-65782011000100009&lng=pt&nrm=iso >. Acesso em: 26 dez 2022
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
; Pegoraro;. Caldana, 2006PEGORARO, R. F.; CALDANA, R. H. L.. Sobrecarga de familiares de um centro de atenção psicossocial. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 3, p. 569-577, 2006.; Muylaert; Delfini; Reis, 2015MUYLAERT, C. J.; DELFINI, P. S. S.; REIS, A. O. A. Relações de gênero entre familiares cuidadores de crianças e adolescentes de serviços de saúde mental. Physis, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 41-58, 2015. DOI: 10.1590/S0103-73312015000100004
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201500...
; Campelo; Costa; Colvero, 2014CAMPELO, L. L. C. R.; COSTA, S. M. E.; COLVERO; L. A. Dificuldades das famílias no cuidado à criança e ao adolescente com transtorno mental: uma revisão integrativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP. v. 48, n. spe, p. 192-198, 2014. DOI: 10.1590/S0080-623420140000600027
https://doi.org/10.1590/S0080-6234201400...
). Apesar dos atravessamentos individuais de cada participante, que ora implicavam no cuidado da criança, ora não, a pesquisadora não identificou essa sobrecarga da forma com que a bibliografia apontava. Vale ressaltar que não se trata aqui de desvalorizar ou deslegitimar o trabalho muitas vezes sofrido das entrevistadas, apenas afirmar que o sofrimento não foi mencionado pelas mulheres como um problema associado ao cuidado, que era entendido como absolutamente cotidiano para as entrevistadas, como algo “normal”, fato evidente em suas falas. Essa noção do cuidado como um olhar para as questões do cotidiano é enfatizado por Laugier (2017LAUGIER, S. El cuidado, la preocupación por el detalle y la vulnerabilidad de lo real. Konvergencias, Filosofía y Culturas en Diálogo, Buenos Aires, n. 25, 2017., p. 6) ao definir o termo:

O “cuidado” é um esforço para enfatizar na esfera moral a atenção ao particular, aos detalhes comuns da vida humana […]. É este desejo de descrição que modifica a moral e a torna frágil: aprender a ver o que é importante e o que não registramos, justamente porque está diante de nossos olhos…

A cotidianidade com a qual o cuidado é percebido por essas mulheres, além da atribuição majoritária das atividades que ele implica sobre elas, são indicativos de que o cuidar é “normal” quando realizado por mulheres, sobretudo por familiares, no âmbito privado e informal. Ainda, esta percepção não é apenas das análises sociológicas, percebidas por pesquisadores e observadores de fora da prática do cuidado, mas das próprias cuidadoras. Mesmo as dificuldades existentes no dia a dia com as crianças, os esforços não registrados ou até a sobrecarga enfrentada indiretamente não se manifestaram como questões ou como problemas a serem solucionados para essas mulheres.

Guimarães e Hirata (2014GUIMARÃES, N. A.; HIRATA, H. Apresentação: Controvérsias desafiadoras. Tempo social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 9-16, 2014.), assim como Carol Thomas (1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993.), apontam para a questão de gênero pela qual o cuidado (ou care) está envolto. As desigualdades no trabalho do cuidado se dão especialmente por sua naturalização como papel social atribuído às mulheres. Ainda, a relação familiar das cuidadoras e das crianças pode remeter à caracterização carinhosa, amorosa e “maternal” do cuidado, reforçando a atribuição das tarefas com as crianças às mulheres entrevistadas, como parte de seu dia a dia.

Apoio dentro e fora do CAPS

A respeito do cuidado realizado no CAPSi, as mulheres disseram ser “muito bom”, “tem tido ganhos” e o consideram “fraternal”, ainda que nenhuma soubesse dizer exatamente quais eram as atividades que as crianças realizavam com os profissionais.

Ao falarem sobre a existência de algum apoio dentro do serviço, as mulheres mencionaram o cuidado realizado no CAPSi, principalmente como local de escuta e de esclarecimento de dúvidas, como destacaram algumas entrevistadas: “geralmente sou eu que levo alguma demanda pra eles, e aí eles acabam me apoiando, me orientando, como que eu tenho que lidar com o A., nas demandas que eu acabo levando pra eles” (Solange, 45 anos); “O bom é assim, quando você tem alguma dúvida ne, sobre a criança, sobre tudo, até a escola, sobre o que ajuda, o apoio, é lá” (Márcia, 41 anos); “[…] é o que eu tô te falando, antes de eu poder ir no CAPS, antes eu não sabia lidar. Eu fui aprender lá. E aceitar lá, né. Então, aí, por isso que eu aprendi” (Márcia, 41 anos).

Curiosamente, não houve nenhuma especificação a respeito de quais eram as orientações que o serviço dava, embora as entrevistadas tenham afirmado que suas dúvidas e demandas eram atendidas e que era “tranquilo” seguir as orientações passadas pelos profissionais. Nota-se, mais uma vez, a importância da relação intersubjetiva do cuidado, apontada por Ayres (2009AYRES, J. R. C. M. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Cepesc, 2009.), se adequando à necessidade da construção dialogada entre familiar e profissional no cuidado da criança.

Se, de um lado, o apoio que essas entrevistadas encontram no CAPSi tem relação com orientações e aprendizados sobre como lidar com suas crianças, de outro lado, este também é um lugar que possibilita um apoio emocional, pois “dá equilíbrio” (Marcela, 40 anos).

Outras entrevistadas ressaltaram a importância do acompanhamento no CAPSi também para o cuidado feito pela família:

Bom, hoje em dia é tranquilo, né, ele colabora, ele é consciente da… da importância do tratamento, do que ele tem, dos limites, das…das…das possibilidades também, é… que isso não é motivo pra ele não se desenvolver bem, não se desenvolver em todas as áreas, então hoje em dia é bem tranquilo, não tenho problema nenhum. (Solange, 45 anos)

Ah, eu…eu me sinto bem, sinto realizada. não é tão difícil não. Não é difícil não. Eu já me acostumei já com… assim, eu, eu, eu começo, sabe, ah, eu… é o que eu to te falando, antes de eu puder ir no CAPS, antes eu não sabia lidar. Eu fui aprender lá. E aceitar lá, ne. Então, aí, por isso que eu aprendi. (Márcia, 41 anos)

Ayres (2004AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 16-29, 2004. DOI: 10.1590/S0104-12902004000300003
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200400...
) discorre a respeito da humanização das práticas de cuidado na saúde e faz da filosofia de Heidegger, sobre o cuidado como condição ao ser existencial do humano, suporte para sua definição, juntando a ela a noção técnica que é característica de profissionais da área.

Fidélis (2018FIDÉLIS, A. C. Sentido do cuidado em saúde mental: sobre a rede de atenção psicossocial do Sistema Único de Saúde (SUS). Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 561-582, 2018. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00126
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol001...
) também se utiliza de Heidegger para discutir o cuidado. A autora diz que, na Saúde Mental e na Saúde como um todo, o cuidado praticado deve ser o que valoriza o ser humano e sua vivência, seguindo o pensamento existencial. Ela discute o que Ayres (2009AYRES, J. R. C. M. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Cepesc, 2009., p. 27) chama de “cuidado intersubjetivo”, como sendo norteado pelo ser e pela relação entre indivíduos, diferenciando-o do “cuidado operacional” que “guarda relações com o modelo biomédico, em que o saber científico conduz, determina e normatiza as práticas.” (Fidélis, 2018FIDÉLIS, A. C. Sentido do cuidado em saúde mental: sobre a rede de atenção psicossocial do Sistema Único de Saúde (SUS). Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 561-582, 2018. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00126
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol001...
, p. 573).

Ao analisarmos as falas das mulheres sobre o cuidado no serviço, percebemos essa relação de troca entres profissionais e cuidadoras. O CAPSi funciona não somente como local de aprendizado técnico para o “lidar” com a criança, mas também como lugar de acolhimento e de sustentação.

Em relação ao apoio que essas mulheres têm fora do serviço, duas das entrevistadas relataram, num primeiro momento, que não contavam com ajuda alguma: “sou eu a responsável que acompanha esses atendimentos dele, que leva.” (Solange, 45 anos); “Fora não, só eu mesmo. É porque eu sou viúva, né? […] ninguém… só eu mesmo, é 24 horas comigo.” (Márcia, 41 anos). No entanto, com o fluir da conversa, as mesmas entrevistadas mencionaram uma vizinha e uma irmã que, em determinadas ocasiões, poderiam ajudá-las: “Eu tenho uma irmã que fica com ela as vezes” (Márcia, 41 anos).

Uma das entrevistadas respondeu que o pai das crianças era “indiferente” no cuidado com os filhos e que ele “às vezes peca um pouco” (Marcela, 40 anos), situação particular que, mais uma vez, recai na feminização das práticas de cuidado, especificamente dentro das famílias. Por outro lado, em que pese a ênfase atribuída ao papel das mulheres no cuidado, uma entrevistada disse contar com o apoio do marido no cuidado da criança: “sim tenho. Eu e meu marido, nós cuidamos do João” (Solange, 45 anos).

É possível identificar nessas falas o papel de cuidadora atribuído majoritariamente às mulheres, assim como analisaram Thomas (1993THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993.) e Pegoraro e Caldana (2006PEGORARO, R. F.; CALDANA, R. H. L.. Sobrecarga de familiares de um centro de atenção psicossocial. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 3, p. 569-577, 2006.), visto que a rede de apoio com que essas cuidadoras contam, fora de suas casas, também consistia em mulheres. Ainda que duas entrevistadas tivessem mencionado seus maridos como apoio, todas afirmaram serem as responsáveis por acompanhar as crianças no CAPSi, um indicativo de como, em relação ao trabalho de cuidado, as relações sociais assimétricas entre homens e mulheres são evidentes (Guimarães; Hirata, 2020GUIMARÃES, N. A.; HIRATA, H. O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades. Cotia: Ateliê Editorial, 2020.).

Considerações finais

Os resultados desta pesquisa evidenciaram que o entendimento das práticas de cuidado de mulheres familiares de crianças está atrelado ao cotidiano e à rotina das crianças. Auxiliar com os deveres da escola, com a saúde, com alimentação e com o lazer das crianças foram práticas mencionadas pelas mulheres em seu dia a dia.

As redes de apoio das quais essas mulheres se utilizam são, primeiramente, o CAPSi e, fora dele, algumas contam com maridos ou outras mulheres, esporadicamente. Entretanto, é necessário destacar que, ainda que essas formas de apoio tenham sido mencionadas em todas as entrevistas, duas das participantes caracterizaram-se como únicas cuidadoras.

A análise das entrevistas levou à seguinte reflexão: a categoria nativa “normal”, tão utilizada pelas mulheres para descrever e se relacionar com o cuidado no dia a dia, seria também utilizada por cuidadores homens? Ou seria esta escolha de palavras uma expressão associada à feminização e atribuição do papel de cuidadora que as mulheres desempenham, sendo “normal” para “elas” exercerem majoritariamente essas práticas?

Sobre essas questões, Guimarães e Hirata (2014GUIMARÃES, N. A.; HIRATA, H. Apresentação: Controvérsias desafiadoras. Tempo social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 9-16, 2014., p. 13) afirmam:

a participação masculina na divisão sexual do trabalho doméstico, como uma reserva relevante de cuidado, permanece, entre nós, ausente do espectro do possível, tanto na prática social como no discurso acadêmico, de tal forma que a questão do cuidado aparece como um problema de e para as mulheres.

O cuidado de crianças, especialmente aquelas que também são atendidas num serviço de saúde mental infantil, é uma atividade por si bastante exigente. Ainda que a sobrecarga não tenha aparecido como uma queixa, o fato de que duas mulheres na pesquisa tenham se manifestado como únicas cuidadoras, numa área como a saúde mental, em que a discussão sobre redes de apoio é constantemente trazida, nos faz pensar sobre a falta de compartilhamento desta prática social.

O trabalho, além de nos dar um panorama mais atualizado sobre o cuidado com crianças atendidas pela rede de atenção à saúde mental, o faz num contexto histórico bastante único: o do início da pandemia de covid-19. Mesmo com o advento pandêmico, as mulheres puderam identificar e transmitir a importância do apoio ofertado pelo CAPSi, além de contarem sobre as práticas de cuidado no seu dia a dia com as crianças.

Constatamos a necessidade de mais estudos que abordem a temática do cuidado de famílias de crianças relacionado à saúde mental infantil, principalmente no momento atual, em função das consequências trazidas pela pandemia de covid-19. Esperamos, com este trabalho, contribuir para a atualização e reflexão sobre o cuidado, marcadamente feminino e normatizado, neste e em outros campos da saúde.

Referências

  • AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 16-29, 2004. DOI: 10.1590/S0104-12902004000300003
    » https://doi.org/10.1590/S0104-12902004000300003
  • AYRES, J. R. C. M. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Cepesc, 2009.
  • BUSTAMANTE, V.; MCCALLUM, C. Cuidado e construção social da pessoa: contribuições para uma teoria geral. Physis, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 673-692, 2014. DOI: 10.1590/S0103-73312014000300002
    » https://doi.org/10.1590/S0103-73312014000300002
  • CAMPELO, L. L. C. R.; COSTA, S. M. E.; COLVERO; L. A. Dificuldades das famílias no cuidado à criança e ao adolescente com transtorno mental: uma revisão integrativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP. v. 48, n. spe, p. 192-198, 2014. DOI: 10.1590/S0080-623420140000600027
    » https://doi.org/10.1590/S0080-623420140000600027
  • COUTO, M. C. V.; DUARTE, C. S.; DELGADO, P. G. G. A saúde mental infantil na Saúde Pública brasileira: situação atual e desafios. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 30, n. 4, p. 384-389, 2008. DOI: 10.1590/S1516-44462008000400015
    » https://doi.org/10.1590/S1516-44462008000400015
  • CRESWELL, J. W. Projeto de pesquisa: método qualitativo, quantitativo e misto. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2007.
  • DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Introduction: the discipline and practice of qualitative research. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. (Ed.) The SAGE Handbook of Qualitative Research. London: SAGE Publications, 2005. p. 1-33. Disponível em: <Disponível em: https://uk.sagepub.com/sites/default/files/upm-binaries/40425_Chapter1.pdf >. Acesso em: 26 dez 2022.
    » https://uk.sagepub.com/sites/default/files/upm-binaries/40425_Chapter1.pdf
  • DORNELLES, J. Antropologia e Internet: quando o “campo” é a cidade e o computador é a “rede”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 10, n. 21, p. 241-271, 2004. DOI: 10.1590/S0104-71832004000100011
    » https://doi.org/10.1590/S0104-71832004000100011
  • FIDÉLIS, A. C. Sentido do cuidado em saúde mental: sobre a rede de atenção psicossocial do Sistema Único de Saúde (SUS). Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 561-582, 2018. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00126
    » https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00126
  • FRASER, M. T. D.; GONDIM, S. M. G. Da fala do outro ao texto negociado: discussões sobre a entrevista na pesquisa qualitativa. Paidéia, v. 14, n. 28, p. 139-152, 2004.
  • GUIMARÃES, N. A.; HIRATA, H. Apresentação: Controvérsias desafiadoras. Tempo social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 9-16, 2014.
  • GUIMARÃES, N. A.; HIRATA, H. O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades. Cotia: Ateliê Editorial, 2020.
  • LAUGIER, S. El cuidado, la preocupación por el detalle y la vulnerabilidad de lo real. Konvergencias, Filosofía y Culturas en Diálogo, Buenos Aires, n. 25, 2017.
  • MANZINI, E. J. Entrevista semi-estruturada: análise de objetivos e roteiros. In: Seminário internacional sobre pesquisa e estudos qualitativos, 2, 2004, Bauru. A pesquisa qualitativa em debate. Anais… Bauru: USC, 2004. CD-ROOM. p. 1-10.
  • MINAYO, M. C. S. Qualitative analysis: theory, steps and reliability. Ciência e saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 621-626, 2012. DOI: 10.1590/S1413-81232012000300007
    » https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007
  • MUYLAERT, C. J.; DELFINI, P. S. S.; REIS, A. O. A. Relações de gênero entre familiares cuidadores de crianças e adolescentes de serviços de saúde mental. Physis, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 41-58, 2015. DOI: 10.1590/S0103-73312015000100004
    » https://doi.org/10.1590/S0103-73312015000100004
  • PEGORARO, R. F.; CALDANA, R. H. L.. Sobrecarga de familiares de um centro de atenção psicossocial. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 3, p. 569-577, 2006.
  • SANTIN, G.; KLAFKE, T. E. A família e o cuidado em saúde mental. Barbaroi, Santa Cruz do Sul, n. 34, 2011. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-65782011000100009&lng=pt&nrm=iso >. Acesso em: 26 dez 2022
    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-65782011000100009&lng=pt&nrm=iso
  • TENÓRIO, F. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, v. 9, n. 1, p. 25-59, 2002.
  • THOMAS, C. De-constructing concepts of care. Sociology, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 649-669, 1993.
  • VICENTE, J. B.; HIGARASHI, I. H.; FURTADO, M. C. C. Mental disorder in childhood: family structure and their social relations. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 107-114, 2015. DOI: 10.5935/1414-8145.20150015
    » https://doi.org/10.5935/1414-8145.20150015

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2022
  • Revisado
    13 Abr 2022
  • Revisado
    25 Ago 2022
  • Aceito
    03 Nov 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br