Conferências de saúde e a hanseníase: ditos e silenciamentos sobre a doença negligenciada e seus estigmas

Kauanne Naysa Alves Pegaiani Noeleni de Souza Pinto Adriane Pires Batiston Mara Lisiane de Moraes dos Santos Károl Veigas Cabral Márcio Mariath Belloc Alcindo Antônio Ferla Sobre os autores

Resumo

Vista como um sério problema de saúde pública em diferentes localidades, a hanseníase é marcada por tabus e carregada de estigmas. É uma doença negligenciada e constituída por diversas explicações ao longo da história, que atualizam marcas vivas do passado, inclusive na implementação de políticas públicas. As conferências de saúde são espaços de participação da sociedade na definição de políticas, com o objetivo de impactar o plano de cuidado de diferentes enfermidades. O objetivo deste artigo é compreender a relevância e as perspectivas apontadas às políticas públicas para a atenção às pessoas acometidas por hanseníase presentes nas etapas municipal, estadual e nacional da 16ª Conferência Nacional de Saúde. Trata-se de uma pesquisa documental baseada nos relatórios finais e na esteira do processo ascendente da 16ª Conferência Nacional de Saúde. Os resultados demonstram a falta de visibilidade da hanseníase nos relatórios das etapas municipal e estadual da conferência e, na etapa nacional, o registro tem dupla ênfase, produzir visibilidade sobre a doença e seu contexto, reivindicando atualizar a mobilização social em torno dela e ações de educação permanente voltadas aos trabalhadores.

Palavras-chave:
Doença negligenciada; Estigma; Participação cidadã; Políticas públicas de saúde

Introdução

Vista como um sério problema de saúde pública em diferentes localidades, a hanseníase é marcada por tabus e carregada por estigmas. A explicação religiosa e transcendente da doença foi paradigmática ao longo da Idade Média, associada ao princípio do dogma ao qual a ciência e a vida estavam submetidas (Inacio; Invernizzi, 2019INÁCIO, M.; INVERNIZZI, N. Nanotecnologias para doenças negligenciadas no Brasil: trajetórias de pesquisa, incentivos e perspectivas. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences, Maringá, v. 41, n. 1, e45769, 2019. DOI: 10.4025/actascihumansoc.v41i1.45769
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). O estigma foi produzido, em grande parte, pela explicação religiosa vigente ao longo do período medieval e, posteriormente, fortalecido pela ação das políticas públicas, que se centravam no isolamento e na criminalização dos portadores, bem como na responsabilização da sociedade pela “denúncia” dos casos suspeitos às autoridades policiais e sanitárias.

A doença milenar tinha, como explicação religiosa, um castigo divino perante ações pecaminosas das pessoas. Os indivíduos acometidos por ela eram excluídos da sociedade, pela família e pelos amigos, além de serem condenados ao isolamento compulsório nos chamados “leprosários” ou “hospitais-colônia”. Ao longo dos anos, outras medidas de controle e tratamento dos doentes foram sendo incorporados (Baialardi, 2007BAIALARDI, K. S. O estigma da hanseníase: relato de experiência em grupo com pessoas portadoras. Hansenologia Internationalis, Bauru, v. 32, n. 1, p. 27-36, 2007. DOI: 10.47878/hi.2007.v32.35191
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) com o desenvolvimento da abordagem medicamentosa (Baialardi, 2007BAIALARDI, K. S. O estigma da hanseníase: relato de experiência em grupo com pessoas portadoras. Hansenologia Internationalis, Bauru, v. 32, n. 1, p. 27-36, 2007. DOI: 10.47878/hi.2007.v32.35191
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; Pinto Neto et al., 2000PINTO NETO, J. M. et al. O controle dos comunicantes de hanseníase no Brasil: uma revisão da literatura. Hansenologia Internationalis, Bauru, v. 25, n. 2, p. 163-176, 2000.). No Brasil, no entanto, só após a ampliação do conceito de saúde na Constituição brasileira de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) aconteceram avanços substanciais nas ações de cuidado nos serviços de saúde.

Embora os casos de hanseníase estejam diminuindo, o Brasil não conseguiu atingir a meta de eliminação (um caso para cada 10 mil habitantes) e ocupa o segundo lugar no ranking mundial de casos. A hanseníase é uma doença silenciosa, com período de incubação variando de 2 a 7 anos e alto poder incapacitante. Os primeiros sintomas são lesões como manchas pigmentares ou discrômicas, placas, tubérculos, nódulos que apresentam alterações da sensibilidade. A doença se propaga por meio dos casos multibacilares não tratados, que disseminam a infecção no início da contaminação até a sua primeira dose de poliquimioterapia (PQT) (Magalhães; Rojas, 2007MAGALHÃES, F. G. G. P.; XAVIER, W. S. Processo participativo no controle social: um estudo de caso do conselho municipal de saúde de Juiz de fora (MG). Revista Eletrônica de Administração, Porto Alegre, v. 25, n. 1, p. 179-212, 2019. DOI: 10.1590/1413-2311.233.87813
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). O contexto institucional do SUS define o direito de todas as pessoas ao acesso a ações e serviços que sejam necessários, sendo as diretrizes para as políticas de saúde em cada localidade definidas por meio da participação da população nas conferências e conselhos de saúde. A participação da sociedade é uma definição da Constituição de 1988 e da Lei Federal nº 8.080, de 1990.

A participação social na saúde e nas políticas públicas do Brasil tem um marco histórico na realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde (8ª CNS), que foi fundamental para a reforma do sistema de saúde, embasando as ações e serviços em modelagens mais democráticas e na integralidade da atenção (Ferla, 2004FERLA, A. A. Participação da População: do Controle sobre os Recursos a uma Produção Estética da Clínica e da Gestão em Saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 85- 108, 2004. DOI: 10.1590/S0103-73312004000100006
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). As conferências de saúde são espaços de participação da sociedade na avaliação e na definição de políticas de saúde que ocorrem periodicamente. Dessa forma, em 2019, foi realizado o processo da 16ª CNS, cujo temário geral, de forma similar à 8ª CNS, foi a relação entre saúde e democracia, tal associação foi tornada visível com a marca da “Conferência 8ª + 8”, além da retomada dos temas fundamentais da 8ª CNS: como o direito à saúde, reestruturação do sistema de saúde e o financiamento setorial, ratificando o percurso da reforma sanitária brasileira conforme registrado nos documentos gerados durante sua realização.

Os documentos oficiais utilizados na pesquisa não são apenas registros fixos na história, mas os referentes às “realizações produzidas pelo homem que se mostram como indícios de sua ação e que podem revelar suas ideias, opiniões e formas de atuar e viver” (Silva et al., 2009SILVA, L. R. C. et al. Pesquisa documental: alternativa investigativa na formação docente. In: ENCONTRO SUL BRASILEIRO DE PSICOPEDAGOGIA. 3., 2009, Paraná. Congresso [...]. Paraná: UFPR, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://proinclusao.ufc.br/wp-content/uploads/2021/08/pesquisa-documental.pdf >. Acesso em: 11 jul. 2021.
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, p. 4554), além de um platô na construção de consensos e/ou negociação de dissensos sobre a agenda da política de saúde que explicita, ao mesmo tempo, uma certa acumulação “arqueológica” relativa ao desenvolvimento dos saberes e fazeres no campo da saúde e das políticas públicas, assim como uma alquimia “genealógica”, que se refere ao exercício de poder e às articulações de força entre os diferentes segmentos participantes (Ferla, 2004FERLA, A. A. Participação da População: do Controle sobre os Recursos a uma Produção Estética da Clínica e da Gestão em Saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 85- 108, 2004. DOI: 10.1590/S0103-73312004000100006
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). Essa dupla condição de produção dos relatórios é fundamental na construção de suas análises.

Essa condição é visível nos documentos que demonstram o enfrentamento da hanseníase ao longo da história. Iniciativas importantes, como o Programa Nacional de Eliminação da Hanseníase (PNEH) de 2004, a Portaria nº 399 (Pacto pela Saúde) de 2006 e a Portaria nº 125 (Ações de Controle da Hanseníase) de 2009 valem pelo seu conteúdo técnico, mas também são expressão da relevância que a temática tem para os diferentes atores e a capacidade destes de colocar o tema na agenda dos debates, assim como de tornar a hanseníase uma prioridade no âmbito do SUS.

Apresentamos aqui o resultado de uma participação que vem tendo capacidade de impactar o plano estético do cuidado e que pode incorporar diferentes saberes além do biomédico, envolvendo maior grau de participação do usuário na gestão do seu cuidado, em que possa colocar não só as necessidades relativas aos aspectos biomédicos da doença, mas também os demais aspectos que a envolvem, inclusive suas redes de apoio (Ferla, 2004FERLA, A. A. Participação da População: do Controle sobre os Recursos a uma Produção Estética da Clínica e da Gestão em Saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 85- 108, 2004. DOI: 10.1590/S0103-73312004000100006
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).

Este artigo tem como objetivo analisar e compreender a relevância e as perspectivas apontadas às políticas públicas para a atenção às pessoas acometidas de hanseníase presentes nas etapas municipal, estadual e nacional da 16ª Conferência Nacional de Saúde.

Metodologia

Este artigo se trata de um estudo de caso sobre a formulação de políticas para o controle da hanseníase e o cuidado às pessoas e coletividades atingidas pela doença ou pelo risco de contraí-la, assim como suas consequências, na esteira do processo ascendente da 16ª CNS. Baseia-se nos relatórios finais de diversas Conferências, entre elas a 16ª Conferência Nacional de Saúde, 9ª Conferência Estadual de MS e da 8ª Conferência Municipal de Campo Grande - MS. Os documentos foram tratados por meio da análise de conteúdo temático, com leitura flutuante e categorização empírica. Buscamos tanto o que é comum nos três relatórios quanto o que é particular do município, e em cada uma dessas situações, partirmos desse contexto para discutir contextos mais amplos (Alves-Mazzotti, 2006)ALVES-MAZZOTTI, A. J. Usos e abusos dos estudos de caso. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. 129, 2006. DOI: 10.1590/S0100-15742006000300007
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. A pesquisa documental é baseada em materiais considerados fontes primárias, que não recebem tratamento analítico e é o pesquisador quem analisa os fatos, sem interferência, apenas interpretações (Sá-Silva; Almeida; Guindani, 2009SÁ-SILVA, J. R.; ALMEIDA, C.D.; GUINDANI, J.F. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Rev Bras Hist Cienc Soc, [S. l.], v. 1, n. 1, p. 1-13, 2009. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.furg.br/rbhcs/article/view/10351 . Acesso em: 31 jul. 2021.
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).

O primeiro momento da pesquisa consistiu na análise documental dos relatórios finais produzidos no âmbito das etapas municipal, estadual e nacional da 16ª Conferência Nacional de Saúde. Inicialmente, foi feita a leitura dos três relatórios, trazendo como tema central “Democracia e Saúde: Saúde como Direito e Consolidação e Financiamento do SUS”. E aos eixos temáticos: Saúde como direito; Consolidação dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS); e Financiamento adequado e suficiente para o SUS. Logo após a leitura geral, foram realizadas leituras minuciosas, com o propósito de buscar registros sobre o cuidado à doença e/ou às propostas de organização do trabalho na atenção básica que permitam caracterizar eventuais mudanças em relação à atenção às pessoas portadoras de hanseníase. Em seguida, realizou-se o levantamento do material por temáticas que englobavam o universo da pesquisa subdividida em eixos: 1) proposições específicas para pessoas que vivem com hanseníase; 2) proposições específicas sobre doenças negligenciadas e/ou doenças de relevância para grupos mais vulneráveis; e 3) proposições gerais que se aplicam ao contexto da hanseníase e doenças negligenciadas.

Logo depois, o material foi organizado com as temáticas supracitadas e trechos mais significativos que foram transcritos dos documentos analisados. O terceiro passo foi construir quadros com os dados relacionados, sem perder de vista a contextualização principal do estudo. Tal organização permitiu identificar as circunstâncias sobre assuntos a serem analisados e, como se observa, o próprio material dirigiu o estabelecimento dos temas que viriam a compor as categorias de análise, sendo possível mapear temas emergentes para, em seguida, promover a categorização e o cruzamento do conteúdo-chave ali identificado com a literatura. Desse modo, cada eixo permitiu construir três novas categorias de análise. Importante registrar que a categorização temática não recorta precisamente a realidade, mas produz um rizoma interpretativo que, colocando ideias em articulação, também permite movimentos de pensamento e abre novas janelas para embasar iniciativas.

O primeiro eixo (Proposições específicas para pessoas que vivem com hanseníase) permitiu a elaboração de três categorias de análise: a) a invisibilidade da hanseníase nas políticas e no sistema de saúde; b) a hanseníase como doença nas suas dimensões clínica e biológica; e c) a hanseníase como estigma.

O segundo eixo (Proposições específicas sobre doenças negligenciadas e/ou doenças de relevância para grupos mais vulneráveis) possibilitou a criação de mais três categorias de análise: a) a vulnerabilidade social e sanitária como problema para o sistema de saúde; b) o acesso de populações e grupos vulneráveis a redes de atenção com ações especializadas e resolutivas; e c) populações e grupos vulneráveis e as ações territoriais da atenção básica.

Por fim, o terceiro eixo (Proposições gerais que se aplicam ao contexto da hanseníase e doenças negligenciadas) proporcionou a organização de outras três categorias: a) a defesa do SUS como modelagem de ações e serviços e como conquista social; b) o financiamento do sistema de saúde e as suas ameaças; e c) o envolvimento da sociedade como um todo na agenda da defesa do SUS.

Para facilitar a visualização do material produzido, foram construídos quadros-síntese que apresentarão os eixos já identificados, contendo os fragmentos mais significativos dos documentos analisados. Essa análise possibilitou visualizar pontos que são fundamentais no que se refere à realidade vivenciada por pessoas acometidas pela hanseníase e, assim, construir as categorias temáticas que compõem a análise da pesquisa.

Resultados

Como registramos acima, a análise dos relatórios das etapas da 16ª Conferência Nacional de Saúde permitiu a construção de três eixos de análise. O Quadro 1 organizou os registros sobre a doença propriamente dita, resultando da leitura cuidadosa para localizar o registro textual ou de iniciativas voltadas para a atenção à saúde de pessoas ou grupos acometidos pela hanseníase.

Quadro 1
Deliberações das etapas da 16º Conferência Nacional de Saúde específica sobre hanseníase

Como se verifica no quadro anterior, foi muito escasso o registro específico sobre a hanseníase, identificado somente na etapa nacional da 16º Conferência Nacional de Saúde. Ou seja, constatou-se a inexistência de discussões e registros específicos a respeito da hanseníase nas conferências analisadas. A falta de reconhecimento, como visto no Quadro 1, ressalta o quão importante é pensar na luta das pessoas atingidas pela doença e na relocalização desta no imaginário da população, até mesmo dos militantes da saúde. A construção dos eixos específicos propostos nesses quadros busca dar maior visibilidade e melhor compreensão do espaço que as pessoas e grupos acometidos pela doença ocupam na formulação das políticas públicas e na proposição de medidas de promoção. No caso específico da hanseníase, doença cuja história envolve a produção social e sanitária de estigma e isolamento, os registros nos relatórios finais das conferências também explicitam o lugar secundário que as medidas de reinserção das pessoas na sociedade ocupam na agenda sócio-sanitária.

Essa constatação permite construir três categorias empíricas de análise para esse eixo: a) a invisibilidade da hanseníase nas políticas e no sistema de saúde; b) a hanseníase como doença nas suas dimensões clínica e biológica; e c) a hanseníase como estigma. Essas categorias serão abordadas posteriormente.

Já o Quadro 2, que caracteriza o segundo eixo da análise, buscou sistematizar se há deliberações para orientação das políticas públicas sobre agravos e doenças que incidem de formas diferentes em populações específicas, negligenciadas e vulneráveis ou se estas passam despercebidas devido às variações na distribuição, que se dá de forma desigual.

Quadro 2
Deliberações das etapas da 16ª Conferência Nacional de Saúde específicas sobre doenças negligenciadas e/ou doenças de relevância para grupos mais vulneráveis

Nesse eixo de análise, identifica-se a existência de deliberações nas três etapas da 16ª Conferência Nacional de Saúde. Há variações importantes em relação ao detalhamento de ações e à denominação dos grupos específicos, mas o sentido de negligência de políticas públicas com grupos sociais e populações específicas está descrito como um problema na agenda das políticas de saúde e demais políticas públicas, principalmente por meio de ações intersetoriais da saúde. Nos três fóruns, foi indicada aos formuladores de políticas a necessidade de ações diferenciadas para essas populações, grupos e agravos, como iniciativas da produção de equidade.

Os registros permitem construir três categorias empíricas para esse eixo de análise: a) a vulnerabilidade social e sanitária como problema para o sistema de saúde; b) o acesso de populações e grupos vulneráveis a redes de atenção, com ações especializadas e resolutivas; e c) populações e grupos vulneráveis e as ações territoriais da atenção básica.

Para a elaboração do Quadro 3, foram sistematizados os registros relativos às características do que poderia ser conduzido pelos princípios e diretrizes do SUS, assim como propostas e políticas de implantação, acesso universal e gratuito, assistência farmacêutica e influência do modelo biomédico.

Quadro 3
Deliberações das etapas da 16ª Conferência Nacional de Saúde com temas gerais que se aplicam ao contexto da hanseníase e doenças negligenciadas

A defesa do SUS, do financiamento adequado e da implementação de políticas conforme as definições do texto da Constituição Federal de 1988 e do ideário construído no interior do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira são retomados nessas deliberações, inclusive como resposta ao dispositivo da convocação da própria conferência, que simbolizou a 16ª edição com a marca da “8ª + 8”, recuperando o slogan e as ideias que fundaram a formulação do SUS.

Fica evidente que as deliberações falam sobre a garantia dos direitos em leis, mas a capacidade efetiva de ofertas e serviços públicos de saúde à população é uma lacuna. Além disso, a luta pela equidade e integralidade acarreta uma necessidade de reconsiderar aspectos importantes de planejamento, oferta e demanda, gestão e construção de novos saberes (Cecilio; Reis, 2018CECILIO, L. C. O.; REIS, A. A. C. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 8, 2018. DOI: 10.1590/0102-311X00056917
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).

A partir desse eixo de análise emergiram três categorias empíricas relevantes para o problema da pesquisa: a) a defesa do SUS como modelagem de ações e serviços e como conquista social; b) o financiamento do sistema de saúde e as suas ameaças; e c) o envolvimento da sociedade como um todo na agenda da defesa do SUS.

Discussão

Proposições específicas para pessoas que vivem com hanseníase

Como se viu anteriormente, não foi localizada uma referência específica para a hanseníase nos relatórios das etapas municipal e estadual da 16ª CNS. Na etapa nacional, o registro como moção tem dupla ênfase: produzir visibilidade sobre a doença e o contexto, assim como garantir os direitos humanos das pessoas que convivem com ela. No contexto geral, fica explícita a invisibilidade e a negligência para com as pessoas atingidas pela hanseníase, o que resulta na naturalização de estigmas.

A invisibilidade da hanseníase nas políticas e no sistema de saúde

Uma constatação importante é a de que a hanseníase ficou total ou parcialmente invisibilizada nas etapas da 16ª CNS. Reconhecer tal problemática corrobora questões como o reconhecimento do sujeito diante da hanseníase e a falta de comunicação e dificuldades no acesso e cuidado. Se os sujeitos/grupos não são mencionados, se tornam imperceptíveis; logo, as políticas públicas não são construídas, não recebem o devido cuidado e, consequentemente, mantém-se o risco e o adoecimento. Por isso, a invisibilidade é parte integrante do ciclo vicioso da hanseníase no tempo em que vivemos (Martins; Spink, 2020MARTINS, M. H. M.; SPINK, M. J. P. A leptospirose humana como doença duplamente negligenciada no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 23, p. 919-928, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020253.16442018
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).

É possível supor que a invisibilidade nos debates das conferências alimenta um ciclo em que são produzidos sujeitos fragilizados, incapazes de agir e de se posicionar no mundo como seres ativos. É necessário que esta questão seja superada, para que as pessoas atingidas possam ser capazes de disseminar suas ideias, expressar suas necessidades e reconhecerem-se como sujeitos de direitos.

A hanseníase como doença nas suas dimensões clínica e biológica

Na perspectiva biomédica da saúde, a hanseníase é uma doença como outra qualquer, que manifesta sinais, sintomas, necessita de exames para haver confirmação do diagnóstico, e, em seguida, um tratamento adequado que evolua até a cura do indivíduo, tudo gratuito e disponível pelo SUS.

A adoção da Estratégia Saúde da Família (ESF) possibilitou a reorientação das prioridades em saúde, com foco nas necessidades da população do território (Leal et al., 2017LEAL, D. R. et al. Programa de Controle da Hanseníase: uma avaliação da implantação no nível distrital. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. esp., p. 209-228, 2017. DOI: 10.1590/0103-11042017S16
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), sendo um ponto estratégico para a incorporação de medidas de controle da doença. É nesse nível de atenção que acontece a busca ativa (visitas de rotina da equipe de saúde às pessoas acometidas pela doença ou expostas a risco diferenciado), o exame clínico minucioso e o tratamento, de modo a colaborar no progresso da recuperação, na reinserção social e na reconquista dos seus valores (Sobrinho et al., 2016SOBRINHO, R. A. da S. et al. Repercussões sociais: histórico da hanseníase. Varia Scientia: Ciência da Saúde, Cascavel, v. 1, n. 2, p. 188-195, 2016. Disponível em:< Disponível em:http://e-revista.unioeste.br/index.php/variasaude/article/view/12882/9378 >. Acesso em: 24 jan. 2021. DOI: 10.48075/vscs.v1i2.12882
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).

A falta de orientação ou despreparo da equipe fortalece a continuidade da doença, o diagnóstico tardio e, consequentemente, a evolução para as incapacidades e deformidades (Bordon et al., 2019BORDON, B.P. et al. O manejo da hanseníase na atenção básica: um relato de caso. Perspectivas Experimentais e Clínicas, Inovações Biomédicas e Educação em Saúde, Campo Grande, v. 5, n. 1, p. 48-53, 2019.).

A hanseníase como estigma

De um modo geral, a doença é marcada, até os dias atuais, pela falta de conhecimento do passado referente à sua causa, cura e forma de contágio. O isolamento compulsório e a desagregação familiar refletem na forte estigmatização da doença (Pinto Neto et al., 2000PINTO NETO, J. M. et al. O controle dos comunicantes de hanseníase no Brasil: uma revisão da literatura. Hansenologia Internationalis, Bauru, v. 25, n. 2, p. 163-176, 2000.). A humilhação, o constrangimento, o medo e o desprezo atribuído a essas pessoas influenciava - e ainda influencia - na desvalorização de suas imagens, na vida e no espaço público (Almeida et al., 2018ALMEIDA, A. I. S. et al. Marcas do passado: memórias e sentimentos (ex) portadores de hanseníase residentes em um antigo “Leprosário”. Enfermagem em Foco, Brasília, DF, v. 9, n. 4, p. 13-17, 2018. DOI: 10.21675/2357-707X.2018.v9.n4.1353
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). O estigma é construído social e historicamente e se atualiza nas reações de preconceito e, até mesmo, no esquecimento, ele inclui a reação às mudanças no aspecto corporal, que ocorre à medida em que a doença vai se desenvolvendo e não está sendo realizado o tratamento (Bordon et al., 2019BORDON, B.P. et al. O manejo da hanseníase na atenção básica: um relato de caso. Perspectivas Experimentais e Clínicas, Inovações Biomédicas e Educação em Saúde, Campo Grande, v. 5, n. 1, p. 48-53, 2019.). A falta de orientação adequada somada à vergonha que o paciente possa sentir tendem a levá-lo para um quadro de omissão da doença. Além da angústia física, há a diminuição das habilidades de trabalho, assim como outros aspectos psicológicos que prejudicam o doente, isso não é apenas uma questão individual, associada às mudanças no corpo das pessoas, mas também uma questão cultural, enraizada nos imaginários. O enfrentamento da hanseníase requer não só a prevenção, o tratamento e a reabilitação das pessoas, mas também iniciativas para a quebra do estigma e do preconceito. A integralidade, como se disse, inclui a boa clínica individual, mas também uma clínica coletiva, que busca reconfigurar os imaginários sociais (Ferla, 2004FERLA, A. A. Participação da População: do Controle sobre os Recursos a uma Produção Estética da Clínica e da Gestão em Saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 85- 108, 2004. DOI: 10.1590/S0103-73312004000100006
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).

Proposições específicas sobre doenças negligenciadas e /ou doenças de relevância para grupos mais vulneráveis

No quadro 2 verificou-se que há uma preocupação comum nos três relatórios sobre a produção de políticas de inclusão e equidade que, em certa medida, contrasta com a invisibilidade da hanseníase como problema singular constatada no primeiro eixo.

A vulnerabilidade social e sanitária como problema para o sistema de saúde

As diferentes condições de desigualdades sociais a que determinados grupos estão sujeitos influenciam no seu bem-estar, dado que aqueles socialmente menos favorecidos demonstram maior possibilidade de adoecer do que os grupos mais privilegiados. Isso porque o cenário de saúde é determinado por questões sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais (Souza; Silva; Silva, 2013SOUZA, D. O.; SILVA, S. E. V.; SILVA, N. O. Determinantes Sociais da Saúde: reflexões a partir das raízes da “questão social”. Saúde e Sociedade., São Paulo, Brasil, v. 22, n. 1, p. 44-56, 2013. DOI: 10.1590/S0104-12902013000100006
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).

A produção da vulnerabilidade social é anterior a uma ou outra doença e se expressa na dificuldade de acesso e em déficits de qualidade da ação das políticas sociais relacionados a pessoas ou grupos. A hanseníase se associa duplamente a esse conceito, como ampliação de risco e como dificuldade de acesso, já que mesmo podendo atingir qualquer pessoa ou classe social, é mais incidente nos grupos pobres devido à presença de condições socioeconômicas desfavoráveis, o que facilita a contaminação e propagação do bacilo. Além disso, é marcada por costumes que ampliam sua disseminação, bem como de hábitos de higiene e a busca por atendimento tardio, o que acarreta algum grau de incapacidade ou deformidade da doença (Lopes; Rangel, 2014LOPES, V. A. S.; RANGEL, E. M. Hanseníase e vulnerabilidade social: uma análise do perfil socioeconômico de usuários em tratamento irregular. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, 2014. DOI: 10.5935/0103-1104.20140074
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).

Reconhecer as diferenças e vulnerabilidades possibilitaria o meio de acesso às políticas públicas. Desse modo, insuficiência assistencial, escassez e fragilização da proteção social vivenciada intensificam a vulnerabilização desses sujeitos, sendo importante reconhecê-los para que ocorra a efetiva participação popular nas tomadas de decisões (Adorno, 2011ADORNO, R. C. F. Atenção à saúde, direitos e o diagnóstico como ameaça: políticas públicas e as populações em situação de rua. Etnográfica, Lisboa, v. 15, n. 3, p. 543-567, 2011. DOI: 10.4000/etnografica.1068
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). Mais do que isso, é importante quebrar o imaginário social estigmatizante, para poder reinserir socialmente as pessoas atingidas pela doença e pelo seu contexto.

O acesso de populações e grupos vulneráveis às redes de atenção com ações especializadas e resolutivas

O acesso à saúde assegurado constitucionalmente é uma conquista das lutas sociais. Apesar de ser um direito garantido a todos os cidadãos, ainda existem populações/grupos vulneráveis que enfrentam dificuldades não só para o acesso, como também para o cuidado em saúde, mantendo-se despercebidos para o sistema (Engstrom; Teixeira, 2016ENGSTROM, E. M.; TEIXEIRA, M. B. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 6, p. 1839-1848, 2016. DOI: 10.1590/1413-81232015216.0782016
https://doi.org/10.1590/1413-81232015216...
).

O princípio de universalidade impôs um rearranjo territorial para que a assistência em saúde fosse possível. Desse modo, a organização em redes de atenção possibilitou a hierarquização e regionalização (Araujo et al., 2017ARAUJO, G. B. et al. Territorialização em saúde como instrumento de formação para estudantes de medicina: relato de experiência. SANARE, Sobral, v. 16, n. 1, p. 124-129, 2017.).

Os desafios encontrados na saúde são grandes e um deles está na capacidade de resposta aos problemas encarados pelos variados grupos populacionais, visto que a distribuição de um serviço por si só não assegura a produção de bons efeitos (Cecilio; Reis, 2018CECILIO, L. C. O.; REIS, A. A. C. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 8, 2018. DOI: 10.1590/0102-311X00056917
https://doi.org/10.1590/0102-311X0005691...
).

Populações e grupos vulneráveis e as ações territoriais da atenção básica

Mencionar a questão do território no campo da saúde é compreender que o espaço não se refere apenas às características geográficas, mas à difusão de notícias, informações, ideias, movimentação de pessoas, troca de conhecimentos, ações estruturadas. É, portanto, um local que apresenta vantagens de análises, pois procura entender o processo saúde-doença além dos aspectos biológicos, levando-se em consideração o modo como as sociedades caminham, de forma a construir uma relação com o território (Colin; Pelicioni, 2018COLIN, E. C. S.; PELICIONI, M. C. F. Territorialidade, desenvolvimento local e promoção da saúde: estudo de caso em uma vila histórica de Santo André, São Paulo. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 4, p. 1246-1260, 2018. DOI: 10.1590/S0104-12902018170850
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; Teixeira et al., 2014TEIXEIRA, M. B. et al. Avaliação das práticas de promoção da saúde: um olhar das equipes participantes do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. spe, p. 52-68, 2014. DOI: 10.5935/0103-1104.2014S005
https://doi.org/10.5935/0103-1104.2014S0...
).

Com a introdução da ESF, identificam-se progressos quanto à ampliação da cobertura da Atenção Primária à Saúde (APS), uma vez que sua atuação procura priorizar a promoção, prevenção e recuperação de saúde (Teixeira et al., 2014TEIXEIRA, M. B. et al. Avaliação das práticas de promoção da saúde: um olhar das equipes participantes do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. spe, p. 52-68, 2014. DOI: 10.5935/0103-1104.2014S005
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).

No entanto, é notória a acentuada fragmentação da administração, dos programas, das ações e das práticas, o que cria obstáculos ao modelo assistencial. Essas circunstâncias impõem a necessidade de se ajustar as ofertas de serviços às necessidades de saúde da população, levando-se em consideração os contextos sociais e econômico nos quais estão inseridas. Dessa maneira, é indispensável que os profissionais levem em consideração as determinantes sociais, a individualidade e a vulnerabilidade dos sujeitos para o desenvolvimento de estratégias de cuidado (Teixeira et al., 2014TEIXEIRA, M. B. et al. Avaliação das práticas de promoção da saúde: um olhar das equipes participantes do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. spe, p. 52-68, 2014. DOI: 10.5935/0103-1104.2014S005
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; De Oliveira, 2018DE OLIVEIRA, R. G. Sentidos das Doenças Negligenciadas na agenda da Saúde Global: o lugar de populações e territórios. Ciência Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 7, p. 2291-2302, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018237.09042018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018237...
).

Proposições gerais que se aplicam ao contexto da hanseníase e doenças negligenciadas

Ao se observar as características gerais mencionadas no Quadro 3, verifica-se de forma implícita as variações de temas como: o financiamento e gestão do SUS, valorização do trabalho, educação em saúde, participação e controle social, intencionalidade dos serviços para reduzir iniquidades sociais e interesse profissional para com o paciente/ a família.

A defesa do SUS como modelagem de ações, serviços e conquista social

A ideia de direitos humanos nos traz à memória movimentos que culminaram na conquista de garantias fundamentais ao cidadão, tais como: iniciativas populares e conferências. A defesa do SUS passa por lutas relacionadas à prestação dos serviços de saúde, desigualdades regionais e o subfinanciamento (Campos, 2018CAMPOS, G. W. de. S. A defesa do SUS depende do avanço da reforma sanitária. Interface, Botucatu, v. 22, n. 64, p. 5-8, 2018. DOI: 10.1590/1807-57622017.0772
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).

No que se refere aos serviços, observa-se a necessidade de ampliar as equipes multiprofissionais, desburocratizar os atendimentos das especialidades, construir atendimentos mais humanizados e acolhedores. Quanto às desigualdades, é preciso providenciar medidas que garantam a saúde integral e equidade às populações vulneráveis, consolidar a rede de cuidados e estruturar políticas que considerem tanto a territorialidade como a regionalidade para o acesso à saúde. No tocante ao subfinanciamento, busca-se revogar a Emenda Constitucional (EC) nº95/2016, que congelou os investimentos públicos em saúde por 20 anos (Marin; Marchioli; Morackvick, 2013MARIN, M. J. S.; MARCHIOLI, M.; MORACVICK, M. Y. A. D. Fortalezas e fragilidades do atendimento nas unidades básicas de saúde tradicionais e da estratégia de saúde da família pela ótica dos usuários. Texto & Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 780-788, 2013. DOI: 10.1590/S0104-07072013000300026
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; Campos, 2018CAMPOS, G. W. de. S. A defesa do SUS depende do avanço da reforma sanitária. Interface, Botucatu, v. 22, n. 64, p. 5-8, 2018. DOI: 10.1590/1807-57622017.0772
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).

O financiamento do sistema de saúde e as suas ameaças

Apesar dos seus inegáveis avanços, o SUS é marcado por vários entraves. Dentre eles, o financiamento, que sempre é insuficiente para garantir uma saúde pública, universal e de qualidade. Conforme o parecer constitucional, o SUS teria que ser financiado com recursos do orçamento da seguridade social e com a participação de cada esfera (municipal, estadual e federal), não sendo definidos os percentuais que cada um deveria repassar (Cislaghi; Teixeira; Souza, 2011CISLAGHI, J. F. L.; TEIXEIRA, S. O.; SOUZA, T. O. Financiamento do SUS: principais dilemas. In: CIRCUITO DE DEBATES ACADÊMICOS, 1., 2011, Brasília, DF. Anais [...]. Ipea, 2011. Disponível em: <Disponível em: https://www.ipea.gov.br/code2011/chamada2011/pdf/area2/area2-artigo16.pdf >. Acesso em: 2 jul. 2021.
https://www.ipea.gov.br/code2011/chamada...
).

Entretanto, alguns problemas são verificados, dentre eles: o não cumprimento pelas esferas na vinculação prevista e desvios da finalidade dos recursos aplicados na saúde. Em 2015, a EC nº 86 determinou que os recursos federais mínimos para a saúde passariam a ser calculados com base na Receita Corrente Líquida (RCL) da União, iniciando por 13,2%, em 2016, até atingir o patamar de 15% da RCL, em 2020 (Menezes; Moretti; Reis, 2019MENEZES, A. P. R.; MORETTI, B.; REIS, A. A. C. O futuro do SUS: impactos das reformas neoliberais na saúde pública - austeridade versus universalidade. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. spe. 5, p. 58-70, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S505
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; Bevilacqua; Soares; Santos, 2020BEVILACQUA, L.; SOARES, F. F.; SANTOS, J. M. T. Novo regime fiscal frente à garantia constitucional de financiamento adequado das políticas públicas de saúde. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, Brasília, DF, v. 9, n. 2, p. 74-98, 2020. DOI: 10.17566/ciads.v9i2.672
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). A barreira atual está na revogação da EC nº 95, que congelou os gastos públicos primários por 20 anos (Campos, 2018CAMPOS, G. W. de. S. A defesa do SUS depende do avanço da reforma sanitária. Interface, Botucatu, v. 22, n. 64, p. 5-8, 2018. DOI: 10.1590/1807-57622017.0772
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.07...
).

O envolvimento da sociedade como um todo na agenda da defesa do SUS

A ideia de envolvimento da sociedade compreende as mobilizações capazes de influenciar na garantia dos direitos e na proteção social. Merhy (2014MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 2014., p. 13) destaca que cada indivíduo apresenta sua singularidade, mas que ela não fica para sempre. Os sujeitos estão em constantes mudanças e em “produção”. Essa ação é um exercício de representações de falas, discursos e valores capazes de proporcionar maior visibilidade ao SUS (Fernandes; Moreira, 2013FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA, M. R. Considerações metodológicas sobre as possibilidades de aplicação da técnica de observação participante na Saúde Coletiva. Physis, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 511-529, 2013. DOI: 10.1590/S0103-73312013000200010
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; Ferla et al., 2019FERLA, A. A. et al. Narrativas como dispositivos de educação permanente em saúde: uma experiência em Tefé/AM. In: MOREIRA, M. A. (Org.). Educação permanente em saúde em Tefé/AM: qualificação do trabalho no balanço do banzeiro. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2019. p. 194-216.). O ato de fortificar a participação social possibilita avanços na universalização e na equidade do acesso à saúde, pois dá espaço aos diversos olhares e vozes, socializa e concilia as intervenções em saúde pública às reais demandas sociais (Coelho, 2012COELHO, J. S. Construindo a participação social no SUS: um constante repensar em busca de equidade e transformação. Saúde e Sociedade., São Paulo, v. 21, n. supl. 1, p. 138-151, 2012. DOI: 10.1590/S0104-12902012000500012
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201200...
).

Considerações finais

Com os resultados produzidos neste artigo, é importante registrar que as etapas estadual e nacional das conferências de saúde incidem cumulativamente sobre a base municipal do sistema de saúde brasileiro, que é descentralizado e ascendente. Portanto, as deliberações feitas no âmbito local, no âmbito estadual e no âmbito federal incidem nas políticas do sistema municipal. Tendo-se em vista os aspectos observados, é importante salientar que a invisibilidade encontrada nos relatórios das conferências, de algo que deveria ser priorizado, mas não é, continua fazendo da hanseníase uma doença negligenciada. Esta doença afeta populações vulneráveis e ocasiona a existência de condições estigmatizantes na sociedade, além de limitações, despertando também incertezas, desconforto e reduzindo a autoestima e autoimagem.

Entretanto, a escassez de proposições específicas em relação à hanseníase nos relatórios das etapas da 16ª CNS contrasta com os registros sobre o conjunto de doenças negligenciadas e que atingem com mais rigor grupos vulneráveis da população. Por si só, a escassez aponta a necessidade de induzir as políticas de saúde no SUS, nas três esferas de governo, a movimentos de inclusão e diminuição das iniquidades hoje existentes. Mais do que isso, é preciso afirmar o SUS como política de inclusão e como conquista social, em clara resistência aos movimentos recentes de restrição orçamentária e de redução da abrangência assistencial e/ou de acesso. É muito relevante seguir refletindo sobre a abordagem da hanseníase como um problema de saúde pública e de relevância social, com uma compreensão ampliada, própria da saúde coletiva. Ao SUS cabe não apenas a assistência às doenças e a atenção à saúde das pessoas, mas também constituir-se como observatório dos processos civilizatórios e como laboratório de inclusão e equidade, uma vez que a produção de saúde envolve essas dimensões.

A análise apresentada tem a limitação metodológica de constituir-se com base na análise documental que, mesmo tratando-se dos relatórios das Conferências de Saúde, não representam diretamente o cotidiano da atenção. Esses documentos têm a capacidade formal de incidir sobre a formulação de políticas e iniciativas. Novos estudos são necessários, principalmente no acompanhamento da implementação das orientações formuladas, nos planos de saúde e nas estratégias do SUS nos âmbitos nacional, estadual e municipal.

A contribuição mais relevante é sobre a invisibilidade que a hanseníase segue tendo no contexto das políticas públicas, que provavelmente se associa à condição de doença negligenciada e aos níveis atuais de incidência e prevalência, alcançando pessoas e grupos de maior vulnerabilidade. Essa constatação sugere que sejam implementadas ações de educação em saúde, mobilizando a cultura da sociedade, e de educação permanente em saúde, mobilizando e atualizando ações entre os trabalhadores dos serviços públicos e privados de saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Jan 2023
  • Aceito
    28 Fev 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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