Sociobiodiversidade na Alimentação Escolar: os desafios e as potencialidades de um campo em construção no município de Mostardas-RS

Sociobiodiversity in School Meals: the challenges and potentialities of a field in construction in the municipality of Mostardas-RS

Vanessa Magnus Hendler Eliziane Nicolodi Francescato Ruiz Luciana Dias de Oliveira Sobre os autores

Resumo

Este trabalho busca apreender os desafios que perpassam o processo, em curso, de inserção de alimentos da sociobiodiversidade na alimentação escolar, no município de Mostardas, no Rio Grande do Sul, bem como analisar os possíveis resultados desse movimento in loco. A respeito do percurso metodológico, em decorrência do contexto pandêmico de covid-19, foram realizadas entrevistas por telefone e/ou pelo aplicativo WhatsApp© com atores que tivessem, de algum modo, envolvimento no processo de inclusão de alimentos da sociobiodiversidade no Programa Nacional de Alimentação Escolar, como nutricionistas, comunidade escolar, entidades locais, agricultores(as) familiares e pesquisadores(as). Assim, recorreu-se à abordagem qualitativa, tanto para a geração do material empírico quanto para a análise dos dados. Acerca dos resultados, foram identificados desafios relacionados ao plano da produção, do consumo e do abastecimento. E, ainda, no âmbito das políticas públicas, foram constatados entraves relacionados ao acesso a determinados programas federais, burocracia dos processos e falta de iniciativas por parte do poder público local. Com relação aos possíveis desdobramentos do movimento em questão, os participantes manifestaram repercussões sobre a saúde, a qualidade da alimentação, o meio ambiente e a economia local, o que impactaria positivamente sobre a Soberania e a Segurança Alimentar e Nutricional.

Palavras-chave:
Alimentação Escolar; Sociobiodiversidade; Agricultura Familiar; Segurança Alimentar e Nutricional

Abstract

This work seeks to understand the challenges that permeate the ongoing process of inserting sociobiodiversity foods into school meals, in the municipality of Mostardas, Rio Grande do Sul, and to analyze the possible results of this movement in loco. Regarding the methodological course, due to the covid-19 pandemic context, interviews were carried out by phone call and/or by the WhatsApp© application with actors who were somehow involved with the process of inclusion of sociobiodiversity foods in the National School Feeding Program, such as nutritionists, the school community, local entities, family farmers, and researchers. Thus, a qualitative approach was used, both for the generation of empirical material and for data analysis. Regarding the results, challenges related to the production, consumption, and supply plan were identified. And yet, in the scope of public policies, obstacles related to access to certain federal programs, bureaucracy of processes, and lack of initiatives on the part of the local government were found. Regarding the possible developments of the movement in question, the participants expressed repercussions on health, food quality, the environment, and the local economy, which would positively impact Food and Nutrition Sovereignty and Security.

Keywords:
School Meals; Sociobiodiversity; Family Farming; Food and Nutrition Security

Introdução

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), instituído no Brasil na década de 1950, constitui uma das mais importantes e longevas políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), garantindo pelo menos uma refeição ao dia a mais de 40 milhões de estudantes (Bicalho; Lima, 2020BICALHO, D.; LIMA, T. M. O Programa Nacional de Alimentação Escolar como garantia do direito à alimentação durante a pandemia da COVID-19. DEMETRA: Alimentação, Nutrição & Saúde, Rio de Janeiro, v. 15, e52076, 2020. DOI: 10.12957/demetra.2020.52076
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). De forma a contribuir com “o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem, o rendimento escolar e a formação de práticas alimentares saudáveis dos alunos” (Brasil, 2020, p. 2)BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 06, de 08 de maio de 2020. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar dos alunos da educação básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Brasília, DF, 2020., o PNAE busca integrar a oferta de uma alimentação adequada e saudável, a Educação Alimentar e Nutricional (EAN), o controle social e o apoio ao desenvolvimento sustentável ao direito à alimentação escolar reconhecido constitucionalmente (Brasil, 2009aBRASIL. Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica; altera as Leis nºs 10.880, de 9 de junho de 2004, 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, 11.507, de 20 de julho de 2007; revoga dispositivos da Medida Provisória nº 2.178-36, de 24 de agosto de 2001, e a Lei nº 8.913, de 12 de julho de 1994; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2009a.; 2020BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 06, de 08 de maio de 2020. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar dos alunos da educação básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Brasília, DF, 2020.). Nessa perspectiva, a referida política, além de ter estreita relação com a SAN, também dialoga com a Soberania Alimentar e com a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), ao defender e proporcionar a oferta de refeições de qualidade, que respeitem as tradições culturais locais e provenham de sistemas alimentares ambientalmente, economicamente e socialmente sustentáveis e justos (Brasil, 2020)BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 06, de 08 de maio de 2020. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar dos alunos da educação básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Brasília, DF, 2020..

Ao longo da sua trajetória histórica, a Política de Alimentação Escolar avançou em diversos aspectos no tocante aos seus marcos legais. Concebida, inicialmente, como um programa de suplementação alimentar voltado a alunos de baixa renda, o programa esteve, nos anos iniciais de sua implementação, atrelado aos interesses da indústria alimentícia nacional e à política de escoamento de excedentes da produção americana, os quais enxergavam a alimentação escolar como um possível mercado para a comercialização de seus produtos. A partir dos anos 1990, com o processo de descentralização dos recursos federais aos estados e municípios, que outorgou aos respectivos entes federados a responsabilidade pelo fornecimento da alimentação escolar, abriu-se a possibilidade de inserção do comércio local e do pequeno produtor rural nesse mercado institucional, bem como pode-se pensar em refeições escolares mais alinhadas à realidade in loco (Peixinho, 2013PEIXINHO, A. M. L. A trajetória do Programa Nacional de Alimentação Escolar no período de 2003-2010: relato do gestor nacional. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18. n. 4, p. 909-916, 2013.; Bicalho; Lima, 2020BICALHO, D.; LIMA, T. M. O Programa Nacional de Alimentação Escolar como garantia do direito à alimentação durante a pandemia da COVID-19. DEMETRA: Alimentação, Nutrição & Saúde, Rio de Janeiro, v. 15, e52076, 2020. DOI: 10.12957/demetra.2020.52076
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).

Em 2009, consagrou-se um dos mais importantes avanços do PNAE, com a publicação da Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009, que colocou a agricultura familiar, as comunidades tradicionais indígenas e quilombolas e os assentamentos da reforma agrária no centro das compras institucionais relativas à alimentação escolar (Brasil, 2009a)BRASIL. Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica; altera as Leis nºs 10.880, de 9 de junho de 2004, 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, 11.507, de 20 de julho de 2007; revoga dispositivos da Medida Provisória nº 2.178-36, de 24 de agosto de 2001, e a Lei nº 8.913, de 12 de julho de 1994; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2009a..11A Lei nº 11.947/2009 determina que, no mínimo, 30% dos recursos financeiros federais repassados aos municípios e estados, no âmbito do PNAE, devem ser destinados à aquisição de gêneros alimentícios provenientes da agricultura familiar, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas (Brasil, 2009a). Em encontro a tais avanços, instrumentos legais (Brasil, 2009aBRASIL. Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica; altera as Leis nºs 10.880, de 9 de junho de 2004, 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, 11.507, de 20 de julho de 2007; revoga dispositivos da Medida Provisória nº 2.178-36, de 24 de agosto de 2001, e a Lei nº 8.913, de 12 de julho de 1994; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2009a.; 2020BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 06, de 08 de maio de 2020. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar dos alunos da educação básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Brasília, DF, 2020.) relacionados a qualidade nutricional e sanitária da alimentação ofertada nas escolas passaram a priorizar a aquisição e oferta de alimentos in natura, como frutas, legumes e verduras, preparações regionais e alimentos orgânicos e/ou agroecológicos provenientes, sobretudo, de produtores locais. Desse modo, as mudanças no escopo do programa passaram a orientar novos cenários no campo da alimentação escolar, com resultados para além do espaço educacional, como a promoção de modelos de produção mais sustentáveis e saudáveis e de cadeias de abastecimento diferenciadas, com vistas a aproximação entre produtores e consumidores (Triches; Schneider, 2010TRICHES, R. M.; SCHNEIDER, S. Alimentação escolar e agricultura familiar: reconectando o consumo a produção. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 4, p. 933-945, 2010. DOI: 10.1590/S0104-12902010000400019
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).

Ou seja, verifica-se um compromisso da Política de Alimentação Escolar não apenas com a dimensão nutricional da alimentação ofertada nas escolas, mas também com os aspectos culturais, sociais e ambientais que a compreendem, o que tem demonstrado um pioneirismo da experiência brasileira, no âmbito internacional, com relação a transformação do PNAE em um dispositivo concreto de desenvolvimento sustentável (Triches, 2015TRICHES, R. M. Repensando o mercado da alimentação escolar: novas institucionalidades para o desenvolvimento rural. In: GRISA, C.; SCHNEIDER, S. (Org.). Políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2015. p. 181-200.).

Nesse sentido, destaca-se a importância desse debate em torno da alimentação escolar e dos seus possíveis desfechos sobre a SAN e a sustentabilidade ambiental, frente às atuais discussões, que relacionam a coexistência de três pandemias: obesidade, desnutrição e mudanças climáticas. Em conjunto, esses três fenômenos, caracterizados como Sindemia Global, representam uma ameaça à saúde planetária (Swinburn et al., 2019SWINBURN, B. et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: The Lancet. The Lancet, Amsterdam, 2019. DOI: 10.1016/S0140-6736(18)32822-8.
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). Assim, é justamente frente a esse cenário de má nutrição e mudanças climáticas que pesquisadores têm discutido caminhos para compreender a adoção de dietas sustentáveis, baseadas no consumo de alimentos saudáveis de baixo impacto ambiental, de modo a não comprometer a disponibilidade de recursos naturais para as gerações futuras. Em linhas gerais, o entendimento de dietas sustentáveis estaria assentado em cinco domínios: saúde, economia, meio ambiente, sociedade e agricultura. Ou seja, relaciona-se a dietas culturalmente aceitáveis (dimensão social); economicamente acessíveis e justas (dimensão econômica); seguras e nutricionalmente adequadas (dimensão da saúde); que respeitem a biodiversidade e os ecossistemas (dimensão ambiental); e que provenham de modelos agrícolas mais sustentáveis (dimensão da agricultura) (Sonnino, 2019SONNINO, R. Translating sustainable diets into practice: the potential of public food procurement. Redes, Santa Cruz do Sul, v. 24, n. 1, p. 14-29, 2019. DOI: 10.17058/redes.v24i1.13036
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; Triches, 2020TRICHES, R. M. Dietas saudáveis e sustentáveis no âmbito do sistema alimentar no século XXI. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 126, p. 881-894, 2020. DOI: 10.1590/0103-1104202012622
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). Partindo dessa perspectiva, observa-se um crescente reconhecimento do poder de compra no âmbito da alimentação escolar, capaz de alinhar questões de saúde pública, desenvolvimento econômico, democracia e sustentabilidade, com vistas a construção de cardápios escolares mais sustentáveis e saudáveis (Sonnino, 2019SONNINO, R. Translating sustainable diets into practice: the potential of public food procurement. Redes, Santa Cruz do Sul, v. 24, n. 1, p. 14-29, 2019. DOI: 10.17058/redes.v24i1.13036
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).

Assim, é no âmbito dessa discussão que se inserem os produtos da sociobiodiversidade, uma vez que materializam valores de ordem socioambiental e nutricional, sendo, portanto, definidos no Plano Nacional de Promoção das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade (PNPSB) (Brasil, 2009b)BRASIL. Plano nacional de promoção das cadeias de produtos da sociobiodiversidade. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário; Ministério do Meio Ambiente; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2009b. Disponível em: <Disponível em: https://bibliotecadigital.economia.gov.br/bitstream/123456789/1024/1/Plano%20Sociobiodiversidade.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2018.
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, como:

Bens e serviços (produtos finais, matérias primas ou benefícios) gerados a partir de recursos da biodiversidade, voltados à formação de cadeias produtivas de interesse dos povos e comunidades tradicionais e de agricultores familiares, que promovam a manutenção e valorização de suas práticas e saberes, e assegurem os direitos decorrentes, gerando renda e promovendo a melhoria de sua qualidade de vida e do ambiente em que vivem. (Brasil, 2009b, p. 9)BRASIL. Plano nacional de promoção das cadeias de produtos da sociobiodiversidade. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário; Ministério do Meio Ambiente; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2009b. Disponível em: <Disponível em: https://bibliotecadigital.economia.gov.br/bitstream/123456789/1024/1/Plano%20Sociobiodiversidade.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2018.
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.

Com origem no movimento socioambientalista brasileiro, o conceito de sociobiodiversidade busca representar a inter-relação existente entre os planos biológicos e socioculturais, que se manifesta na diversidade de modos de vida, ecossistemas, espécies nativas e práticas de cultivo, bem como no uso de tais espécies na diversidade de crenças e saberes tradicionais existentes nos diferentes territórios do país (Brasil, 2009bBRASIL. Plano nacional de promoção das cadeias de produtos da sociobiodiversidade. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário; Ministério do Meio Ambiente; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2009b. Disponível em: <Disponível em: https://bibliotecadigital.economia.gov.br/bitstream/123456789/1024/1/Plano%20Sociobiodiversidade.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2018.
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; Coelho-de-Souza, 2012COELHO-DE-SOUZA, G. Verbetes Agrobiodiversidade, Agroecologia, Agrofloresta, Etnoconservação, Gestão da Biodiversidade, Sociobiodiversidade. In: MEDEIROS, M. F. T.; ALBUQUERQUE, U. P. (Org.). Dicionário brasileiro de etnobiologia e etnoecologia. Recife: NUPEEA, 2012.).

É possível observar, nos últimos anos, movimentos em âmbito internacional e nacional em prol da biodiversidade e da sociobiodiversidade, com vistas ao reconhecimento e resgate de espécies alimentícias, bem como sua intersecção com políticas públicas, a exemplo do PNAE e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) (Brasil, 2018BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Biodiversidade Brasileira: sabores e aromas. Brasília, DF, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/biodiversidade/fauna-e-flora/copy2_of_LivrodeReceitasSaboreseAromas.pdf >. Acesso em: 5 set. 2020
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; 2021BRASIL. Portaria Interministerial MAPA/MMA n. 10, de 21 de julho de 2021. Institui lista de espécies nativas da sociobiodiversidade de valor alimentício, para fins de comercialização in natura ou de seus produtos derivados. Brasília, DF: Ministério do Meio Ambiente, 2021.). Não obstante a tais esforços, na prática ainda há muito a se avançar, visto que estudos têm apontado, por exemplo, a baixa presença - ou mesmo a inexistência - de tais espécies alimentícias nos cardápios da alimentação escolar, em contraponto a toda a sociobiodiversidade existente nos biomas brasileiros (Sousa et al., 2015SOUSA, A. A. et al. Cardápios e sustentabilidade: ensaio sobre as diretrizes do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Revista de Nutrição. Campinas, v. 28, n. 2, p. 217-229, 2015. DOI: 10.1590/1415-52732015000200010
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; Girardi et al., 2018GIRARDI, M. W. et al. Oferta de preparações culinárias e alimentos regionais e da sociobiodiversidade na alimentação escolar: um estudo na Região Sul do Brasil. Segurança Alimentar e Nutricional, Campinas, v. 25, n. 3, p. 29-44, 2018. DOI: 10.20396/san.v25i3.8652261
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; Rockett et al., 2019ROCKETT, F. C. et al. Family farming and school meals in Rio Grande do Sul, Brazil. Ciência Rural. Santa Maria, v. 49, n. 2, e20180561, 2019. DOI: 10.1590/0103-8478cr20180561
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).

Este artigo tem como objetivo identificar os desafios que perpassam o processo de inclusão de produtos da sociobiodiversidade na alimentação escolar em um município no litoral do estado do Rio Grande do Sul (RS), assim como analisar os possíveis desdobramentos desse movimento no contexto local. Para tanto, busca-se contribuir com as discussões acadêmicas sobre o tema e quiçá fornecer subsídios teóricos e empíricos que inspirem os movimentos locais em torno do tema na escola.

Aspectos metodológicos

Para apreender os obstáculos e as acepções que permeiam o processo de inserção da sociobiodiversidade no espaço escolar, recorreu-se à abordagem qualitativa. Considerando o propósito do trabalho, fez-se necessário compreender e interpretar histórias, fenômenos, representações e significados de uma dada realidade social, buscando conhecer além do que é visível e palpável, penetrando o “mundo dos significados” (Minayo, 2009MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 22). Logo, trata-se de um estudo qualitativo de caráter descritivo e exploratório, realizado no município de Mostardas, situado na região litorânea do estado do Rio Grande do Sul.

Com relação a unidade de análise, destaca-se que a escolha recaiu sobre o município de Mostardas pois, na região, vem sendo desenvolvido um projeto de pesquisa, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), intitulado “Alimentação Adequada e Saudável no contexto da alimentação escolar: difusão do consumo de produtos da sociobiodiversidade regional”, que busca somar as suas ações aos esforços e interesses locais, em prol da difusão da sociobiodiversidade nas escolas. Assim, além de apresentar experiências relacionadas a estes produtos na alimentação escolar, Mostardas compreende uma enorme diversidade biológica e sociocultural, o que exprime o seu potencial quanto à possibilidade de gerar aprendizados para novas experiências no campo do PNAE.

Circunscrito entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico, Mostardas apresenta um ecossistema complexo, uma pluralidade de paisagens (dunas e campos litorâneos, matas de restinga, banhados, sangas, lagoas e mar), assim como espécies vegetais e animais (algas, plantas aquáticas, macroinvertebrados, anfíbios, répteis, aves e mamíferos), algumas, inclusive, ameaçadas de extinção (Pelegrini, 2012PELEGRINI, F. F. A. Percepção ambiental da comunidade de Mostardas na importância e conservação do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, RS. 2012. 111 f. Tese (Doutorado em Biologia) - Programa de Pós-Graduação em Biologia, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2012.; Marques, 2019MARQUES, G. P. O cuidar feminino: saberes e fazeres tradicionais de benzedeiras quilombolas de Mostardas-RS. 2019. 130 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural) - Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.). Dentre os produtos da sociobiodiversidade encontrados no município, destaca-se: milho catete, feijão sopinha, arroz quilombola, butiá, ananá, araçá, fisális, araruta, feijão miúdo, ora-pro-nóbis, banana do mato, mandioca figueira, entre outras variedades (Hendler; Ruiz; Oliveira, 2021HENDLER, V. M.; RUIZ, E. N. F.; OLIVEIRA, L. D. Sociobiodiversidade na escola, promoção da saúde, da sustentabilidade e da cultura: um movimento em construção no município de Mostardas/RS. Agricultura Familiar: Pesquisa, Formação e Desenvolvimento. Belém, v. 15, n. 1, p. 115-134, 2021.).

Emancipada em 1963, a população estimada do município, segundo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, era de 12.847 pessoas22Disponível no site do IBGE Cidades, em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/mostardas/panorama>. Acesso em: 24 ago. 2021.. Sua economia está assentada basicamente no setor primário, sobretudo na agricultura, com a produção de arroz em maior proporção, e também soja e cebola, sendo esse último cultivo um produto tradicional da região, mas que vem perdendo espaço para as monoculturas de arroz e soja. Destaca-se, ainda, a expansão da pecuária extensiva e a silvicultura de pinus e eucalipto no local (Marques, 2019MARQUES, G. P. O cuidar feminino: saberes e fazeres tradicionais de benzedeiras quilombolas de Mostardas-RS. 2019. 130 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural) - Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.).

No plano sociocultural, soma-se às origens açorianas e indígenas a ancestralidade quilombola, que, hoje, é representada por três comunidades reconhecidas institucionalmente: Casca, Beco dos Coloidianos e Teixeiras33Disponível no site da Fundação Cultural Palmares, em: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/certificadas-02-08-2019.pdf. Acesso em: 30 out. 2020.. A maior parte dessas comunidades vivem na zona rural do município, na qual situam-se, majoritariamente, os agricultores familiares, pescadores artesanais e remanescentes de quilombos. Tais comunidades tradicionais possuem a agricultura familiar como uma de suas principais atividades econômicas, portanto, parte dos alimentos são utilizados para o autoconsumo e o restante é comercializado em feiras na região (Marques, 2019MARQUES, G. P. O cuidar feminino: saberes e fazeres tradicionais de benzedeiras quilombolas de Mostardas-RS. 2019. 130 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural) - Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.).

No que se refere a rede de educação básica, Mostardas possui treze escolas municipais, dentre elas uma quilombola, totalizando um público de mais de 1500 alunos. Nesse contexto, é importante situar que há um movimento em construção, no município, em prol da inserção da sociobiodiversidade na alimentação escolar, envolvendo entidades representativas dos agricultores familiares e comunidades tradicionais, nutricionistas, comunidade escolar e pesquisadores da UFRGS (Hendler; Ruiz; Oliveira, 2021HENDLER, V. M.; RUIZ, E. N. F.; OLIVEIRA, L. D. Sociobiodiversidade na escola, promoção da saúde, da sustentabilidade e da cultura: um movimento em construção no município de Mostardas/RS. Agricultura Familiar: Pesquisa, Formação e Desenvolvimento. Belém, v. 15, n. 1, p. 115-134, 2021.; Hendler, 2021HENDLER, V. M. Entre plantar, comer e inserir a sociobiodiversidade na alimentação escolar: a experiência de Mostardas/RS. 2021. 161 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural) - Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.).

A respeito da coleta de dados, ela foi realizada em 2020, entre os meses de agosto e outubro, de forma totalmente remota, devido ao contexto pandêmico do coronavírus. É importante salientar que já havia uma aproximação dos pesquisadores com o local de estudo, devido a uma pesquisa-ação que vem sendo desenvolvida no município desde 2018, o que facilitou a realização dos contatos com os atores locais e a apreensão da realidade. Assim, realizou-se entrevistas por ligação de telefone e trocas de mensagens e áudios por aplicativo de WhatsApp© com os participantes do estudo.

Com relação ao público entrevistado, participaram da pesquisa: nutricionistas responsáveis técnicas pela alimentação escolar, que atuaram no período de 2014 a 2020 (n=3)44De 2014 a 2020, a responsabilidade técnica pela alimentação escolar em Mostardas foi assumida por três nutricionistas: Marcela, de 2014 a abril de 2019 (concurso); Bárbara, de maio de 2019 a maio de 2020 (contrato) e Amanda, que assumiu o cargo em junho de 2020 (concurso).; representante do setor de compras da Prefeitura (n=1); e representante do Conselho de Alimentação Escolar (CAE) (n=1). Na esfera da rede de ensino municipal, participaram atores de três escolas (duas urbanas e uma rural): professores (n=3), direção (n=2) e manipuladoras de alimentos (n=3). Foram entrevistados, ainda, representantes de entidades locais, como: Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) (n=1), Cooperativa dos Povos Tradicionais de Mostardas (COOPTRAM) (n=1), Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), (n=1) e um colaborador externo que vem atuando em parceria com o STR e a COOPTRAM (n=1), assim como agricultoras familiares (n=2). Por fim, realizou-se contato com uma professora da UFRGS (n=1), que desenvolve o projeto de pesquisa sobre sociobiodiversidade e alimentação escolar no município. Cabe ressaltar que foram convidados a participar do estudo todos os potenciais atores envolvidos direta ou indiretamente no processo de inserção de produtos da sociobiodiversidade na alimentação escolar, com exceção das escolas e do grupo de agricultores, no qual buscou-se convidar aqueles indivíduos mais atuantes no referido movimento. Assim, do total de participantes da pesquisa, apenas um integrante manifestou não ter interesse, o que totalizou um grupo de vinte entrevistados. Para assegurar o anonimato das informações, os participantes serão identificados por nomes fictícios nos resultados.

Para orientar o diálogo, foram construídos roteiros individualizados para cada grupo de entrevistados (exemplo: nutricionistas, professores, manipuladoras de alimentos, representantes do setor de compras, CAE, entidades locais, agricultores familiares e pesquisadores, totalizando oito roteiros). Estes eram compostos por perguntas abertas e fechadas, questionando aspectos relacionados a: alimentação escolar (“Como as especificidades culturais são consideradas nos cardápios?”; “Foram adquiridos alimentos da agricultura familiar?”; “Como você avalia a qualidade da alimentação escolar do município?”); agricultura familiar (“Os agricultores conseguem acessar as políticas públicas, como o PRONAF e o PNAE?”; “Quais os alimentos produzidos?”); produtos da sociobiodiversidade (“Atualmente, existem canais de comercialização para os produtos da sociobiodiversidade, tais como feiras, restaurantes e mercados?”; “Esses alimentos fazem parte da sua alimentação?”); e educação alimentar e nutricional nas escolas (“Já foi ou é realizado alguma atividade de educação alimentar e nutricional na escola?”; “É trabalhado algum conteúdo relacionado a alimentação em sala de aula?”).

Destaca-se que os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foram enviados por WhatsApp©, sendo orientado aos participantes, após lerem o documento, que manifestassem por mensagem o aceite ou a recusa em participar da pesquisa.

Com relação a análise dos dados, foi realizada a transcrição na íntegra do conteúdo empírico, apresentado, em parte, em forma de falas dos atores sociais, na seção Resultados. Destaca-se que este artigo é um recorte dos resultados, logo, não foi possível apresentar as falas de todos os indivíduos entrevistados. Sendo assim, selecionou-se alguns discursos com base na discussão que se pretendia construir.

Para a exploração e compreensão do material apreendido, recorreu-se à técnica da Análise de Conteúdo, a qual compreendeu três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos e interpretação (Minayo, 1998MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.). Na primeira fase, portanto, realizou-se a organização do material, a leitura dos discursos transcritos e a retomada dos objetivos iniciais da pesquisa, para verificar o seu atendimento frente ao conteúdo coletado. Na segunda etapa, explorou-se o material organizado, sua compreensão e categorização conforme categorias pré-estabelecidas (“O movimento”; “Desafios” e “Efeitos”) que, por sua vez, deram origem, a posteriori, às subcategorias apresentadas nos Resultados. Por fim, na terceira etapa, à luz das discussões do marco referencial, buscou-se construir uma reflexão sobre as ideias apreendidas. Ressalta-se que a análise dos dados foi realizada manualmente pelos pesquisadores, ou seja, não se utilizou nenhum software de análise.

Resultados e discussão

Como resultado da análise dos discursos, emergiram dez subcategorias, as quais foram agrupadas dentro das três categorias definidas a priori. Assim, este trabalho irá discorrer sobre as categorias “Desafios” e “Efeitos” e suas respectivas subcategorias: a) Cadeia Alimentar e b) Políticas Públicas (categoria “Desafios”); c) Dimensão Nutricional, d) Dimensão Cultural, e) Dimensão Ambiental e f) Dimensão Socioeconômica (categoria “Efeitos”).

Além disso, considera-se importante salientar algumas limitações do estudo, como a interferência da pandemia de covid-19, que limitou a coleta de dados para a modalidade remota, contribuindo para um maior distanciamento entre as pesquisadoras e os entrevistados. Entende-se que, sobretudo em estudos qualitativos, o convívio com os atores sociais possibilita, por exemplo, a constituição de vínculos, refletindo na profundidade dos relatos e na apreensão dos dados. Cabe pontuar, ainda, que este trabalho se trata de um estudo de abrangência local com baixa representatividade de alguns grupos de indivíduos entrevistados - tal como a comunidade escolar -, apresentando, assim, limitações quanto à extrapolação dos resultados para todos os atores do município, bem como para outros cenários, considerando tanto a sua abrangência, quanto a localização geográfica.

O movimento: uma breve contextualização

Desde o final dos anos 1990, um grupo de atores, dentre agricultores(as) familiares, lideranças e entidades locais, como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e a COOPTRAM, vêm se mobilizando, em Mostardas, em prol de práticas produtivas mais sustentáveis, da biodiversidade local e do resgate de sementes e saberes tradicionais atrelados ao plantar. Anos mais tarde, somaram-se a esse grupo outros colaboradores, como nutricionistas responsáveis técnicas pela alimentação escolar do município e pesquisadores da UFRGS, que passaram a estudar estratégias de inserção de produtos da sociobiodiversidade no PNAE, com vistas a promoção de práticas de alimentação saudável nas escolas, valorização da flora nativa e geração de renda aos produtores(as) locais. Apesar de algumas tentativas de introdução da sociobiodiversidade no campo da alimentação escolar, até o momento nenhum produto deste tipo foi de fato inserido nesse mercado institucional, representando, assim, um processo em construção, permeado de desafios e potencialidades (Hendler; Ruiz; Oliveira, 2021HENDLER, V. M.; RUIZ, E. N. F.; OLIVEIRA, L. D. Sociobiodiversidade na escola, promoção da saúde, da sustentabilidade e da cultura: um movimento em construção no município de Mostardas/RS. Agricultura Familiar: Pesquisa, Formação e Desenvolvimento. Belém, v. 15, n. 1, p. 115-134, 2021.; Hendler, 2021HENDLER, V. M. Entre plantar, comer e inserir a sociobiodiversidade na alimentação escolar: a experiência de Mostardas/RS. 2021. 161 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural) - Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.).

Nessa perspectiva, o foco deste trabalho se voltou aos obstáculos que perpassam o movimento em questão - aspecto abordado na seção seguinte - e aos possíveis desdobramentos dessa mobilização, em prol da sociobiodiversidade na escola, segundo a ótica da comunidade local - discussão abordada na última seção dos Resultados.

Os desafios da sociobiodiversidade na escola: da produção ao consumo

Um dos principais desafios pontuados nas conversas com a comunidade refere-se a baixa produção de produtos da sociobiodiversidade, o que possivelmente dificultaria o abastecimento da rede de ensino municipal com os referidos alimentos. Conforme relatado, apesar dos esforços do STR e da COOPTRAM para incentivar o seu cultivo, ainda são poucos os produtores que se interessam em manter a produção e/ou voltar a produzir sociobiodiversidade. Ao se abordar as possíveis causas relacionadas a baixa produção ou mesmo ao desinteresse dos produtores(as) em relação ao tópico, discursos apontaram para dificuldades relativas às atuais condições climáticas, como pontua a agricultora Vera, ao se referir a ausência de chuvas na região: “O problema só é que o tempo não ajuda né? Que onde se viu, em pleno inverno pra mim aqui está seco, não chove no verão, não chove no inverno”. (Vera, agricultora).

Atrelado a essa questão ambiental, o avanço das plantações de arroz, soja e pinus no município tem limitado o uso da terra na produção das referidas monoculturas, o que tem contribuído para a destruição da biodiversidade nativa. Embora não tenha sido o objetivo deste trabalho analisar a possível relação entre as condições meteorológicas e as mudanças climáticas na referida região gaúcha, entende-se que tais problemáticas se relacionam, em alguma medida, ao que se tem discutido sobre Sindemia Global (Swinburn et al., 2019SWINBURN, B. et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: The Lancet. The Lancet, Amsterdam, 2019. DOI: 10.1016/S0140-6736(18)32822-8.
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), haja vista a interferência negativa das mudanças climáticas sobre a SAN e a sua relação com os modelos agrícolas voltados a produção de commodities.

Sobre a baixa produção de produtos da sociobiodiversidade no município, alguns participantes mencionaram a falta de mão de obra nas propriedades familiares, o que vem dificultando a ampliação e diversificação da produção agrícola. Ou seja, as gerações posteriores estão optando por trabalhar em outras atividades não relacionadas à agricultura. Desse modo, a não ocorrência da sucessão familiar, além de refletir na produção e na continuidade do plantar, cultivar e colher, também interfere nos processos de transmissão de conhecimentos relacionados a essas atividades, visto que os envolvidos com a agricultura são indivíduos mais velhos (Santos; Garavello, 2016SANTOS, K. M. P.; GARAVELLO, M. E. P. E. Segurança alimentar em comunidades quilombolas de São Paulo. Segurança Alimentar e Nutricional, Campinas, v. 23, n. 1, p. 786-794, 2016. DOI: 10.20396/san.v23i1.8646390
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).

Outro aspecto importante, que pareceu estar associado à desmotivação dos produtores(as) rurais em ampliar a produção, refere-se aos estigmas que permeiam o cultivo e o consumo de produtos da sociobiodiversidade, pois há um entendimento de que quem planta ou consome esses alimentos são “pequenos agricultores” ou, ainda, pessoas que não tem condições de adquirir outros produtos. Como coloca o extensionista da Emater, apesar de alguns produtores terem em suas propriedades alimentos da sociobiodiversidade para o autoconsumo, eles não acreditam que estes possuem valor de mercado para serem comercializado: “todo agricultor consome ananá desde criança porque tem na propriedade, mas ele não acredita que é um produto que possa ter valor de venda.” (Carlos, Emater).

Tais acepções parecem estar associadas, ao menos em parte, a questões históricas, simbólicas e culturais relacionadas à origem desses produtos. A exemplo, o feijão sopinha e o arroz quilombola, alimentos de raízes africanas, que durante o período da escravidão eram conhecidos como “comida de senzala”, por serem a base da alimentação das pessoas escravizadas e dos que se refugiavam nos quilombos. Assim, alguns produtos da sociobiodiversidade, hoje, carregam um certo estigma que remete a períodos de escassez, exclusão e violência (Hendler; Ruiz; Oliveira, 2021HENDLER, V. M.; RUIZ, E. N. F.; OLIVEIRA, L. D. Sociobiodiversidade na escola, promoção da saúde, da sustentabilidade e da cultura: um movimento em construção no município de Mostardas/RS. Agricultura Familiar: Pesquisa, Formação e Desenvolvimento. Belém, v. 15, n. 1, p. 115-134, 2021.).

Também foram relatadas dificuldades de ordem logística e estrutural, uma vez que falta estrutura física adequada e maquinário para realizar os processos de beneficiamento do arroz quilombola e da farinha de milho catete, por exemplo, bem como veículos para transportar os alimentos até a Secretaria Municipal de Educação. Um dos entrevistados relatou que tal circunstância limita a disponibilidade de produtos da sociobiodiversidade no mercado, pois a terceirização dos serviços requeridos para o seu beneficiamento demanda recursos e encarece o produto final, que perde competitividade no mercado.

O nosso maior problema é de logística, aqui a gente chegou a plantar o próprio arroz quilombola, só que com uma pressão muito grande do sistema que tu não consegue fazer toda a secagem do arroz, o descascar, tu termina tendo que depender de outros, terceiros, daí vai encarecendo, cobrando o frete e termina que tira a competitividade. (Olavo, STR).

Para além dos desafios relacionados à dimensão da produção e do abastecimento, verificou-se, nas entrevistas, entraves que compreendem o plano do consumo, como o desconhecimento da população, sobretudo do público mais jovem (crianças e adolescentes), quanto aos sabores da sociobiodiversidade, o que poderia gerar uma certa resistência por parte dos alunos, durante a introdução dessas preparações na escola, como colocou uma entrevistada: “A minha opinião é que vai a ver muita resistência de início, por parte dos alunos. […] até eles acostumar e ver que faz bem pra saúde, vai ter um pouco de resistência.” (Ivone, manipuladora de alimentos).

Percebe-se como um dos possíveis fatores atrelados a perda de tal hábito alimentar, a não concretização da transmissão de sabores e saberes associados à sociobiodiversidade entre as gerações mostardenses. Para tanto, conforme o entendimento da comunidade, a inserção desses produtos na alimentação escolar é uma oportunidade única para o resgate de cultivos, receitas e comportamentos alimentares centrados nas tradições alimentares locais e nos recursos alimentícios disponíveis na região.

No campo das políticas públicas, a dificuldade em acessar alguns programas, como o PNAE e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), emergiu como um obstáculo institucional, devido, por exemplo, a dificuldade em emitir a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), documento que habilita o agricultor(a) a participar e acessar as referidas políticas. Em encontro a literatura nacional (Teo; Mossmann; Taglietti, 2017TEO, C. R. P. A.; MOSSMANN, M. P.; TAGLIETTI, R. L. Desafios e mecanismos de enfrentamento na relação entre agricultura familiar e alimentação escolar. Revista Grifos, Chapecó, v. 26, n. 43, p. 34-64, 2017.; Triches et al., 2019TRICHES, R. M. et al. Condicionantes e limitantes na aquisição de produtos da agricultura familiar pelo Programa de Alimentação Escolar no Estado do Paraná. Redes, Santa Cruz do Sul, v. 24, n. 1, p.118-137, 2019. DOI: 10.17058/redes.v24i1.11713
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), a burocracia constitui um dos principais percalços que permeia o universo da agricultura familiar no PNAE, uma vez que os avanços legais garantidos pela Lei nº 11.9747/2009, como a dispensa do processo licitatório para a aquisição de alimentos provenientes da agricultura familiar e a instituição das Chamadas Públicas para esse grupo, não conseguiram suplantar todos os entraves relativos a essa dimensão (Brasil, 2009a)BRASIL. Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica; altera as Leis nºs 10.880, de 9 de junho de 2004, 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, 11.507, de 20 de julho de 2007; revoga dispositivos da Medida Provisória nº 2.178-36, de 24 de agosto de 2001, e a Lei nº 8.913, de 12 de julho de 1994; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2009a..

No que compreende o PRONAF, um importante programa de crédito rural para a agricultura familiar, acredita-se que o acesso a essa política poderia mitigar as questões relacionadas a falta de estrutura física e maquinário adequado nas propriedades familiares. Podendo, inclusive, se tornar um estímulo aos produtores, ou mesmo aos jovens, para que permaneçam no campo e continuem os trabalhos agrícolas (Moraes; Medeiros; Matte Júnior, 2018MORAES, J. L. A.; MEDEIROS, A. M.; MATTE JÚNIOR, A. A. Resultados do uso do crédito rural (PRONAF) pelos agricultores familiares de Santo Antônio da Patrulha-RS. Estudos do CEPE, Santa Cruz do Sul, n. 47, p. 64-80, 2018. DOI: 10.17058/cepe.v0i0.12081
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).

Com tal intuito, além dos programas instituídos na esfera federal, a atuação do poder público local é imprescindível para a concretização dos marcos legais instituídos em outras instâncias de governo, bem como para a implementação de iniciativas municipais mais alinhadas à realidade local, sobretudo diante do atual cenário político de desarticulação de diversos instrumentos e políticas públicas de SAN (Santarelli et al., 2017SANTARELLI, M. et al. Da democratização ao golpe: avanços e retrocessos na garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas no Brasil. Brasília, DF: FIAN Brasil, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://fianbrasil.org.br/wp-content/uploads/2017/06/Publica%C3%A7%C3%A3o-Completa-Informe-Dhana.pdf >. Acesso em: 5 set. 2020.
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). No caso de Mostardas, há uma carência de programas e ações voltadas à valorização da sociobiodiversidade no que compreende a atuação da Prefeitura, cujo envolvimento mais concreto no movimento de inserção da sociobiodiversidade nos cardápios escolares tem ocorrido a partir da atuação da nutricionista responsável técnica pelo PNAE. Em conversa, a profissional de Nutrição expôs a falta de compreensão por parte dos gestores acerca das potencialidades imersas no universo da alimentação escolar, sobretudo no que se refere a agricultura familiar, colocando que: “se eles tivessem essa noção da dimensão desse trabalho, quantas famílias poderiam ser ajudadas, quanto a agricultura ia crescer por causa da alimentação escolar” (Marcela, nutricionista). Conforme relatado nas entrevistas, há “muito apoio, muito estímulo de fora” - de agentes externos -, como de universidades que desenvolvem projetos voltados ao estudo da sociobiodiversidade na região, já que “dentro do município, não tem um programa” (Carlos, Emater) que desempenhe tal função, exceto o trabalho que vem sendo elaborado por lideranças e entidades locais, como o STR e a COOPTRAM.

Nessa perspectiva, não obstante aos desafios imbricados no movimento de introdução da sociobiodiversidade no ambiente escolar, existem caminhos para a construção de estratégias de enfrentamento aos obstáculos identificados. Caminhos estes que compreendem, por exemplo, o desenvolvimento de ações de EAN nas escolas e a aproximação e articulação entre os diferentes atores sociais envolvidos com o movimento em questão, o que inclui gestores, nutricionistas, CAE, produtores, entidades locais, lideranças, comunidade escolar e pesquisadores, de modo que coletivamente possam discutir e articular interesses e parcerias em favor do fortalecimento da agricultura familiar, da alimentação saudável nas escolas e da promoção da sociobiodiversidade (Teo; Mossmann; Taglietti, 2017TEO, C. R. P. A.; MOSSMANN, M. P.; TAGLIETTI, R. L. Desafios e mecanismos de enfrentamento na relação entre agricultura familiar e alimentação escolar. Revista Grifos, Chapecó, v. 26, n. 43, p. 34-64, 2017.; Triches et al., 2019TRICHES, R. M. et al. Condicionantes e limitantes na aquisição de produtos da agricultura familiar pelo Programa de Alimentação Escolar no Estado do Paraná. Redes, Santa Cruz do Sul, v. 24, n. 1, p.118-137, 2019. DOI: 10.17058/redes.v24i1.11713
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). Além disso, entende-se que a sensibilização dos gestores locais quanto a inclusão da sociobiodiversidade em mercados institucionais poderia resultar em parcerias mais concretas entre o setor público e os agricultores(as) familiares, com vistas, por exemplo, ao aumento da capacidade produtiva, estruturação de espaços físicos para o beneficiamento dos gêneros, assim como a inserção de tais produtos nos editais de Chamada Pública.

Os sentidos do movimento de inserção da sociobiodiversidade na alimentação escolar para a comunidade

O ato de comer produtos da sociobiodiversidade na escola é apreendido pela comunidade como uma possibilidade de promover saúde nos espaços educacionais, visto que um dos principais elementos pontuados nas entrevistas foi o seu valor nutricional. Ou seja, há o reconhecimento, por parte dos atores locais, do potencial nutricional intrínseco à biodiversidade local, detentora de uma vasta capacidade alimentar, mesmo que muito subutilizada pela população. Afinal, os alimentos da sociobiodiversidade são fontes de nutrientes, vitaminas, minerais e compostos bioativos - substâncias que desempenham funções fisiológicas importantes no corpo humano e contribuem para a promoção da saúde55Para conhecer a composição nutricional de espécies nativas da biodiversidade brasileira, consulte a ferramenta Biodiversidade & Nutrição, fruto do projeto Biodiversity for Food and Nutrition. Disponível em: <https://ferramentas.sibbr.gov.br/ficha/bin/view/FN>. Acesso em: 20 jun. 2021 (Hendler et al., 2021HENDLER, V. M. et al. Sociobiodiversidade e alimentação escolar: uma experiência no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Interações, Campo Grande, v. 22, n. 3, p. 1033-1050, 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.20435/inter.v22i3.3217
http://dx.doi.org/10.20435/inter.v22i3.3...
).

Estudos (Triches; Schneider, 2010TRICHES, R. M.; SCHNEIDER, S. Alimentação escolar e agricultura familiar: reconectando o consumo a produção. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 4, p. 933-945, 2010. DOI: 10.1590/S0104-12902010000400019
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201000...
; Ferigollo et al., 2017FERIGOLLO, D. et al. Aquisição de produtos da agricultura familiar para alimentação escolar em municípios do Rio Grande do Sul. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, n. 6, 2017. DOI: 10.1590/S1518-8787.2017051006648
https://doi.org/10.1590/S1518-8787.20170...
) apontam a melhora da qualidade da alimentação escolar a partir da introdução de produtos produzidos localmente pela agricultura familiar, o que tem proporcionado uma maior diversidade de alimentos in natura, assim como a oferta de alimentos frescos, conforme a diversificação agrícola da região e a sazonalidade, refletindo, inclusive, na maior aceitação das refeições pelos estudantes e no seu conhecimento quanto aos recursos alimentícios disponíveis no seu município. Dessa forma, o PNAE pode contribuir para o desenvolvimento de hábitos alimentares mais saudáveis que realimentam o mercado local, “na medida em que constrói paladares para alimentos produzidos localmente, por terem características exclusivas e/ou apreciadas pelos futuros consumidores” (Triches; Schneider, 2010TRICHES, R. M.; SCHNEIDER, S. Alimentação escolar e agricultura familiar: reconectando o consumo a produção. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 4, p. 933-945, 2010. DOI: 10.1590/S0104-12902010000400019
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, p. 942).

Para além de melhorar a qualidade nutricional e sensorial das refeições servidas na escola, alguns participantes comentaram sobre o “resgate cultural” da comida consumida no passado, visto que algumas práticas alimentares parecem não estar acompanhando a transição geracional. Ou seja, entende-se que “colocando na merenda é bom para eles (estudantes) conhecerem um pouco mais o que era comido antes” (Iolanda, manipuladora de alimentos), já que, conforme foi relatado, apenas uma pequena minoria conhece o feijão sopinha, o milho catete, o arroz quilombola, dentre outros produtos presentes no município.

Além disso, segundo os entrevistados, o resgate não se limitaria ao plano cultural, podendo contribuir até mesmo para a preservação de sementes e conservação dos ecossistemas, representando assim uma forma de resistência à lógica capitalista que se apropria e explora os capitais naturais e humanos, como aponta um participante:

[…] representa uma luta, um desafio, é se a gente manter essas sementes, por exemplo, é uma luta contra o mercado, contra um sistema, é uma produção (de produtos da sociobiodiversidade) que nos identifica, tem uma relação forte entre a natureza, o agricultor, as suas origens. […] Então hoje assim, isso é tudo, é uma riqueza, uma forma de manter esse povo, preservar o ambiente. (Olavo, STR).

Há relatos na literatura de experiências positivas com relação a introdução da sociobiodiversidade na alimentação escolar no litoral norte do estado do Rio Grande do Sul (a exemplo, no município de Três Cachoeiras) no que tange a construção de valores ambientais e econômicos em torno da flora nativa, contribuindo para a preservação das espécies e geração de renda a partir do uso sustentável (Borges; Carvalho; Steil, 2015BORGES, M. G.; CARVALHO, I. C. de M.; STEIL, C. A. A juçara vai à escola: aprendizagem entre pessoas, coisas e instituições. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 21, n. 44, p. 309-329, 2015. DOI: 10.1590/S0104-71832015000200013
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). Somado a questão ambiental, o retorno financeiro também foi pontuado como um possível resultado desse movimento nas entrevistas, no qual o incremento na renda familiar dos produtores locais, a partir da venda de produtos da sociobiodiversidade para o mercado da alimentação escolar, proporcionaria “qualidade de vida e financeira para as pessoas” (Xavier, professor), além de estimular a ampliação e diversificação da produção agrícola nas propriedades familiares.

Por fim, alguns interlocutores manifestaram vislumbrar, por meio do PNAE, a oportunidade de quebrar barreiras simbólicas e estigmas relacionados ao cultivo e a produção da sociobiodiversidade, pois “nada melhor do que uma escola” para “romper o medo, a baixa autoestima e insensibilidade ao que é local” (Frederico, colaborador), mostrando à população, aos gestores e, sobretudo, aos produtores que a sociobiodiversidade “tem mercado e tem valor” (Carlos, Emater).

Não obstante as interpretações positivas a respeito do processo de inserção da sociobiodiversidade na alimentação escolar pela comunidade, considera-se importante pontuar que os valores relativos ao tema não estão postos entre os atores locais, mas estão sendo construídos por eles, na medida em que o referido movimento se fortalece e a sociobiodiversidade, os seus saberes e rituais relacionados ganham notoriedade, mesmo que ainda externamente às comunidades locais. Assim, acredita-se que o movimento em estudo pode também contribuir para a construção e ressignificação de valores em torno da sociobiodiversidade.

Considerações finais

Neste artigo, buscou-se olhar para os desafios e as potencialidades que permeiam os universos da alimentação escolar e da sociobiodiversidade, bem como apreender a importância de se olhar para esse campo em construção, o qual compreende diversas possibilidades ainda pouco exploradas no contexto do PNAE.

Quanto aos entraves identificados, constatou-se aspectos relacionados à baixa produção de alimentos da sociobiodiversidade, a perda do hábito de consumi-los, especialmente entre as gerações mais jovens que, basicamente, desconhecem a existência e o paladar de preparos com sociobiodiversidade e, ainda, identificou-se questões de ordem logística e estrutural relativas à dinâmica do abastecimento. No âmbito das políticas públicas, foram pontuados desafios relacionados ao acesso a programas voltados à agricultura familiar, como o PRONAF, a burocracia dos processos de compras do PNAE e a parca atuação do poder público local, que pouco vem contribuindo com a promoção da sociobiodiversidade no município.

Desse modo, verifica-se que há, em Mostardas, questões prévias relacionadas, por exemplo, ao plano da agricultura familiar, como a dificuldade de acesso a algumas políticas públicas e a falta de estrutura física adequada para o beneficiamento dos produtos, o que requer análise e ações efetivas para esses problemas, de forma que os esforços possam se voltar à inclusão da sociobiodiversidade nos cardápios escolares.

Além disso, considera-se necessário pensar, em uma esfera mais macro, sobre o desenvolvimento de marcos legais direcionados especificamente para a sociobiodiversidade no âmbito do PNAE. Ou seja, apesar dos avanços da política nos últimos anos, faltam orientações mais concretas direcionadas a introdução da sociobiodiversidade na alimentação escolar, no que se refere, por exemplo, a aquisição prioritária desses produtos, tal como a orientação relativa à prioridade de compra de produtos orgânicos e/ou agroecológicos (Brasil, 2020)BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 06, de 08 de maio de 2020. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar dos alunos da educação básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Brasília, DF, 2020., conforme capacidade produtiva de cada município. Para tanto, entende-se que, além da criação de instrumentos jurídicos, os quais possivelmente orientarão a atuação dos gestores, esse movimento não deve ser construído a partir de uma lógica vertical - de cima para baixo -, mas em conjunto com a comunidade, de modo que possam reivindicar suas demandas e interesses, bem como protagonizar a concretização desse movimento.

Por fim, outro aspecto abordado foram os sentidos que o processo, em curso, de inserção da sociobiodiversidade na escola, desperta nos atores locais. Nesse sentido, os discursos apontaram que a valorização das espécies alimentícias locais, dos saberes populares, dos agricultores(as) e comunidades tradicionais no contexto da alimentação escolar relacionam-se com a construção da Soberania Alimentar, da SAN e do Desenvolvimento Sustentável, sendo, portanto, uma estratégia de enfrentamento ao atual cenário de Sindemia Global de Obesidade, Desnutrição e Mudanças Climáticas, que vai, inclusive, ao encontro do que se tem discutido enquanto dietas mais sustentáveis.

Referências

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  • BORGES, M. G.; CARVALHO, I. C. de M.; STEIL, C. A. A juçara vai à escola: aprendizagem entre pessoas, coisas e instituições. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 21, n. 44, p. 309-329, 2015. DOI: 10.1590/S0104-71832015000200013
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  • BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 06, de 08 de maio de 2020. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar dos alunos da educação básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Brasília, DF, 2020.
  • BRASIL. Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica; altera as Leis nºs 10.880, de 9 de junho de 2004, 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, 11.507, de 20 de julho de 2007; revoga dispositivos da Medida Provisória nº 2.178-36, de 24 de agosto de 2001, e a Lei nº 8.913, de 12 de julho de 1994; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2009a.
  • BRASIL. Plano nacional de promoção das cadeias de produtos da sociobiodiversidade. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário; Ministério do Meio Ambiente; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2009b. Disponível em: <Disponível em: https://bibliotecadigital.economia.gov.br/bitstream/123456789/1024/1/Plano%20Sociobiodiversidade.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2018.
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  • BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Biodiversidade Brasileira: sabores e aromas. Brasília, DF, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/biodiversidade/fauna-e-flora/copy2_of_LivrodeReceitasSaboreseAromas.pdf >. Acesso em: 5 set. 2020
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    » https://doi.org/10.1590/0103-1104202012622

  • 1
    A Lei nº 11.947/2009 determina que, no mínimo, 30% dos recursos financeiros federais repassados aos municípios e estados, no âmbito do PNAE, devem ser destinados à aquisição de gêneros alimentícios provenientes da agricultura familiar, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas (Brasil, 2009aBRASIL. Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica; altera as Leis nºs 10.880, de 9 de junho de 2004, 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, 11.507, de 20 de julho de 2007; revoga dispositivos da Medida Provisória nº 2.178-36, de 24 de agosto de 2001, e a Lei nº 8.913, de 12 de julho de 1994; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2009a.).
  • 2
    Disponível no site do IBGE Cidades, em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/mostardas/panorama>. Acesso em: 24 ago. 2021.
  • 3
    Disponível no site da Fundação Cultural Palmares, em: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/certificadas-02-08-2019.pdf. Acesso em: 30 out. 2020.
  • 4
    De 2014 a 2020, a responsabilidade técnica pela alimentação escolar em Mostardas foi assumida por três nutricionistas: Marcela, de 2014 a abril de 2019 (concurso); Bárbara, de maio de 2019 a maio de 2020 (contrato) e Amanda, que assumiu o cargo em junho de 2020 (concurso).
  • 5
    Para conhecer a composição nutricional de espécies nativas da biodiversidade brasileira, consulte a ferramenta Biodiversidade & Nutrição, fruto do projeto Biodiversity for Food and Nutrition. Disponível em: <https://ferramentas.sibbr.gov.br/ficha/bin/view/FN>. Acesso em: 20 jun. 2021

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2023
  • Revisado
    02 Fev 2023
  • Aceito
    06 Fev 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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