Sofrimento psíquico no neoliberalismo e a dimensão política do diagnóstico em saúde mental

Psychic suffering in neoliberalism and the political dimension of the mental health diagnosis

Leticia Coelho Tiago Neves Sobre os autores

Resumo

Este trabalho objetiva demonstrar a dimensão política do diagnóstico das formas de sofrimento psíquico, a partir da crítica da racionalidade neoliberal. A metodologia utilizada foi o trabalho de um conceito através de revisão de bibliografias, principalmente da Psicopatologia e Teoria Social. Historicamente, o tratamento clínico e social dado aos sujeitos que apresentam algum tipo de sofrimento psíquico se relaciona com a cultura de cada época e com a forma vigente de se exercer o poder. Na modernidade, o paradigma psiquiátrico acerca das doenças mentais segue a lógica do dispositivo saber-poder biomédico, que, dentro da lógica neoliberal individualizante, responsabiliza cada sujeito por seu adoecimento e tem como máxima o autoaprimoramento, não a cura. Nesse sentido, as categorias diagnósticas de nossa época servem muito mais para capturar as formas hegemônicas de mal-estar e traduzir em uma gramática passível de normalização do que para expressar a natureza de uma doença mental. Tal hipótese tem imenso peso político, visto que uma razão diagnóstica totalizante corrobora para o esgotamento da capacidade de enfrentar conflitos, contradições e reinvenções, o que gera um cenário de dificuldades para lidar com a alteridade e com as contingências próprias da vida, que acabam sendo patologizadas.

Palavras-chave:
Sofrimento psíquico; Neoliberalismo; Diagnóstico

Abstract

This work aims to demonstrate the political dimension of the diagnosis of the forms of psychic suffering, from the critique of neoliberal rationality. The methodology used was the work of a concept with a review of bibliographies, mainly on psychopathology and social theory. Historically, the clinical and social treatment given to subjects who present some type of psychic suffering is related to the culture of each time and the current way of exercising power. In modernity, the psychiatric paradigm about mental illness follows the logic of the biomedical knowledge-power device, which, within the individualizing neoliberal logic, holds each subject responsible for their illness and has at its maximum the self-improvement and not the cure. In this sense, the diagnostic categories of our time serve much more to capture the hegemonic forms of malaise and translate them into a grammar that can be normalized than to express the nature of a mental illness. Such a hypothesis has immense political weight, since a totalizing diagnostic reason corroborates the exhaustion of the capacity to deal with conflicts, contradictions, and reinventions, which generates a scenario of difficulties in coping with alterity and with the contingencies of life, which end up being pathologized.

Keywords:
Psychic suffering; Neoliberalism; Diagnosis

Introdução

Historicamente, o tratamento clínico e social dado aos sujeitos que apresentam algum sofrimento psíquico se relaciona com a cultura de cada época e com a forma vigente de exercer o poder. Por exemplo, na Antiguidade, a loucura era considerada a categoria geral que concentrava todos os tipos de sofrimento mental. Lembremos de como era vista sob a ótica metafísica, sendo considerada fruto de castigo dos deuses ou de possessão demoníaca. Hoje, essa visão ficou ultrapassada e, com ela, o uso da categoria “loucura” para expressar formas de sofrimento psíquico. Por outro lado, com o surgimento do alienismo pineliano na modernidade, há a inauguração do embrião que dá origem à psiquiatria, e aquilo que era reconhecido pela ótica da loucura é inserido na lógica dos eventos naturais “cuja verdade se enuncia por si mesma nos fenômenos observáveis” (Foucault, 2005FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005., p. 190).

Na modernidade, o paradigma psiquiátrico acerca das doenças mentais segue a lógica do dispositivo saber-poder biomédico, para a qual a cura das afecções mentais significa o retorno ao estado anterior à patologia. Segundo Michel Foucault (2005FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.), o poder disciplinar forjado no âmbito da racionalidade do alienismo não é somente uma forma de tratar o sofrimento psíquico, mas uma estratégia política eficaz de controle e coerção social. Seguindo essa pista inaugurada por Foucault, vemos que, nos dias de hoje, categorias diagnósticas como depressão, paranoia, melancolia e ressentimento, por exemplo, versam mais sobre modos de participação social e de processos hegemônicos de subjetivação do que sobre doenças como fenômenos naturais observáveis. Concordamos com o psicanalista Christian Dunker (2015DUNKER, C. Mal estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.) quando afirma que as categorias diagnósticas de nossa época servem muito mais para capturar as formas hegemônicas de mal-estar e traduzir em uma gramática passível de normalização do que para expressar a natureza de uma doença mental. Assim, a forma depressiva, paranoica, melancólica e ressentida de sofrer é, antes de expressar uma doença natural, um modo subjetivo de responder às demandas e exigências da forma neoliberal de socialização.

O que orienta atualmente os diagnósticos psiquiátricos não é mais a fuga da norma e os problemas de ajustamento do sujeito aos ideais civilizatórios, “não há mais conflito entre aspirações e desejos pessoais e os imperativos sociais, mas sim uma sinergia entre esses vetores rumo a autorrealização, que faz coro a ordem econômica de produção” (Neves et al., 2021NEVES, A. et al. A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 125-175., p. 133). Em nosso atual contexto neoliberal, podemos dizer que o paradigma saúde/doença se enfraquece diante da inclusão do enhancement11Optamos por seguir a escolha de Safatle, Silva Junior & Dunker (2021) ao usar o termo enhancement em inglês, visto que não há uma expressão equivalente na língua portuguesa para esse “empuxo ao melhor, à potencialização de algo preexistente ou dimensão de extravasamento e excesso” (Neves et al., 2021, p. 127), ou seja, o enhancement não é considerado apenas como aprimoramento, mas um empuxo, uma força que move para uma melhoria constante e crescente. na racionalidade psiquiátrica. Nesse sentido, para entendermos sobre as formas de sofrimento nos moldes da racionalidade capitalista atual, o neoliberalismo, faz-se necessário retroceder temporalmente para resgatar o contexto do surgimento e as características desse tipo de laço social, para, então, discutirmos como se dá o diagnóstico nesse contexto.

A racionalidade neoliberal e suas consequências clínico-políticas

Em 1948, organizado pelo filósofo Louis Rougier, ocorreu o Colóquio Walter Lippmann, evento que tinha como tema central as transformações necessárias nas teorias econômicas vigentes. Inicialmente, é válido demarcar que, na época supracitada, havia, em decorrência da crise do capitalismo vivida na década de 1930, uma queda da concepção clássica liberal de que a ordem econômica seria um tipo de ordem natural, derivada das leis divinas, na qual não deveria haver nenhum tipo de intervenção estatal. Havia, então, uma ascensão da visão defendida por Lippmann - daí o nome do evento e o convite de Rougier para que o pensador participasse: a economia de mercado não é uma lei natural, mas é resultante de um cenário amparado pelas leis e pelo Estado, que devem propiciar as condições ideais para o desenvolvimento pleno da iniciativa privada e a pauta principal da discussão foi justamente como e em que medida essa intervenção deveria ocorrer (Casara, 2021CASARA, R. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autononia Literária, 2021.; Franco, 2021FRANCO, F. et al. O sujeito e a ordem do mercado: gênese teórica do neoliberalismo. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 47-75.).

Tal evento, apesar de não ser o único marcador temporal, é emblemático no surgimento do neoliberalismo, visto que houve uma concentração de pensadores influentes e de grandes discussões acerca do tema e que, a partir do que foi produzido ali, decisões foram tomadas. Nesse sentido, eram duas as correntes teóricas mais fortes da época, de acordo com Foucault (2008FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.): o ordoliberalismo, da Escola de Fribourg, e o neoliberalismo, da Escola de Chicago, que guardam mais semelhanças que diferenças. Ambas defendem a crítica da ação política voltada à redução da desigualdade e a crença de um poder que age sobre os indivíduos a partir do meio em que vivem - que deve ser, por excelência, regido pela lógica mercadológica (Casara, 2021CASARA, R. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autononia Literária, 2021.) - mas a primeira delas defende uma espécie de união entre os fins do Estado e os do mercado, na medida em que o Estado tem como dever garantir o sucesso do mercado, inclusive através da constitucionalização dos princípios da economia. Já o neoliberalismo americano radicaliza o favorecimento da iniciativa privada, inclusive a política social privatizada, bem como amplia o pensamento empresarial por outros âmbitos da vida, como a família e a justiça, ou seja, as condutas e modos de viver do homem passam a ser analisados sob a ótica do homo economicus. Isso posto, vale destacar a hegemonia do segundo grupo como mais proeminente dos séculos XX e XXI.

É válido ressaltar que o neoliberalismo não se configura como uma nova maneira de governar que substitui o capitalismo, mas é, justamente, como o sistema capitalista se constitui e se apresenta em nossa época. Dessa maneira, o neoliberalismo surge como uma tentativa de dar conta das tensões teóricas e das crises econômicas e sociais da transição entre as metades do século XX, mas torna-se uma política econômica e consolida-se, sobretudo, como uma racionalidade governamental. Segundo Rubens Casara (2021CASARA, R. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autononia Literária, 2021.),

[...] a racionalidade é tanto o estado ou a qualidade de agir a partir de razões quanto os elementos que explicam, condicionam e justificam essas ações e os fins visados. As razões para agir são crenças ou ideias que se acredita estarem corretas e, mais do que isso, compatíveis e adequadas às ações escolhidas e aos fins visados. (Casara, 2021CASARA, R. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autononia Literária, 2021., p. 33)

Para que uma racionalidade se torne hegemônica, é preciso que haja uma espécie de revolução cultural, “a naturalização de um novo modo de pensar e agir, bem como novas leituras da história, novas políticas e novos projetos para o futuro” (Casara, 2021CASARA, R. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autononia Literária, 2021., p. 38). Há, portanto, a construção de um imaginário, de um conjunto de imagens partilhadas, bem como uma normatividade e um conjunto de mandamentos de conduta, absolutamente envolvidos por questões ideológicas.

O neoliberalismo, enquanto racionalidade, é pautado na premissa de que o mercado é o modelo ideal para todas as relações sociais, o que implica em um modo de viver baseado na competitividade, no lucro máximo e na crença de que tudo - ou todos - pode(m) ser negociado(s). É evidente que esse cenário gera consequências não só na forma de pensar, mas também na vida prática e cotidiana das pessoas.

Nesse sentido, para a construção desse novo imaginário, que permitiu a consolidação das mudanças sociais do neoliberalismo, houve uma emancipação do indivíduo em relação a tradições familiares, religiosas e fidelidades pessoais. Todas essas instituições, outrora balizadoras principais da constituição individual, foram substituídas por um discurso unificado que pauta a existência nas regras daquilo que o capital controla: as empresas e o mercado (Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.).

Ainda segundo Dardot e Laval (2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.), é nítida a passagem entre a subjetividade das democracias liberais e a da consolidação dos regimes neoliberais, visto que, no primeiro momento, as esferas religiosas, políticas e de mercado eram, até certo ponto, mantidas separadas. Na atualidade, vê-se uma homogeinização da vida dos sujeitos que, agora, devem ter um desempenho máximo em todas as áreas de sua vida, em uma produção continuada de felicidade irrestrita, que tem como principal modelo de modo de vida o atleta de alta performance (Souza, 2021SOUZA, V. J. A gestão neoliberal do sofrimento no diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). 2021. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal de São João del Rei, São João del Rei, 2021.). Outra mudança evidente é a transferência desse lugar de gestão: não é mais a Igreja ou o Estado quem deve gerir os sujeitos, mas eles próprios que devem se gerir, a partir da introjeção dessa nova racionalidade.

Ao nos apoiarmos nas questões levantadas por Foucault (2008FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.), temos o conceito de governamentalidade, que seria a atividade de conduzir - pertencendo ou não aquele que conduz ao Estado enquanto instituição - a conduta de outros indivíduos, ou seja, há uma noção de governo enquanto atividade e não enquanto instituição. Ele nos coloca, ainda, a mutação provocada pelo neoliberalismo: as técnicas de dominação exercidas sobre os outros passam a encontrar as “técnicas de si” - aquelas que buscam a autogestão baseada em certa ordem estabelecida. Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido durante a segunda metade do século XX e considerada a “mãe” do neoliberalismo, afirmou em emblemática entrevista que “a economia é o método, o objetivo é mudar o coração e a alma”, ilustrando perfeitamente a essência desse movimento, que era não só conduzir e estruturar a ação dos governantes, mas também a conduta dos governados (Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.), a partir de uma fusão entre os campos do mercado e da moral.

Vladimir Safatle traz, em seu texto “A economia é a psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral” (2021SAFATLE, V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE, V.; JUNIOR, N. S.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 17-45.), vários exemplos que ilustram a aproximação dos campos da psicologia e da economia historicamente. Além do ilustrativo discurso da dama de ferro, Margaret Thatcher, tivemos, nas discussões sobre a crise econômica grega de 2015, a colocação de pontos de vista diferentes sobre as políticas implementadas após a crise de 2008. Nesse contexto, personalidades importantes, como a então presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, exigiram na imprensa que seus opositores parassem com o “comportamento infantil”, pois, para resolver a problemática, era preciso ter “adultos na sala”, ou seja, um embate que seria sobre distintas visões sobre economia tornou-se um conflito sobre maturidade psicológica, situação que vem se repetindo em diversos momentos.

Não obstante, essa estratégia é usada em situações nas quais a crise econômica se instaura e medidas de combate a ela são vendidas como “políticas de austeridade” e é exigido da população “racionalidade”, “maturidade para administrar os recursos disponíveis”, “independência do paternalismo estatal”, “responsabilidade para lidar com o mundo adulto (que é descrito como inerentemente cruel e desigual)”, “habilidade para assumir e gerenciar riscos”, entre outras coisas que dizem respeito à “justificação de ações econômicas e a paralisia da crítica através da mobilização massiva de discursos psicológicos e morais” (Safatle, 2021SAFATLE, V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE, V.; JUNIOR, N. S.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 17-45., p. 19). Assim, é preciso pensar quais as consequências desse discurso que aproxima a economia de uma espécie de maturação psicológica e/ou moral.

Ademais, não só a gramática política se funde cada vez mais à psicológica em termos de maturidade, como os afetos - ódio, frustração, medo, ressentimento, raiva, inveja, esperança - são utilizados para substituir os conceitos centrais que permeavam o cenário da política - justiça, equidade, exploração, conflito. Notemos que, gradativamente, valores que diziam respeito ao coletivo vão sendo substituídos por questões individuais e a função do Estado passa a ser despolitizar a sociedade para que a luta de classes ceda lugar à autogestão do self-made man.

Ainda sob a luz das ideias de Safatle (2021SAFATLE, V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE, V.; JUNIOR, N. S.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 17-45.), é notório que a psicologia, enquanto saber-poder, em muito contribuiu para a mudança e modelação subjetiva promovida pelo neoliberalismo. É preciso frisar que houve, historicamente, um longo e repetitivo esforço de internalização da lógica empresarial e da expansão dela por outras áreas da vida. Na década de 1920, como uma forma de lidar com o fracasso do modelo taylorista de administração, ascendeu uma tentativa de humanizar o contexto organizacional, contando, principalmente, com uma engenharia motivacional em que recursos psicológicos e conceitos como cooperação, comunicação e reconhecimento passaram a ser norteadores das relações de trabalho.

Segundo Han (2018HAN, B. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. 7. ed. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.), essa seria a grande diferença entre a sociedade capitalista tradicional e a neoliberal: o foco sai do corpo, da instância bio, pois já não é mais preciso uma jornada fisicamente extenuante de trabalho, como no capitalismo tradicional, e passa à psique, pois essa é descoberta como força produtiva infinitamente mais eficiente. A lógica disciplinar, outrora presente, dá espaço à autogestão, ao empreendedorismo de si e à otimização mental. Assim, o sofrimento psíquico, bem como inúmeras problemáticas de origem social, como a pobreza, não é reconhecido como uma recusa ou impossibilidade de viver de acordo com as normativas sociais, mas como o fracasso individual perante a suposta possibilidade de uma vida plena e completa.

Para esse sujeito, supostamente capaz de produzir felicidade em todos os aspectos de sua vida, a transformação é apresentada através da autoajuda, das técnicas de gestão de si, que forjam uma subjetividade pautada nos pilares da autorresponsabilidade, motivação, competição e capacidade de automelhoramento. Há uma introjeção brutal da normativa social, e a consequência é uma racionalização do desejo e não mais um controle dele, como em outros períodos históricos. Se, na sociedade do liberalismo clássico, a repressão era o mecanismo de coesão social vigente, na sociedade neoliberal, o imperativo é o do gozo irrestrito (Souza, 2021SOUZA, V. J. A gestão neoliberal do sofrimento no diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). 2021. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal de São João del Rei, São João del Rei, 2021.).

A capacidade de obter sucesso é medida através, também, da capacidade de autogestão em todas as esferas da vida e a busca por desenvolvimento é analisada sob a ótica de aumento do capital humano da empresa. Nesse cenário, cresce o lugar do coaching não apenas como técnica que visa melhorar o desempenho profissional, mas como uma espécie de filosofia de vida que ensina, com um léxico extremamente psicologizado, a lidar com as emoções, já que agora compõem os recursos do capital.

Diante desse horizonte, os imperativos são construídos também por técnicas como a Programação Neurolinguística (PNL) e o marketing, que pregam a ilimitação do gozo: é sempre possível (e necessário) fazer mais, ser mais, desenvolver-se e melhorar-se, em uma corrida avaliada por “instrumentos muito mais próximos do indivíduo (superior imediato), mais constantes (resultados contínuos da atividade) e mais objetiváveis (medidas quantitativas levantadas por registro informatizado)” (Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 351). O modelo do atleta de alta performance é extremamente explorado pelo neoliberalismo como o exemplo ideal, o esperado não é mais o desempenho médio, o funcionamento padrão, mas a excelência permanente e inalterável, daí a ascensão do enhancement, porque o aprimoramento por si só não basta, é preciso defender uma força que move em direção ao sempre-melhor.

De acordo com Dardot e Laval (2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.), as transformações no modo de vida e de se relacionar promovidas pelo neoliberalismo começaram muito antes de sua ascensão, com a urbanização e com a mercantilização das relações, que, na modernidade, deixaram de ser mediadas por laços simbólicos e passaram a ser contratualizadas. Ademais, a precarização do trabalho e a constante sensação de impermanência e de risco iminente, características instauradas com a consolidação do capitalismo cuja responsabilidade de administração cabe somente ao trabalhador, geraram um cenário propício para o surgimento de discursos conformistas, que individualizam as querelas relativas ao trabalho, ordenando-o a partir do mérito. Assim, a empresa deixa de ser uma organização com funcionários e passa a ser um aglomerado de empreendedores de si em prol de um mesmo objetivo,

[...] A partir de então, diversas técnicas contribuem para a fabricação desse novo sujeito unitário, que chamaremos indiferentemente de “sujeito empresarial”, “sujeito neoliberal”, ou, simplesmente, “neossujeito”. Não estamos mais falando das antigas disciplinas que se destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e a dobrar os espíritos para torná-los mais dóceis - metodologia institucional que se encontrava em crise havia muito tempo. Trata-se agora de governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra. Para isso, deve-se reconhecer nele a parte irredutível do desejo que o constitui. As grandes proclamações a respeito da importância do “fator humano” que pululam na literatura da neogestão devem ser lidas à luz de um novo tipo de poder; não se trata mais de reconhecer que o homem no trabalho continua a ser um homem, que ele nunca se reduz ao status de objeto passivo; trata-se de ver nele o sujeito ativo que deve participar inteiramente, engajar-se plenamente, entregar-se por completo a sua atividade profissional. O sujeito unitário é o sujeito do envolvimento total de si mesmo. A vontade de realização pessoal, o projeto que se quer levar a cabo, a motivação que anima o “colaborador” da empresa, enfim, o desejo com todos os nomes que se queira dar a ele é o alvo do novo poder. (Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 327)

É evidente que, diante desse cenário individualizador, não há identificação dos trabalhadores enquanto classe, o que dificulta a organização de movimentos que poderiam, minimamente, lutar para a melhoria da situação de precariedade, ou seja, a governamentalidade empresarial produz o sujeito perfeito para o seu funcionamento, “ordenando os meios de governá-lo para que ele se conduza realmente como uma entidade em competição e que, por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais fracassos” (Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 328). Isso promove uma reação em cadeia, pois o próprio comportamento dos indivíduos envolvidos nessa lógica engendra a reprodução, a ampliação e o reforço da competição e, consequentemente, de um ambiente duro e cada vez mais adoecedor.

A busca pela ilimitação - da atenção, da performance, da dedicação, da motivação, do sucesso etc. - que apenas uma máquina seria capaz de desempenhar foi e ainda é apoiada em um discurso “psi” acrítico voltado para a adaptabilidade, tendo como consequência uma mudança na gramática psicopatológica, agora pautada no empuxo ao melhoramento. Não coincidentemente, a consolidação do neoliberalismo aconteceu em conjunto com a expansão da indústria farmacêutica e com a publicação do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-III).

No que tange ao primeiro ponto - a expansão da indústria farmacêutica -, podemos retomar a obra basilar do Robert Whitaker (2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.), Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental, na qual contextualiza a consolidação da psiquiatria como um dos mais poderosos discursos de nossa época. Inicialmente, para dar conta de uma demanda cada vez mais crescente, principalmente nos Estados Unidos, de doenças psiquiátricas, a indústria farmacêutica passou a desenvolver medicações com efeitos tranquilizantes, por volta das décadas de 1940 e 1950. O autor vai expondo, ao longo de sua obra, o quanto esses medicamentos, vendidos como “pílulas mágicas”, foram muito mais resultados de marketing e patrocínios do que efetivamente de efeitos benéficos comprovados. Publicações em jornais e revistas - populares e científicas -, patrocínios a congressos de psiquiatria, divulgação de supostos casos de sucesso, pesquisas altamente questionáveis, mas com imagem de rigorosamente testadas pelo método científico, e tantas outras estratégias, foram utilizadas pelos maiores laboratórios de medicamentos do mundo, com o fito de consolidar a psiquiatria como um saber preciso, exato e eficaz (Whitaker, 2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.).

A psiquiatria foi, assim, ganhando espaço e passando a determinar o normal e o patológico em termos de desequilíbrios neuroquímicos, dessa forma, os pacientes passaram a ser, também, clientes. Tal mudança veio acompanhada e embasada pela mudança nas publicações do DSM, tendo como marco principal a publicação da terceira edição do manual, em 1980, visto que passou a ter uma base mais biomédica e comportamental, abandonando a etiologia, dispondo apenas de um checklist de sintomas a serem avaliados. Desde 1980, cada publicação de uma nova edição do DSM abriga centenas de novas categorias diagnósticas, em uma crescente patologização da vida cotidiana, como colocado por Whitaker (2017WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.) e Safatle, Silva Junior e Dunker (2021SAFATLE, V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE, V.; JUNIOR, N. S.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 17-45.).

Portanto, o grande marco da evolução da psiquiatria e da indústria farmacêutica sob a égide do neoliberalismo é a passagem de uma função terapêutica para a lógica do enhacement e do aprimoramento de si. Fazendo uma alusão à medicina dermocosmética, por exemplo, há alguns anos o foco deixou de ser o tratamento ou as cirurgias reparadoras, passando a centralizar o melhoramento; cenário muito bem ilustrado na lógica da harmonização facial, segundo a qual há sempre algo a ser melhorado, aproximado do ideal estético de perfeição. Em nosso tempo, é bastante comum que vejamos pessoas saudáveis se submeterem a procedimentos e cirurgias invasivas e arriscadas com o objetivo de melhorar sua aparência - saudável, mas não em sua melhor versão. Analogamente, a psiquiatria funciona, cada dia mais, como sustentação a esse empuxo ao aprimoramento, buscando não só tratar pessoas em sofrimento, mas melhorar a performance daqueles que estão, em teoria, saudáveis (Neves et al., 2021NEVES, A. et al. A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 125-175.).

Nada mais ilustrativo do que o uso das smart drugs, ou nootrópicos: substâncias psicoativas utilizadas por pessoas sem transtornos psiquiátricos visando não curar uma doença, mas aumentar a performance - o foco, a concentração e a memória. Os grupos estudados que fazem esse uso da medicação são, geralmente, aqueles em que o nível de competitividade é alto e a cobrança por resultados e pela melhor versão de si é constante (Neves et al., 2021NEVES, A. et al. A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 125-175.).

Se a lógica neoliberal impõe um diagnóstico sem etiologia, medicação sem tratamento e um rendimento sem oscilações, que lugar ocupa a psicopatologia hoje? Como é possível pensar no diagnóstico? Por que temos estatísticas tão assustadoramente estrondosas de doenças psiquiátricas? Quais as implicações políticas do ato de diagnosticar?

Comumente ouvimos a palavra “diagnóstico” em contextos distantes da saúde, como nas empresas e organizações, que contam com o diagnóstico organizacional para entender o ambiente de trabalho e ajudar a planejar ações. Sendo assim, ao resgatar a etimologia da palavra diagnóstico, Jorge Saurí, importante psiquiatra, traz que:

A área semântica do vocábulo diagnosis - integrada por termos como diagignosko, separar e decidir; diagnome, deliberação e decisão; diagnomon, perspicaz, vigilante e atento; diagnorizo, fazer, conhecer, divulgar, e diagnostikos - designou, em suas origens, o fato e os atos de reconhecer e discernir, e configurou um campo significativo relativo a um modo de conhecer que consistia em separar e discriminar as notas do cognoscível. Diagnosticar era, de fato, discernir, ou seja, conhecer racionalmente algo de modo lúcido e perspicaz, penetrando no que é possível conhecer e processá-lo decidindo alguma coisa. (Saurí, 2001SAURÍ, J. J. O que é diagnosticar em psiquiatria. São Paulo: Escuta, 2001., p. 10)

Assim, a partir dessa definição, podemos concluir que a atividade de conceder um diagnóstico teve seu início com o propósito de reconhecer e diferenciar determinada situação posta. Nessa mesma obra, o autor ainda resgata como, nos primórdios da medicina, havia uma separação do sujeito mediante a lógica cartesiana: o corpo e a mente são instâncias independentes e é a razão quem deve guiar o corpo. Com o avanço das ciências naturais, o diagnóstico foi se consolidando como “o trabalho de conhecimento e reconhecimento dos sinais, úteis para fixar a identidade de alguma coisa” (Saurí, 2001SAURÍ, J. J. O que é diagnosticar em psiquiatria. São Paulo: Escuta, 2001., p. 11), a partir de três fases, no primeiro momento, o constitutivo, temos o reconhecimento por meio da comparação; logo após, temos o instante operativo, que corresponde à seleção de dados a partir de regras/critérios convencionados. Um adendo importante é ressaltar que, muito sabiamente, Saurí nos adverte de que esses dados são recolhidos mediante uma certa interpretação por parte do médico. Por fim, temos a fase temporal, que diz respeito à aproximação entre o diagnóstico - nomeação a partir da observação de sintomas e sinais - e o prognóstico - escolha de tratamento e conduta adotados a partir do diagnóstico.

Retomando à citação que coloca a diagnóstico como útil para fixar a identidade de alguma coisa, temos uma pista do caminho trilhado pela medicina, em especial pela psiquiatria, no curso da história, pois, atualmente, os diagnósticos se configuram como espécies de “etiquetas” que são coladas nos sujeitos e a partir das quais eles se relacionarão.

A priori, a discussão sobre o diagnóstico advém do debate sobre o que é uma patologia; o que configura certos modos de sofrimento como patológicos; o que é saúde e doença e tantas outras questões daí derivadas. É usual que, ao falarmos sobre saúde mental, por exemplo, acabemos falando sobre doenças, distúrbios e transtornos. Essa “tradição” foi fundada a partir da apropriação da experiência da loucura por parte dos alienistas, que a transformaram em uma experiência nosográfica, uma caçada pelos marcadores biológicos que a explicariam enquanto fenômeno (Baroni; Vargas; Caponi, 2010BARONI, D.; VARGAS, R.; CAPONI, S. Diagnóstico como nome próprio. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 22, n. 1, p. 70-77, 2010.). Além disso, a cura das doenças foi demarcada como um retorno ao estado anterior aos sintomas. Em O nascimento da clínica, Foucault (1998FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.) demonstra como o saber médico se forjou enquanto portador da verdade sobre o sujeito e seu corpo, considerando-se que a anatomopatologia passa a tecnicizar os cuidados com a doença a partir do diagnóstico e do prognóstico. Se ao médico era cabida a condução do tratamento, ao paciente bastava a identificação à categoria que lhe fora oferecida como meio de pertencer ao laço social e a obediência ao detentor do saber sobre seu sofrimento.

Considerações finais

Na atualidade, vivemos uma espécie de “epidemia diagnóstica”, que, segundo Alfredo Mansur (2010MANSUR, A. J. Diagnóstico. Diagnóstico & Tratamento, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 74-76, 2010.), tem como causas: a necessidade de termos que sejam compatíveis com os critérios de fontes pagadoras, como planos de saúde, assim como políticas e programas assistenciais e/ou estatais; a pressão por rapidez com primazia operacional e econômica; os prontuários médicos orientados por problemas, sem incluir o diagnóstico; diagnósticos não concluídos tratados como definitivos. Sobretudo, além disso, temos as colocações feitas por Dunker em Mal estar, sofrimento e sintoma (2015DUNKER, C. Mal estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.), que nos apontam que vivemos na era da diagnóstica: “Seria preciso chamar de ‘diagnóstica’ essa expansão dos atos, raciocínios e estratégias de inserção política, clínica e social do diagnóstico, e sua consequente ‘força de lei’, capaz de gerar coações, interdições, tratamentos” (Dunker, 2015DUNKER, C. Mal estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 20).

É fundamental retermos que este avanço traz consequências decisivas para a sociedade, como a medicalização da vida - compreensão de que a quebra da expectativa normativa é a ocasião para a intervenção médica de reparação da normalidade - e a patologização da existência - compreensão de que qualquer traço excêntrico de singularidade é perigoso para a determinação positiva e normativa das formas de vida. É nesses dois registros que encontramos a força e o poder do diagnóstico psiquiátrico.

Uma vez compreendida a realidade da doença - seu agente patógeno, suas causas, o dano provocado e o remédio que cura -, um circuito de cuidado é mobilizado para que a saúde possa ser um bem promovido pelo Estado ou mercadoria posta em circulação pelo capital. Por essa razão, não é difícil compreender porque o sofrimento psíquico na contemporaneidade se estende “para comportamentos de risco, atitudes inadaptadas, predisposição para o desenvolvimento de doenças, qualidades e estilo de vida, vulnerabilidades sociais, situações laborais críticas, configurações ergonomicamente indesejáveis, propensões genéricas, disfunções cerebrais” (Dunker, 2015DUNKER, C. Mal estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 22). Por diagnóstica, devemos entender um conceito de diagnóstico para além dos seus usos na clínica, ou seja, a dimensão política que envolve o diagnosticar. O conceito é, portanto, um estilo de racionalidade. A racionalidade diagnóstica contemporânea não é somente a atitude médica-jurídica que normaliza e mobiliza os dispositivos de subjetivação, já que

Se antes o diagnóstico psicopatológico podia significar uma temível, às vezes irreversível, inclusão jurídico-hospitalar ou exclusão moral-educativa, agora ele parece ter se tornado um poderoso e disseminado meio de determinação e de reconhecimento, quando não de destituição da responsabilidade de um sujeito. (Dunker, 2015DUNKER, C. Mal estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 33)

Concordamos com o psicanalista Christian Dunker (2015DUNKER, C. Mal estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.), quando afirma que as categorias diagnósticas de nossa época servem muito mais para capturar as formas hegemônicas de mal-estar e traduzir em uma gramática passível de normalização do que para expressar a natureza de uma doença mental. Assim, a forma depressiva, paranoica, melancólica e ressentida de sofrer é, antes da expressão de uma doença natural, um modo subjetivo de responder às demandas e exigências do capitalismo tardio.

Assim, não é ao acaso que a diagnóstica psiquiátrica ganhe cada vez mais contornos totalizantes em nossa época. O maior exemplo disso é a expansão do DSM - organizado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) - que, em sua primeira edição, de 1952, descrevia e classificava 182 transtornos. Após 42 anos, já em sua quarta edição, continha 63% a mais de categorias diagnósticas. Tal crescimento se deu pela segmentação das antigas classes diagnósticas em unidades cada vez menores e mais específicas, seguindo, evidentemente, a expansão da variedade farmacêutica que visa atender a demanda da saúde mental. Pois, como afirma Dunker (2015DUNKER, C. Mal estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.),

[...] a flutuação de metáforas neuroquímicas e farmacológicas exige unidades conceituais e descritivas cada vez mais flexíveis e indeterminadas clinicamente e cada vez mais hipotéticas do ponto de vista etiológico para justificar a produção repetida de novas medicações (com mais eficácia, menos efeitos colaterais, maior poder de combinação com outras medicações). Isso permite fazer do mal estar uma doença, inserindo-a em um circuito que vai da propaganda, da divulgação e do consumo de experiências de bem-estar até a aliança entre pesquisa universitária, laboratórios farmacêuticos e gestão da saúde mental. (p. 22-23)

Essa lógica diagnóstica de determinação da doença e do patológico traz como efeito o entendimento da experiência de cura enquanto um processo de eliminação da doença e retorno ao ideal de saúde, que, no neoliberalismo, não se restringe ao desaparecimento dos sintomas, mas engloba também a lógica do enhacement e do aprimoramento de si. Nesse sentido, a indústria farmacêutica transformou os pacientes em clientes por meio de investimentos ostensivos em marketing, e se interessa pela ideia de que cada vez mais pessoas se identifiquem enquanto necessitadas dos benefícios das medicações.

Assim, diante desse contexto, as mudanças no DSM passaram a eufemizar as classificações dos transtornos, de modo que os sujeitos possam se identificar sem estigmatização; também ampliaram excessivamente os critérios diagnósticos, patologizando esferas da vida anteriormente não patologizadas, além de estabelecer um diagnóstico pautado apenas nos sintomas, agora organizados em formato de lista (Neves et al., 2021NEVES, A. et al. A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 125-175.).

Ademais, a hipervalorização do desempenho, característica da racionalidade neoliberal, fez com que a psiquiatria deixasse de ter uma função exclusivamente terapêutica e passasse a seguir os paradigmas da maximização dos lucros. Em 2001, a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2001WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The World Health Report 2001. Mental Health: New Understanding, New Hope. Geneva: WHO, 2002.) publicou um relatório intitulado Saúde Mental: nova concepção, nova esperança, em que expunha sua preocupação com a estigmatização das pessoas com doenças mentais, convocando a psiquiatria para sua função terapêutica. No entanto, ao longo do documento, outro fator é colocado como protagonista da preocupação: a perda da capacidade produtiva daqueles sujeitos que sofriam. Se a produtividade ilimitada é um dos pilares da lógica trabalhista de nosso tempo, como permitir que trabalhadores adoeçam?

Constata-se que, gradativamente, há uma passagem da necessidade de um trabalhador saudável para um funcionário produtivo. Peter Kramer, em seu livro Listening to Prozac, de 1993, coloca relatos de pacientes que tomavam essa droga e que diziam se sentir mais autoconfiantes, mais sedutores, com um maior desempenho profissional e nas relações interpessoais, além de menos sensíveis à rejeição. É comum em certas populações o uso de Ritalina e Adderall - medicamentos utilizados no tratamento de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade - em pessoas saudáveis, com o objetivo de aumentar o foco e a concentração nas atividades laborais (Kramer, 1993KRAMER, P. Listening to Prozac: a psychiatrist explores antidepressant drugs and the remaking of the self. New York: Viking, 1993.).

Ora, se vivemos em uma sociedade em que o valor do sujeito é medido pelo seu desempenho, que deve ser o melhor em todas as áreas de sua vida; se os laços grupais foram dissolvidos na lógica da competitividade; se as relações - profissionais e pessoais - precisam seguir a máxima do lucro; se a gramática diagnóstica se ramificou até o ponto de incluir todos como portadores de algum tipo de transtorno - ou pior: se não é preciso mais receber um diagnóstico para ser medicado, como não desejar uma pílula mágica que apague a insegurança, a falta de libido, o cansaço, o medo e a distração?

Por fim, é perceptível como o diagnóstico pode oferecer amparo ao mal-estar subjetivo, na medida em que produz identificações e modos de socialização que muitas vezes pressupõem uma desresponsabilização do sujeito e uma alienação deste em relação ao discurso médico e à suposta certeza do especialista. Por outro lado, o diagnóstico pode também ser tomado como uma classificação normativa que enfraquece a potência transformadora que habita as experiências do patológico. Tal hipótese tem imenso peso político, visto que uma razão diagnóstica totalizante corrobora para o esgotamento da capacidade de lidar com conflitos, contradições e reinvenções, o que, politicamente, gera um cenário de dificuldades para lidar com a alteridade e com as contingências próprias da vida que acabam por serem patologizadas. Eis a forma neoliberal do diagnóstico: servir como meio de individualizar os problemas concernentes à saúde mental. Ora, se alguém se sente depressivo esse é um problema essencialmente individual, e não um problema estrutural da sociedade em que vivemos.

Diante disso, cabe-nos perguntar, a título de conclusão: a quem interessa tal compulsão à estratégia diagnóstica de normalização? Que tipo de política está atrelada à racionalidade diagnóstica de nossa época? É possível outra prática e função diagnóstica que não sejam a eterna reiteração do normal? É possível pensar um uso clínico e político do diagnóstico que seja de fato emancipatório para os sujeitos e a sociedade?

Referências

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  • HAN, B. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. 7. ed. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.
  • KRAMER, P. Listening to Prozac: a psychiatrist explores antidepressant drugs and the remaking of the self. New York: Viking, 1993.
  • MANSUR, A. J. Diagnóstico. Diagnóstico & Tratamento, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 74-76, 2010.
  • NEVES, A. et al. A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 125-175.
  • SAFATLE, V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE, V.; JUNIOR, N. S.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 17-45.
  • SAURÍ, J. J. O que é diagnosticar em psiquiatria. São Paulo: Escuta, 2001.
  • SOUZA, V. J. A gestão neoliberal do sofrimento no diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). 2021. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal de São João del Rei, São João del Rei, 2021.
  • WHITAKER, R. Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.
  • WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The World Health Report 2001. Mental Health: New Understanding, New Hope. Geneva: WHO, 2002.

  • 1
    Optamos por seguir a escolha de Safatle, Silva Junior & Dunker (2021SAFATLE, V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE, V.; JUNIOR, N. S.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 17-45.) ao usar o termo enhancement em inglês, visto que não há uma expressão equivalente na língua portuguesa para esse “empuxo ao melhor, à potencialização de algo preexistente ou dimensão de extravasamento e excesso” (Neves et al., 2021NEVES, A. et al. A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si. In: SAFATLE, V.; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 125-175., p. 127), ou seja, o enhancement não é considerado apenas como aprimoramento, mas um empuxo, uma força que move para uma melhoria constante e crescente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2022
  • Aceito
    04 Abr 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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