Teologia-política e pandemia Sars-Cov-2/Covid-19: questões à Saúde Coletiva

Luís Henrique da Costa Leão Sobre o autor

Resumo

Este ensaio teórico apresenta, em linhas gerais, o campo da teologia-política enquanto importante área da filosofia política, demonstra sua relevância no atual cenário sociopolítico brasileiro e problematiza suas possíveis intersecções com o campo da Saúde Coletiva. Na primeira parte, busca-se explorar o pensamento teológico-político de autores centrais dessa área, como Santo Agostinho, Giorgio Agamben, Karl Marx, Enrique Dussel e Boaventura de Souza Santos. À luz desses autores, na segunda parte do artigo, descreve-se a emergência de teologias-políticas no cenário político e na dinâmica sociocultural brasileira, manifestas entre grupos evangélicos durante a pandemia de covid-19. Esse cenário da pandemia revelou muitas contradições da sociedade brasileira e evidenciou controvérsias entre duas linhagens de teologias-políticas evangélicas divergentes: as conservadoras/antidemocráticas e as progressistas. A reemergência dessas teologias políticas tem efeitos relevantes no que tange às respostas de grupos sociais e ações do poder frente aos problemas de saúde pública, que merecem maior atenção do campo da Saúde Coletiva. Elas influenciam as esferas do poder e a dinâmica sociocultural no que se relaciona à saúde-doença-cuidado, contribuindo com medidas de proteção coletiva e/ou estimulando posturas de risco, negligências e negacionismos. Conclui-se problematizando contribuições epistemológicas para uma renovada produção do conhecimento-ação na interface da teologia política com a Saúde Coletiva.

Palavras-chave:
Teologia Política; Filosofia; Saúde Coletiva; Pandemia

Introdução

O filme homônimo ao romance escrito pelo filósofo iluminista Denis Diderot, “La religieuse”, se encerra com a cena de uma jovem, que fora forçada a viver uma vida religiosa, escapando do convento e seguindo estrada afora, livre do controle da religião (La Religieuse, 1966LA RELIGIEUSE. Direção: Jacques Rivette. Produção de Rome Paris Films. Neuilly-sur-Seine: Société Nouvelle de Cinématographie, 1966. 1 DVD (2h 15min).). Essa cena capta o sentido do cenário iluminista, que simbolizava, dentre outras coisas, a tentativa da humanidade de livrar-se do domínio religioso.

De fato, o Iluminismo do século XVIII e as revoluções no continente Europeu operaram rupturas entre Igreja e Estado, bem como os processos de secularização e laicização, mas não foram capazes de impedir o reaparecimento de ideias teológicas e teocráticas no espaço público-estatal do século XX e XXI. A aposta do iluminismo se demonstrou limitada, porque a separação entre o poder da Igreja e do Estado moderno e a secularização da sociedade se mostraram processos inacabados e contraditórios (Santos, 2014SANTOS, B. S. Se Deus fosse um ativista de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014.). Parece claro que as formas de exercício do poder e governo dos Estados modernos continuam a se ancorar e funcionar por fundamentos teológico-políticos (Agamben, 2011AGAMBEN, G. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. Homo sacer. São Paulo: Boitempo, 2011. v. 2.).

De fato, já no início da primeira década do século XXI, Jürgen Habermas (2006HABERMAS, J. Religion in the Public Sphere. European Journal of Philosophy, Hoboken, v. 14, n. 1, p. 1-25, 2006. DOI: 10.1111/j.1468-0378.2006.00241.x
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) detectava, em seu artigo Religion in the public sphere, a ressurgência da religião na cena pública ocidental e sua relação com o Estado e as democracias modernas. Nessa linha de pensamento, diferentes autores (Balibar; Wallerstein, 2021BALIBAR, E.; WALLERSTEIN, I. Raça, nação e classe. São Paulo: Boitempo, 2021.; Zizek; Gunjevic, 2015ZIZEK, S.; GUNJEVIC, B. O sofrimento de Deus: inversões do Apocalipse. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.) reconhecem que a religião e as teologias políticas são forças poderosas nos conflitos políticos e sociais contemporâneos.

Mais recentemente, por exemplo, em países como Índia, Rússia, Turquia, EUA, Polônia, Croácia e Sérvia, observa-se uma importante ligação entre a emergência de movimentos religiosos, novas direitas políticas e racismos, bem como os nacionalismos com suas formas autoritárias de dominação (Balibar; Wallerstein, 2021BALIBAR, E.; WALLERSTEIN, I. Raça, nação e classe. São Paulo: Boitempo, 2021.).

No âmbito do cristianismo, a expansão de movimentos religiosos fundamentalistas por todo o mundo tem tido um impacto político importante (Santos, 2014SANTOS, B. S. Se Deus fosse um ativista de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014.) e essa tendência também se percebe no Brasil. O país atravessa um momento sociopolítico no qual a religião cristã aparece vivamente na dimensão sociopolítica, evidenciando seu potencial definidor de rumos político-eleitorais e influenciador de dinâmicas socioculturais nacionais, especialmente com a emergência de grupos evangélicos.

Esse tema merece atenção do campo da Saúde Coletiva (SC), devido a religião ser traço marcante das culturas de populações urbanas e rurais do Brasil e ter influência nos moldes de interpretações sobre adoecimentos, causalidades, formas de tratamento e práticas de cura e adesão/participação nas políticas de saúde. Além disso, os pressupostos teológico-políticos guiam ações governamentais também no campo das políticas sanitárias, além de influenciarem os aspectos socioculturais e as formas de organizar respostas às situações de saúde, como a pandemia do covid-19.

Neste ensaio, pretende-se apresentar, em linhas gerais, o campo da teologia política, descrevendo essa área da filosofia a partir do pensamento de alguns de seus importantes autores, como Agostinho, Agamben, Marx, Dussel e Boaventura Santos. Em seguida, tomando como exemplo algumas expressões das teologias políticas manifestas entre grupos evangélicos no cenário sociopolítico brasileiro durante a pandemia covid-19, no ano de 2020, conclui-se com a problematização de possíveis intersecções entre a teologia-política e o campo da Saúde Coletiva.

Sobre teologia política

Essas categorias, teologia e política, por si só, constituem campos distintos do conhecimento com objetos particulares. A junção deles aponta o desafio de qualquer tentativa de delimitação conceitual mais precisa. Não é por acaso que Roberto Esposito (2019ESPOSITO, R. Dois: a máquina da teologia política e o lugar do pensamento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.), em sua obra “Dois. A máquina da teologia política e o lugar do pensamento”, afirma a impenetrabilidade do conceito e a impossibilidade de uma definição unívoca, porque nos encontramos exatamente no seu interior, utilizando seus vocabulários há, no mínimo, dois milênios11Apenas dois exemplos pontuais: a palavra “corrupção”, tão utilizada no cenário sociopolítico brasileiro, cuja origem remonta à teologia agostiniana na sua acepção da condição humana pecadora, portadora de um coração (cor) rompido (ruptus) e, mais recente, o termo “fundamentalismo”, que nasceu no meio religioso cristão dos Estados Unidos e recebe hoje amplo uso na esfera pública política de diferentes países ocidentais (Santos, 2014)..

As próprias categorias utilizadas para explicar a teologia-política, tal qual secularização, desencantamento e profanação, se mostram insuficientes para definir o conceito, por operarem justamente em fundamentos teológico-políticos. A Teologia Política, portanto, não seria necessariamente um conceito, mas uma “maquinação”, que, como o dispositivo em Foucault, condiciona os comportamentos dos humanos de modo que o seu sentido lhes escapa, subjugando sua existência e, ao mesmo tempo, operando uma inclusão excludente de um polo (teologia) sobre o outro (política), unindo-os à medida que os separa e distanciando-os ao uni-los (Esposito, 2019ESPOSITO, R. Dois: a máquina da teologia política e o lugar do pensamento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.).

A rotação entre esses dois polos atravessa a história das ideias filosóficas clássicas e modernas, reunindo inúmeros pensadores, como Agostinho, Agamben, Spinoza, Hegel, Schmidt, Marx, Deleuze e tantos outros. Assim, por teologia política, nos referimos a esse campo de controvérsias enquanto área da filosofia, cuja reconstrução de nuances, personagens centrais, argumentos e disputas internas vai muito além do escopo deste artigo e já foi abordado por Esposito (2019ESPOSITO, R. Dois: a máquina da teologia política e o lugar do pensamento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.), Agamben (2011AGAMBEN, G. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. Homo sacer. São Paulo: Boitempo, 2011. v. 2.), entre outros.

A teologia política, sumariamente, remete às correlações entre conceitos jurídico-políticos modernos e pressupostos teológicos explicativos da origem política da modernidade. É um campo que considera a teologia como instância importante de determinação de posição política, bem como da atuação de grupos sociais na justificação religiosa da ação política (Sá, 2018SÁ, A. F. Teologia Política. In: MARQUES, A.; CAMPOS, A. S. (org.). Dicionário de Filosofia Moral e Política. Lisboa: Instituto de Filosofia da Nova, 2018. 2a. série. Disponível em <Disponível em https://www.dicionariofmp-ifilnova.pt/wp-content/uploads/2019/07/Teologia-Politica.pdf >. Acesso em: 13 set 2020.
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).

Cabe destacar que essa área se acendeu fortemente na Europa durante o século XX, com a obra de Carl Schmitt (2005SCHMITT, C. Political theology: four chapters on the concept of sovereignty. Chicago: University of Chicago Press, 2006.) “Political Theology”, mas, historicamente, a primeira grande obra de teologia-política ocidental foi “Da civitate Dei” de Santo Agostinho (2000AGOSTINHO, S. A cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.), que segue exercendo influências sobre o pensamento moderno. Para Agostinho, a atividade política seria eminentemente má, porque se constitui em guerra pelo poder e sempre envolve conflitos, assassinatos e violências. Talvez isso seja explicado pelo contexto da obra (anos 413-427 DC), escrita diante da invasão e saque à Roma pelo rei visigodo Alarico.

O texto agostiniano tenta fazer um apanhado histórico desde a criação do mundo até o século V, para demonstrar um devir constituído pelas etapas da Criação, do pecado original, a aliança de Deus com o povo judaico, do sacrifício do messias e da fundação da Igreja. Ali se mostra uma concepção de tempo linear que vai influenciar tantas filosofias da história ao longo dos séculos.

A cidade de Deus não seria necessariamente a Igreja como instituição, espaço físico, ou mesmo um centro urbano, mas seria a comunidade dos crentes. A cidade dos homens, por sua vez, seria um plano terrestre nascido de Caim e está relacionado à ruptura entre Deus e a Humanidade. Desde então, a humanidade teria pretendido substituir Deus, como encarnado, por exemplo, no Império Romano. Tanto o Estado quanto a Igreja seriam assim irreconciliáveis, porque representam elementos distintos metafisicamente - um pertence à cidade dos homens e a outra à cidade de Deus. Há uma cisão, pois se trata de dois reinos diferentes. Uma busca a expansão do poder e a outra a salvação em Cristo; a primeira quer divinizar o poder político e a segunda baseia-se no amor de Deus. Apesar das diferenças, elas têm em comum o objetivo de encarnar o processo histórico universal. Nesse processo, a cidade terrena tenta se apropriar do “sacro” por seus cultos idolátricos, mas a Igreja deveria ser autônoma e livre (Agostinho, 2000AGOSTINHO, S. A cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.; Esposito, 2019ESPOSITO, R. Dois: a máquina da teologia política e o lugar do pensamento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019.).

Essa noção Agostiniana parece se refletir em “Pilatos e Jesus”, do italiano Giorgio Agamben, em que o filósofo apresenta essa mesma dualidade entre dois reinos, tomando como exemplo o diálogo narrado nos evangelhos entre a proposta do reino de Deus em Jesus e o Império Romano em Pilatos (Agamben, 2014AGAMBEN, G. Pilatos e Jesus. São Paulo: Boitempo, 2014.). Na verdade, na própria noção de Agamben sobre o Homo Sacer - no conceito da vida nua - essa questão emerge de modo inovador, pois é uma figura indistinta, nascida do direito romano e constituída numa zona de intersecção de sacralidade e profanidade (Agamben, 2007AGAMBEN, G. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. v. 2.). De fato, a distinção-inclusiva que faz Agamben sobre sagrado-profano no Homo Sacer, que segue existindo nos Estados modernos, mostra que o paradigma da secularização não explicaria a política e o poder na modernidade, mas a profanação - fenômeno diretamente vinculado à noção de sagrado.

O ponto de maior destaque é que, em Agamben, se ergue uma crítica à Teologia Econômica, que revela as simetrias entre os rituais religiosos e os rituais do poder soberano moderno. Esse poder soberano, que engendra vidas nuas, tem sua gênese em fundamentos teo-políticos. No segundo volume de sua tetralogia do Homo Sacer, “O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo”, o filósofo demonstra os fundamentos teológicos do Estado Moderno, ao afirmar o quanto a máquina governamental se origina de saberes teológicos cristãos da antiguidade e da Idade Média. Ou seja, é da teologia cristã que se derivam paradigmas da economia e da política moderna. A ideia de Deus, por exemplo, fundamenta a transcendência do poder econômico (teoria da soberania e biopolítica).

Aqui, ele faz uma genealogia entre o conceito grego de oikonomia e o de economia política, sustentando haver, no pensamento ocidental, uma correspondência entre as concepções teológicas de governo divino do mundo e os saberes e práticas do governo político na história. Para ele, nossa tradição republicana herdou esse paradigma teológico em sua máquina governamental, em que se percebe, na arte de governar moderna, a ocorrência de uma associação entre tal prática e uma suposta ordem divinamente instituída. Seguindo a linhagem das pesquisas de Michel Foucault sobre a genealogia da governamentalidade, a pesquisa de Agamben (2011AGAMBEN, G. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. Homo sacer. São Paulo: Boitempo, 2011. v. 2., p. 7) buscou “os modos e os motivos pelos quais o poder foi assumindo no Ocidente a forma de uma oikonomia, ou seja, de um governo dos homens”. Assim, ele identifica como o dispositivo “economia da trindade” ajuda a explicar a forma de governo, o funcionamento e a articulação da máquina governamental moderna. Identifica, também, glória e economia na forma aclamativa de consenso, como marca das democracias contemporâneas. Em síntese, a economia e a política modernas mantêm o modelo teológico do governo do mundo. “A modernidade, eliminando Deus do mundo, não só não saiu da teologia, mas, em certo sentido, nada mais fez que levar a cabo o projeto da oikonomia providencial” (Agamben, 2011AGAMBEN, G. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. Homo sacer. São Paulo: Boitempo, 2011. v. 2., p. 184).

Se em Agamben temos uma análise da Teologia Econômica, outro autor tece uma importante crítica teológica à Economia Política: Karl Marx. Em A questão judaica, por exemplo, ele tece uma crítica à religião na sociedade burguesa e sua relação com o Estado Político. Um estado religioso para ele seria um estágio menos desenvolvido do Estado Político e, assim, o estado cristão seria um não-Estado, que manifesta não o cristianismo em si, mas “a negação cristã do Estado, mas jamais a realização estatal do cristianismo... o Estado da hipocrisia” (Marx, 2010MARX, K. Sobre a questão judaica: inclui as cartas de Marx a Ruge publicadas nos Anais Franco-Alemães. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 43). A crítica obrigaria esse Estado a reconhecer a sua tortuosidade.

O Estado que faz o evangelho se expressar nos termos da política, em termos distintos daqueles do Espírito Santo, comete um sacrilégio [...]. O Estado que professa o cristianismo como sua norma máxima, que professa a Bíblia como sua Carta Magna, deve ser confrontado com as palavras da Sagrada Escritura, pois todo o teor da Escritura é sagrado. Esse Estado - tanto quanto o lixo humano sobre o qual está fundado - cai numa contradição dolorosa e insuperável do ponto de vista da consciência religiosa, quando é remetido às exigências do evangelho (Marx, 2010MARX, K. Sobre a questão judaica: inclui as cartas de Marx a Ruge publicadas nos Anais Franco-Alemães. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 44).

As críticas à teologia política não aparecem apenas esporadicamente em A questão Judaica, mas em toda a obra marxiana. Dessa crítica inicial sobre a fusão Estado-religião cristã, Marx avança para outra estratégia: a crítica econômica do fetichismo.

Seu leitor perspicaz, Enrique Dussel (1993DUSSEL, E. Las metaforas teológicas de Marx. Estella: Verbo Divino, 1993.), desvelou muitas posições teológicas em As metáforas teológicas de Marx, ao identificar, nas diversas etapas e momentos históricos da obra marxiana, um discurso paralelo ao econômico-filosófico, que será denominado de teologia metafórica ou teologia implícita de Marx.

Exemplo disso é que Marx faz uso de diferentes textos bíblicos em torno de seus conceitos. Por exemplo, ele utiliza o texto bíblico de Filipenses, capítulo 2, para mostrar a divinização do dinheiro sob o capital. No trecho citado, Jesus, sendo Deus, assume a forma de servo, levando Marx à reflexão sobre o dinheiro, enquanto servo, assumindo forma sagrada. Ou seja, o dinheiro nas relações sociais capitalistas seria como uma inversão de Cristo, ou como o anticristo. Assim como Cristo, sendo Deus, assumiu a figura de servo, o dinheiro, sendo figura de servo, se transformou em Deus. Cristo se humilhou e o dinheiro se divinizou. O que Marx faz é desvelar um sentido religioso oculto no cotidiano da sociedade burguesa: a presença e atuação de um deus real, poderoso e secular, que é a religião prática: o dinheiro. Não por acaso, em muitas de suas obras, Marx utiliza o texto bíblico de Mateus, capítulo 6, versículos de 19 a 24, sobre não poder servir a dois senhores: ou se serve a Deus ou ao dinheiro.

Ao contrário do que uma leitura superficial de Marx poderia afirmar, que é a ideia de “religião como ópio do povo”, ele não diz que Deus está morto, mas sim que “o Capital é um ‘deus’ bem vivo que exige vítimas humanas”, (Dussel, 1993DUSSEL, E. Las metaforas teológicas de Marx. Estella: Verbo Divino, 1993., p. 21) pois se alimenta da vida dos pobres. Marx faz a crítica do clientelismo cristão, que atua em organizações antirrevolucionárias e reformistas, bem como critica o uso populista da religião, que constantemente busca conservar as condições de dominação por meio da defesa da propriedade, da família, da religião e da ordem - concepções que sempre despontam em viradas conservadoras na história.

Dessa forma, Marx mostra que a religião fetichista opera como uma justificativa da dominação capitalista, para ocultar que o capital é mais-valia acumulada e, como tal, é objetificação do trabalho não pago, portanto, um sistema não-ético. Esse é o caráter fetichista do capital - um mecanismo ideológico que sistematicamente busca ocultar a essência não ética do capital (Dussel, 1993DUSSEL, E. Las metaforas teológicas de Marx. Estella: Verbo Divino, 1993., p. 17).

Nesse processo de crítica ao fetiche da mercadoria, do dinheiro e do capital, Marx chama atenção que “uma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos” (Marx, 2011MARX, K. O capital: Crítica da economia política. O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2011. Livro I., p. 121).

Por isso, ele afirma que o capital tem caráter demoníaco. É um demônio visível, pois o exercício cotidiano da práxis no sistema capitalista envolve uma ação satânica (Dussel, 1993DUSSEL, E. Las metaforas teológicas de Marx. Estella: Verbo Divino, 1993., p. 15). É como Moloque, deus pagão que exige sacrifício de vidas humanas. Marx, entre outras, utiliza metáforas para adjetivarr o Capital, como “demônio”, “Besta do apocalipse”, “Moloque”, “Mamon” e “Baal”, mostrando uma analogia entre mundo religioso e mundo econômico, através do mecanismo ideológico do fetichismo e dos mecanismos sistêmicos que dão características divinas às coisas e mercadorias (considerando-as eternas, infinitas).

Fica claro que Marx faz críticas à sustentação teológico-econômica burguesa (muito expressa em autores como Adam Smith) e aponta a existência de uma lógica sacrificial no capital, que chupa o sangue dos trabalhadores. “Desde o início ele fala também da essência alienada do trabalho como morte do trabalhador e produção por suas próprias mãos de seu oposto, seu inimigo, o fetiche como sacrifício” (Dussel, 1993DUSSEL, E. Las metaforas teológicas de Marx. Estella: Verbo Divino, 1993., p. 48). Nessa direção, ele entende o pecado original exatamente como relação social originária condicionante dessa ordem social vigente e injusta, que é uma realidade herdada historicamente. Esse pecado é estrutural, antecede e determina a subjetividade individual, que nasce das relações sociais de dominação e também as determina - por exemplo, livre-escravo, senhor-servo, capitalista-trabalhador assalariado, homem-mulher, pais-filhos.

A estratégia de Marx é expor as contradições do cristianismo e a encarnação histórica do demônio como um poder Anticristo. Se, por um lado, no evangelho, Cristo seria um doador de vida, o Capital seria aquilo que extrai a vida do trabalhador. A lógica sacrificial do capital leva o corpo e o sangue dos trabalhadores em oferecimento no culto a Moloque e a Besta que mata a pessoa humana e destrói a natureza.

Em Marx, portanto, emerge uma crítica à Teologia da Economia-Política, descobrindo os mecanismos de dominação do capitalismo como estruturas fetichistas, demoníacas, satânicas e idolátricas. Essa crítica - que o ateísmo burguês herdado por marxistas de várias linhagens impede de ver em Marx - se revela como poderoso recurso para uma crítica radical do capital em sua estrutura e dinâmica destrutiva e do caráter fetichista da religião no cenário atual. A construção de novas relações sociais requer, portanto, a negação da divinização da ordem capitalista, para abrir espaços à religião da libertação e à emancipação humana e ambiental.

Um ponto interessante é que tanto Agamben quanto Marx identificam que a metáfora da “mão invisível” de Adam Smith remonta às expressões similares utilizadas por Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero, entre outros, demonstrando, mais uma vez, substratos teológicos da economia política moderna. A desconstrução desse modelo e sistema, consequentemente, requer a profanação de seus aparatos de sacralidade (Agamben, 2011AGAMBEN, G. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. Homo sacer. São Paulo: Boitempo, 2011. v. 2.) e experiências concretas de emancipação e libertação (Marx, 2011MARX, K. O capital: Crítica da economia política. O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2011. Livro I.; Dussel, 1993DUSSEL, E. Las metaforas teológicas de Marx. Estella: Verbo Divino, 1993.).

Para esse processo de emancipação, destaca-se que a dissolução do medo - que se constituiu como substrato operacional de muitos dispositivos teológicos políticos - se mostra importante elemento. Ele é um fundamento teológico-político atuante no mundo dos afetos, que se forjam e circulam nos sujeitos. Safatle (2019SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. X. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.) alude a esses pressupostos teológico-políticos na obra Freudiana, ao mostrar que o medo e o desamparo humanos são substratos da sujeição de populações aos governantes, devido às suas buscas por figuras paternas de autoridade.

De fato, a correlação entre Deus soberano acima de todos e o governante a quem o povo deve se submeter como bom fiel súdito é evidente em diferentes cenários na história, além de um substrato teológico de subjetivação e sujeição na esfera cívica. Desativar os mecanismos afetivos do medo é um caminho para subsidiar a contestação do poder e suas formas de domínio econômico e social, destronando a identificação do governante com a autoridade paterna-divina, engendrando novos afetos e sujeitos críticos à relação de sujeição/dependência construída sob o medo e o desamparo social.

Uma importante crítica desse mecanismo aparece claramente em Espinosa (2009ESPINOZA, B. Tratado teológico-político. X. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.), ao fazer uma fissura no pensamento teológico-político que atribui a Deus a transcendência absoluta. O autor pensa o divino em sua imanência, enquanto substância que a tudo perpassa. Deus não estaria assim acima de todos, mas entre tudo e todos. Essa construção teológica tem o poder de destruir a figura única e monárquica da divindade isolada e autoritária na qual se ancora o poder político totalitário do soberano, desmantelando essa lógica teológico-política de justificação do poder absoluto no governante.

Por fim, destaca-se a contribuição de Boaventura de Souza Santos (2014SANTOS, B. S. Se Deus fosse um ativista de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014.), na obra Se Deus fosse um ativista de direitos humanos, em que aborda o aparecimento de dois eixos teológico-políticos preponderantes no mundo atual: as teologias-políticas pluralistas/progressistas versus as fundamentalistas/tradicionalistas.

Muitas teologias políticas tradicionalistas e fundamentalistas rejeitam a distinção entre esfera pública e privada, atribuem o monopólio da organização da vida social à religião e justificam os principais meios de dominação social: capitalismo, colonialismo e patriarcado (Santos, 2014SANTOS, B. S. Se Deus fosse um ativista de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014.). Elas intervêm na esfera pública, consideram a religião individualista burguesa como padrão da experiência religiosa legítima (no caso da teologia da prosperidade, por exemplo, busca-se legitimar a economia capitalista e suas desigualdades) e rejeita a modernidade ocidental, interpretando as escrituras sagradas como lei divina e se colocando em lado oposto aos regimes democráticos e aos direitos das mulheres. Esse fenômeno aparece fortemente nos Estados Unidos, América Latina, África e Ásia e é conhecido como a nova direita cristã, envolvendo uma rede de organizações, pessoas e igrejas muito mobilizadas, a partir de temas como aborto, homossexualidade, ensino da teoria da evolução nas escolas, ameaça do secularismo humanista e direitos de minorias, moralidade, patriotismo etc. Tais conservadores, comumente apoiam autoritarismos para buscar recristianizar o Estado e a Sociedade e a sua “prioridade é a conversão e não a conversação” (Santos, 2014SANTOS, B. S. Se Deus fosse um ativista de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014., p. 96). Em última instância, esse conceito atua como “violência sacrificial”, já apontada por Marx.

As teologias pluralistas, por outro lado, concebem a revelação de Deus como uma contribuição para a vida pública e organização política da sociedade, ao passo que aceitam a autonomia e distinção entre vida pública e vida privada. Elas fundam-se na distinção entre a religião dos oprimidos e dos opressores e criticam a religião institucional como sendo a dos opressores, ao passo que consideram não ser legítimo analisar a religião sem considerar as relações de produção no âmbito da modernidade ocidental. Para Santos (2014SANTOS, B. S. Se Deus fosse um ativista de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014.), tais teologias progressistas podem ajudar a recuperar a humanidade dos Direitos Humanos, porque apresentam concepções sobre a dignidade humana em que Deus garante a liberdade e autonomia das lutas sociais. Elas pensam que a ação de Deus se dá exatamente nas lutas contra a opressão e mostram que a divindade está envolvida nas histórias dos povos oprimidos em suas lutas por libertação (exemplo da Teologia da Libertação da América Latina e teologia negra, além de nos diálogos entre teologia, ecologia e movimentos feministas etc.).

Com esta breve visada para este campo de controvérsias, podemos ter mais elementos para lançar um olhar analítico para os substratos teológicos nas tramas do poder estatal e na dinâmica sociocultural da realidade brasileira, além de perceber suas implicações desafiadoras para as políticas, práticas e concepções em Saúde Coletiva.

Teologias políticas no cenário brasileiro contemporâneo

Para observar algumas manifestações das teologias políticas no cenário brasileiro, focalizamos nosso olhar para o segmento evangélico. Esse grupo cresceu nos últimos anos, passando de apenas 5% em 1970 para 1/3 da população brasileira em 2020 e, concordando com Spyer (2020SPYER, J. Povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração, 2020.), afirmamos não ser possível compreender o Brasil atual sem considerar sua presença e atuação.

Não se trata de um grupo homogêneo. Ao contrário, são segmentos cristãos que diferem entre si pelas raízes históricas, teológicas e prático-litúrgicas de cunho protestante, pentecostal e neopentecostal. Evangélicos são grupos heterogêneos também em termos de classe social e valores morais. O próprio termo “evangélicos” se tornou uma categoria em disputa na sociedade brasileira, porque, ao passo que existe a presença massiva de discursos mais conservadores e até protofascistas entre eles, existem também ressurgências de cristianismos evangélicos da libertação, ainda que em menor proporção.

Isso ficou visível no cenário pandêmico, em que emergiram dois modelos distintos de teologia política nas manifestações públicas de setores evangélicos: as teologias políticas fundamentalistas, em apoio à configuração do poder político no âmbito executivo, e as teologias políticas de resistência e emancipação, presentes entre muitos movimentos sociorreligiosos emergentes.

Essa tipologia não afirma a existência de um maniqueísmo ou dualismo acachapantes, mas chama atenção para uma realidade heterogênea com mosaico de matrizes com diferentes gradações.

No lado mais reacionário-fundamentalista evangélico existem manifestações claras de uma teologia política que reafirma o poder executivo a partir do reforço à ideia do “eleito de Deus”, do “escolhido divino” para governar o país. Muito desse segmento dá sustentação teológica às políticas liberais, autoritárias, ruralistas e anti-direitos humanos. Alguns líderes e pastores, por exemplo, comparecem assiduamente às redes sociais para justificar ações governamentais, fortalecendo a estratégia de diminuir o papel da mídia ao deslegitimá-la, desgastando a imagem de outros poderes da república e exaltando a figura do governante do executivo como líder levantado por Deus para livrar o povo brasileiro de seus grandes inimigos: a corrupção na política pelos partidos de esquerda; a desmoralização da família tradicional por meio de políticas de diversidade sexual e gênero e demais pautas anti-homossexualidade, antiesquerda, antiaborto, conservadora nos costumes, liberal na economia e autoritária nos modos de governar.

Representantes desses setores evangélicos também assumiram função política em cargos e ministérios federais. Essa ascensão de evangélicos tradicionalistas/fundamentalistas na política, no entanto, não é um fenômeno recente. Desde o início de 2000 se percebe sua atuação no Congresso Nacional, o aparecimento da figura social do “pastor-político” (pessoas que utilizam seus cargos religiosos para assumir cargos políticos) e sua presença em cargos estratégicos no Ministério da Educação, da Justiça, Advocacia Geral da União e Secretarias Especiais, além da criação da bancada evangélica e a presença ativa na comissão de Direitos Humanos da Câmara, que, a rigor, é sempre apoiadora das pautas do agronegócio, da mineração, da indústria de armamentos, contra direitos das mulheres e em prol da isenção de impostos a templos religiosos etc. (Cunha, 2020aCUNHA, M. N. Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios para a ação. Salvador: Koinonia, Presença Ecumênica e Serviço, 2020a.). De fato, evangélicos alinhados à cultura patriarcal, latifundiária e colonialista, além da sua busca pelo poder e influência político-partidária, acusam os movimentos feministas, negros e operários de serem inimigos da fé e da família tradicional (Cunha, 2020aCUNHA, M. N. Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios para a ação. Salvador: Koinonia, Presença Ecumênica e Serviço, 2020a.).

Essa presença/atuação ganhou mais força desde a última eleição presidencial, em que o apelo religioso foi utilizado largamente nas campanhas eleitorais. Foram feitas investidas muito precisas de políticos com lideranças religiosas em momentos que antecederam a campanha eleitoral de 2018, tanto entre protestantes, pentecostais e neopentecostais. Disso, pode ter emergido a ideia da verdade como força de plataforma política e o uso de versículos bíblicos como slogan (Py, 2021PY, F. Organizações políticas dos grupos cristãos no Brasil atual: um diagnóstico prévio à 2022. Entrevista com Fábio. [Entrevista cedida a] Ricardo Evandro S. Martins. Py. Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo. 15 jul. 2021. Disponível em: <Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/611100-organizacoes-politicas-dos-grupos-cristaos-no-brasil-atual-um-diagnostico-previo-a-2022-entrevista-com-fabio-py >. Acesso em: 20 out 2021.
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).

Essa estratégia sensibiliza fiéis e abre espaço de credibilidade para infusão de ideias e mobilizações contra o que se chama “marxismo cultural”, a suposta doutrinação esquerdista nas universidades e escolas públicas (levando à defesa de propostas como a ‘Escola sem Partido’), oposição ao “coletivismo” tido como totalitarismo, aversão ao que se chama de “ideologia de gênero”, demonização de movimentos sociais e patologização de grupos e partidos como “esquerdopatia”, além das críticas ao que se chama de “politicamente correto”, apego à tradição, exposição de chamadas “hipocrisias” na sociedade e defesa acirrada da liberdade individual acima dos interesses coletivos. A solução lançada entre eles para conter a suposta ameaça comunista é buscar eleger políticos que dizem defender a nação. Amplia-se aí o círculo populacional de legitimação jurídico-teológica da direita pelo discurso moral do combate à corrupção e defesa da família tradicional burguesa ao redor de lemas como “Deus, pátria, família”.

Esse meio evangélico tem alguns facilitadores teológico-políticos para tais processos e para a sua identificação com figuras populistas-autoritárias. Um deles é a estrutura piramidal de muitas igrejas, cujos líderes são entendidos como representantes da voz de Deus que guia o rebanho divino na Terra. Ao mesmo tempo, muitos saberes teológicos que circulam no meio evangélico remontam às figuras e linguagem da soberania como “Reino”, “Poder”, “Glória” e, da mesma forma, a metáfora militar está sempre presente. Alguns cânticos litúrgicos conferem a Jesus o caráter de “General”, “Capitão” que guia o “exército de Deus”, o que, no contexto social, pode funcionar como legitimação positiva do Estado militarizado.

Além disso, a teologia da prosperidade - que dentre outras coisas compreende que o sinal da bênção de Deus é a progressão econômica individual - é a face econômica dessa teologia política, em um claro exemplo contemporâneo da religião fetichizada apontada por Marx, posto que ela promove ocultação das relações sociais de produção, das iniquidades na distribuição das riquezas e das formas de exploração de trabalhadores. É nesse sentido que muitas pautas morais ganham mais atenção entre esses grupos do que as políticas sociais, econômicas, ambientais etc. Como aponta Zizek (2015ZIZEK, S.; GUNJEVIC, B. O sofrimento de Deus: inversões do Apocalipse. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.), quando o cristianismo erige a si mesmo como verdadeiro, tem seu representante político como agente divino e, portanto, pode-se fazer todo o mal em nome da verdade sem qualquer freio ou culpabilidade.

Outro elemento importante a considerar como facilitador é o valor da palavra falada. O testemunho gera muito efeito entre os membros dessa cultura e, assim, muitos vídeos com informações distorcidas sobre política e saúde pública, enunciados como um testemunho religioso, ganham “status de verdade”. Não por acaso, o meio evangélico foi identificado como espaço de grande circulação das fake news (Fonseca; Dias; 2021FONSECA, A; DIAS, J (Coord.). Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil: relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde, 2021.), principalmente sobre desconfianças na ciência e circulação de notícias pseudo-verdadeiras sobre o enfrentamento da pandemia de covid-19.

No contexto da pandemia, essa vertente teológico-política mobilizou algumas hermenêuticas e práxis sociais. Foram dadas explicações mágico-religiosas sobre a origem da pandemia, trazendo, como causa raiz desse sofrimento, a punição divina, decorrente da descrença e blasfêmia humanas.

Muitos desses grupos defenderam a manutenção do funcionamento de templos religiosos durante a pandemia, sob o argumento da importância do serviço social-psicológico, simbólico das igrejas, tipificado no afã da Associação Nacional de Juristas Evangélicos para a preservação da liberdade e contra a proibição de fechar os tempos em momentos de lockdown.

Apoiaram, também, indistintamente as ações/omissões da União frente à pandemia que, por sua vez, evidenciou seu substrato teológico-político na sujeição da vida da população brasileira a um poder de morte, numa expressão da figura do Homo Sacer de Agamben (2007AGAMBEN, G. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. v. 2.). A vida nua e exposta da maioria da população brasileira, na verdade, tipificou não um retrocesso inédito das instituições democráticas, mas o “estado de exceção como regra” (Agamben, 2007AGAMBEN, G. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. v. 2.). A alta mortalidade por covid-19 no Brasil e sua relação com a desresponsabilização federal no combate à pandemia aponta para o atual exercício do poder político enquanto “vida para a luta” e não “luta pela vida” (Eco, 2019ECO, U. O fascismo eterno. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2019., p. 52). O culto à morte, à violência e a tendência de desresponsabilização do Estado para deixar a relações sociais na espontaneidade e sem regulação (Lessa, 2020LESSA, R. Homo bolsonarus. Revista Serrote, São Paulo, n. especial, p. 47-68, 2020.) tiveram ampla aceitação social entre setores populacionais, muito provavelmente devido às suas lógicas operativas fundamentadas em teologias políticas. Inegavelmente, como asseveram Araújo e Pereira (2021ARAÚJO, E. F.; PEREIRA, A. C. A pandemia nas teias da política. Piracicaba: [s. n.], 2021.), os impactos da pandemia de covid-19 no Brasil estão intimamente relacionados ao emaranhado político neofascista, eivado de fake news, negacionismos e uso do nome de Deus em discursos de desconstrução de valores republicanos da ética e da justiça.

Por outro lado, emergiram, na cena pública, expressões de teologias políticas da resistência entre movimentos religiosos contra-hegemônicos. Houve ressurgência de grupos, lideranças, organizações, igrejas e alianças de igrejas evangélicas em oposição às tônicas políticas do governo e ao fundamentalismo como modo legítimo de vivência da fé cristã.

Discussões críticas em lives evangélicas, a criação da bancada evangélica popular para eleições municipais de 2020, o apoio de pastores evangélicos aos movimentos sociais e à reorganização de partidos políticos de esquerda são apenas alguns exemplos de ativismos evangélicos de cunho progressista. Igualmente, percebeu-se a presença de teológa(o)s e pastores em militância ativa nas redes sociais, com criação e difusão de conteúdos críticos à postura da maior parte das igrejas evangélicas na pandemia, além de denúncia das negligências das autoridades do executivo quanto à morte e adoecimento de brasileiros por covid-19.

Além disso, vieram à tona muitas declarações e atos públicos, bem como manifestos escritos por grupos organizados e oposicionistas às práticas governamentais, ao racismo estrutural, à degradação ambiental e ao patriarcalismo da sociedade brasileira. São exemplos, o Manifesto de Mulheres Negras Evangélicas (Manifesto..., 2020MANIFESTO 2020 - Rede de Mulheres Negras Evangélicas do Brasil. Novos Diálogos, [s.l.], 12 jun. 2020. Disponível em: <Disponível em: http://novosdialogos.com/especiais/manifesto-2020-rede-de-mulheres-negras-evangelicas-do-brasil/ >. Acesso em: 18 nov. 2020.
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); o chamamento para o enfrentamento da pandemia em carta intitulada O governante sem discernimento aumenta as opressões: Um clamor de fé pelo Brasil (Cunha, 2020bCUNHA, M. Cresce a oposição de evangélicos a Bolsonaro: “Clamor de fé pelo Brasil”, Carta Capital, 21 maio 2020. Blogs. Disponível em: <Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/cresce-a-oposicao-de-evangelicos-a-bolsonaro-clamor-de-fe-pelo-brasil/ >. Acesso em: 19 out 2021.
https://www.cartacapital.com.br/blogs/di...
); a Nota de Repúdio de organizações evangélicas sobre a decisão do Ministro Kássio Nunes Marques, sobre abertura de templos e igrejas diante do cenário de mortalidade por covid-19 (Nota..., 2020NOTA de Repúdio de Organizações Evangélicas sobre a decisão do Ministro Kássio Nunes Marques. CESEEP, São Paulo, 9 abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://ceseep.org.br/nota-de-repudio-de-organizacoes-evangelicas-sobre-a-decisao-do-ministro-kassio-nunes-marques/ >. Acesso em: 24 ago. 2021.
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) e os seminários e lives organizadas para discutir o momento político a exemplo do Seminário internacional: Tragédia brasileira: risco para a casa comum? (Seminário..., 2021SEMINÁRIO INTERNACIONAL: TRAGÉDIA BRASILEIRA: RISCO PARA A CASA COMUM?, 1., 2021. Anais.... Porto Alegre: Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://fld.com.br/todas/2021/seminario-internacional-tragedia-brasileira-risco-para-a-casa-comum/ >. Acesso em: 3 jul. 2021.
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), organizado por uma série de organizações religiosas e de direitos humanos, além da defesa da sociobiodiversidade, reunindo pesquisadores, ativistas, religioso(a)s de diferentes matizes.

Tais movimentos atuaram contra a tendência de minimizar o sofrimento causado pela pandemia e muitos laços sociais e redes de ajuda foram mobilizados/fortalecidos por comunidades e grupos religiosos nesses momentos. De fato, pesquisas socioantropológicas demonstram que a atuação das igrejas evangélicas traz resultados positivos, especialmente em locais onde o Estado não atua, funcionando como “estado de bem-estar informal” (Spyer, 2020SPYER, J. Povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração, 2020., p. 99) e criando redes de solidariedade entre “populações descartadas pela sociedade” (SPYER, 2020SPYER, J. Povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração, 2020., p. 155). Elas mobilizam apoio a população de rua, dependentes químicos, mulheres vítimas de violência, reintegração de pessoas ex-presidiárias, além de incentivarem fiéis ao estudo, entre outros elementos.

Para além disso, no sentido das hermenêuticas e práxis na pandemia, nesse outro polo evangélico, manifestou-se uma importante resposta à pandemia covid-19: a participação dessas igrejas e lideranças no fenômeno da cidadania ativa, em redes de ajuda mútua e de engajamento comunitário. São redes endógenas ao se tratar de grupos religiosos, mas exógenas, ecumênicas e plurais quanto aos membros que as ocupam.

Um exemplo disso foi notificado pela Abrasco, quando mais de 200 entidades da sociedade civil se uniram para enfrentar a covid-19, criando o pacto Rio pela Vida - mobilização para vencer a Covid-19, envolvendo lideranças políticas, culturais, sindicais, científicas e religiosas, incluindo igrejas evangélicas (Movimentos..., 2021MOVIMENTOS do Rio de Janeiro se unem em pacto para vencer a Covid no estado. ABRASCO, Rio de Janeiro, 18 mar. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/movimentos-sociais/rio-pela-vida-contra-covid/57085/ >. Acesso em: 20 abril 2021.
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). Além disso, houve muitos casos de pastores mobilizando pedidos de ajuda em suas redes sociais, buscando interferir na condução das práticas de enfrentamento da covid-19 e aumentar a quantidade de leitos hospitalares, insumos em hospitais, ou ainda denunciando casos de corrupção e desvio de verbas.

Essas mobilizações de engajamento comunitário, envolvendo ONGs e associações de bairro, organizaram ajudas em comunidades em situação de vulnerabilidade (combate à fome e oferta de alimentos, sacolões, arrecadação de ajudas etc.), funcionaram como grupos de ajuda mútua e podem ser analisados enquanto aliados da Saúde Coletiva, na medida em que foram parte das respostas populares aos problemas de saúde das populações (Ortega; Behague, 2020ORTEGA, F.; BEHAGUE, D. P. O que a medicina social latino-americana pode contribuir para os debates globais sobre as políticas da Covid-19: lições do Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, e300205, 2020. DOI: 10.1590/S0103-73312020300205
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).

Essas teologias da resistência procedem de uma consciência do esgarçamento das relações de sociabilidade capitalista e seus atravessamentos racistas, excludentes, machistas e patriarcais. Eles fundamentam relações de solidariedade e atuam na lógica do amor político como linguagem da transformação social, conforme aponta Chela Sandoval em Methodology of the Oppressed (2000SANDOVAL, C. Methodology of the Oppressed. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000.), ao passo que manifestam a presença ativa de construção de novos sujeitos, pautados em uma subjetividade crítica às formas de subjetivação do neoliberalismo.

Esses grupos evangélicos atuam em lógica distinta da teologia política que coloca Deus como figura acima das pessoas, mas se ancoram na ideia do Cristo entre todos e em todas, conforme crítica de Espinosa. Ou seja, vivem na lógica de um Cristo que sofre com as minorias e assume “o fardo do sofrimento em solidariedade à miséria humana” (Zizek, 2015ZIZEK, S.; GUNJEVIC, B. O sofrimento de Deus: inversões do Apocalipse. Belo Horizonte: Autêntica, 2015., p. 132). São esses grupos que operam uma crítica teológica ao mercado e ao capitalismo, que desmistificam a realidade na direção de desfazer as “manhas teológicas” do fetiche da mercadoria e do capital, como Marx asseverou (Marx, 2011MARX, K. O capital: Crítica da economia política. O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2011. Livro I.; Zizek, 2015ZIZEK, S.; GUNJEVIC, B. O sofrimento de Deus: inversões do Apocalipse. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.; Dussel, 1993DUSSEL, E. Las metaforas teológicas de Marx. Estella: Verbo Divino, 1993.), em resgate às tônicas de vertentes mais libertárias da teologia.

Diálogo possível entre Teologia política e Saúde Coletiva

Para concluir, destaca-se que a teologia política, enquanto uma profícua área filosófica, oferece uma contribuição epistemológica para análises no campo da SC, capaz de fundamentar outras interpretações sobre a conjuntura sociopolítica brasileira, em diálogo com as tradições epistêmicas marxistas, organizacionais, sistêmicas e compreensivas que, via de regra, orientam a produção do conhecimento científico em SC. Novas investigações podem avaliar detidamente as implicações das teologias políticas na formulação e execução de políticas de interesse da saúde no Brasil.

Um ponto de grande relevância para a SC na atual conjuntura é exatamente adensar o conhecimento sobre os efeitos do conservadorismo e do fundamentalismo teocrático para as políticas e cotidianos das práticas em saúde no país. Isso requer maior aproximação dos pesquisadores da SC aos diferentes grupos sociais aos quais tais visões de mundo exercem clara influência, a exemplo dos evangélicos de orientação teológico-política tradicionalista. Quanto mais a ciência, e também a SC, se afastarem dessa parcela da população, mais oportunidades ficam abertas para manipulações de políticos populistas e também para o recrudescimento de concepções contrárias à garantia universal da saúde e à promoção de políticas sociais e econômicas de redução do risco de doenças. Afinal, quando intelectuais fazem ciência de modo distanciado do povo, outros personagens tomam a palavra, captando anseios e necessidades populares, a exemplo de pastores evangélicos fundamentalistas (Santos, 2020SANTOS, B. de S. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.). O avanço de teologias políticas mais tradicionalistas/fundamentalistas pode implicar em obstáculos para a conquista e efetivação de direitos referentes às lutas sociais pela melhoria da saúde das populações específicas, como LGBTQIA+, mulheres, quilombolas, indígenas, acampados, assentados etc.

Nesse sentido, à comunidade científica, institucional e política da SC caberia aprimorar o conhecimento sobre saberes e práticas dos diferentes estratos de evangélicos sobre o processo saúde-doença-cuidado, as políticas de saúde e o SUS, ampliando o diálogo sobre as temáticas sanitárias entre tais grupos e diminuindo a distância entre a produção de conhecimento sobre saúde e as experiências de produção de saber sobre saúde, que tem pressupostos nas teologias políticas fundamentalistas e naquelas mais progressistas.

Entender a morbimortalidade e as respostas de governos e da sociedade à pandemia de covid-19 requer atenção às dinâmicas socioculturais religiosas e as teologias políticas em operação no atual cenário sociopolítico. Em um contexto social de redução do Estado, desmantelamento de políticas sociais, agudização de desigualdades de classe, raça, gênero, aumento de violências, desemprego e exploração do ambiente e do trabalho, é importante reconhecer o lugar dos grupos evangélicos como esferas de normatização social, uma vez que formam opinião, modelam comportamentos, criam sentidos e mobilizam ações coletivas. Nessa direção, os movimentos emergentes de evangélicas feministas, negro(a)s, ecológicos, LGBTQIA+ podem ser importantes interlocutores para compressão-ação quanto às teologias políticas mais universalistas e de defesa da saúde, das políticas de proteção às mulheres, às populações negras, à justiça ambiental e à diversidade sexual.

Para concluir, reafirma-se que esse breve texto se propôs a ser como um exercício de reflexão para trazer à tona uma subárea da Filosofia Política que ainda não foi convocada ao campo da SC. Buscou-se demonstrar a vigência de teologias políticas como substrato do exercício de poder estatal, e sua dinâmica sociocultural entre grupos religiosos na cena pública brasileira, enquanto tema merecedor de maior atenção da SC, afinal, elas mediam as respostas de setores da sociedade e as políticas públicas frente aos problemas de saúde da população.

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  • 1
    Apenas dois exemplos pontuais: a palavra “corrupção”, tão utilizada no cenário sociopolítico brasileiro, cuja origem remonta à teologia agostiniana na sua acepção da condição humana pecadora, portadora de um coração (cor) rompido (ruptus) e, mais recente, o termo “fundamentalismo”, que nasceu no meio religioso cristão dos Estados Unidos e recebe hoje amplo uso na esfera pública política de diferentes países ocidentais (Santos, 2014SANTOS, B. S. Se Deus fosse um ativista de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2014.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2022
  • Revisado
    26 Ago 2022
  • Aceito
    11 Jan 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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