A publicidade infantil de alimentos: desafios à gestão federal do SUS e oportunidades para a comunicação em saúde

Mariella Silva de Oliveira-Costa Sobre o autor

Resumo

Este estudo analisa a capacidade de as políticas públicas em saúde disputarem sentido na construção de mundo provocada pelos meios de comunicação e a regulamentação estatal da publicidade infantil de alimentos. Estes anúncios influenciam as escolhas alimentares das crianças, formando um paladar habituado ao consumo de ultraprocessados (prejudiciais à saúde) desde a infância. Por meio de uma abordagem qualitativa, a pesquisa entrevistou gestoras em nível federal para compreender a agenda de fortalecimento da regulamentação da publicidade de alimentos destinados ao público infantil executada ao longo de uma década, que tem o intuito de fortalecer as ações de promoção da saúde e contribuir com a prevenção das doenças crônicas não transmissíveis. A influência da indústria de alimentos, por meio da indústria de comunicação, tem restringido o desenvolvimento de políticas públicas na área de alimentação no Brasil e o tema precisa de participação social pois a lei existe, mas não é aplicada.

Palavras-chave:
Alimentação; Políticas Públicas; Comunicação em Saúde; Promoção da Saúde; Infância; Publicidade

Introdução

O excesso de peso é um elemento disparador de certas doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) (Brasil, 2014)BRASIL. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed.; 2014., resultados de uma união de fatores que tem origem no estilo de vida, incluindo as escolhas alimentares. Os principais gastos do SUS têm origem no tratamento das pessoas que acabam acometidas por essas doenças (Brasil, 2011a)BRASIL. Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) no Brasil 2011-2022. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2011a. e parte do que é divulgado pela indústria de alimentos consiste na oferta de produtos com pouco ou nenhum nutriente, capazes de conduzir os indivíduos da sociedade ao cenário de aumento das DCNT no Brasil, então a regulamentação da publicidade infantil de alimentos é um dos caminhos para combater o aumento desses problemas de saúde.

Considerando o protagonismo que os meios de comunicação possuem na elaboração que fazemos da realidade (Luhmann, 2011LUHMANN, N. A realidade dos meios de comunicação. 2. ed. Paulus; 2011.), o papel da publicidade enquanto promotora de marcas e valores abstratos de consumo (Baudrillard, 1995BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.) e a sua influência nas escolhas alimentares das crianças, é sabido que, desde a infância, há formação de um paladar habituado ao consumo de ultraprocessados.

O Ministério da Saúde (MS) do Brasil, por meio da sua Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição (CGAN), busca fortalecer estratégias de regulamentação da publicidade infantil de alimentos, e a Comunicação em Saúde, área transversal e multidisciplinar, tem potencial de auxiliar a gestão (Schiavo, 2007SCHIAVO, R. Health communication: from theory to practice. São Francisco: Jossey-Bass; 2007.). A comunicação da Saúde pública precisa explorar novos caminhos para ações mais efetivas (Araújo; Cardoso, 2007ARAÚJO, I. S.; CARDOSO, J. M. Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.) e, ao analisar uma década de ação (e inação), é possível qualificar ações futuras desta e de outras políticas públicas em saúde. Portanto, este estudo questiona: quais foram os desafios e as oportunidades das gestoras da CGAN/MS, de 2010 a 2019, na execução dessa agenda?

SUS, obesidade e DCNT

O conceito dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS) está ligado aos contextos que contribuem para as pessoas se manterem saudáveis e não apenas ao auxílio que elas terão quando a saúde estiver comprometida (Dahlgren; Whitehead, 1991DAHLGREN, G.; WHITEHEAD, M. Policies and Strategies to Promote Social Equity in Health. Copenhagen: Institute for Future Studies; 1991.).

A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, que analisou o consumo alimentar pessoal no Brasil, mostrou que bebidas com alto teor energético e baixo valor nutricional são muito consumidas entre os adolescentes. Quando comparado aos adultos e idosos, é menor o consumo de alimentos in natura e maior o consumo de ultraprocessados (IBGE, 2020)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro, 2020., conduta alimentar capaz de conduzir à obesidade e às DCNT. Esse mesmo resultado foi encontrado na POF de 2008-2009 (IBGE, 2011)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Rio de Janeiro, 2011a., e supõem-se que as crianças da década retrasada se tornaram, na década passada, adolescentes consumidores desses produtos. No Brasil, o percentual de obesos subiu de 11,8% para 19,8%, entre os anos de 2006 e 2018 (Brasil, 2019)BRASIL. Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2018. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2019..

As causas das DCNT são resultados, também, de uma união de fatores históricos e situações econômicas, sociais e culturais que convergem diretamente nas escolhas alimentares do indivíduo, que sofre influência daquilo que é divulgado nos meios de comunicação e disponibilizado pela indústria de alimentos nos diversos estabelecimentos comerciais (MS; OPAS, 2014)MS - Ministério da Saúde; OPAS - Organização Pan-Americana de Saúde. Perspectivas e desafios no cuidado às pessoas com obesidade no SUS: resultados do Laboratório de Inovação no manejo da obesidade nas Redes de Atenção à Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014..

Os alimentos ultraprocessados são assim denominados porque são fabricados em grandes indústrias, onde, no seu processo de produção, há a utilização de altas concentrações de sal, açúcar, óleos, gorduras e substâncias de uso exclusivamente industriais (Brasil, 2014)BRASIL. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed.; 2014..

Há uma disputa no âmbito das ações regulatórias da alimentação e nutrição, com preocupações e estratégias transversais que conversam com o controle e a prevenção das DCNT. Entender como a gestão percebe e conecta-se com os desafios internos e extramuros, que se erguem a cada decisão e movimento, e como a Comunicação em Saúde pode contribuir nesse contexto, fortalecendo as ações de promoção da saúde, caracteriza-se como um interessante campo de estudo.

A construção social do mundo, sedução e sequestro das escolhas alimentares das crianças

A publicidade influencia o ambiente social, bem como a relação entre o indivíduo e a sociedade. Ela atua como uma ferramenta de controle, promovendo um nível de consenso subjetivo na estrutura dos valores da sociedade. Nesse processo, surge uma ameaça: a não conformidade aos comportamentos e padrões demonstrados exaustivamente nos seus anúncios tem como pena, o isolamento social (Noelle-Neumann, 2017)NOELLE-NEUMANN, E. A Espiral do Silêncio: opinião pública - nosso tecido social. [S. l.]: Estudos Nacionais; 2017..

Esse fato dá à publicidade, no seu exercício de construir determinados padrões sociais, a capacidade de imprimir regras sobre os comportamentos, construindo uma sociedade que se reconhece principalmente pela sua capacidade de consumo. Esse modelo social impõe um novo processo de alienação, o do viver regulado por meio do desejo moldado pelo mercado, que regula não só a mão de obra e o que é produzido, mas a cultura inteira. Tudo é espetacularizado, orquestrado em conceitos, signos e experiências consumíveis (Baudrillard, 1995BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.).

Nesse contexto, a publicidade vende projeções de estilos de vida, como ocorre com os anúncios de refrigerantes (Figura 1), os quais transmite a ideia de felicidade, juventude, energia e saúde. A arte publicitária reside na proposição de enunciados persuasivos, não há verdade absoluta, tampouco falsas promessas. As imagens são ilustrativas! O agente publicitário de sucesso abusa da licença poética e cria verdades apenas por afirmar que são (Baudrillard, 1995BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.).

Figura 1
Publicidade da bebida açucarada Coca-Cola (2020)

Com a alimentação não seria diferente. Famílias alimentam seus filhos com biscoitos recheados, refrigerantes e alimentos congelados pelo status e “praticidade”. Ofertar calorias em excesso aos seus filhos pode ser considerado um gesto de carinho para os menos informados. Apesar dos limites legais para o ato de driblar conscientemente o receptor na publicidade, as empresas de comunicação argumentam que o destinatário tem liberdade de decisão e que deseja por si mesmo aquilo que jamais almejaria sem a publicidade (Luhmann, 2011LUHMANN, N. A realidade dos meios de comunicação. 2. ed. Paulus; 2011.).

A publicidade cria condições para que todo e qualquer produto tenha um público interessado, construindo um forte repertório emocional, traduzido em consumo, e as empresas de ultraprocessados têm fidelizado clientes desde a infância, daí a necessidade de regulamentação. A construção cognitiva do mundo por meio da publicidade de alimentos (em sua maioria de produtos industrializados) influencia as escolhas dos indivíduos adultos (MS; OPAS, 2014)MS - Ministério da Saúde; OPAS - Organização Pan-Americana de Saúde. Perspectivas e desafios no cuidado às pessoas com obesidade no SUS: resultados do Laboratório de Inovação no manejo da obesidade nas Redes de Atenção à Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014.. Quando se restringe o tema à publicidade infantil de alimentos, temos um cenário ainda mais delicado, uma vez que as crianças são hipossuficientes. Comparadas a um adulto, não possuem maturidade intelectual de compreender a estratégia persuasiva da linguagem publicitária (Cazzaroli, 2011CAZZAROLI, A. R. Publicidade Infantil: o estímulo ao consumo excessivo de alimentos. Âmbito Jurídico, São Paulo, v. 14, n. 92, 2011.).

O crescimento do consumo de ultraprocessados é auxiliado pelas sofisticadas estratégias de marketing das grandes indústrias de alimentos e este conjunto de fatores amplia o número de casos de obesidade e outras DCNT (Monteiro; Castro, 2009MONTEIRO, C. A.; CASTRO, I. R. R. Por que é necessário regulamentar a publicidade de alimentos. Ciência & Cultura, Campinas, v. 61, n. 4, 56-59, 2009.).

Em média, 50% das crianças obesas levam essa condição para a idade adulta e 80% dos adultos obesos permanecem assim por toda a vida (Simmonds et al., 2015SIMMONDS, M.; BURCH, J.; LLEWELLYN, A.; GRIFFITHS, C.; YANG, H.; OWEN, C. et al. The use of measures of obesity in childhood for predicting obesity and the development of obesity-related diseases in adulthood: a systematic review and meta-analysis. Health Technology Assessment, London, v. 19, n. 43, p 1-336, 2015.). O sobrepeso geralmente vem associado à diabetes, à hipertensão e aos cânceres, males que afetam diretamente o aumento de gastos do SUS (Siqueira; Siqueira-Filho; Land, 2017SIQUEIRA, A.; S.; E.; SIQUEIRA-FILHO, A. G.; LAND, M. G. P. Análise do Impacto Econômico das Doenças Cardiovasculares nos Últimos Cinco Anos no Brasil. Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Rio de Janeiro, v. 109, n. 1, 39-46, 2017.).

Deste modo, no Poder Executivo federal brasileiro, foram pensadas estratégias transversais para o controle e a prevenção da obesidade e das DCNT, sendo uma delas a regulamentação da publicidade infantil de alimentos.

Regulamentação e comunicação em saúde

A redução da exposição da sociedade a fatores e situações que estimulem o consumo de alimentos não saudáveis é uma das responsabilidades da CGAN. Para isso, ações como a regulamentação da venda e publicidade de alimentos nas cantinas escolares e da publicidade direcionada às crianças e a rotulagem de produtos dirigidos a lactentes são propostas da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) (Brasil, 2011b)BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2715 de 17 de novembro de 2011. Atualiza a Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 nov. 2011b..

Na literatura acadêmica internacional, há evidências sobre a necessidade de regulamentação governamental dos anúncios de alimentos dirigidos às crianças e aos adolescentes, bem como é destacada a importância do acompanhamento da sua implementação (Silva; Oliveira-Costa, 2021SILVA, M. A. S.; OLIVEIRA-COSTA, M. S. A Regulamentação da publicidade infantil de alimentos: potencialidades para a Comunicação em Saúde no Brasil. Revista Cadernos da Pedagogia, São Carlos, v. 15, n. 31, p. 53-64, 2021.).

Há uma conexão entre as ações de regulamentação com aquelas que visam educar a sociedade sobre os processos que interferem na saúde das famílias. Incluir a Comunicação em Saúde no planejamento e execução de programas e projetos do Ministério da Saúde é um importante caminho para a qualificação das políticas públicas.

Uma ação de comunicação em saúde eficaz precisa ter um planejamento bem estruturado, a identificação clara da situação a ser superada, o público estratégico bem definido, as mídias mais adequadas para alcançar essas pessoas, bem como ter sustentabilidade econômica. Os estilos de vida do seu público estratégico devem ser considerados e as mensagens precisam ser elaboradas com conteúdo capaz de facilitar a adesão às orientações recebidas. É preciso superar o modelo de transmissão vertical de conteúdo e a comunicação em saúde deve ser entendida como parte de uma cadeia de produção dos sentidos sociais (Schiavo, 2007SCHIAVO, R. Health communication: from theory to practice. São Francisco: Jossey-Bass; 2007.).

Ao analisar as estratégias de comunicação do Ministério da Saúde no Brasil, entre 2006 e 2013, poucas ações tinha como foco a promoção de hábitos saudáveis, incluindo a alimentação, priorizando a prevenção de doenças em detrimento da promoção da saúde (Vasconcelos; Oliveira-Costa; Mendonça, 2016VASCONCELOS, W. R. M.; OLIVEIRA-COSTA, M. S. O.; MENDONÇA, A. V. M. Promoção ou prevenção? Análise das estratégias de comunicação do Ministério da Saúde no Brasil de 2006 a 2013. RECIIS, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 1-11, 2016.). Este fato alerta para a necessidade de investimento técnico e financeiro para alterar esse cenário, desafio também para a gestão macro do Ministério da Saúde.

Metodologia

Este estudo de abordagem qualitativa busca os significados de ações sociais e a subjetividade dos sujeitos, considerando o seu contexto social (Minayo et al., 2005MINAYO, M. C. S et al. Métodos, técnicas e relações em triangulação. In: MINAYO, M. C. S.; ASSIS, S. G.; SOUZA, E. R. (Org.). Avaliação por triangulação de métodos: uma abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 61-99.). Após pesquisa bibliográfica, foi organizada pesquisa de campo, utilizando, para coleta de dados, a técnica de entrevista, valorizando “o uso da palavra, […], por meio da qual os atores sociais constroem e procuram dar sentido à realidade que os cerca” (Fraser; Gondim, 2004FRASER, M. T. D.; GONDIM, S. M. G. Da fala do outro ao texto negociado: discussões sobre a entrevista na pesquisa qualitativa. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 14, n. 28, p. 139-152, 2004. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-863X2004000200004
https://doi.org/10.1590/S0103-863X200400...
).

O corpus da pesquisa possui representatividade, pois traz o conteúdo integral de entrevistas realizadas com as quatro gestoras da área no período proposto para análise, bem como é exaustivo e pertinente, pois as entrevistas foram consideradas na íntegra e tanto as perguntas quanto as respostas estão relacionadas aos objetivos e ao referencial teórico proposto. Trata-se de corpus homogêneo, pois ambos têm a mesma natureza e se reportam ao mesmo assunto.

As entrevistas on-line foram realizadas durante a pandemia, e considerando a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz Brasília, (CAAE 29554320.5.0000.8027). O áudio foi gravado digitalmente e, posteriormente, foi realizada a transcrição. As entrevistas foram submetidas a uma análise de conteúdo (Bardin, 2011BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011.). Para tanto, por meio de “unidades de registros” (Gomes, 2002GOMES, R. A análise de dados em pesquisa qualitativa. In: DESLANDES, S.; MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. p. 67-80.), as falas das entrevistadas foram organizadas de acordo com as categorias correspondentes e específicas, a partir da leitura flutuante da transcrição, que consiste em estabelecer o primeiro contato com o resultado das entrevistas, conhecer o texto, deixando-se invadir pelas falas e percepções das gestoras da CGAN (Bardin, 2011)BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011..

As unidades de registro com temática semelhante foram agrupadas em categorias e sua frequência contabilizada, podendo considerar uma ou mais frases cujo contexto contemplasse o mesmo argumento. Cada unidade de registro foi contabilizada uma única vez em uma única categoria (Quadro 1).

Quadro 1
Frequência das categorias identificadas nas entrevistas com as gestoras da CGAN, Ministério da Saúde

As entrevistadas concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) do estudo, que apresentou risco mínimo, tais como o desconforto e o constrangimento causados pela própria situação de gravação das falas. Para minimizá-los, foi facultada a interrupção da gravação a qualquer tempo ou supressão desta, em caso de manifestação das participantes. As declarações dessas gestoras expõem as delicadezas de se trabalhar no Executivo federal, um local de exercício do equilíbrio dos interesses políticos e nesta pesquisa para “anonimização” dos dados, elas receberam codinomes, representações do universo da alimentação e nutrição: Alecrim, Cacau, Pimenta e Amora.

Percepções, argumentos técnicos e interesses econômicos

A regulamentação da publicidade infantil de alimentos é agenda transversal e promotora de debates na sociedade civil, no Legislativo e no Judiciário. Este artigo apresenta as percepções particulares de gestoras da CGAN/MS, que atuaram na coordenação entre 2010 e 2019. Graduadas em Nutrição, possuem formação acadêmica no campo das Políticas Públicas em Saúde e Nutrição, são especialistas, mestras e doutoras.

O Quadro 1 sintetiza as categorias que emergiram durante a leitura flutuante da transcrição das entrevistas. A análise de conteúdo permite a classificação dos componentes da mensagem em espécie de gavetas, cada uma, armazenando conteúdos com significados semelhantes (Bardin, 2011BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011.).

A primeira categoria reúne as manifestações sobre as normativas e os produtos editoriais que formalizaram a agenda na CGAN/MS e publicizaram o trabalho produzido para dentro e fora do setor da saúde. A próxima trata dos desafios enfrentados pelas gestoras nessa agenda; na sequência, as vantagens, os privilégios e, acima de tudo, o local de prestígio que a CGAN/MS construiu (e se estabeleceu) para promover o debate e análise; em diálogos com a quarta categoria, a articulação intersetorial, que trata desse espaço de apoio e disputa da priorização de agendas entre as instituições; na categoria seguinte, a arena de disputa para a elaboração de uma política pública avança este debate, organizando as percepções referentes as barreiras internas, no Ministério da Saúde, e externas, como no Legislativo e no Judiciário. A partir da categoria “Opinião Pública, produção de engajamento”, o foco é sobre o quanto a mensagem da CGAN/MS sobre os alimentos ultraprocessados alcança a sociedade. Esta questão relaciona-se com a percepção das entrevistadas sobre o desempenho dos núcleos de comunicação do Ministério da Saúde nesta agenda; e, na última categoria, como a Comunicação em Saúde pode e deve ser incluída na promoção e qualificação das mensagens para fortalecer a agenda da regulamentação da publicidade infantil de alimentos.

Todas as categorias alicerçam a análise a seguir. Os argumentos foram utilizados de forma mesclada, elaborando um mosaico sobre o fortalecimento da regulamentação da publicidade infantil de alimentos no Ministério da Saúde, no período de 2010 a 2019.

A lei existe, mas não é aplicada

Essa afirmação diz muito sobre a produção normativa de uma pasta no Poder Executivo federal. A norma ou o produto editorial publicado não garante que uma agenda aconteça, mas é um combustível para que o tema pretendido permaneça em pauta.

Em 2010, a CGAN/MS contribuiu para o lançamento da RDC nº 24 da Anvisa. A normativa foi suspensa antes mesmo de produzir efeitos legais, mas é considerada um importante marco entre as iniciativas para a agenda (Baird, 2016BAIRD, M. F. O lobby na regulação da publicidade de alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 24, n. 57, p. 67-91, 2016.). As pessoas envolvidas sabiam que a indústria de alimentos se articularia para derrubá-la, isso estava colocado como um cenário possível. Segundo Alecrim, a aposta foi a confiança de que, a partir dela, novas discussões surgiriam.

Eu sou da ala que é melhor publicar! Mesmo imperfeito, vamos lá! Vai abrindo uma agenda, vai abrindo um espaço de discussão. Essa é a minha visão sobre política pública. Isso vai se somando […] e você vai criando também mais condições para que o debate aconteça. (Alecrim)

A proposta do Conanda seguiu caminho similar, publicada por meio Resolução nº 163, de 13 de março de 2014, buscando restringir “a publicidade de qualquer natureza para a criança, entendendo […] as suas fragilidades enquanto um receptor…”, conforme relatado por Cacau. Após sua publicação, não serviu de impedimento efetivo para a publicidade direcionada às crianças (Jesus; Boff; Werle, 2019JESUS, J.; BOFF, S.; WERLE, V. O direito contemporâneo em perspectiva: um olhar interdisciplinar. Erechin: Deviant, 2019.). As duas normativas podem ser consideradas as mais relevantes nesses 10 anos e, de fato, produzem reflexões sobre o tema.

Por ser “[…] uma coordenação muito pautada nas evidências”, conforme disposto por Amora, diversos materiais buscam facilitar o acesso da população aos produtos que contribuem para o surgimento das DCNT. Os produtos editoriais ou normativos têm agregado valor às orientações emitidas por essa área técnica. O Guia Alimentar para a População Brasileira(Brasil, 2014)BRASIL. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed.; 2014. é o material que vem mais facilmente à fala das entrevistadas. Em diversos momentos, foi comum o seu conteúdo ser citado, mesclado às próprias ideias das participantes.

De modo geral, segundo Alecrim, “a norma, ela surge […] dessa produção […], que é uma produção de conteúdo, assim, louváveis, que tem a participação de várias alas da nutrição, […] de um escopo de universidades. Tudo isso, vamos dizer assim, emerge!”. Esses materiais inspiram e conduzem diversas agendas no executivo federal. Esse mix de produção científica, em saúde e nutrição, é parte relevante da comunicação que há na nutrição. E por meio dele, “a gente tenta chegar no profissional de saúde e na família” (Amora).

Vocalização gigante

A preocupação com a qualidade do conteúdo produzido internamente posiciona a coordenação em um lugar de prestígio. Para Cacau, “[…] a potencialidade de se discutir, a partir da CGAN, […] é a legitimidade da área técnica no diálogo com outros setores, para fora do setor saúde”. Segundo Alecrim, “a CGAN […], como coordenadora de nutrição do Ministério da Saúde, […] tem uma capacidade de vocalização gigante”. A repercussão gerada por seus documentos e normativas produz eco em outros setores.

[…] a PNAN, ela é uma política de referência. E quando você visita, por exemplo, o site da Anvisa, agora que se está debatendo […] a revisão da rotulagem nutricional de alimentos, a Anvisa claramente diz que ela está orientada por uma política do SUS, que é a Política Nacional de Alimentação e Nutrição. (Cacau)

Para ampliar a discussão sobre a regulamentação da publicidade infantil de alimentos, considerando essas características e relevância, Amora destaca que “[…] a partir da CGAN, a […] via é a obesidade infantil” que “no período da infância, é o agravo mais prevalente relacionado à má alimentação”.

O fortalecimento de leis que buscam restringir a oferta de ultraprocessados e as ações que visam reduzir o açúcar, a gordura e o sal nos alimentos processados foram comparados em estudos sobre o realizado nos Estados Unidos e a Inglaterra, no primeiro caso, e no Brasil e a Inglaterra, no segundo (Silva; Oliveira-Costa, 2021SILVA, M. A. S.; OLIVEIRA-COSTA, M. S. A Regulamentação da publicidade infantil de alimentos: potencialidades para a Comunicação em Saúde no Brasil. Revista Cadernos da Pedagogia, São Carlos, v. 15, n. 31, p. 53-64, 2021.).

A CGAN/MS estrutura os seus objetivos em ações que dialogam entre si e conversam com os setores externos à saúde, por meio dos marcos legais e de publicações editoriais. A soma dessa produção encontra eco na academia, na esfera pública e na sociedade. A fortaleza da coordenação está justamente no reconhecimento e prestígio da sua produção técnico-científica.

Não só responsabilidade individual, mas proteção à oferta qualificada da escolha

A PNAN apresenta o conceito aberto de inocuidade de alimentos e, mediante uma visão ampliada dos riscos, fala dos efeitos dos ultraprocessados na saúde da população. Com essa visão de riscos, defende a regulação e o controle de alimentos, destaca Cacau, com ações da CGAN nos seguintes eixos: incentivo, apoio e proteção.

Para incentivar o consumo saudável dos alimentos, a estratégia busca utilizar regularmente canais que aproximem o tema da população, desenvolvendo uma comunicação que desperte a capacidade de se distinguir o alimento saudável do ultraprocessado, considerado um consumo de risco (Cacau). A conscientização das famílias é um objetivo importante a ser alcançado, afinal, as crianças reproduzem o que veem em casa (Pimenta).

No campo das ações de apoio, a proposta da CGAN é desenvolver mecanismos que facilitem o acesso ao alimento saudável, fomentando a agricultura familiar, promovendo a disponibilidade e a redução dos preços de orgânicos, por exemplo. Envolve o exercício de um conjunto de políticas: da renda à disponibilidade (distribuição) dos alimentos saudáveis. Contudo, conforme Amora, há um alerta: “esse é um componente mais da questão individual”, e a escolha de cada pessoa é afetada pela construção social ao seu redor, incluindo o que é divulgado por meio da publicidade.

Na dimensão protetiva, há a defesa por mais ambientes públicos sem a publicidade e acesso aos ultraprocessados. Conforme destaca Amora, “as evidências mostram muito a importância do espaço escolar protetivo”. Neste sentido, há a necessidade do fortalecimento de regras para a publicidade e a rotulagem nutricional, de modo que as informações difundidas pela indústria de alimentos sejam compreensíveis ao cidadão, protegendo e qualificando a tomada de decisões de compra e consumo (Cacau).

Essa preocupação considera os mecanismos pelos quais as interações entre os diferentes níveis de contextos sociais produzem desigualdades em saúde, ponderando sobre os fatores individuais, mas também os econômicos, culturais e ambientais, que caracterizam o lugar de uma pessoa numa sociedade (Dahlgren; Whitehead, 1991DAHLGREN, G.; WHITEHEAD, M. Policies and Strategies to Promote Social Equity in Health. Copenhagen: Institute for Future Studies; 1991.).

Lobby e intervenção, priorizando a saúde da economia

Restringir a publicidade de produtos ultraprocessados para as crianças é uma proposta repleta de desafios, devido às indústrias de alimentos e da comunicação. Segundo Amora, “ela é uma agenda, que […] exige muito enfrentamento do tomador de decisão, nem todos os gestores acima da coordenação […], resolvem encarar”. As adversidades ao tema surgem dentro do próprio Ministério da Saúde e há pressão externa devido ao contexto político.

Para Alecrim, trata-se de um tema sensível e “politicamente, os escalões […] mais altos, têm dificuldade de assumir, porque são muitos os interesses envolvidos, muitas relações…” A agenda regulatória torna-se um exercício de resiliência “ela não aparece, porque ela é uma briga de bastidor. E se ela aparecer, a indústria vem e ataca” (Pimenta).

Neste campo adverso, cabe a adaptação e a utilização de outras estratégias, inserindo o tema da regulamentação em outras atividades. O desafio foi estabelecer uma narrativa em que os gestores superiores no Ministério da Saúde não precisassem se manifestar e se opor. O registro do encontro, no dia 5 de maio de 2011, entre o Ministro da Saúde, à época, Alexandre Padilha, com o presidente da rede McDonald’s na América Latina, Marcelo Rabach, exemplifica o constrangimento. A imagem esteve disponível, por pouco tempo, na galeria do Flickr11O Flickr é um site de hospedagem e compartilhamento de imagens fotográficas. do órgão federal com a seguinte legenda: “Ministro Alexandre Padilha se reúne com Marcelo Rabach, Presidente da McDonald’s na América-Latina, um dos parceiros da saúde”.

Figura 2
O Ministério da Saúde e o parceiro da saúde: McDonald’s

Na imagem, Rabach entrega uma amostra da toalha de papel que cobriu as bandejas da empresa nos meses de março e abril daquele ano com dicas sobre a prática de atividade física, a ingestão de água, a alimentação saudável, entre outras coisas. Essa estratégia da rede de fast-food comprova que a indústria de alimentos ultraprocessados permeia o cotidiano do Ministério da Saúde, não só buscando agregar o conceito de saúde aos seus produtos, mas, de certo modo, influenciar a percepção social sobre as políticas públicas do órgão. A foto foi retirada do site após inúmeras críticas.

Intersetorialidade, a defesa e a prática

O enfrentamento ao setor produtivo e às agências de comunicação pode ser caracterizado como o principal embate das gestoras. Pimenta explica: “Por quê? Porque a pressão da indústria, o lobby da indústria é fortíssimo”. A publicidade sobre os alimentos produzidos industrialmente investe pesado no imaginário saudável. Alecrim afirma que é uma narrativa presente em diversos meios de comunicação. Enquanto o orçamento da CGAN/MS é de poucos milhões, o da indústria de alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas utiliza bilhões em publicidade. Sem regulação, nessa disputa sobre o que é a uma alimentação saudável nos meios de comunicação de massa, a saúde pública não tem chance de sucesso, daí a necessidade de equilibrar essas forças.

Neste ambiente, de acordo com Alecrim, a partir da saúde, “como carreador da agenda de regulamentação, […] a CGAN/MS não pode ir sozinha”. A articulação intersetorial é uma necessidade basilar para a permanência do tema na pauta do governo federal, entretanto, de acordo com Cacau, “falar de intersetorialidade é muito bonito, mas fazer intersetorialidade é um desafio!”.

Apesar da fortaleza nos espaços de compartilhamento da governança institucional, os desafios se apresentavam ora de modo explícito, ora de maneira sutil. Declaradamente, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) por meio dos núcleos vinculados à defesa do agronegócio, e o Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio (MDIC), que entre as suas competências, segundo Pimenta, está a defesa dos interesses empresariais, se posicionavam contra qualquer movimento que buscasse regular as atividades da indústria.

De modo mais cuidadoso, as demais instituições que compartilhavam interesses mais próximos à agenda da alimentação adequada e saudável, bem como dos direitos da criança, não manifestavam explicitamente o apoio à agenda da regulamentação da publicidade infantil de alimentos. Segundo Alecrim, “Eles não se opuseram, […] mas não era uma bandeira”. A possibilidade de embates com a indústria econômica constrangia outros órgãos. Alecrim, afirma: “E é assim que é o jogo das instituições, cada instituição tem o seu propósito. Trabalham a intersetorialidade, mas […] cada um priorizando a sua própria agenda”.

Durante o exercício da intersetorialidade, há a necessidade de articulação com o setor produtivo, uma realidade percebida como um processo intimidador para o avanço da agenda regulatória. Por isso, na busca de fortalecimento, é comum o desejo por uma normativa específica, votada pelo Congresso Nacional, que restrinja explicitamente a publicidade infantil de alimentos, diluindo a personalização da agenda a um órgão específico.

Mais proteção com comunicação em saúde

No Brasil existe um arcabouço legal (Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente, e Código de Defesa do Consumidor que protege as crianças, mas como mencionado, apesar de a lei existir, ela não é cumprida. Neste sentido, gastar energia na produção de mais normativas não é o recomendado, mas qualificar o que já está normatizado, buscando apoio junto à sociedade, na expectativa de que, com a soma das vozes, seja possível fazer cumprir a legislação existente.

A CGAN possui um rol de produtos editoriais técnico-científicos com reconhecimento no meio acadêmico e na sociedade civil que alcançam parte da opinião pública. Conforme destaca Alecrim, “é uma tarefa importante para a Comunicação em Saúde, […], transformar esse conhecimento que a ciência traz em algo que a população entenda”.

Esses documentos atuam no imaginário social, na formação de um coletivo que valoriza a alimentação saudável (Alecrim), contudo, na disputa de narrativas, devemos qualificar o entendimento de que os alimentos ultraprocessados não são saudáveis tais como se vendem nos anúncios publicitários, e a comunicação em saúde pode ampliar o alcance do que é discutido nesta agenda. É preciso saber comunicar a importância da agenda e desenvolver atividades que dialoguem com os responsáveis e os cuidadores das crianças, pensando cuidadosamente em qual mensagem transmitir e no canal a ser utilizado, bem como promover o acesso a essa informação verdadeira e qualificada.

No Brasil, há diferentes níveis de acesso à informação. Para comunicar com todos os públicos, e não apenas com a classe média, há a necessidade de um esforço conjunto, considerando ações mais estruturantes de garantia do direito humano à alimentação saudável, que está muito além do conhecimento e da informação que podemos disseminar pelos meios usuais, já utilizados pela indústria (Cacau).

A equipe técnica da CGAN/MS tem trabalhado nos últimos anos com a recomendação de “menos tela” dentro das ações que estão no programa “Previne Obesidade Infantil” e seria incoerente propor estratégias de comunicação que sugerisse uma TV, tablet ou celular para a interação (Amora).

Com a permanente atualização e o desenvolvimento tecnológico, a comunicação em saúde assume, cada vez mais um importante lugar na sociedade contemporânea. No âmbito da saúde pública brasileira essa compreensão é verbalizada em muitos espaços, contudo, pouco valorizada efetivamente na execução das políticas e dos programas do Ministério da Saúde. Ainda, cabe superar a visão coadjuvante da comunicação como uma atividade de mera assessoria e divulgação dos feitos do gestor (Oliveira-Costa, Fernandes e Vasconcelos, 2022)OLIVEIRA-COSTA, M. S.; FERNANDES, M. F. M.; VASCONCELOS, W. O recado está dado: a covid-19 e suas repercussões para a comunicação em saúde nas instituições públicas. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, v. 11 n. 2, p. 175-182, 2022..

O Ministério da Saúde não utilizou nenhuma ação de comunicação para fortalecer a pauta da regulamentação da publicidade infantil de alimentos, na década analisada. Contudo, houve essa preocupação em outro momento. Saber como desenvolver diálogos sobre o tema foi a proposta de um chamado de pesquisa, que infelizmente não teve êxito, segundo Pimenta, “porque a gente esqueceu de divulgar para as faculdades de comunicação.” Então, aproximar a saúde das faculdades de comunicação deve fazer parte das estratégias para disseminação desta agenda.

A população não precisa necessariamente conhecer o produto editorial: “Guia Alimentar para a População Brasileira”, mas as orientações contidas nessa publicação. O fortalecimento do SUS, por meio do compartilhamento qualificado das informações é uma responsabilidade da Comunicação em Saúde. Uma população mais bem informada pode tomar decisões mais assertivas sobre os fatores e ações que influenciam a sua saúde. Esse despertar, pode, inclusive, fazer a sociedade em geral abraçar as políticas públicas que têm o objetivo de produzir mais ambientes facilitadores da tomada de decisões mais saudáveis, como a regulamentação da publicidade infantil de alimentos.

Considerações finais

Entre os anos 2010 e 2019, a CGAN/MS utilizou sua principal potencialidade, o seu prestígio e a sua capacidade de ampliar a voz dos temas afetos à alimentação e à nutrição para além do campo da saúde, de modo transversal, com outras pastas do executivo federal brasileiro e com a sociedade civil organizada. Essa articulação tem sido fundamental para o enfrentamento das DCNT, uma vez que apenas regular a publicidade infantil de alimentos possivelmente não trará os resultados esperados, e esta é uma fatia de diversas ações, as quais não podem ser operadas isoladamente.

O principal desafio enfrentado é a constante presença do lobby da indústria (de alimentos e da comunicação) no Ministério da Saúde do Brasil. Ter descortinado essa realidade é o principal achado deste trabalho. O lugar da gestão da Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição é solitário e permanece no centro de um embate técnico e político que sofre influência dessas indústrias. Como forma de driblar os limites impostos, fomentar a agenda por meio de publicações editoriais ou normativas foi uma estratégia da CGAN/MS para manter o tema na pauta da gestão federal.

Sem apoio hierárquico efetivo no período analisado, o que foi planejado resultou apenas em boas intenções, sem contribuição concreta para a regulamentação da publicidade infantil de alimentos. Diante dessa inércia, a energia foi direcionada para o fomento na produção de mais Leis, na expectativa de que a legislação transformasse esse cenário. Contudo, historicamente, apenas a existência de uma normativa não garante o seu cumprimento.

Nesses últimos anos, as normativas consideradas mais relevantes, no intuito de regular o tema, foram publicadas pela Anvisa (RDC nº 24, de 15 junho de 2010) e pelo CONANDA (Resolução nº 163, de 13 de março de 2014). Todavia, ambas não conquistaram o efeito legal concreto desejado. Por um outro lado, essas iniciativas produziram debates em diversos segmentos, mantendo viva a discussão. O Guia Alimentar para a População Brasileira (Brasil, 2014)BRASIL. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed.; 2014., entre as publicações editoriais, é o material mais relevante.

Identificou-se um grande espaço para a Comunicação em Saúde fortalecer a agenda, tornando os materiais técnicos científicos e normativos produzidos, mais acessíveis às pessoas em situação social menos favorável e com pouco acesso as informações técnicas produzidas pelo Ministério da Saúde, bem como nos outros segmentos sociais, buscando produzir engajamento para o cumprimento das normativas existentes de proteção da infância, bem como fomentar as demais iniciativas de promoção à saúde e da alimentação adequada e saudável.

Portanto, para potencializar a interseção entre esses campos de saber: Saúde e Comunicação, é fundamental a inclusão de profissionais com formação em comunicação social nos espaços de produção técnica, com foco na tradução da linguagem utilizada na maioria de suas produções editoriais, e nos diferentes espaços da gestão do Ministério da Saúde, bem como fomentar estudos junto às instituições de ensino e pesquisa, incluindo as faculdades de comunicação, nos chamados públicos que buscam qualificar as ações de promoção da saúde e comunicação em saúde em todos os canais de diálogo com a população brasileira em geral, especialmente, na influência da publicidade sobre as escolhas alimentares de crianças e adolescentes brasileiros.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2022
  • Revisado
    28 Mar 2023
  • Aceito
    31 Mar 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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