Indignação, impotência e engajamento. Notas sobre desafios à pesquisa antropológica feminista11A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob o número CAAE: 22637219.5.0000.5286. Artigo submetido para o dossiê “Ética e campos sensíveis de pesquisa: afetos, subjetividades e emoções em cena”. Organização: Jaqueline Ferreira (IESC/UFRJ) e Ivia Maksud (IFF/Fiocruz). Fonte de financiamento: CNPq PQ (Processo nº 307789/2022-5).

Indignation, impotence and engagement. Notes on challenges to feminist anthropological research

Elaine Reis Brandão Sobre o autor

Resumo

Refletindo sobre vivências, aprendizados, aflições e emoções na pesquisa antropológica, discute-se o sentimento de impotência e o sofrimento que nos mobiliza frente ao trabalho de campo, com temas sensíveis que colocam em cena a vida, as emoções e a saúde de mulheres racializadas e socialmente excluídas no Brasil. Buscamos indagar, em aliança ao compromisso ético-político que nos move na pesquisa acadêmica, os nossos limites no fazer etnográfico e na contribuição que o compartilhamento dos resultados pode gerar no debate sociopolítico e no cotidiano dos sujeitos de pesquisa. Até onde podemos ter êxito (não estritamente acadêmico) quando nos dispomos a uma pesquisa engajada com temas e sujeitos de pesquisa? Por que tal postura reflexiva e implicada nos deixa tão angustiadas diante dos desafios de transformação social das realidades estudadas? Analisando a mobilização de mulheres que implantaram o dispositivo permanente para esterilização Essure no Brasil, abordo as questões do estatuto do conhecimento e as disputas epistêmicas em jogo; da temporalidade da espera, e como ela opera entre sujeitos de pesquisa, atravessando também a pesquisadora e seus resultados de pesquisa; por fim, qual modelo de ciência podemos reafirmar, no embate entre campos disciplinares tão díspares como a medicina e a antropologia.

Palavras-chave:
Ética em Pesquisa; Pesquisa Qualitativa; Antropologia; Etnografia; Reflexividade

Abstract

Reflecting on experiences, learning, afflictions, and emotions in anthropological research, the feeling of impotence and the suffering that mobilizes us in the fieldwork, with sensitive themes that bring to the fore the life, emotions, and health of racialized and socially excluded women in Brazil, is discussed. We seek to question, in alliance with the ethical-political commitment that moves us in academic research, our limits in ethnographic work and the contribution that sharing results can generate in the socio-political debate and the daily life of research subjects. How far can we succeed (not strictly academically) when we are willing to carry out engaged research with research themes and subjects? Why does such a reflective and involved posture leave us so anguished in the face of the challenges of social transformation of the studied realities? Analyzing the mobilization of women who implanted the Essure permanent sterilization device in Brazil, I address the issues of the status of knowledge and the epistemic disputes in play; the temporality of waiting, and how it operates between research subjects, also touching the researcher and her results; finally, what model of science can we reaffirm, in the clash between disciplinary fields as disparate as medicine and anthropology.

Keywords:
Research Ethics; Qualitative Research; Anthropology; Ethnography; Reflexivity

Introdução22A autora agradece às colegas Jaqueline Ferreira e Soraya Fleischer pela leitura atenciosa e comentários críticos recebidos ao manuscrito.

“Queremos uma resposta. Somos contribuintes, somos mulheres que foram usadas como cobaia porque a maioria aqui tem o mínimo grau de instrução [...] a nossa vida foi destruída por causa da ganância de alguém”. (Depoimento de representante do grupo de mulheres “Vítimas do Essure” do Rio de Janeiro em audiência pública na Alerj, em 13 de dezembro de 2019.33A audiência pública da Alerj encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Er0LI1YGG5M. Em outra audiência pública, realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados, em Brasília, em 16 de agosto de 2021, a expressão “cobaia” também foi utilizada pela representante das “vítimas do Essure”, coordenadora das mobilizações das usuárias na capital do país. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/795055-representante-de-vitimas-do-contraceptivo-essure-diz-que-brasileiras-foram-usadas-como-cobaias/. Acesso em: 10 dez. 2023. O vídeo desta audiência está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bDxkrc2H89k. Acesso em: 10 dez. 2023.

O depoimento citado foi proferido por uma mulher “vítima do Essure” em audiência pública realizada em 13 de dezembro de 2019, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), convocada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania para debater os problemas de saúde causados pelo dispositivo de controle reprodutivo permanente designado Essure®, nas usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS), que o implantaram em um hospital público municipal do Rio de Janeiro. A acepção “cobaia” tem sido utilizada frequentemente nos grupos digitais que congregam mulheres “vítimas do Essure”, nas manifestações públicas junto à mídia e nas reuniões com autoridades de saúde, gestores públicos ou parlamentares.

Essa dramática, recente e recorrente história de utilização de corpos femininos, pobres e, em maioria, negros, para o treinamento e experimentações médicas de novos artefatos biotecnológicos - no caso, o dispositivo para esterilização Essure®, comercializado entre 2002 e 2018 pela empresa farmacêutica Bayer - tem sido investigada por autoras no contexto internacional (Hintz; Applequist, 2023HINTZ, E. A.; APPLEQUIST, J. E-sisters and the case of the Essure coil: power, representation, and voice in women’s public docket accounts to the FDA of medical device adverse events. Journal of Applied Communication Research, [s. l.], v. 51, n. 5, 2023.; Sheffield, 2019SHEFFIELD, S. The controversy over Essure birth control. Women Leading Change: Case Studies on Women, Gender, and Feminism, New Orleans, v. 4, n. 2, p. 46-66, 2019.) e nacional (Brandão; Pimentel, 2020BRANDÃO, E. R.; PIMENTEL, A. C. L. Essure® no Brasil: desvendando sentidos e usos sociais de um dispositivo biomédico que prometia esterilizar mulheres. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 1, e200016, 2020.; Carvalho; Katz, 2020CARVALHO, M. K.; KATZ, H. T. Essure da Bayer: símbolo da farmacopornografia do útero frente à resistência da multidão. Acta Semiotica et Lingvistica, João Pessoa, v. 25, n. 2, 2020.; Dantas, 2023aDANTAS, A. C. L. Desarmar a bomba-relógio: compreensões jurídicas sobre a prova em pedidos para a retirada cirúrgica do contraceptivo Essure. Feminismos, Salvador, v. 11, n. 2, 2023a., 2023bDANTAS, A. C. L. Credibilidade pública, saberes localizados: disputa epistêmica sobre o dispositivo Essure no Distrito Federal. Mediações: Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 28, n. 3, 2023b.). Nesse momento, não estarei voltada para a discussão do extremo sofrimento vivenciado por tais mulheres e sua árdua luta para obter justiça e atenção às suas diversas demandas de saúde, incluindo a retirada do dispositivo por meio cirúrgico. Essas questões foram abordadas, construindo uma cartografia do problema, em trabalhos anteriores (Brandão; Pimentel, 2020BRANDÃO, E. R.; PIMENTEL, A. C. L. Essure® no Brasil: desvendando sentidos e usos sociais de um dispositivo biomédico que prometia esterilizar mulheres. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 1, e200016, 2020.; Brandão, 2023BRANDÃO, E. R. E-sisters: irmandade digital entre corpos-sujeitos para retirada do dispositivo de esterilização Essure®. Antropolítica, Niterói, v. 55, n. 3, e56526, 2023.). Inicialmente, abordamos o percurso pelo qual o dispositivo chegou ao Brasil, em 2009, sua regulação, incorporação pela equipe médica em hospitais públicos de capitais do país, até as denúncias que circularam no Brasil e no exterior sobre os problemas de saúde por ele causados às mulheres usuárias.44A lista de sintomas inclui uma variedade de problemas tais como: gravidez indesejada, dores crônicas, cólicas abdominais, sangramentos contínuos, desconforto pélvico, dores no ato sexual, falta de libido, dores de cabeça, ganho de peso, fibromialgia, depressão, problemas na pele, queda de cabelo, perfuração de trompas ou útero, migração do dispositivo, alergias e diversos sintomas sugestivos de sensibilidade e reações imunológicas associadas ao níquel-titânio, usado no dispositivo (DEPOIMENTO, [2023]). Em seguida, registrei as dores, a força coletiva e a intensa solidariedade que se criou entre mulheres de vários locais do Brasil, que tiveram o dispositivo implantado em seus corpos e se organizaram politicamente em grupos virtuais nas plataformas Facebook e WhatsApp para trocarem informações e reivindicarem atenção à saúde pelos mesmos hospitais em que foram submetidas ao procedimento médico para esterilização, no decorrer do período de 2009 a 2017, quando ele circulou no país.

Neste artigo, o foco recairá no meu mal-estar ao longo da pesquisa etnográfica, nas emoções e conflitos que o contato com a vasta documentação reunida sobre o objeto de estudo, com as mulheres dos grupos virtuais, que se tornaram ativistas, têm me despertado, redundando nesse esforço de sistematização e reflexividade sobre tais angústias como pesquisadora, também mulher e integrante do campo da saúde coletiva. Daí o título do trabalho mencionar sentimentos como indignação e impotência. Tais categorias dão materialidade ao mal-estar mencionado, conferindo sentido aos eixos analíticos abordados no desenvolvimento do texto. Como Sirimarco e Spivak L’Hoste (2019SIRIMARCO, M.; SPIVAK L’HOSTE, A. Introducción. La emoción como herramienta analítica en la investigación antropológica. Etnografías Contemporáneas, Buenos Aires, v. 4, n. 7, p. 7-15, 2019.) propõem, busco a elaboração analítica das sensibilidades como potenciais ferramentas epistemológicas antropológicas feministas. Sei que esse é um longo caminho e há bastante a aprender, mas gosto de trilhar essa via de reflexão.

Sempre que mergulho no vasto material empírico que pude reunir desde final de 2018, quando comecei a me interessar pelo problema, acompanhando posts publicados nas redes sociais pelos grupos de mulheres que tiveram tal dispositivo implantado em si, ou mesmo conversando com uma delas, uma grande angústia me invade. Por que podemos fazer tão pouco pelos nossos parceiro(as) de pesquisa? Como conseguiríamos mobilizar recursos para ajudá-los(as) mais? Tenho a empatia ao outro como um instrumento de trabalho, na docência e na pesquisa, algo que foi sendo socialmente construído como uma dimensão fundamental do meu fazer profissional desde a graduação em serviço social na década de 1980, mas que pode ser aperfeiçoada e consolidada com a imersão no arsenal antropológico na pós-graduação, na década de 1990 em diante. Daí que invariavelmente sofro e me sinto indignada com questões de estudo, as quais venho me dedicando ao longo da minha trajetória, tais como a gravidez imprevista, as dificuldades do exercício da autonomia feminina em contexto que interdita o aborto, as hierarquias de gênero que impõem às mulheres um percurso tortuoso para suas decisões contraceptivas e reprodutivas, o ônus da maternidade às mulheres, entre outros temas. No caso em destaque neste manuscrito, o desejo pelo controle reprodutivo, pela contracepção definitiva e irreversível- a ligadura de trompas - transformou-se em enorme pesadelo, em dores crônicas, em fragilização da saúde, na descrença pública destas mulheres, no abandono delas pelas autoridades médicas. Nada mais indigesto para uma pesquisadora que trabalha há décadas com os temas da saúde reprodutiva sob uma perspectiva feminista e antropológica.55Acompanhei de perto o debate público sobre o dispositivo contraceptivo Norplant (um implante subdérmico hormonal), na década de 1990, no Brasil (Correa, 1994; Israel; Dacah, 1993; Oliveira, 1998; Pimentel el al., 2017), além do debate sobre as esterilizações compulsórias realizadas preponderantemente nas regiões Norte e Nordeste, na década de 1980, e das violações cotidianas ao direito ao aborto, que persistem na sociedade brasileira. Nesse sentido, as violações aos corpos e direitos das mulheres constituem dimensão estruturante do legado colonial, tematizado pelos movimentos feminista e antirracista. Toda a minha formação foi moldada pelos debates acadêmicos antropológicos e sociológicos sob inspirações feministas (Francheto et al., 1981FRANCHETTO, B.; CAVALCANTI, M. L. V. C.; HEILBORN, M. L. (Org.). Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 4 volumes.; Heilborn, 1992HEILBORN, M. L. Fazendo gênero? A antropologia da mulher no Brasil. In: COSTA, A.; BRUSCHINI, M. C. (Org.). Uma questão de gênero. São Paulo: Fundação Carlos Chagas; Editora Rosa dos Ventos, 1992. p. 93-128.; Heilborn; Sorj, 1999HEILBORN, M. L.; SORJ, B. Estudos de gênero no Brasil. In: MICELI, S. (Org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Editora Sumaré; Anpocs; Capes, 1999. p. 183-221.). Isso aponta para uma postura reflexiva e crítica posicionada, assumidamente política, engajada, a respeito das múltiplas desigualdades sociais (classe, gênero, sexualidade, raça/etnia, geração...) que se traduzem em hierarquias de poder e privilégios. Estudar as interações entre tecnologias contraceptivas e seus usos e impactos em corpos femininos, historicamente situados em contextos de extrema desigualdade social, hierarquias de gênero, racismos e violências, nos impõe descortinar vieses epistêmicos, essencialismos e universalismos que não condizem com o necessário rigor analítico.

Este trabalho é um esforço para traduzir em palavras e reflexões (auto)críticas a postura de “estar ao lado” ou “estar com”, mas ao mesmo tempo “não estar no lugar delas”. Busco encontrar um certo equilíbrio para estudar um tema “médico” controverso pelas lentes da antropologia. Assim como as mulheres “vítimas do Essure”, eu, como pesquisadora das ciências sociais na saúde coletiva sinto algo semelhante relativo ao não reconhecimento ou não legitimação de minha voz sobre o problema, como uma invalidação de outros olhares que não seja o biomédico. Neste sentido, estamos muito próximas e, ao mesmo tempo, silenciadas. A reivindicação da centralidade da autoridade médica para falar sobre o problema sempre surge quando converso, por exemplo, com profissionais do direito. Sinto que o fato de não ser uma cientista médica altera profundamente a legitimidade ou a credibilidade do que tenho a dizer sobre o dispositivo, embora seja uma pesquisadora da área da saúde reprodutiva há décadas. Como meu argumento se apoia na direção de valorizar os depoimentos das usuárias, privilegiar sua voz baseada na experiência corporificada com o dispositivo (agora integrado ao seu corpo), o interesse prioritário de profissionais do direito, gestores públicos, demais autoridades públicas entre outros, consiste em comprovar/atestar “evidências científicas” entre queixas e o dispositivo, relegando o que temos a dizer como cientistas sociais atuantes no campo da saúde. Nessas circunstâncias, a sensação de impotência é por mim vivenciada e pode se aproximar também com o sentimento vivido pelas usuárias do Essure frente à expertise médica.

Pesquisar nas ciências sociais tem sido o eterno desafio de enfrentar nossas inquietações e inconformismos, transformá-las em novos objetos de estudos. Assim, vamos deslindando resistências e fortalecendo uma perspectiva parcial, porém situada (Haraway, 2009HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, v. 5, p. 7-41, 2009.). Desse modo, elegi três dimensões para discorrer algumas reflexões engendradas na pesquisa em curso: a questão do estatuto do conhecimento e as disputas epistêmicas em jogo; a questão da temporalidade da espera e como ela opera entre sujeitos de pesquisa, atravessando também a pesquisadora e seus resultados de pesquisa; e, por fim, qual modelo de ciência podemos reafirmar, no embate entre campos disciplinares tão díspares como a medicina e a antropologia.

Estratégias de silenciamento ou o estatuto do conhecimento

Mergulhada na pesquisa empírica, deparo-me constantemente com narrativas das mulheres que sofrem com o dispositivo sobre situações cotidianas nos serviços públicos de saúde ou consultórios médicos privados de desconsideração ou não escuta de suas queixas e muitas dores físicas e psíquicas. Como afirmei em trabalho anterior (Brandão, 2023BRANDÃO, E. R. E-sisters: irmandade digital entre corpos-sujeitos para retirada do dispositivo de esterilização Essure®. Antropolítica, Niterói, v. 55, n. 3, e56526, 2023.), em geral, por absoluto desconhecimento sobre o dispositivo Essure ou por distorções na formação médica, estes profissionais atribuem tais sintomas a “problemas da idade” ou “problemas psicológicos”, reificando um modo peculiar e histórico da medicina lidar com os corpos femininos (Foucault, 1999FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.). E, principalmente, reproduzindo a negligência da qual elas foram vítimas ao serem levadas a implantar o dispositivo em um procedimento médico apresentado como “seguro, rápido, indolor, inócuo, de fácil manejo clínico” (daí ser ambulatorial), sem maiores consequências e gravidade (Brandão; Pimentel, 2020BRANDÃO, E. R.; PIMENTEL, A. C. L. Essure® no Brasil: desvendando sentidos e usos sociais de um dispositivo biomédico que prometia esterilizar mulheres. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 1, e200016, 2020.).

Por que o conhecimento dos sujeitos de pesquisa não é validado? Por que não valorizamos as pistas destas experiências de adoecimento que se acumulam e se repetem (nos EUA, Europa, Canadá e no Brasil) para uma rigorosa investigação clínica? Por que não se admite publicamente que houve um erro em tais condutas profissionais? Independente de terem sido motivadas por ignorância médica sobre o dispositivo, por entusiasmos desmedidos com o marketing farmacêutico sobre o produto ou má fé (conflitos de interesses).66No primeiro trabalho sobre esse tema (Brandão; Pimentel, 2020), citamos um artigo no qual a primeira autora, uma médica de São Paulo, declarava que “realiza consultorias para a empresa Commed”, a única empresa que comercializou o dispositivo Essure no território nacional, a qual lucrou imensamente com sua venda (Cf. Depes et al., 2016, p. 130). Sebring (2021SEBRING, J. Towards a sociological understanding of medical gaslighting in western health care. Sociology of Health & Illness, [s. l.], v. 43, n. 9, p. 1951-1964, 2021.) analisa o chamado “medical gaslighting” como um exercício do biopoder e de aniquilamento destes sujeitos, cujo conhecimento lhes é negado, abrindo uma via de análise pelo que muitas autoras têm discutido como “injustiça epistêmica” (Dantas, 2023aDANTAS, A. C. L. Desarmar a bomba-relógio: compreensões jurídicas sobre a prova em pedidos para a retirada cirúrgica do contraceptivo Essure. Feminismos, Salvador, v. 11, n. 2, 2023a., 2023bDANTAS, A. C. L. Credibilidade pública, saberes localizados: disputa epistêmica sobre o dispositivo Essure no Distrito Federal. Mediações: Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 28, n. 3, 2023b.). Adiante voltarei a esse último aspecto.

Há alguns anos, estudando os métodos contraceptivos reversíveis de longa duração (long-acting reversible contraception, LARC), tenho percorrido o caminho de perscrutar as inclinações entre biotecnologias contraceptivas promovidas pelo mercado farmacêutico e sua difusão entre sociedades médicas, agências multilaterais e consórcios para ampliação da oferta de contraceptivos no mundo, em especial em países em desenvolvimento ou pobres. Em outras palavras, como a afirmação de um direito sexual e reprodutivo caro à autonomia das mulheres - o de evitar filhos, quando quiserem - tem se convertido em estratégias globais e locais sutis e sofisticadas de coerção ou imposição dissimulada de determinados dispositivos em detrimento de outros (Brian et al., 2020BRIAN, J. D.; GRZANKA, P. R.; MANN, E. S. The age of LARC: making sexual citizens on the frontiers of technoscientific healthism. Health Sociology Review, v. 29, n. 3, p. 312-328, 2020.; Senderowicz, 2019SENDEROWICZ, L. “I was obligated to accept”: A qualitative exploration of contraceptive coercion. Social Science & Medicine, [s. l.], v. 239, p. 1-10, 2019.; Brandão; Cabral, 2021BRANDÃO, E. R.; CABRAL, C. S. Vidas precárias: tecnologias de governo e modos de gestão da fecundidade de mulheres “vulneráveis”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 27, n. 61, p. 47-84, 2021.). O drama do dispositivo de esterilização Essure não tem uma trajetória muito diferente, mas como ele se propunha ser permanente e irreversível - tal como o procedimento de ligadura de trompas -, os prejuízos de sua implantação nas tubas uterinas com os desfechos ocorridos - contaminação de todo o organismo pelo níquel-titânio, sua dispersão para outros órgãos ou seu esfacelamento em distintos fragmentos77O Essure é um artefato biomédico composto por molas de aço inoxidável, revestidas por capa de níquel-titânio com polietileno (PET), medindo aproximadamente 4 centímetros e com espessura de um fio de cabelo, cuja inserção ocorre através do canal vaginal por aparelho histeroscópio que direciona as molas até o interior das duas tubas uterinas (Brandão; Pimentel, 2020). Para uma apreciação dos problemas de saúde identificados, consulte Parant et al., (2020) e o site do Food and Drug Administration (FDA). Disponível em: https://www.fda.gov/medical-devices/essure-permanent-birth-control/fda-activities-related-essure e https://www.fda.gov/medical-devices/essure-permanent-birth-control/problems-reported-essure. Acesso em: 10 dez. 2023. - foram significativos. O fato de sua posterior retirada exigir uma via cirúrgica, sendo necessários procedimentos como a histerectomia (retirada do útero, podendo incluir também ovários e trompas) ou a salpingectomia (retirada das trompas), tem deixado marcas ainda mais dolorosas nas pacientes.

É recorrente o não reconhecimento das narrativas de adoecimento das mulheres vítimas do dispositivo Essure, deslegitimando suas demandas de saúde e invalidando um conhecimento leigo fundamental à compreensão do problema. Invoca-se a preponderância e a consagração de uma expertise médica, a qual silenciou-se por completo sobre o dispositivo, após ter vindo à tona milhares de denúncias no contexto internacional88Nos EUA, as mulheres vítimas se organizaram em grupos virtuais “Essure Problems”, canalizando as milhares de denúncias à FDA, agência reguladora daquele país. Disponível em: https://www.fda.gov/medical-devices/essure-permanent-birth-control/problems-reported-essure. Acesso em: 10 dez. 2023. e local sobre o mesmo, fatos que têm provocado disputas epistêmicas acirradas. Tal desfecho levou a empresa Bayer a interromper sua comercialização em 2018 e fazer um acordo bilionário com as usuárias dos EUA, embora não tenha admitido formalmente irregularidades ou responsabilidades neste processo.

Autoras como Akrich (2010AKRICH, M. From comunities of practice to epistemic communities: health mobilizations on the internet. Sociological Research Online, [s. l.], v. 15, n. 2, p. 116-132, 2010., 2011), Rabeharisoa, Moreira e Akrich (2014RABEHARISOA, V.; MOREIRA, T.; AKRICH, M. Evidence-based activism: patients’ organisations, users’ and activist’s groups in knowledge society. BioSocieties, London, v. 9, p. 111-128, 2014.) e Pols (2014POLS, J. Knowing patients: turning patient knowledge into science. Science, Technology, & Human Values, Thousand Oaks, v. 39, n. 1, p. 73-97, 2014.) nos ajudam a compreender o conhecimento gerado por comunidades virtuais ou não (pacientes de determinadas doenças, grupos afetados por contaminação ambiental, entre outras), que trocam suas experiências a respeito de interesses comuns e se associam para produzir um conhecimento prático engajado que possa ser disponibilizado para melhorar as condições de vida destes coletivos. Em torno da mobilização política destes grupos em espaços virtuais, tais como as “vítimas do Essure”, muitas informações são trocadas, aprendidas, no intuito da circulação social de um know how sobre o dispositivo, seus efeitos, sua extração cirúrgica, seus embates epistêmicos por justiça reprodutiva ou justiça ambiental, por exemplo. O grande desafio permanece sendo “turn this knowledge into science”, tal como Pols (2014POLS, J. Knowing patients: turning patient knowledge into science. Science, Technology, & Human Values, Thousand Oaks, v. 39, n. 1, p. 73-97, 2014.) expressa, ou seja, como a ciência, neste caso em exame, a medicina, poderia validar e reconhecer a voz destas pacientes como algo legítimo e passível de se questionar ou investigar “por dentro”, a partir do ponto de vista médico-científico. Nestes embates epistêmicos cotidianos, o tempo decorre e as mulheres continuam aguardando alguma solução que lhes tire desse infortúnio.

O tempo da espera como dispositivo de esperança e aflição

Em sua etnografia com usuários de serviços públicos em Buenos Aires, na maioria, mulheres pobres, Auyero (2011aAUYERO, J. Patients of the State: an ethnographic account of poor people’s waiting. Latin American Research Review, Cambridge, v. 46, n. 1, p. 5-29, 2011., 2011bAUYERO, J. Vidas e política das pessoas pobres: as coisas que um etnógrafo político sabe (e não sabe) após 15 anos de trabalho de campo. Sociologias, Porto Alegre, v. 13, n. 28, p. 126-64, 2011.) discute de modo bastante interessante os significados atribuídos ao longo tempo de espera para acessar os serviços ou benefícios sociais pretendidos (documentação, pensão etc.), decifrar burocracias, tornar-se letrado em algo desconhecido, gerir a impessoalidade dos atendimentos, convertidos em números, protocolos, prontuários. Um aprendizado social que decorre da espera. O autor faz uma analogia deste tempo de espera para ser atendido com os pacientes de hospitais ou serviços de saúde públicos, que frequentemente também aguardam horas, dias, às vezes meses para acessarem os serviços dos quais necessitam, designando-os como “pacientes do Estado”, ao deslindar esse modo produtivo do Estado fazer-se (oni)presente na vida de cidadãos. Para ele, a temporalidade da espera é um processo relacional, dotado de incertezas e arbitrariedades, que reproduz hierarquias de classe, gênero e raciais. Trata-se de um processo de transformação “da espera objetiva em submissão subjetiva”, ao se reafirmar os laços de dependência e subordinação destes cidadãos com o Estado (Auyero, 2011aAUYERO, J. Patients of the State: an ethnographic account of poor people’s waiting. Latin American Research Review, Cambridge, v. 46, n. 1, p. 5-29, 2011., p. 8). Em outro trabalho igualmente importante, Vianna e Lowenkron (2017VIANNA, A.; LOWENKRON, L. O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens. Cadernos Pagu, Campinas, n. 51, e175101, 2017.) também reafirmam o quanto a produção do gênero e o fazer-se Estado estão imbricados, reproduzindo-se mutuamente por meio de “pedagogias de desigualdades” de várias ordens. Assim, acionar a categoria da “ignorância” (não-saber sobre assuntos “técnicos”) ou da “loucura” (estão delirando, influenciadas pelo alarde da mídia, buscando tirar vantagens financeiras etc)99Cf. Dantas (2023a), em sua análise sobre o acolhimento das demandas de retirada do dispositivo Essure, apresentadas por mulheres vítimas no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. são formas de regulação ou enquadramento destas mulheres em suas devidas posições de classe, gênero e raciais.

Trazendo suas ideias para o contexto da pesquisa sobre a qual me debruço, essa temporalidade da espera opera de duas formas. De um lado, subjugando as mulheres usuárias do Essure a aguardarem o devido reconhecimento, por parte do Estado e do poder médico, dos imensos danos à saúde que sofreram em razão de um dispositivo envolto em muitas controvérsias e conflitos de interesses nas pesquisas clínicas e processos de sua regulamentação nas agências oficiais internacionais (FDA) e nacionais (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Além de estarem há anos ansiando por atendimentos médicos e psicológicos, cirurgias de retirada do dispositivo, acompanhamento clínico de seus múltiplos problemas de saúde. Trata-se também de uma estratégia sutil de apagamento e silenciamento, ignorando-se a voz ensurdecedora que ecoa nas manifestações coletivas que têm sido promovidas nos espaços públicos. É o mesmo assujeitamento abordado por Auyero (2011aAUYERO, J. Patients of the State: an ethnographic account of poor people’s waiting. Latin American Research Review, Cambridge, v. 46, n. 1, p. 5-29, 2011., 2011bAUYERO, J. Vidas e política das pessoas pobres: as coisas que um etnógrafo político sabe (e não sabe) após 15 anos de trabalho de campo. Sociologias, Porto Alegre, v. 13, n. 28, p. 126-64, 2011.), negando-se o direito à justiça e à reparação a mulheres pobres, brancas e negras, usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS), como expressa uma delas, que “só não queriam ter mais filhos”.

Por outro lado, também vivencio como pesquisadora uma espera angustiada pelos desdobramentos efetivos e práticos de toda a mobilização social que venho acompanhando junto às “vítimas do Essure”, dos diálogos travados com colegas, médicas (também feministas), advogadas, na esperança de encontrar algum mecanismo que faça valer os direitos destas mulheres a serem tratadas com respeito e dignidade e não como “histéricas” ou “poliqueixosas”, reafirmando estereótipos de gênero bastante conhecidos e discriminações sociais. Diante da impotência e amargura que nos invade, em razão de acompanhar o sofrimento cotidiano destas mulheres usuárias, resta-nos crer nas poucas possibilidades que o registro público desse triste episódio, mediante o compartilhamento dos resultados da pesquisa em artigos científicos podem gerar. Como tais trabalhos circulam para além do ambiente estritamente acadêmico, passando às mãos destas usuárias que se tornaram ativistas, das defensoras públicas envolvidas, das advogadas que integram o escritório internacional que busca mover uma ação coletiva por danos morais e materiais contra a fabricante do produto, a empresa farmacêutica Bayer, quiçá podem auxiliar na compreensão deste intrincado processo de violação de direitos das mulheres. Mas, ainda me parece muito pouco... e nem sempre acessível de forma mais ampla na sociedade.

O decorrer do tempo, no entanto, nos desafia também a não desistir - apesar do mal-estar gerado -, e, ao contrário, insistir na reiteração das injustiças reprodutivas que se acumulam no Brasil. Algo bom ao longo deste tempo de espera e de pesquisa tem sido conhecer e encontrar outras pesquisadoras interessadas no tema, nos aliarmos em trabalhos compartilhados, reforçando assim nossa interlocução e agência política como pesquisadoras feministas, para que possamos ir mais longe na divulgação dos nossos resultados e no fortalecimento das lutas travadas pelas usuárias do Essure. A exemplo do belo trabalho de Veena Das (2020DAS, V. Vida e palavras. A violência e sua descida ao ordinário. São Paulo: Editora Unifesp, 2020.), tenho procurado aprender com as incertezas, aceitar e conviver com a hesitação e o não-saber como pesquisadora, esperar o trabalho do tempo sobre nós e nossas investigações.

Qual ciência?

Desenvolvemos nas últimas décadas todo um arsenal teórico-metodológico para a regulação ética das pesquisas, em especial no campo das ciências da saúde, sob o primado de “proteger os sujeitos de pesquisa”. E, novamente, o episódio do dispositivo Essure nos mostra o contrário. O quão vulneráveis estavam tais mulheres ao se dirigirem aos hospitais públicos do SUS atendendo uma convocação médica para a tão ansiada laqueadura de trompas. Mulheres chamadas para uma laqueadura tubária que tanto aguardavam (novamente, a espera...), mas não devidamente esclarecidas sobre os distintos procedimentos médicos em vigência (a via tradicional, aprovada na Lei nº 9.263, de 1996 e a “novidade” do Essure),1010O procedimento da esterilização cirúrgica voluntária foi aprovado no Brasil, em 1996, pela Lei nº 9.263 de Planejamento Familiar, em seu art. 10. A laqueadura tubária está autorizada no SUS, mediante condições especificadas na legislação, por laparotomia, ou seja, um procedimento sob anestesia, com internação hospitalar, mediante abertura da cavidade abdominal para acesso às tubas uterinas. Ao contrário disso, a histeroscopia, utilizada para inserir o dispositivo Essure® nas tubas uterinas, é realizada em âmbito ambulatorial, sem anestesia, por um aparelho chamado histeroscópio, que o introduz via canal vaginal. sendo convencidas de modo apressado a aderirem a um “método revolucionário” por aconselhamento médico. Na ocasião, o fato de ser um procedimento ambulatorial (ao contrário da via tradicional), sem internação hospitalar, relativamente rápido, foi usado como grande atrativo, tendo em vista a expressiva sobrecarga destas mulheres com os cuidados domésticos e com os filhos, que sempre trazem inúmeras apreensões quando a ausência feminina do lar se faz necessária. Tal rapidez e agilidade anunciada na convocação médica contornava justamente a longa espera pela laqueadura no SUS, antes mencionada no trabalho de Auyero (2011aAUYERO, J. Patients of the State: an ethnographic account of poor people’s waiting. Latin American Research Review, Cambridge, v. 46, n. 1, p. 5-29, 2011., 2011bAUYERO, J. Vidas e política das pessoas pobres: as coisas que um etnógrafo político sabe (e não sabe) após 15 anos de trabalho de campo. Sociologias, Porto Alegre, v. 13, n. 28, p. 126-64, 2011.). E quando tudo se desmorona, qual a alegação médica ouvida? Elas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), consentindo no procedimento. Não as obrigamos. E seguem livres, em silêncio, alheios a toda essa confusão.

Um instrumento criado para proteger sujeitos de pesquisa, sendo usado na defesa de profissionais de saúde, retirando-lhes inteira responsabilidade por terem feito tais usuárias de “cobaia” para o treinamento médico e/ou estudos clínicos de avaliação do novo dispositivo em hospitais de grandes capitais, como o Hospital das Clínicas, da Universidade de São Paulo, o Hospital da Mulher Mariska Ribeiro (Prefeitura do Rio de Janeiro) ou o Hospital Materno-infantil de Brasília.1111Cf. “HMIB realiza o 2º Mutirão de Laqueadura Tubária” (2012); “Estudo do HC seleciona mulheres para realização de laqueadura” (2015); “Luz no controle definitivo da maternidade” (Rio de Janeiro, 2014). Em Brandão; Pimentel (2020), detalhamos mais essas estratégias de divulgação públicas ocorridas no país. Sabemos que uma modalidade usual de aprendizado médico diante da entrada no mercado de novos dispositivos tem sido recorrer a estudos em espaços hospitalares públicos, onde a demanda pelos atendimentos em saúde tem sido sempre crescente. Com todo o arsenal ético disponível, por que mulheres usuárias do SUS continuam sendo cobaias de novos artefatos ou procedimentos? Em todo o tempo de sua circulação no Brasil - 2009 a 2017 -, por que o dispositivo Essure não foi inserido em hospitais ou clínicas privados, tendo em vista o entusiasmo que cercou ginecologistas do país? A literatura sobre os vieses de gênero e raciais na ciência ou mesmo a corriqueira penetração de conflitos de interesses nas pesquisas clínicas não deixam dúvidas que estamos bem distantes de um horizonte da integridade ética na assistência e práticas clínicas.

Aqui cabe considerarmos a extrema sobreposição ou interpenetração entre práticas clínicas assistenciais e práticas de pesquisa nos serviços públicos de saúde (universitários ou não). Raramente estas duas dimensões importantes - assistência médica e pesquisa - estão claramente delimitadas e separadas, distinguindo-se os diversos objetivos e interesses em questão. A fluidez entre uma coisa e outra em ambientes hospitalares costuma ser naturalizada como algo corriqueiro e passar despercebida pela maioria dos(as) usuários(as) destes serviços. E nem sempre os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), nos quais tais estudos foram aprovados, ou mesmo a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), no Ministério da Saúde, conseguem acompanhar e monitorar de perto o detalhamento dos procedimentos e suas repercussões sociais, ou seja, o passo a passo de cada pesquisa e os impactos que ela pode provocar nos sujeitos de pesquisa a posteriori.

Essa história reflete exatamente o que Rosana Castro (2020CASTRO, R. Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica. São Paulo: Hucitec/Anpocs, 2020.) designa como “precariedades oportunas”, em seu trabalho etnográfico sobre experimentações farmacêuticas em contextos de pesquisas clínicas (ensaios clínicos randomizados) no Brasil. As múltiplas necessidades de cuidados em saúde que certos grupos sociais experimentam apresentam-se como oportunidades para associar à prestação daquele serviço assistencial a dimensão da investigação clínica, nem sempre explícita (no caso do dispositivo Essure). Como a autora discute magistralmente, classificações raciais (e de gênero) se imiscuem em estratégias biopolíticas que consolidam as inovações do mercado farmacêutico (medicamentos e biotecnologias) em escala global, com repercussões dramáticas nos países que recebem tais experimentos. Em outras palavras, a produção do conhecimento científico no campo da biomedicina se alimenta das muitas necessidades e precariedades vivenciadas por milhões de pessoas carentes de procedimentos ou tecnologias médicas.

É possível construirmos uma “ciência cidadã” (Akrich, 2010AKRICH, M. From comunities of practice to epistemic communities: health mobilizations on the internet. Sociological Research Online, [s. l.], v. 15, n. 2, p. 116-132, 2010.; Barthes et al., 2011BARTHE, Y.; AKRICH, M.; RÉMY, C. As investigações “leigas” e a dinâmica das controvérsias em saúde ambiental. Sociologias, Porto Alegre, n. 26, p. 84-127, 2011.; Rabeharisoa et al., 2014RABEHARISOA, V.; MOREIRA, T.; AKRICH, M. Evidence-based activism: patients’ organisations, users’ and activist’s groups in knowledge society. BioSocieties, London, v. 9, p. 111-128, 2014.)? Comprometida eticamente com os sujeitos de pesquisa e que não os infrinja danos? Soraya Fleischer (2022aFLEISCHER, S. “Ciência é luta”: devolução das pesquisas sobre o Vírus Zika em Recife - PE. Ilha, Florianópolis, v. 24, n. 3, e84126, p. 5-27, 2022a.; 2022bFLEISCHER, S. “Tudo bonitinho”: pensando ética na prática e pelo avesso nas pesquisas sobre o Vírus Zika no Recife/PE. Anthropológicas, Recife, v. 33, n. 1, p. 1-35, 2022b.) apresenta várias sugestões a partir da análise de um “anti-exemplo”, ou do que ela considera como a “ciência pelo avesso”, ao investigar os desencontros entre cientistas e mães de crianças com a síndrome congênita do zika vírus (SCZV), ao longo da epidemia no Recife nos anos 2015 e2016. A autora discute, de forma extremamente didática, a partir dos trabalhos de Jeannette Pols, como a ética científica pode ser dialogada e negociada entre as partes envolvidas, pesquisadores e sujeitos de pesquisa. A partir de dois argumentos inspirados em Pols, a consideração de que pacientes, cuidadores e sujeitos pesquisados produzem conhecimento, e a sugestão de que a ética seja pensada de modo empírico e relacional, Fleischer examina as críticas e contribuições que as mães e cuidadoras de crianças com a SCZV observam nas práticas cotidianas de assistência clínica e de pesquisa a seus filhos.

Inspirada pela extrema força e tenacidade das mulheres “vitimas do Essure” que aprenderam, ainda doentes, a se comunicar com a imprensa, a circular por corredores do parlamento ou gabinetes parlamentares, a dialogar com autoridades médicas, gestores públicos, advogados, a administrar grupos virtuais, a se comunicar em outra língua com e-sisters1212Assim elas se auto-designam em alusão à solidariedade virtual criada entre usuárias do dispositivo em todo o mundo. (Cf. Brandão, 2023). de outros países, a desafiar a autoridade masculina imantada no poder médico, um empreendimento colaborativo (Barthes et al 2011BARTHE, Y.; AKRICH, M.; RÉMY, C. As investigações “leigas” e a dinâmica das controvérsias em saúde ambiental. Sociologias, Porto Alegre, n. 26, p. 84-127, 2011.) pode ser possível, desde que haja abertura para o diálogo e a descoberta de eventuais causalidades que possam “atestar” a relação denegada entre sintomas e o dispositivo. As tão propaladas “evidências científicas” que comprovariam, eliminando as muitas dúvidas que pairam no ar, a relação entre o dispositivo Essure e tais efeitos colaterais sentidos pelas mulheres.

Assim, penso se não poderíamos contrapor nesse processo de investigação das “verdades” ocultas entre dispositivo (causa) e sofrimento (efeito), as evidências “testemunhais” (Akrich, 2010AKRICH, M. From comunities of practice to epistemic communities: health mobilizations on the internet. Sociological Research Online, [s. l.], v. 15, n. 2, p. 116-132, 2010.) baseadas nos depoimentos de inúmeras mulheres vítimas que adoeceram em razão do dispositivo. Por que a palavra destas mulheres não tem peso diante à ciência médica? Por que seus testemunhos são tomados como “vagos”, aludidos como derivados de problemas psicológicos difusos ou ginecológicos, típicos de mulheres em idade reprodutiva? Ainda temos muito que aprender e dialogar entre campos disciplinares distintos (ciências da saúde e ciências sociais) se desejamos construir alianças entre conhecimentos advindos de diversas matrizes epistemológicas (leigos ou de diferentes experts) e o comprometimento tácito ético-político com nossos “sujeitos de pesquisa”.

Em trabalho sobre o não reconhecimento pelos profissionais de saúde dos efeitos colaterais provocados pelo dispositivo intrauterino (DIU) de cobre a muitas mulheres em contexto sueco (Gunnarsson; Wemrell, 2023GUNNARSSON, L.; WEMRELL, M. The different facets of ‘experiential knowledge’ in Swedish women’s claims about systemic side effects of the copper intrauterine device. Sociology of Health & Illness, [s. l.], v. 45, n. 7, p. 1483-1501, 2023.), as autoras propõem a discussão do conceito de “conhecimento experiencial” (experiential knowledge) como contraponto aos conhecimentos médicos estritos e forma de resistência epistêmica na direção da inclusão do ponto de vista e conhecimentos das mulheres usuárias do DIU de cobre na discussão sobre tal método contraceptivo e suas dificuldades de utilização no cotidiano.Elas apontam que o conhecimento experiencial tem sido um recurso epistêmico chave usado por pessoas leigas para contestar autoridade médica e construir novos conhecimentos relativos à saúde (Gunnarsson; Wemrell, 2023GUNNARSSON, L.; WEMRELL, M. The different facets of ‘experiential knowledge’ in Swedish women’s claims about systemic side effects of the copper intrauterine device. Sociology of Health & Illness, [s. l.], v. 45, n. 7, p. 1483-1501, 2023., p. 1484). Em investigação com usuárias do DIU e suas interações em ambiente virtual, elas elucidam três componentes ou estágios deste conhecimento: o conhecimento somático (baseado nos efeitos colaterais sentidos), a validação coletiva (conhecimento de outras mulheres com sintomas semelhantes por meio de grupos virtuais), e auto-experimentação (avaliação comparativa após a retirada do DIU dos sintomas inexistentes). Creio que tal acepção poderá ser um elemento fundamental na continuidade desta reflexão, na direção do aprofundamento da compreensão das disputas epistêmicas entre as mulheres usuárias do Essure e o establishment de saúde.

Considerações finais

A ciência não possui um arcabouço teórico-metodológico único, coeso e homogêneo como às vezes se idealiza nas imagens que circulam entre nós. Como qualquer outro campo de saberes e fazeres, possui tensões sociais, éticas e políticas, disputas acirradas por prestígio (financiamento), reconhecimento (validação) e poder, consolidando-se no caso da saúde, em alguns momentos, às custas do adoecimento e do sofrimento de muitos. Episódios históricos, como o caso Tuskegee nos EUA, nos anos de 1930; os ensaios clínicos da pílula anticoncepcional com mulheres em Porto Rico, nos anos de 1950; o caso de Henrietta Lacks, nos anos de 1950, também nos EUA; e de Sarah Baartman (Sarah Baartman..., 2021SARA BAARTMAN (1789-1815). Biografias de Mulheres Africanas, Porto Alegre, 28 jan. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.ufrgs.br/africanas/sara-baartman-1789-1815/ >. Acesso em: 10 dez. 2023.
https://www.ufrgs.br/africanas/sara-baar...
), no século XIX, na Europa, não nos deixam esquecer o quanto o racismo científico está presente entre nós, sendo atualizado diariamente em práticas científicas tomadas como “dádivas” aos que não têm condições sociais e materiais de adquirir bens (insumos) e serviços.

Fazer pesquisa sob o referencial antropológico significa estabelecer interlocuções com sujeitos diversos, manter relações de reciprocidade, trabalhar com nossas posições subjetivas e ético-políticas que não podem ser alijadas desse ofício, estar comprometida moralmente com a divulgação pública de nossos resultados e com os objetos de estudo que abraçamos ao longo da nossa carreira acadêmica e de ativistas na sociedade que vivemos. Também significa sempre estarmos autovigilantes para rever nossas posturas epistêmicas, aprender com colegas que nos sinalizam vieses e deslizes passíveis de ocorrer em razão de nossa formação eurocêntrica, colonial, racista e marcada pelas hierarquias de gênero.

Este tema é objeto de debates e publicações ao longo das últimas décadas (Fleischer; Schuch, 2010FLEISCHER, S.; SCHUCH, P. (Org.). Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília, DF: Letras Livres: Editora Universidade de Brasília, 2010.; Grossi et al., 2018GROSSI, M. P. et al. (Org.). Trabalho de campo, ética e subjetividades. Tubarão: Editoras Tribo da Ilha e Copiart, 2018.), nos evidenciando o quanto ainda precisamos dialogar, aprender e superar nossos equívocos no tocante a uma ciência plural, engajada e cidadã, não distante da sociedade que a produz. Pode parecer maniqueísta da minha parte opor - para efeitos didáticos neste texto - posturas profissionais e científicas correntes com as quais nos deparamos no SUS, que podem inclusive não serem balizadas como tal pelos próprios trabalhadores em saúde e/ou usuários e meu olhar crítico, feminista, forjado no longo processo de imersão no tema e no desconforto que ele tem me provocado, resistindo a aceitar que essa seja mais uma dentre tantas violações aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no Brasil. Como essa história não termina aqui, nem para mim, nem para minhas interlocutoras, vamos continuar desafiando supostas verdades incontestes pelos anos à frente.

Retomando o mal-estar na pesquisa que gerou o artigo, espero ter conseguido trazer à luz o quanto o silenciamento (das usuárias do Essure e da pesquisadora), a longa espera (das mulheres como “pacientes do Estado” e como pesquisadora feminista que anseia por mudanças sociais) e a invalidação do conhecimento não médico (seja da experiência das mulheres ou dos saberes da pesquisadora) poderão também abrir uma fecunda via de análise na direção de uma outra ciência, de uma ciência cidadã, baseada na participação social efetiva de todas aquelas envolvidas na investigação, na colaboração genuína de pesquisadoras e sujeitos de pesquisa.1313Agradeço a uma das revisoras que me apresentou a categoria “dororidade”, proposta por Vilma Piedade (2017), a partir de uma crítica às limitações da categoria “sororidade”. Espero poder utilizá-la em trabalhos futuros, em razão do tempo limitado para a revisão.

Referências

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  • 1
    A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob o número CAAE: 22637219.5.0000.5286. Artigo submetido para o dossiê “Ética e campos sensíveis de pesquisa: afetos, subjetividades e emoções em cena”. Organização: Jaqueline Ferreira (IESC/UFRJ) e Ivia Maksud (IFF/Fiocruz). Fonte de financiamento: CNPq PQ (Processo nº 307789/2022-5).
  • 2
    A autora agradece às colegas Jaqueline Ferreira e Soraya Fleischer pela leitura atenciosa e comentários críticos recebidos ao manuscrito.
  • 3
    A audiência pública da Alerj encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Er0LI1YGG5M. Em outra audiência pública, realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados, em Brasília, em 16 de agosto de 2021, a expressão “cobaia” também foi utilizada pela representante das “vítimas do Essure”, coordenadora das mobilizações das usuárias na capital do país. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/795055-representante-de-vitimas-do-contraceptivo-essure-diz-que-brasileiras-foram-usadas-como-cobaias/. Acesso em: 10 dez. 2023. O vídeo desta audiência está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bDxkrc2H89k. Acesso em: 10 dez. 2023.
  • 4
    A lista de sintomas inclui uma variedade de problemas tais como: gravidez indesejada, dores crônicas, cólicas abdominais, sangramentos contínuos, desconforto pélvico, dores no ato sexual, falta de libido, dores de cabeça, ganho de peso, fibromialgia, depressão, problemas na pele, queda de cabelo, perfuração de trompas ou útero, migração do dispositivo, alergias e diversos sintomas sugestivos de sensibilidade e reações imunológicas associadas ao níquel-titânio, usado no dispositivo (DEPOIMENTO, [2023]DEPOIMENTOS. Vítimas do Essure BR, [s. l.], [2023]. Disponível em: <Disponível em: https://vitimasdoessure.wixsite.com/vitimasdoessurebr/noticias-no-brasil > Acesso em: 13 dez. 2023.
    https://vitimasdoessure.wixsite.com/viti...
    ).
  • 5
    Acompanhei de perto o debate público sobre o dispositivo contraceptivo Norplant (um implante subdérmico hormonal), na década de 1990, no Brasil (Correa, 1994CORREA S. O Norplant nos anos 90. Peças que faltam. Estudos Feministas, Florianópolis, p. 86-98, 2 sem. 1994. Número especial.; Israel; Dacah, 1993ISRAEL, G.; DACACH, S. As rotas do Norplant: desvios da contracepção. Rio de Janeiro: Redeh, 1993.; Oliveira, 1998OLIVEIRA, F. Biotecnologias de procriação e bioética. Cadernos Pagu, Campinas, n. 10, p. 53-81, 1998.; Pimentel el al., 2017PIMENTEL, A. C. L. et al. A breve vida do Norplant no Brasil: controvérsias e reagregações entre ciência, sociedade e Estado. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 43-52, 2017.), além do debate sobre as esterilizações compulsórias realizadas preponderantemente nas regiões Norte e Nordeste, na década de 1980, e das violações cotidianas ao direito ao aborto, que persistem na sociedade brasileira. Nesse sentido, as violações aos corpos e direitos das mulheres constituem dimensão estruturante do legado colonial, tematizado pelos movimentos feminista e antirracista.
  • 6
    No primeiro trabalho sobre esse tema (Brandão; Pimentel, 2020BRANDÃO, E. R.; PIMENTEL, A. C. L. Essure® no Brasil: desvendando sentidos e usos sociais de um dispositivo biomédico que prometia esterilizar mulheres. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 1, e200016, 2020.), citamos um artigo no qual a primeira autora, uma médica de São Paulo, declarava que “realiza consultorias para a empresa Commed”, a única empresa que comercializou o dispositivo Essure no território nacional, a qual lucrou imensamente com sua venda (Cf. Depes et al., 2016DEPES, D. B. et al. Experiência inicial com a oclusão tubária por via histeroscópica (Essure). Einstein, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 130-134, 2016., p. 130).
  • 7
    O Essure é um artefato biomédico composto por molas de aço inoxidável, revestidas por capa de níquel-titânio com polietileno (PET), medindo aproximadamente 4 centímetros e com espessura de um fio de cabelo, cuja inserção ocorre através do canal vaginal por aparelho histeroscópio que direciona as molas até o interior das duas tubas uterinas (Brandão; Pimentel, 2020BRANDÃO, E. R.; PIMENTEL, A. C. L. Essure® no Brasil: desvendando sentidos e usos sociais de um dispositivo biomédico que prometia esterilizar mulheres. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 1, e200016, 2020.). Para uma apreciação dos problemas de saúde identificados, consulte Parant et al., (2020PARANT, F. et al. Potential release of toxic metal elements from Essure device in symptomatic patients: first results of the French Ablimco cohort. European Journal of Obstetrics & Gynecology and Reproductive Biology, Birmingham, n. 252, p. 434-438, 2020.) e o site do Food and Drug Administration (FDA). Disponível em: https://www.fda.gov/medical-devices/essure-permanent-birth-control/fda-activities-related-essure e https://www.fda.gov/medical-devices/essure-permanent-birth-control/problems-reported-essure. Acesso em: 10 dez. 2023.
  • 8
    Nos EUA, as mulheres vítimas se organizaram em grupos virtuais “Essure Problems”, canalizando as milhares de denúncias à FDA, agência reguladora daquele país. Disponível em: https://www.fda.gov/medical-devices/essure-permanent-birth-control/problems-reported-essure. Acesso em: 10 dez. 2023.
  • 9
    Cf. Dantas (2023aDANTAS, A. C. L. Desarmar a bomba-relógio: compreensões jurídicas sobre a prova em pedidos para a retirada cirúrgica do contraceptivo Essure. Feminismos, Salvador, v. 11, n. 2, 2023a.), em sua análise sobre o acolhimento das demandas de retirada do dispositivo Essure, apresentadas por mulheres vítimas no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
  • 10
    O procedimento da esterilização cirúrgica voluntária foi aprovado no Brasil, em 1996, pela Lei nº 9.263 de Planejamento Familiar, em seu art. 10. A laqueadura tubária está autorizada no SUS, mediante condições especificadas na legislação, por laparotomia, ou seja, um procedimento sob anestesia, com internação hospitalar, mediante abertura da cavidade abdominal para acesso às tubas uterinas. Ao contrário disso, a histeroscopia, utilizada para inserir o dispositivo Essure® nas tubas uterinas, é realizada em âmbito ambulatorial, sem anestesia, por um aparelho chamado histeroscópio, que o introduz via canal vaginal.
  • 11
    Cf. “HMIB realiza o 2º Mutirão de Laqueadura Tubária” (2012HMIB REALIZA O 2º Mutirão de Laqueadura Tubária. Agência Brasília, Brasília, DF, 17 out. 2012. Disponível em: <Disponível em: https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2012/10/17/hmib-realiza-o-2o-mutirao-de-laqueadura-tubaria/ >. Acesso em: 19 jul. 2023.
    https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/20...
    ); “Estudo do HC seleciona mulheres para realização de laqueadura” (2015ESTUDO DO HC seleciona mulheres para realização de laqueadura. Agência USP de Notícias, São Paulo, 5 fev. 2015. Saúde. Disponível em: <Disponível em: https://www5.usp.br/noticias/saude-2/ginecologia-do-hc-seleciona-mulheres-para-procedimento-de-laqueadura-endoscopica/ >. Acesso em: 19 jul. 2023.
    https://www5.usp.br/noticias/saude-2/gin...
    ); “Luz no controle definitivo da maternidade” (Rio de Janeiro, 2014LUZ NO CONTROLE definitivo da maternidade. Portal do Servidor, Rio de Janeiro, 17 nov. 2014. Disponível em: <Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/portaldoservidor/exibeconteudo?id=5065868 >. Acesso em: 19 jul. 2023.
    http://www.rio.rj.gov.br/web/portaldoser...
    ). Em Brandão; Pimentel (2020BRANDÃO, E. R.; PIMENTEL, A. C. L. Essure® no Brasil: desvendando sentidos e usos sociais de um dispositivo biomédico que prometia esterilizar mulheres. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 1, e200016, 2020.), detalhamos mais essas estratégias de divulgação públicas ocorridas no país.
  • 12
    Assim elas se auto-designam em alusão à solidariedade virtual criada entre usuárias do dispositivo em todo o mundo. (Cf. Brandão, 2023BRANDÃO, E. R. E-sisters: irmandade digital entre corpos-sujeitos para retirada do dispositivo de esterilização Essure®. Antropolítica, Niterói, v. 55, n. 3, e56526, 2023.).
  • 13
    Agradeço a uma das revisoras que me apresentou a categoria “dororidade”, proposta por Vilma Piedade (2017PIEDADE, V. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017.), a partir de uma crítica às limitações da categoria “sororidade”. Espero poder utilizá-la em trabalhos futuros, em razão do tempo limitado para a revisão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2023
  • Revisado
    11 Out 2023
  • Aceito
    17 Out 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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