Do olhar da espiral caleidoscópica do cuidado

From the look of the kaleidoscopic spiral of care

Helvo Slomp Junior Maria Paula Cerqueira Gomes Túlio Batista Franco Emerson Elias Merhy Sobre os autores

Resumo

O campo da saúde tem como referente central e “alma” a produção do cuidado, um conceito polissêmico e polifônico, com um uso ubíquo, envolvido em disputas de sentidos. Propõe-se uma distinção entre cuidado e clínica, esta tida como uma construção sociotécnica que pode ou não ser subsumida pelo cuidado. Toma-se os conceitos de perspectivismo e de regimes de verdade como referenciais teóricos para as análises sobre o que pode ser enunciado como o cuidado em certo tempo e lugar: uma produção de mundos e de sentidos. Engendra-se uma espiral caleidoscópica intercessora para analisar tais sentidos, chegando a três grupos de perspectivas: o cuidado em saúde como um equivalente geral de práticas em saúde e intervenções clínicas, o cuidado em saúde como uma clínica integral e emancipatória, e o cuidado em saúde como uma micropolítica no encontro intercessor. São múltiplos mundos que carregam suas próprias verdades e as disputam entre si, por vezes misturando-se em composições de sentidos. Um marcador ético-estético-político que propomos para o uso do conceito cuidado em saúde seria a produção de mais vida nas vidas vividas.

Palavras-chave:
Cuidado; Cuidados Integrais de Saúde; Prática Integral de Cuidados de Saúde

Abstract

The field of health has as its central reference and “soul” the production of care, a polysemic and polyphonic concept, with a ubiquitous, involved in disputes over meanings. A distinction between care and clinic was proposed, the latter considered a socio-technical construction that may or may not be subsumed by care. The concepts of perspectivism and truth regimes were taken as theoretical references for the analysis of what can be enunciated as care in a certain time and place: a production of worlds and meanings. An intercessory kaleidoscopic spiral was engendered to analyze those meanings, finding three groups of perspectives: health care as a general equivalent of health practices and clinical interventions, health care as an integral and emancipatory clinic, and health care as a micropolitics in the intercessory encounter. They are multiple worlds that carry their own truths and dispute between themselves, sometimes mixing in compositions of senses. An ethical- aesthetic-political marker that we propose for the use of the health care concept would be the production of more life in the lived lives.

Keywords:
Empathy; Comprehensive Health Care; Integral Healthcare Practice

Primeira aproximação

Ao falarmos sobre ou pensarmos sobre o que tem sido chamado de “cuidado” em saúde, nos parece que estamos diante de um conceito polissêmico e polifônico. Além de muitos sentidos serem veiculados por esta única e tão onipresente palavra, tais sentidos dependem da voz que o emite, do ponto de vista, das circunstâncias práticas, e ainda de qual é o problema frente ao qual tal conceito se faz necessário. Não poderia ser diferente:

Com diferentes arranjos ao longo do tempo e segundo os diferentes modos de vida, cuidar tem algo a ver com solidariedade, com suporte, com apoio, com produção de vida. Não é tema exclusivo da saúde. É tema da produção do humano, da construção da teia de relações e encontros que conformam a vida. (Feuerwerker, 2016FEUERWERKER, L. C. M. Cuidar em saúde. In: FEUERWERKER, L. C. M.; BERTUSSI, D. C.; MERHY, E. E. (Org.). Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis, 2016. Volume 2, p. 35-47. Disponível em: <Disponível em: http://historico.redeunida.org.br/editora/biblioteca-digital/colecao-micropolitica-do-trabalho-e-o-cuidado-em-saude/politicas-e-cuidados-em-saude-livro-2-avaliacao-compartilhada-do-cuidado-em-saude-surpreendendo-o-instituido-nas-redes >. Acesso em: 15 out. 2023.
http://historico.redeunida.org.br/editor...
, p. 35)

Nesse sentido, entendemos que a vida pede o cuidado, e que no campo da saúde, inextricavelmente ligado ao tema da vida, costuma-se tomar o cuidado como se ele fosse uma produção desta área. O cuidado é um tema fundamental para todos os que atuam no setor saúde, que é valorado imaginária e simbolicamente como pertencente a ele, como mesmo um definidor deste campo. É neste debate que pretendemos situar este ensaio.

Reconhecemos a amplitude desse tema, mesmo que materializado em uma única palavra, e que, portanto, só pode ser carregada de sentidos, sentidos atravessados por intensidades capazes de produzir, de forma recorrente, para parodiar o título da obra do escritor Rubem Fonseca, vastas confusões e pensamentos imperfeitos. Em se tratando de saúde, tudo pode vir a ser chamado “cuidado”, ao ponto em que por vezes nossos discentes nos perguntam, em sala de aula: “professor(a), mas o que é cuidado, mesmo?”. É uma boa pergunta!

Nossa hipótese é a de que correm rios de disputas de sentidos por dentro do conceito de cuidado em saúde. Ao mesmo tempo, percebemos uma banalização de alguns desses sentidos pelo desgaste da palavra em seu uso ubíquo e “descuidado”. Por outro lado, é possível entender isso como parte do jogo semiótico que um conceito com tal potência faz acontecer, e nem de longe pretendemos sugerir que poderia haver um significado “correto” ou “verdadeiro” para esta palavra. Queremos entender um pouco sobre o que corre por aí, claro que posicionando nosso ponto de vista, entre outros. Seria possível tomar o cuidado como conceito, no campo da saúde? Se considerarmos que “conceito é o que impede que o pensamento seja uma simples opinião, um conselho, uma discussão, uma tagarelice. Todo conceito é forçosamente um paradoxo” (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010., p. 14). O usuário sentir-se ou não cuidado é o que possibilita a existência do conceito? Tentaremos problematizar estas e outras questões neste texto.

Um de nós já coescreveu que “o cuidado (e não a clínica) é a alma dos serviços de saúde e a estratégia radical para defesa da vida” (Merhy; Feuerwerker, 2016MERHY, E. E.; FEUERWERKER, L. C. M. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: MERHY, E. E. et al. (Org.). Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis, 2016. Volume 1, p. 59-72., p. 68). Tal afirmação se faz importante enquanto delimitação entre as diferentes dimensões tecnológicas que se entrelaçam no mundo do trabalho em saúde: a das tecnologias leve-duras (códigos cognitivos que sustentam o saber-fazer na saúde) e duras (equipamentos e insumos para os procedimentos clínicos), e a das tecnologias leves (as relações entre viventes em encontros intercessores) (Merhy; Feuerwerker, 2016)MERHY, E. E.; FEUERWERKER, L. C. M. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: MERHY, E. E. et al. (Org.). Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis, 2016. Volume 1, p. 59-72.. Segundo este ponto de vista, que adotamos neste texto, há uma clara distinção entre o cuidado e a clínica, sendo a segunda, enquanto construção sociotécnica, um dos conjuntos tecnológicos para o primeiro, podendo até mesmo ser subsumida por este. Este é um entre muitos dos pontos de vista que disputam o conceito de cuidado. Voltaremos a ele quando falarmos do cuidado na micropolítica do encontro, mas antes consideremos como pensamos esta disputa: como um entrelaçamento de perspectivas em uma espiral de sentidos.

O cuidado enquanto diferentes perspectivismos e regimes de verdade

É importante posicionarmos a maquinaria conceitual que buscamos para nos ajudar a pensar o problema colocado acima. Tomamos aqui o conceito de perspectivismo ameríndio operado por Viveiro de Castro, utilizado na sua obra para tratar o modo como humanos, animais e espíritos veem a si mesmos e aos outros seres do mundo (Castro, 2015CASTRO, E. V. de. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.; Sztutman, 2007SZTUTMAN, R. (Org.). Eduardo Viveiros de Castro: encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007.). Debatendo na antropologia, o autor coloca o problema da inversão realizada pelo pensamento indígena americano com relação ao pensamento ocidental moderno no que se refere à produção do conhecimento. Em nosso meio, a produção do conhecimento tenderia ao objetivismo e à dessubjetivação do “objeto” de estudo, mesmo quando este é um “sujeito”. Uma consequência é a construção teórica de que há uma natureza única e fixa na qual se imiscuem diferentes culturas, um único mundo visto por diferentes pontos de vista (Castro, 2015CASTRO, E. V. de. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.; Sztutman, 2007SZTUTMAN, R. (Org.). Eduardo Viveiros de Castro: encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007.).

Ao contrário, para o olhar ameríndio, “conhecer é ‘personificar’, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido. Ou antes, daquele; pois a questão é a de saber ‘o quem das coisas’ (Guimarães Rosa) […]. A forma do Outro é a pessoa” (Castro, 2015CASTRO, E. V. de. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 50). Logo, não se trata mais de conhecer uma coisa em si, porque todo fato ou evento relaciona-se com uma ação, uma intencionalidade. Não há “coisas” inertes, e para o pensamento ameríndio tudo no mundo - seres vivos e inanimados - é humano (Castro, 2015)CASTRO, E. V. de. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.. No pensamento ameríndio há diferentes mundos que se interpenetram, e cada corpo assume seu ponto de vista, sendo o mundo habitado por múltiplos perspectivismos ou pontos de vista, cada um deles produzindo seu próprio mundo. Merhy (2015MERHY, E. E. Le “viste dei punti di vista”: Tensioni all’interno dei programmi di “salute della famiglia” e possibili strategie di intervento. In: MERHY, E. E.; STEFANINI, A.; MARTINO, A. (Org.). Problematizzando epistemologie in salute colettiva saperi dalla Cooperazione Brasile e Italia. [S. l.]: Editora da Rede Unida/CSI-Unibo, 2015. p. 127-138.) propõe que, nesta multiplicidade de mundos, cada ponto de vista ainda admite, por sua vez, múltiplas “vistas”, diferentes vistas dos pontos de vista, sendo estas, portanto, infinitas.

Usaremos aqui o perspectivismo, emprestado de Viveiro de Castos, como ferramenta analítica. Desta vez, não para olhar para o pensamento ameríndio, mas sim para o cuidado. Outra hipótese é a de que cuidado também produz diferentes significados a depender de quem o enuncia, de onde está posicionada esta perspectiva, e a partir de que vista e de que ponto de vista.

Ao fazermos o exercício de pensar que existem diferentes concepções de cuidado em saúde como produções de diferentes mundos ou diferentes perspectivas, ainda que entrelaçadas, poderíamos pensar também que tal perspectivismo implica práticas discursivase não discursivasque disputam asverdades em jogo. Tomamos “verdade”, aqui, no sentido proposto por Michel Foucault:

Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” - entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”; entendendo-se também que não se trata de um combate “em favor” da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha. (Foucault, 2010FOUCAULT, M. Verdade e poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. p. 1-14., p. 13)

Portanto, ao convidarmos o conceito deste autor, não pretendemos disputar a veracidade de nossos enunciados sobre o cuidado em saúde frente a outros, e, sim, nos concentrarmos nas diferenças entre aqueles enunciados que, ao nosso ver, seriam os principais regimes discursivos sobre o tema:

O que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como estes se regem entre si para constituir um conjunto de proposições aceitáveis cientificamente e, consequentemente, susceptíveis de serem verificadas ou infirmadas por procedimentos científicos. […] este problema do “regime discursivo”, dos efeitos de poder próprios do jogo enunciativo. (Foucault, 2010FOUCAULT, M. Verdade e poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. p. 1-14., p. 4)

Um regime de verdade, para o autor, teria algumas características: a forma de um discurso científico, uma incitação e um controle por aparelhos econômicos e políticos (escritura, meios de comunicação, Estado, universidades), e uma grande difusão e consumo, levando a disputas no campo político e ideológico (Foucault, 2010FOUCAULT, M. Verdade e poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. p. 1-14.).

Entendemos que as diversas perspectivas adotadas produzem regimes de verdade sobre o cuidado em saúde em nossas sociedades. Eis a maquinaria conceitual que nos ajudará a construir o dispositivo analítico que denominamos espiral caleidoscópica do cuidado.

A espiral caleidoscópica do cuidado

Orientando-nos a partir dos referenciais que expusemos acima, e de um exercício que fizemos em Slomp Junior, Franco e Merhy (2022)SLOMP JUNIOR, H.; FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. O cuidado e sua relação com a clínica e a atenção à saúde. In: SLOMP JUNIOR, H.; FRANCO, T. B.; MERHY, E. (Org.). Projeto terapêutico singular como dispositivo para o cuidado compartilhado. [S.l.]: Editora Rede Unida, 2022. p. 24-51. DOI: 10.18310/9788554329778
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, comentaremos a seguir três grandes grupos de perspectivas/regimes de verdade: o cuidado em saúde como um equivalente geral de práticas de saúde e intervenções clínicas, o cuidado em saúde como uma clínica integral e emancipatória, e o cuidado em saúde como uma micropolítica no encontro intercessor.

No entanto, ao iniciarmos a preparação deste trabalho, nos deparamos com um primeiro problema: tais conceitos não são estanques e nem mutuamente exclusivos entre si. Cada um dos três pontos de vista acima admitem ainda diversas vistas, em especial o segundo e o terceiro, e também se combinam entre si em maior ou menor grau, a depender da força de produção de mundos que cada uma das três vertentes arregimenta em cada espaço e tempo. As três perspectivas giram sobre si mesmas e compõem-se em diferentes forças de acordo com os movimentos produzidos pelos personagens que se encontram nos acontecimentos do/no cuidado, como se inúmeras situações singulares de cuidado produzissem diferentes atualizações semióticas, como se girassem caleidoscopicamente em uma espiral (Figura 1).

Figura 1
A espiral caleidoscópica do cuidado

Ofertamos, portanto, esta figura geométrica como um dispositivo, uma engenhoca conceitual intercessora. Isto porque entendemos que os intercessores, ao se forjarem nos encontros, fazem com que cada pensamento no qual se atribui sentidos para o cuidado nos façam desviar da resposta rápida, pronta, do repertório já dado, abrindo as portas para a criação no/do cuidado:

Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê (Deleuze, 2008DELEUZE, G. Os intercessores. In: DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2008. p. 151-168., p. 156).

A ideia é que a espiral caleidoscópica do cuidado nos permita produzir tanto certa assimilação cumulativa de dimensões que o conceito vai tomando, quando se transita de um ponto de vista a outro, seja no sentido de abertura ou de fechamento da espiral, quanto um posicionamento de marcos de tensão. A seguir faremos o primeiro ensaio do uso deste dispositivo.

O cuidado em saúde como um equivalente geral das práticas em saúde e intervenções clínicas

Tomemos “práticas de saúde” como o conjunto de fazeres que produzem as ações necessárias ao cuidado, no interior dos serviços de saúde, e que incluem as intervenções clínicas, relativas às várias profissões da saúde, configurando-se como “atos produtivos, pois modificam alguma coisa e produzem algo novo” (Merhy; Feuerwerker, 2016, p. 63)MERHY, E. E.; FEUERWERKER, L. C. M. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: MERHY, E. E. et al. (Org.). Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis, 2016. Volume 1, p. 59-72.. Todo o agir tecnológico produzido e recebido, tornado concretude no cotidiano dos serviços e nos cenários das ações sanitárias, pode ser então visto como prática em saúde, tenha ele qual configuração tiver.

Neste primeiro ponto de vista tudo isso é “cuidado” em saúde, sem que haja preocupação com distinguir alguma prática que não seria do âmbito do cuidado. Cruz (2009CRUZ, M. C. C. O conceito de cuidado em saúde. 2009. 150 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Comunitária) - Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.), em uma revisão sobre o conceito de cuidado em saúde, identifica três dimensões: a técnico-científica, a subjetivo- relacional e a sócio-política. Na primeira delas, entendida como os saberes e instrumentos cientificamente comprovados para intervenções procedimentais por profissionais de saúde, informa que:

Algumas das publicações selecionadas refletem a concepção do senso comum ao considerar o cuidado à saúde como um conjunto de procedimentos orientados pela ciência e pela técnica, realizados por um profissional especialista competente, visando o bom êxito de um determinado tratamento de modo a alcançar a remissão de sintomas, a eliminação de doenças. (Cruz, 2009CRUZ, M. C. C. O conceito de cuidado em saúde. 2009. 150 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Comunitária) - Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009., p. 78)

Ora, faz sentido, se pensarmos que qualquer usuário(a)-cidadão(ã) pode precisar de um determinado procedimento, cirúrgico, por exemplo, e quando obtém acesso a ele pode se sentir mesmo sob “cuidados”, não importando aqui o modo como aconteceu o procedimento. Neste caso, quem o pratica ou quem reflete sobre ele poderia também chamá-lo de “cuidado cirúrgico”.

Na dimensão coletiva da organização das práticas de saúde também é possível identificar uma circulação do conceito de cuidado como um equivalente das práticas assistenciais em geral, agora tomadas na dimensão organizacional em rede. Uma revisão sobre o tema da “coordenação do cuidado” no contexto da atenção primária à saúde brasileira (Almeida et al., 2018ALMEIDA, P. F. de et al. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, p. 244-260, set. 2018. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/j/sdeb/a/N6BW6RTHVf8dYyPYYJqdGkk/abstract/?lang=pt >. Acesso em: 17 ago. 2021.
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), por exemplo, não deixa de posicionar a preocupação das autoras com a orientação de serviços de saúde a partir das necessidades dos usuários. No entanto, a análise do estudo é estruturada em três dimensões consideradas no texto como centrais: “posição da Estratégia Saúde da Família na rede assistencial; integração entre níveis assistenciais e interfaces com a regulação assistencial; e integração horizontal com outros dispositivos de atenção e cuidado no território” (Almeida et al., 2018, p. 244)ALMEIDA, P. F. de et al. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, p. 244-260, set. 2018. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/j/sdeb/a/N6BW6RTHVf8dYyPYYJqdGkk/abstract/?lang=pt >. Acesso em: 17 ago. 2021.
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. É incomum que este ponto de vista, do cuidado como um equivalente geral das práticas em saúde e intervenções clínicas, quando veiculado, seja acompanhado de uma explicitação conceitual. Ao contrário, com frequência escreve-se e fala-se de “cuidado”, nesta perspectiva, como se fora um a priori conceitual, sendo tarefa de cada leitor(a) interpretar o sentido que o conceito traz em cada publicação ou discurso oral.

Este mundo onde “tudo na saúde é cuidado” ocupa o início do traçado de nossa espiral, seus primeiros giros, mas seguirá percorrendo toda a espiral em menor ou maior grau, pois que sempre se acaba voltando a ele ou compondo com ele, nem que seja numa fala rápida.

O cuidado em saúde como produto de uma clínica integral e emancipatória

Agora passamos para um grupo de perspectivas sobre o cuidado em saúde que, de um modo geral, passam a ser vistas acima de tudo como estratégias para mudanças. As necessidades em saúde dos(as) usuários(as) e a integralidade é que ocupam agora a centralidade do olhar de autores que, mesmo não utilizando a palavra cuidado, deixam claro que nem toda prática em saúde e nem toda intervenção clínica superam a objetivação do usuário e o reducionismo no pensar e agir na saúde (Mattos, 2004MATTOS, R. A. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, p. 1411-1416, out. 2004. DOI: 10.1590/S0102- 311X2004000500037
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). Agora opera-se “cuidado” em outro registro discursivo: como um projeto para produzir outro tipo de mundo da saúde, diferente do que temos hegemonicamente constituído no plano dos serviços de saúde.

Tal perspectiva é própria aos movimentos da reforma sanitária na América Latina a partir dos anos 1970, e no Brasil quando da própria constituição do campo chamado “saúde coletiva” (Almeida Filho; Paim, 1999)ALMEIDA FILHO, N.; PAIM, J. S. La crisis de la salud pública y el movimiento de la salud colectiva en Latinoamérica. Cuadernos Médico Sociales, Rosario, v. 75, p. 5-30, 1999.. Alguns autores já preferiam, desde os vários começos deste processo histórico-social, enunciar de outro modo as práticas em saúde, pois era preciso destacar aquelas de fato comprometidas com certos valores:

Desta forma, consideramos como cuidado, em geral, um processo de trabalho, que se compõe de conhecimentos corporificados em instrumentos e condutas (nível técnico) e uma relação social específica (nível social), satisfazendo as necessidades determinadas pela experiência histórica dos sujeitos diante do modo de andar a vida. (Arouca, 2003AROUCA, S. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São Paulo: Unesp; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003., p. 220)

Ou seja, os procedimentos e intervenções em saúde, de um modo geral, não mais trariam os valores referentes ao cuidado automaticamente indexados a eles. Surgia outra categoria de práticas em saúde: aquelas que dependem de um olhar para os sujeitos e suas vidas, necessidades e relações sociais. Neste ponto de vista, nem tudo o que se faz como procedimento diagnóstico, terapêutico ou preventivo é, a priori, cuidado. Pode vir a ser, desde que opere com base em um conceito não restritivo de saúde, que leve em consideração o “outro lado”: tudo o que necessite e deseje o(a) usuário(a).

Concretamente, ainda estamos no território das ações clínicas, mas agora enriquecidas de valores ético-políticos referentes à integralidade do processo saúde-doença-cuidado e à emancipação dos sujeitos individuais e coletivos. Respeitados tais princípios, estamos agora em um outro mundo, no qual nem tudo o que se faz na saúde é “cuidado”. Abre-se todo um grupo de pontos de vista que, por sua vez, admite muitas e diferentes “vistas”, a depender do aspecto que certos autores considerem mais relevante nessa postura diante do(a) usuário(a) da saúde. A seguir nos remeteremos a três delas, entre outras tantas.

Ayres (2004aAYRES, J. R. C. M. Cuidado e reconstrução das práticas de Saúde. Interface, Botucatu, v. 8, n. 14, p. 73-92, fev. 2004a. DOI: 10.1590/S1414- 32832004000100005
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, 2004bAYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 16-29, dez. 2004b. DOI: 10.1590/S0104-12902004000300003
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), visando a “reconstrução das práticas de saúde” no sentido do bem comum, propõe que cuidar vai além de tratar, curar ou controlar riscos - que o autor chama atos assistenciais -, e convoca para uma humanização da atenção à saúde. Para o autor, isto se obtém quando a “arte tecnocientífica da medicina” se interessa pela vida, em uma atitude terapêutica que deve buscar o sentido “existencial” da atenção à saúde, tomada agora como um projeto de felicidade do usuário da saúde.

Também a propósito de “humanização” na saúde, o Brasil conta, em seu histórico de ações governamentais setoriais, com a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS, em cujos documentos técnicos aparece a palavra “cuidado”. No mais das vezes, quando não é utilizado em referência à gestão setorial, o termo significa práticas de saúde em geral (Brasil, 2006)BRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006. Ainda assim, o conceito é utilizado a partir de certos princípios norteadores: valoração multidimensional (subjetiva, coletiva, de gênero, cor/etnia, orientação/expressão sexual, de segmentos específicos, como populações negras, povos indígenas, rurais, extrativistas, quilombolas, ciganos, ribeirinhos, assentados, entre outros); fortalecimento de trabalho em equipe multiprofissional e da transversalidade; construção de redes cooperativas e solidárias; construção de autonomia e protagonismo dos sujeitos e coletivos; corresponsabilidade dos sujeitos nos processos de gestão e atenção; fortalecimento da participação social na saúde; democratização das relações de trabalho e valorização dos trabalhadores da saúde; e promoção de espaços de trabalho saudáveis e acolhedores (Brasil, 2006)BRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006.

Inúmeros seriam as possibilidades que também poderíamos listar nesta seção, mas nosso objetivo não é uma revisão sobre esses aspectos do tema. Importante para o nosso debate é que o cuidado em saúde agora está relacionado a uma certa clínica, orientada pela integralidade e por valores emancipatórios, e tais relações são pressupostas para se poder enunciá-lo. Observe-se que já estão se abrindo mais as alças na espiral caleidoscópica do cuidado, e com este grupo de perspectivas ocupamos a sua maior parte.

Mas ainda temos outras dimensões conceituais a alcançar. Uma perspectiva leva a outra, pois isso que chamamos cuidado guarda, a cada experiência, ainda mais sutilezas. Subitamente dá-se conta de um detalhe que não é insignificante: nisso de cuidar há também encontros.

O cuidado em saúde como uma micropolítica no encontro intercessor

Entre nós, autores deste artigo, já há tempos chama atenção a existência de um espaço diferente na saúde, ali entre quem busca o cuidado e quem o oferece, um espaço que só existe enquanto dura o trabalho em saúde, que é vivo e acontece em ato. Inicialmente víamos os atos cuidadores como uma interseção, à moda geométrica, na qual os vários núcleos cuidadores envolvidos em uma cena de cuidado constituiriam este espaço comum: a dimensão cuidadora (Merhy, 1998MERHY, E. E. A perda da dimensão cuidadora na produção da saúde: uma discussão do modelo assistencial e de intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In: CAMPOS, C. R. et al. (Org.). Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte: reescrevendo o público. Belo Horizonte: Xamã, 1998. p. 103-120. Disponível em: <Disponível em: https://tinyurl. com/yu9wmhtd >. Acesso em: 11 nov. 2020.
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). Logo depois dos primeiros escritos sobre o assunto, percebemos que acontecem coisas neste espaço para além de uma mistura de mundos, que quem participa de um encontro não sai exatamente do mesmo modo que nele entrou, porque partilhar este espaço comum implica mudanças de parte a parte. O que “acontece” neste espaço do “entre” não se restringe à interseção, com “ç”, embora ela também continue valendo como configuração produtiva deste espaço. Mas, com a ajuda de Deleuze (2008DELEUZE, G. Os intercessores. In: DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2008. p. 151-168.), entendemos que se produz também uma intercessão, com “ss”: um acontecimento de múltiplas e mútuas afecções e subjetivações (Merhy, 2004MERHY, E. E. O ato de cuidar: a alma dos serviços de saúde. In: BRASIL. Ver-SUS Brasil: cadernos de textos. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. p. 108-137., 2006MERHY, E. E. O Cuidado é um acontecimento, e não um Ato. In: FÓRUM NACIONAL DE PSICOLOGIA E SAÚDE PÚBLICA: CONTRIBUIÇÕES TÉCNICAS E POLÍTICAS PARA AVANÇAR O SUS, 1., 2006, Brasília. Anais…Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2006. p. 69-78., 2010MERHY, E. E. Micropolítica do encontro intercessor apoiador-equipe, substrato para um agir intensivista. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 86, p. 433-435, 2010.).

O cuidado como acontecimento intercessor, eis o sentido que damos à noção de encontro cuidador. Podemos ir longe na história do pensamento para ver que este entendimento não é novo, e buscar, por exemplo, lá do século XVII, o pensamento de Baruch Spinoza, que segundo Deleuze (2019DELEUZE, G. Curso de 24 de janeiro de 1978 - o afeto e a ideia. In: DELEUZE, G. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza: EdUECE, 2019. p. 33-70.) já nos oferecia um conceito bastante interessante do que seria um “corpo”, a saber, uma unidade na qual não conseguimos separar o organismo biológico do psiquismo, e que permanentemente sofre variações em seus desejos e sentimentos, variação que tem como causa o afecto que os corpos produzem mutuamente, quando se encontram. As afecções são os efeitos no corpo desses afectos(Deleuze, 2019)DELEUZE, G. Curso de 24 de janeiro de 1978 - o afeto e a ideia. In: DELEUZE, G. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Fortaleza: EdUECE, 2019. p. 33-70., produzindo os processos de subjetivação conforme os encontros que este corpo vivencia no decorrer da vida. Segundo o autor, para Spinoza o corpo é o que é porque pode afetar e ser afetado, e, a depender dos encontros que experimenta, tem sua capacidade de agir aumentada quando padece dos afectos positivos que produzem alegria, ou diminuída quando afectos negativos lhe trazem tristeza. Castro (2015CASTRO, E. V. de. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.) afirmaria até que há uma proximidade entre esta concepção de corpo com aquela presente no pensamento ameríndio. Cuidado, neste terceiro grupo de sentidos, só existe quando existe o encontro intercessor, que forma um “campo de consistência” no espaço entre os corpos, por onde circulam as afetações, espaço pelo qual é engendrada uma dimensão cuidadora com base em uma produção subjetiva do cuidado (Franco; Andrade; Ferreira, 2009FRANCO, T. B.; ANDRADE, C. S.; FERREIRA, V. S. C. A produção subjetiva do cuidado: cartografias da estratégia saúde da família. São Paulo: Hucitec, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://pesquisa.bvsalud.org/enfermagem/resource/pt/int-2645 >. Acesso em: 16 nov. 2021.
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). Tal perspectiva abre mais possibilidades para pensar ações clínicas e gestoras que visem a integralidade das necessidades do usuário-cidadão em sua autonomia, conforme vimos no grupo anterior de pontos de vista sobre o cuidado, que permanece em pauta aqui. Compreender o cuidado no encontro intercessor não é abrir mão da perspectiva anterior, pois o cuidado como encontro implica também uma análise multidimensional que considere a experiência do viver, deslocando-se o cuidado de ato isolado da assistência para uma proposta ética “de ocupação, de preocupação, de responsabilização radical, de sensibilidade para com a experiência humana e de reconhecimento da realidade do outro, como pessoa e como sujeito, na sua singularidade” (Franco; Hubner, 2020, p. 96)FRANCO, T. B.; HUBNER, L. C. M. Clínica, cuidado e subjetividade: afinal, de que cuidado estamos falando? Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, p. 93-103, 10 jul. 2020. Edição especial. DOI: 10.1590/0103-11042019S608
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, já que os encontros intercessores são a usina de produção de nossas vidas. Trata-se de uma mesma espiral, lembremos.

As tecnologias leves, enquanto relações que agenciam as ações cuidadoras em um fazer implicado com o problema de saúde do(a) usuário(a), acontecem no “entre”, no espaço intercessor, e abrem espaço para o cuidado nesta terceira perspectiva porque regulam os quanta de potência de vida que as tecnologias duras e leve-duras agenciam a cada encontro. O que está em disputa não é qual modalidade tecnológica é “melhor”, mas qual delas comanda e estrutura o processo de trabalho. No encontro intercessor as tecnologias leves têm este papel, associando-se às duras e leve-duras na produção de um cuidado mais efetivo.

Em tempo, mesmo havendo encontro, não há garantia de um cuidado-cuidador. Um trabalho em saúde, ainda que orientado por tecnologias leves, pode favorecer a captura das práticas de cuidado para lógicas capitalísticas de alto consumo de procedimentos, secundarizando as necessidades sócio-clínicas e afetivas do usuário, produzindo formas de cuidado instrumentalizadas, excessivamente centradas em diretrizes exclusivamente biomédicas, e por vezes habitadas por valores e lógicas que objetificam o mundo do outro e/ou posicionam as subjetivações sobre a saúde enquanto mercadoria como centrais no encontro. Foi nesse sentido que um de nós já advertiu quanto a um “cuidado com o cuidado” (Merhy, 2007MERHY, E. E. Cuidado com o cuidado em saúde: saber explorar seus paradoxos para um agir manicomial. In: MERHY, E. E.; AMARAL, H. (Org.). A reforma psiquiátrica no cotidiano. São Paulo: Editora Hucitec, 2007. Volume 1, p. 25-37.). Por tudo isso é preciso contar com um projeto ético-estético-político que oriente as ações intercessoras em espaços coletivos, para que elas efetivamente apontem para a vida e para o cuidado (Seixas et al., 2021SEIXAS, C. T. et al. A crise como potência: os cuidados de proximidade e a epidemia pela Covid-19. Interface, Botucatu, v. 25, p. e200379, 2021. Edição suplementar 1. DOI: 10.1590/ interface.200379
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; Slomp Junior et al., 2019SLOMP JUNIOR, H. et al. Mágica ou magia? Colegiados gestores no Sistema Único de Saúde e mudanças nos modos de cuidar. Interface, Botucatu, v. 23, 2019. DOI: 10.1590/ Interface.170395
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). Neste artigo advertimos para a importância ético-estético-política de negar o atributo “cuidado” a acontecimentos que, no limite, produzem justamente seu oposto: o descuidado.

O cuidado visto na micropolítica do encontro torna a espiral caleidoscópica vibrátil, porque se apresenta e se movimenta a partir do campo de forças que a constitui em cada encontro. Assim, a cada movimento, a cada encontro, a fabricação do cuidado compõe cenas e efeitos distintos com maior ou menor abertura para ações que despatologizam a vida e que introduzem a multiplicidade das redes vivas sempre presentes no acontecimento entre aquele(a) que demanda um cuidado e aquele(a) que o oferta.

Considerando essa perspectiva micropolítica do cuidado, também é possível pensarmos no âmbito dos serviços de saúde. Cecilio (2011CECILIO, L. C. O. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface, Botucatu, v. 15, n. 37, p. 589-599, jun. 2011. DOI: 10.1590/S1414-32832011000200021
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), por exemplo, utiliza uma classificação do cuidado em seis dimensões (individual, familiar, profissional, organizacional, sistêmica e societária) como estratégia para avaliação de serviços de saúde, e destaca a dimensão micropolítica de todas elas. Temos insistido também no fato de que o plano micropolítico das organizações de saúde, em que acontece o cuidado, não se restringe à esfera dos encontros entre poucas pessoas, nos consultórios e salas de procedimentos, ou mesmo nos serviços. Não se trata, portanto, de uma questão de escala mas, sim, de uma dimensão virtual do real que produz tudo aquilo que concretamente vemos e ouvimos, e que é produzida por tudo isso, tanto na esfera próxima das relações como naquela mais geral das organizações de saúde (Feuerwerker, 2014FEUERWERKER, L. C. M. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Editora Rede Unida, 2014.).

Enfim, temos agora novas alças na nossa espiral do cuidado, que o tornam um conceito múltiplo, com diferentes sentidos e alcances, a depender de que lugar e em que circunstâncias é enunciado. Contando com esta engenhoca intercessora, a seguir faremos um primeiro exercício conceitual.

Experimentando fazer falar a espiral caleidoscópica do cuidado

O que se produz no campo da saúde é o cuidado em suas múltiplas e variadas dimensões, mas não só isso. Há alguns séculos esse campo vem sendo definido a partir de certas profissões de saúde e da produção de pós-graduação em saúde coletiva e áreas afins. Arriscamos afirmar que um efeito desses movimentos é reconhecer que tais núcleos de enunciação têm modos específicos tanto para potencializar como para capturar o cuidado. Embora com formas específicas e diferentes de olhar, pensar e produzir conhecimento, é possível afirmar que há uma conexão entre elas: todas estão comprometidas com a produção do cuidado, seja qual for a modalidade que o mesmo adquire ou quais dimensões disso que se chama cuidado são, a cada circunstância e tempo, colocadas como centrais. Mas também é possível afirmar que desses núcleos de enunciação emergem vários dos regimes de verdade sobre o que seria cuidar.

O campo institucional da saúde, nos seus modos de se organizar para se efetivar em ações, é aquele que tem como referente central e sua “alma” a produção do(a) cuidador(a). O que se promete é que nos seus fazeres, a partir dos encontros que podem acontecer, a intencionalidade fundamental é sempre atraída pela ação, que só será compreendida como deste campo se houver o cuidado, enquanto algo que seja simbolicamente valorado como tal por todos(as) que pertencem a - ou mesmo que constituem - esse campo. Seguindo este pensamento, não haveria como falar em saúde sem falar em cuidado, por vezes parecendo que há uma “instituição” cuidado, o que parece nos remeter à primeira perspectiva de que falamos acima: a de um equivalente geral das práticas e intervenções clínicas.

Por outro lado, quando posicionamos o cuidado em saúde em uma espiral caleidoscópica de sentidos, que parte desta primeira perspectiva de cuidado para a de uma clínica emancipatória e integral, e, indo além disso, entremeando essa outra clínica na micropolítica do encontro intercessor, nos vem a pergunta: o que fazer com essa multiplicidade de sentidos? Estaríamos nos deixando levar por um relativismo segundo o qual cuidado seria qualquer combinação destes três grupos de sentidos, a depender do ponto de vista em questão, e que portanto nunca o teremos como conceito, já que, se “tudo” é cuidado, ao mesmo tempo o cuidado também não seria “nada” diferente do que já temos, como a clínica e a atenção à saúde? Talvez ajudaria lembrar que há, nos processos histórico-sociais, modos predominantes de se pensar e organizar o cuidado em saúde que se distinguem de outros, estabelecendo-se por vezes até relações hierárquicas entre eles. Produz-se, em cada cenário, o que pode ser o cuidado - e a quem ele pertence - como mundos instituídos muito singulares e em permanente disputa, que enunciativamente se expressam como jogos de verdade (Foucault, 2010FOUCAULT, M. Verdade e poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. p. 1-14.). Portanto, não se trata de relativismo, o significado do cuidado é assentado, em cada realidade examinada, naqueles valores pelos quais ele precisava ser tomado naquele momento e naquele cenário. E tais valores interessam, se quisermos analisar uma certa configuração de cuidado. Propomos que, mais interessante do que perguntar o que é cuidado, é perguntar por que cada sentido dado a este conceito foi e é necessário em cada cenário-situação- perspectiva, e como nos posicionamos frente a isso. Aqui o terceiro grupo de sentidos nos aguça o olhar. O fato de o cuidado consistir num acontecer que para ser concretizado pressupõe a entrada do(a) outro(a) com sua própria vida e suas diferenças abre uma virtualidade no cuidado que está ali sendo atualizado. Surgem novas possibilidades, inclusive de ruptura frente às intencionalidades que tendem a governar predominantemente o cuidado instituído em cada lugar e tempo, e de ruptura simbólica com as próprias noções de saúde e cuidado que o campo da saúde institui imaginariamente, nas sociedades em que vivemos, com possível desterritorialização nos modos de se organizar a própria produção do cuidado, que passa agora a ser governada por mais outros valores.

Os vários perspectivismos sobre o cuidado então vazam uns dos outros como distintas máquinas abstratas em disputa, que como tal podem, nas melhores das hipóteses, serem desorganizadas e reorganizadas em produções minoritárias de existências ainda não vividas, em devires que buscam outras formas de atualizações, com a invenção de códigos e registros para si que os permitam viver e existir. Caminho tortuoso este, produtivo, mas perigoso, como diria Castro (2015CASTRO, E. V. de. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.) sobre o perspectivismo ameríndio, pois o cuidado, assim como nossos corpos de modo geral, nunca está livre de uma nova captura.

Vejamos um exemplo prático, o da tecnologia de cuidado chamada “acolhimento”. Posso promover um encontro dito de “acolhimento” no qual me relaciono de modo preciso para submeter o(a) outro(a), determinando-lhe certas falas possíveis e outras não. Inclusive posso não perguntar ou, se perguntar, mesmo assim não ouvir nem seu próprio nome, pois é preciso que este outro não fale a não ser o que eu quero ouvir, dado que tenho diagnósticos e condutas padrões para todos(as) que entram pela porta do meu consultório. Em tempo, eis um exemplo do que estamos chamando de captura. De qualquer maneira, este exemplo nos oferece um típico caso de uma tecnologia leve supostamente voltada para o cuidado, mas não usada nesta direção.

Na seção anterior lembramos que até com o cuidado há que se ter cuidado, e acrescentaríamos que talvez nossa prudência devesse ser ainda maior em situações assim, pois descuidar usando somente tecnologias duras e leve-duras, ou negando-se a atender ou a dar acesso, por exemplo, pode até configurar-se fenômeno mais facilmente cognoscível mediante uma avaliação protocolar. De outro lado, não podemos dizer o mesmo quando nos deparamos com um descuidado que acontece no plano das relações. Se o encontro faz emergir as diferenças, e são disparadas as disputas entre diferentes éticas de cuidado, nem todas serão automaticamente cuidadoras, podendo o descuidado ser até mais danoso.

Assim, estamos invertendo a espiral do cuidado quando propomos que é na dimensão micropolítica dos encontros da vida que se veicula o que é cuidado, em certo lugar e tempo, em uma dimensão cuidadora em que se abrem (ou não) possibilidades para que o cuidado se volte à integralidade e à autonomização de quem é cuidado. Sim, porque, segundo o que nossas pesquisas até o momento nos levam a concluir, somente a presença de uma intencionalidade ético-política não garante, por si só, o alcance desses objetivos. Ao contrário, há maquinismos outros que também precisam ser acionados para acessar a dimensão cuidadora. Ainda assim entendemos que este é um caminho possível para a produção do cuidado, o de desamarrar o desejo das intencionalidades a priori para que a vida seja potencializada na imanência. Para isso vale “cuidar com o cuidado” enquanto se considera a produção da qual também pode emergir o descuidado, preservando-seesta palavrinha de significações que a afastem da produção de mais vida.

Portanto, mundos diferentes são acionados (às vezes ao mesmo tempo) quando enunciamos um cuidado que é tomado seja como sinônimo de tudo o que se faz nos serviços de saúde, seja quando há comprometimento com o(a) usuário(a) mediante um conceito ampliado de saúde e outra relação ética, ou ainda, quando se trata de um cuidado em um encontro intercessor. Mundos múltiplos carregam suas próprias verdades, em alguns casos bastante explicitadas, mas no mais das vezes subliminares, que, como escrevemos acima, foram/são necessárias por motivos específicos, mas que vale conhecer. Esses mundos por vezes se misturam, e resultam de composições de sentidos. Enfim, no mais das vezes fazemos existir o cuidado, a cada vez, com diferentes “coeficientes cuidadores” em jogo.

Para concluir, pensamos que a ideia de uma espiral caleidoscópica com sentidos moventes, assim como outros tantos dispositivos conceituais que poderão ser propostos para esse tipo de análise, é tão somente uma engenhoca teórica que nos ajudou a pensar que grupos de sentidos podem circular por um conceito como o cuidado. Mesmo assim, reconhecemos que há ainda caminhos a serem percorridos no sentido de entendermos melhor sobre o assunto.

Ao menos já estamos seguros de que, ao assumir que cuidado em saúde pode significar tudo o que a espiral nos coloca, não se trata de um relativismo, ou pelo menos, de um relativismo qualquer, mas sim de composições possíveis de sentidos que se fazem necessárias a cada lugar e tempo. Seja como for, propomos que houve cuidado se houve a produção de mais vida na vida vivida, e, nesse caso, quem o recebeu assim o sentiu.

Considerações finais

O campo institucional da saúde tem a produção do(a) cuidador(a) como referente central e “alma”, e as ações são compreendidas como pertencentes a este campo desde que relacionadas com o ato de cuidar, em torno do qual circulam vários regimes de verdade. Compusemos então o que chamamos de espiral caleidoscópica de sentidos para exercitar uma análise sobre o que seria o cuidado em saúde, uma engenhoca conceitual intercessora que nos possibilitou apontar três grandes grupos de perspectivas: o cuidado em saúde como um equivalente geral de práticas de saúde e intervenções clínicas, o cuidado em saúde como uma clínica integral e emancipatória, e o cuidado em saúde como uma micropolítica no encontro intercessor.

Propomos então que em cada momento e cenário existe o que pode ser o cuidado e a quem ele “pertence”, tratando-se este de um mundo instituído singular e em permanente disputa, e que será por sua vez afetado pelo encontro intercessor que emerge (ou não) no cuidado como acontecimento, abrindo-se uma nova virtualidade que é agora palco de outros valores e sentidos para o cuidado.

O cuidado então vai depender desses múltiplos mundos que carregam suas próprias verdades, e que por vezes se misturam e resultam em composições de sentidos. Esses mundos nos fazem percorrer a espiral de uma direção a outra, a depender de que sentidos conseguimos recolher em cada experiência. Mas podemos assumir um marcador ético-estético- político para nos autorizar o uso do conceito “cuidado” em saúde: a produção de mais vida nas vidas vividas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2023
  • Revisado
    18 Maio 2023
  • Aceito
    24 Maio 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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