Comendo nas encruzilhadas: contribuições interseccionais para a Nutrição Clínica Ampliada e Implicada11Bolsa de produtividade do CNPq, número 304385/2021-2.

Fran Demétrio Fernanda Baeza Scagliusi Sobre os autores

Resumo

Este ensaio, que traz contribuições póstumas da primeira autora, parte da compreensão da interseccionalidade como ferramenta teórica-metodológica e oferenda analítica que evidencia como sistemas múltiplos de subordinação e discriminação, suas consequências e dinâmicas estruturais, se relacionam entre dois ou mais eixos de opressão social. Propomos uma aproximação epistemológica entre esta compreensão e o campo da Alimentação e Nutrição, que contribua para pensar um cuidado alimentar e nutricional interseccional e uma práxis integral. Corroborando a metáfora da intersecção (e da encruzilhada), afirmamos que vários eixos de poder - raça, gênero, sexualidade, etnia, idade, classe, tamanho corporal, (dis)capacidades, entre outros - conformam as avenidas que estruturam o terreno do cuidado em saúde, inclusive o alimentar e nutricional. Entre tais avenidas e encruzilhadas, traçamos uma proposição inicial de Nutrição Clínica Ampliada e Implicada. Entre as implicações propostas, destacamos a reflexividade e a ação nas relações de poder e opressão, situando o(a) nutricionista como agente político, implicado com práxis emancipatórias, participativas e referenciadas socialmente. A interseccionalidade se traveste aqui como estratégia para o trabalho de justiça social, incluindo nesta a alimentação e a nutrição. Tratamos de relações em construção, constituindo práticas reflexivas, de composição de sentidos no ato do trabalho vivo alimentar e nutricional.

Palavras-chave:
Interseccionalidade; Cuidado em Saúde; Nutrição Clínica; Encruzilhada; Nutrição Clínica Ampliada e Implicada

Prólogo

Este texto, em sua trajetória de múltiplos caminhos, não poderia ter sido tecido em outro lugar que não a encruzilhada. Contudo, é necessário retroceder e apresentar estes caminhos a quem o lê. Primeiramente, este se constitui em um texto póstumo, já que a primeira autora, Fran Demétrio, faleceu em 2021. Assim, é imperativo que a segunda autora relembre Fran para além de suas palavras e demarque os acréscimos que ela não pôde ler. Desta forma, serão utilizados o singular e a fonte em itálico quando estiver se referindo a pensamentos seus, que surgiram após o artigo escrito com Fran, e o plural e a fonte normal quando trouxer aquilo que teceram intelectualmente juntas.

Fran era mulher trans, travesti, negra, filha de mãe solo, de origem pobre, nordestina, pai, professora universitária, ativista, transfeminista, filha de Oxum.22De forma muito simplificada, nas religiões de matriz africana, todas as pessoas possuem um(a) orixá de cabeça (ou frente), que a atribui diversas características alinhadas com as do(a) orixá. Oxum era a orixá de cabeça de Fran.Eu, sem dúvida, em função de vários privilégios sociais que possuo, como mulher cis, branca, paulistana e de classe média alta, entre outros, não ocupo o mesmo lugar de fala que a Fran. Venho, com muita singeleza e humildade, ocupar o lugar de fala de uma admiradora, colega e amiga da Fran, que foi a acadêmica mais brilhante e revolucionária que já conheci, aquela que tinha, dentro de si, tudo para mudar tudo. Neil Gaiman escreveu, em sua obra de ficção “Sandman: Noites sem Fim”, que todos vivem o mesmo: o tempo de uma vida (GAIMAN, N. Sandman: Noites sem fim. Barueri: Panini, 2005.). A vida de Fran foi tão potente e, ao mesmo tempo, tão fugaz. Nesse pouco tempo, ela significou tanto para muites de nós. Foi um farol e uma âncora para aqueles que se sentiam sufocades pelo racismo, elitismo e cisheteropatriacardo na academia, ambiente tão excludente. Foi uma inspiração e um fundamento para pensar em outras avenidas de cuidado alimentar e nutricional. Construiu novas epistemes e práxis a partir do “(co)Laboratório Humano de Estudos, Pesquisa e Extensão Transdisciplinares em Integralidade e Interseccionalidade do Cuidado em Saúde e Nutrição, Gêneros e Sexualidades”, o qual ela coordenava.33Sugiro a leitura de DEMÉTRIO, F; et al. Pensando sobre gênero e sexualidade na saúde: notas sobre a experiência do LABTRANS/UFRB/CNPq. Revista ABPN, Goiânia, v. 10, p. 483-504, 2018.E foi um assombro, ao ir tão além do que se conseguia vislumbrar, quando fez pós-doutorado em Filosofia e pesquisou direitos humanos epistêmicos.44Sugiro a leitura de DEMÉTRIO, F.; BENSUSAN, H.N. O conhecimento dos outros: a defesa dos direitos humanos epistêmicos. Revista do CEAM, Brasília, DF, v. 5, n. 1, p. 110-124, 2019.E, sempre, foi uma amiga agregadora, doce, sensível, linda, provocadora.

Gostaria agora de retroceder neste prólogo para falar sobre como a conheci. Muitos de meus contatos, sobretudo os iniciais, com Fran Demétrio, foram inusitados. Conheci-a pelas palavras. Em março de 2011, fui solicitada a emitir parecer sobre um artigo científico que propunha uma Nutrição Clínica Ampliada, escrito por ela e colaboradoras. Neste momento, entretanto, Fran não havia começado o que ela chamava de “processo de transgressão de gênero” (termos originais da primeira autora), usando, então, o nome de Franklin Demétrio. Lembro que, ao ler o texto, pensei que era o melhor artigo que eu já tinha lido na Nutrição. Em meu parecer, considerei que este ensaio reflexivo era extremamente inovador, interdisciplinar, bem escrito, instigante, de excelente fundamentação teórica e que apresentava uma discussão urgente para o campo da Nutrição Clínica, que, entretanto, não encontrava muito espaço no discurso hegemônico à época (e creio que isso ainda permanece). Parecer enviado, corta a cena. Em abril de 2012, no Congresso Mundial de Nutrição no Rio de Janeiro, procuro um lugar na plateia lotada para ouvir Rosa Wanda Diez-Garcia, Raul Lody e Claude Fischler. Nas perguntas, uma pessoa se levanta atrás de mim e se apresenta como Franklin Demétrio, que trabalhava com Nutrição Clínica Ampliada. Não pude me conter, me apresentei e tivemos uma rodada de gritos comemorativos ao situar quem éramos, pois Franklin também só me conhecia pelas palavras. Quebrei a ética do sigilo (e não me arrependo) e contei que eu tinha sido uma das pareceristas. Mais gritos, risadas e abraços, mais brindes na festa de encerramento do congresso. Corta a cena. Em 2017, estava ajudando a compor a banca de um concurso em que a Nutrição Clínica Ampliada era ponto crucial. Sugeri convidarmos Franklin, que já trabalhava na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, e tentei achar seu currículo lattes para ver se havia feito doutorado. Não achei, e então escrevi para o seu e-mail institucional. Ela respondeu que há dois anos tinha iniciado então o “processo de transgressão de gênero”, se reconhecendo e identificando como mulher transgênera, adotando nome social e científico de Fran Demétrio. Nos conectamos muito quando ela veio para o concurso e planejamos diversos projetos conjuntos. Aí foram ganhando corpo nossa amizade e o aprendizado intenso que ela, generosamente, me proporcionou. Publicamos, com a Professora Bárbara Lourenço, um capítulo de livro, em 2019 (LOURENCO, B. H.; DEMÉTRIO, F.; SCAGLIUSI, F. B. Planejamento dietético: perspectivas para a promoção da alimentação adequada e saudável. In: CARDOSO, M. A.; SCAGLIUSI, F. B. (Org.). Nutrição e Dietética. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2019. p. 271-280.). Neste mesmo ano, Fran e eu começamos a trabalhar em um ensaio intitulado “Do fetiche fisiometabólico à interseccionalidade: inquietações e (re)construções para a práxis da nutrição clínica ampliada e implicada”. Por questões pessoais de saúde que nos atingiram em diferentes momentos, não finalizamos e submetemos o artigo. Em julho de 2021, Fran faleceu.

Nosso texto ficou guardado até que a Comissão Científica do XXVII Congresso Brasileiro de Nutrição, em 2022, me convidou para proferir uma palestra em “femenagem”55Termo criado por Fran Demétrio para subverter o caráter masculino de ‘homenagem’ e utilizado pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia no memorial em sua honra, após sua morteà Fran. Resgatei o artigo escrito e li seus pontos nucleares na palestra “Do Fetiche Fisiometabólico à Interseccionalidade: Caminhos para uma Nutrição Ampliada e Implicada. Contribuições de Fran Demétrio para a Nutrição em Saúde Coletiva”. Ainda no mesmo outubro de 2022, li o texto no Dia Mundial da Alimentação, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Certamente, essas ocasiões foram algumas das maiores honras que já tive na vida. Ao mesmo tempo, senti medo, por não saber a reação do público ao texto em si e à sua apresentação por mim, que disto da Fran em relação ao meu contexto social e lugar de fala. A recepção foi extremamente calorosa e emocionada/emocionante. Muitas pessoas pediram o texto em si e isso me motivou a submetê-lo para publicação, tendo Fran Demétrio como primeira autora, ainda que, infelizmente, póstuma. Espero que as contribuições absolutamente originais de Fran ressoem no tempo e no espaço.

A interseccionalidade e seu lugar no cuidado alimentar e nutricional

A interseccionalidade é um referencial teórico-metodológico cunhado pela jurista e feminista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw, no contexto das leis antidiscriminação na encruzilhada acadêmica dos estudos sociais de gênero e raça (Akotirene, 2018AKOTIRENE, C. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018.; Crenshaw, 2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. ). É uma ferramenta teórica-metodológica e uma oferenda analítica que evidenciam, como sistemas múltiplos de subordinação e discriminação, suas consequências e dinâmicas estruturais, bem como se associam e interagem entre dois ou mais eixos de subalternização e opressão social (Akotirene, 2018AKOTIRENE, C. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018.; Crenshaw, 2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. ). Segundo Crenshaw (2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. , p. 7), a interseccionalidade:

[…] trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.

Crenshaw (2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. ) também trouxe à luz o fato de que, nos estudos e movimentos feministas, as mulheres brancas falavam por todas as mulheres, assim como, nos estudos e movimentos antirracismo, os homens negros falavam por todos os negros. Havia uma estrutura opressora interseccional que tornava desaparecidas as mulheres negras e suas experiências como tal. A autora também salientava que não se tratava da soma de duas opressões distintas (ser mulher + ser negra), mas sim da experiência única como mulher negra, experiência essa que deriva da associação e interação entre sistemas discriminatórios (como, por exemplo,o racismo, o patriarcalismo e a opressão de classe), os quais criam desigualdades que estruturam as posições sociais. Crenshaw (2002)CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. foi muito importante para a reunião e incorporação institucional de diversas ideias vindas do fundamental ativismo social de décadas precedentes, como ações, discursos e manifestos de mulheres negras, como Frances Beal e Sojourner Truth; de ativistas do Movimento das Mulheres Negras no Brasil, que contava com importantes nomes como Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, entre outras; e do Combahee River Collective (Collins; Bilge, 2020COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2020.).

Cho, Crenshaw e McCall (2013CHO, S.; CRENSHAW, K. W.; MCCALL, L. Toward a field of intersectionality studies: theory, applications, and praxis. Signs, Chicago, v. 38, n. 4, p. 785-810, 2013.) afirmaram que a interseccionalidade é mais bem retratada - ou estruturada - como uma sensibilidade ou disposição analítica para se pensar sobre o problema das semelhanças e diferenças e suas relações para com o poder. Enfatizaram, portanto, que essa disposição concebe as categorias de diferenciação social (como raça, etnia, gênero, classe social, sexualidade, entre outras) não como distintas, mas sim fluidas, mutantes e permeáveis por outras categorias, sempre no processo de serem criadas por dinâmicas de poder, bem como as criarem. Nesse sentido, Collins e Bilge (2020COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 15) definiram a interseccionalidade como uma perspectiva:

[…] que investiga como as relações interseccionais de poder influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária, entre outras, são inter-relacionadas e se moldam mutuamente. A interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas.

Collins e Bilge (2020COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2020.) também refletiram sobre as especificidades do Sul e do Norte Global, salientando que quando o Norte Global “introjeta” a interseccionalidade no Sul Global, de cima para baixo, é comum o silenciamento das pessoas que produzem conhecimento e o apagamento não só destes conhecimentos, mas também de práxis locais de resistência. Isto é diferente de quando grupos em diferentes lugares do mundo reivindicam versões da interseccionalidade, como o movimento feminista negro no Brasil tem feito. Tentar-se-ia repensar as abordagens do Norte Global para democratizar a construção social de conhecimento.

Carla Akotirene (2018AKOTIRENE, C. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018.), mulher cis, negra, brasileira, autora, pesquisadora e ativista, trouxe renovadores torções e giros teóricos para o pensamento interseccional no Sul Global. Para ela:

a interseccionalidade visa dar instrumentabilidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado - produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais (Akotirene, 2018AKOTIRENE, C. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018., p. 14).

Os termos “torções” e “giros teóricos” são aqui utilizados porque a autora colocou a interseccionalidade em outro plano - teórico, político e metafísico - quando propôs que:

é oportuno descolonizar perspectivas hegemônicas sobre a teoria da interseccionalidade e adotar o Atlântico como lócus de opressões cruzadas, pois acredito que esse território de águas traduz, fundamentalmente, a história e a migração forçada de africanas e africanos. As águas, além disso, cicatrizam feridas coloniais causadas pela Europa, manifestas nas etnias traficadas como mercadorias, nas culturas afogadas, nos binarismos identitários, contrapostos humanos e não humanos. No mar Atlântico temos o saber duma memória salgada de escravismo, energias ancestrais protestam lágrimas sob o oceano (Akotirene, 2018AKOTIRENE, C. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018., p. 15).

Como resultado desses giros e torções, por meio do seu método diaspórico feminista, ela almejou “aumentar os diálogos com as epistemes dos povos colonizados, abranger as travessias teóricas de corpos navegantes, balançadas pelas águas étnicas, memórias índicas, culturas polissêmicas e posicionalidades transatlânticas” (Akotirene, 2018AKOTIRENE, C. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018., p. 64).

Carla Akotirene teve grande influência sobre Fran Demétrio.AKOTIRENE, C. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018.) lembra que Exu é o senhor da encruzilhada e o reconhece, portanto, como senhor da interseccionalidade. De acordo comBUENO, W. C.; ANJOS, J. C. Da interseccionalidade à encruzilhada: operações epistêmicas de mulheres negras nas universidades brasileiras. Civitas, São Paulo, v. 21, n. 3, p. 359-369, 2021. DOI: 10.15448/1984-7289.2021.3.40200
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), é justamente a partir da figura das encruzilhadas que pesquisadoras negras brasileiras colocam em fluxo conhecimentos, sensibilidades e potências políticas. Daí, gosto de pensar que Fran Demétrio passeia agora pelas encruzilhadas e, considerando seu legado para o campo científico da Alimentação e Nutrição, come nelas também.

Partindo dessa encruzilhada, propomos uma aproximação epistemológica com o referencial teórico da interseccionalidade para pensar e produzir um cuidado alimentar e nutricional interseccional e uma práxis integral, esta última já recomendada pela Política Nacional de Humanização (Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 3. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006.). A ideia de pensar e produzir um cuidado alimentar e nutricional interseccional surgiu a partir da experiência crítica e vivencial da primeira autora que, como mulher trans, travesti e negra, professora e pesquisadora de Nutrição e Saúde Coletiva numa universidade pública situada numa cidade do interior do Nordeste brasileiro, se via excluída e discriminada pelos métodos, técnicas e parâmetros clínicos e científicos de avaliação antropométrica e nutricional e de outros contextos e formas de cuidado nos serviços de saúde que buscava.

Corroborando a metáfora da intersecção e da encruzilhada, afirmamos que vários eixos de poder - raça, gênero, sexualidade, etnia, classe, tamanho corporal, idade, (dis)capacidades, entre outros - conformam as avenidas e caminhos que estruturam o terreno do cuidado em saúde, incluindo o alimentar e nutricional. Intencionamos, com a interseccionalidade, ressaltar como o cuidado alimentar e nutricional pode gerar desigualdades na atenção às demandas de saúde e a pessoas, nas suas multiplicidades estéticas e existenciais, quando as estruturas estruturantes de poder supracitadas não são consideradas como marcas sociais que carregam opressões e geram sérias consequências à saúde de sujeitos sócio-historicamente subalternizados, a exemplo de pessoas pobres, negras, gordas, mulheres, indígenas, trans, travestis, lésbicas, gays, bissexuais e intersexo, idosas e com deficiência física. Tais efeitos podem ser derivados da interação de diferentes eixos de opressão social e impactam de forma distinta as condições de saúde, alimentação e nutrição dessas populações que foram/são marginalizadas e discriminadas sócio-historicamente. Advogamos a inclusão desse debate nas abordagens de cuidado alimentar e nutricional, visando ampliar seus métodos, técnicas e epistemologias de avaliação e cuidado, buscando a humanização, integralidade e implicação com as singularidades das pessoas no contexto do cuidado clínico-nutricional. Assim, a partir do diálogo com a interseccionalidade, evoluímos da “Nutrição Clínica Ampliada” (Demétrio et al, 2011DEMÉTRIO, F. et al. A nutrição clínica ampliada e a humanização da relação nutricionista-paciente: contribuições para reflexão. Revista de Nutrição , Campinas, v. 24, n. 5, p. 743-763, 2011. DOI: 10.1590/S1415-52732011000500008
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) para a “Nutrição Clínica Ampliada e Implicada”.

Nesta nova proposta, marcamos claramente divergências epistêmicas e políticas com as abordagens comportamentais que têm sido grande foco de atenção na Nutrição e que foram muito bem discutidas de forma crítica por Seixas et al. (2020SEIXAS, C. M. Fábrica da nutrição neoliberal: elementos para uma discussão sobre as novas abordagens comportamentais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, 2020. DOI: 10.1590/S0103-73312020300411
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). Iremos abordar, de forma muito breve, algumas destas divergências. Notamos nestas abordagens pouca articulação com os contextos históricos, socioculturais, econômicos e políticos brasileiros e uma subserviência ao capital, ao neoliberalismo e à mercantilização da saúde. Questões relacionadas à pobreza e à insegurança alimentar, tão prementes na atualidade, são geralmente negligenciadas. Frequentemente, emprega-se a figura do “paciente/cliente” que já fez inúmeras dietas e pode fazer novas escolhas. Padrão, Aguiar e Barão (2017PADRÃO, S. M.; AGUIAR, O. B.; BARÃO, G. O. D. Educação Alimentar e Nutricional: a defesa de uma perspectiva contra-hegemônica e histórico-crítica para educação. Demetra ,Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 665-682, 2017. , p. 674) afirmam que

[…] quando se advoga que o homem é livre por natureza e que exprime essa liberdade pela sua capacidade e possibilidade de escolha, sem que se avalie em que situações ou quais opções são colocadas para sua escolha, parece que essa decisão é também livre, ou seja, que todos podem escolher o que desejarem e em igualdade de condições. Esta ideia de liberdade como igual direito à escolha é a ideia de liberdade da burguesia, e não a realidade histórico-social da liberdade.

Tais críticas parecem pertinentes às abordagens comportamentais. Por exemplo, Satter (2007SATTER, E. Eating competence: Nutrition education with the Satter eating competence model. Journal of Nutrition Education and Behavior, New York, v. 39, p. S189-S194, 2007. DOI: 10.1016/j.jneb.2007.04.177
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), na abordagem de competências alimentares, salienta que pessoas de baixo nível socioeconômico estão preocupadas com suficiência de comida e não com nutrientes específicos. Consequentemente, sugere encorajar essas pessoas a comerem alimentos energeticamente densos, ricos em gordura e açúcar, citando ultraprocessados como margarina e macarrão instantâneo, para não entrarem em restrição alimentar - vinculando-a às dietas voluntárias e não à pobreza, se posicionando contra às primeiras e não à última. Defendemos que tais sugestões e posicionamentos ferem o constitucional direito humano à alimentação adequada e ignoram uma luta fundamental para a redução da pobreza e melhores condições de vida e alimentação para pessoas de menor nível socioeconômico. Indo na direção contrária, assumiremos nossa implicação nesta luta e em outras que rompem opressões hegemônicas e intersectadas.

Nutrição Clínica Ampliada e Implicada - um embrião

Para embrionar a Nutrição Clínica Ampliada e Implicada, resgatamos de Ayres (2004AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 16-29, 2004. DOI: 10.1590/S0104-12902004000300003
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, p. 22) a noção de cuidado como “atividade terapêutica que busque ativamente seu sentido existencial” e a de escuta qualificada em encontro como algo que mexe com afetos e muda todos(as) que dele participam. O processo de encontro-escuta-diálogo-cuidado alimentar e nutricional traz à tona a identidade da(o) nutricionista, sua bagagem de vida, sua postura existencial e não só seu conjunto de conhecimentos científicos e de técnicas. Há uma permeabilidade do técnico (contextualizado em termos políticos, econômicos e socioculturais) ao não-técnico (devidamente ancorado na reflexividade), que podem compor heterodoxias terapêuticas (Ayres, 2004AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 16-29, 2004. DOI: 10.1590/S0104-12902004000300003
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). Um exemplo dessa heterodoxia se encontra em Frutuoso (2017FRUTUOSO, M. F. P. The health care in scene: a training experience in nutrition at Universidade Federal de São Paulo, Baixada Santista campus. Demetra, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 683-698, 2017. DOI: 10.12957/demetra.2017.28664
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), que, no exercício da formação interprofissional, construiu campos de relações, sensíveis à complexidade e à singularidade, constituindo um trabalho vivo, em ato.

Entretanto, o que faz dessa proposta uma nutrição implicada? Primeiramente, o reconhecimento das relações de poder presentes na produção de conhecimento, nas políticas públicas, no fenômeno alimentar e nas relações e práticas de cuidado. Adotamos uma posição construtivista e relacional, que entende o conhecimento como socialmente construído e historicamente derivado, valorizando a experiência vivida e embasamentos epistêmicos inter e transdisciplinares que abarquem a complexidade da alimentação (Gringas et al, 2014GINGRAS, J. et al. Critical dietetics: A discussion paper. Journal of Critical Dietetics , Toronto, v. 2, p. 2-12, 2014.; Demetrio, 2014DEMÉTRIO, F. A crise das práticas nutricionais em saúde-doença-cuidado e a possibilidade de construção de uma nutrição clínica ampliada e compartilhada. In: SOUZA, M. K. B.; TAVARES, J. S. C. (Org.). Temas em saúde coletiva: gestão e atenção no SUS em debate. Cruz das Almas: Editora UFRB, 2014. p. 167-203.). Implicamo-nos também com o direito à saúde e à alimentação adequada, o que pressupõe ações macro e microestruturais para sua concretização. Isso também sustenta nosso alinhamento com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) como um projeto democrático, ético e humano, bem como contra a mercantilização da saúde, da alimentação e da nutrição.

Outra implicação é trazer as questões históricas, socioculturais, humanas, políticas e econômicas - ou “o mundo que causa os problemas nutricionais” - para a formação e a prática profissional (Gringas et al, 2014GINGRAS, J. et al. Critical dietetics: A discussion paper. Journal of Critical Dietetics , Toronto, v. 2, p. 2-12, 2014.). Doravante, implicamo-nos em entender as relações e interações entre alimentação, raça, etnia, classe social, gêneros, sexualidades e tamanhos corporais, entre outras estéticas corporais distintas, atuando contra suas intersectadas opressões, que afetam tanto o(a) nutricionista quanto o sujeito, situando-o(a) como um(a) agente político e não mais como um(a) profissional fechado(a) no universo clínico. Advogamos, nesse sentido, que a construção de propostas de cuidado alimentar e nutricional com/para pessoas trans e travestis representa uma implicação com a vida dessas pessoas e com a transformação de suas realidades sociais, a começar pela eliminação das barreiras discriminatórias e estigmatizadoras no contexto do cuidado alimentar e nutricional e de saúde66A exemplo desta publicação: BRASIL. Guia de cuidado e atenção nutricional à população LGBTQIA+. Brasília: Conselho Regional de Nutricionistas da 1ª Região, 2021.. Propomos, portanto, a integração da disposição analítica interseccional na prática clínica, entendendo que essa disposição não só revela as opressões sofridas por grupos sócio-historicamente subalternizados, mas também suas potências e formas de resistência. Tais desafios reclamam o exercício da reflexividade como consciência crítica, amparada no pensamento complexo, promovendo um(a) nutricionista que reconheça também suas singularidades e subjetividades e se constitua um(a) sujeito(a) engajado(a) e implicado social e politicamente (Gringas et al., 2014GINGRAS, J. et al. Critical dietetics: A discussion paper. Journal of Critical Dietetics , Toronto, v. 2, p. 2-12, 2014.). Bosi e Teixeira (2016BOSI, M.L.M.; TEIXEIRA, M.J. Binge eating under a complex reading: Subsidies for the praxis of food and nutrition education. Revista de Nutrição, Campinas, v. 29, n. 6, p. 899-915, 2016. DOI: 10.1590/1678-98652016000600013
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) propõem, por exemplo, um espaço político na educação alimentar e nutricional voltada para mulheres medicamente classificadas com obesidade e compulsão alimentar, que questiona ideologias causadoras de privilégios e injustiças relacionadas às complexas práticas alimentares desse grupo.

Há implicação com a quebra de normatizações e contínua (re)produção de corpos dóceis, conceito que trouxemos de Foucault (2004FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.) para repensar a clínica nutricional. Brevemente, seu conceito de biopoder - as práticas de regulação dos Estados modernos, que controlam, subjugam e gerem a existência de corpos e populações, nos seus cotidianos, tornando-os dóceis, controláveis e produtivos - se reflete claramente em alguns fundamentos do modelo biomédico, como o “conhecimento-regulação” da doença e do corpo-objeto (Demétrio, 2014DEMÉTRIO, F. A crise das práticas nutricionais em saúde-doença-cuidado e a possibilidade de construção de uma nutrição clínica ampliada e compartilhada. In: SOUZA, M. K. B.; TAVARES, J. S. C. (Org.). Temas em saúde coletiva: gestão e atenção no SUS em debate. Cruz das Almas: Editora UFRB, 2014. p. 167-203.). Ele também se reflete na relação dissimétrica de poder entre o(a) profissional de saúde e o(a) usuário(a) e formata “as práticas de vida em modelos abstratos, com seus manuais sobre a ‘arte’ de bem-viver e de fazer viver a qualquer custo” (Maia; Osorio, 2004MAIA, M. A. B.; OSORIO, C. Trabalho em saúde em tempos de biopoder. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 56, n. 1, p. 69-79, 2004., p. 72). Sob uma perspectiva foucaultiana, Seixas e Birman (2012SEIXAS, C. M.; BIRMAN, J. O peso do patológico: biopolítica e vida nua. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 13-26, 2012. DOI:10.1590/S0104-59702012000100002
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, p. 24) afirmam que “o corpo obeso como vida nua expõe a precariedade de um campo aberto a novas intervenções, um corpo sem valor, matável por qualquer um que deseje sobre ele intervir”. Esse corpo se torna, na Nutrição, lócus do exercício do biopoder e de construções técnico-científicas para sua regulação, o que não se esquiva de uma exclusão. Ao contrário dessa exclusão, nos implicamos em trazer este corpo, assim como outros corpos dissidentes, para perto, para dentro, para o lado, lutando por justiça social enquanto clinicamos.

Assim, dentro da clínica, implicamo-nos em relações de simetria ao reconhecer como interlocutor(a) válido(a) alguém que advém de um universo distinto, como proposta ética e política (Seixas et al., 2019SEIXAS, C. T. et al. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, p. 1-14, 2019. DOI: 10.1590/Interface.170627
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). Implicamo-nos com o sujeito do cuidado, “considerando suas inescapáveis subjetividades, vicissitudes, idiossincrasias, fragilidades e potências” (Lourenço; Scagliusi, 2019LOURENCO, B. H.; SCAGLIUSI, F. B. Interações entre atores, contextos e ferramentas para a práxis do planejamento dietético. In: CARDOSO, M. A.; SCAGLIUSI, F. B. (Org.). Nutrição e Dietética . 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan , 2019. p. 281-294., p. 283). Tais implicações requerem postura existencial de abertura para o novo e a(o) outra(o), que não encontrarão caminho didático em modelos e protocolos engessados. Essa postura se vincula ao princípio da integralidade, possibilitado pela prática sólida de tecnologias relacionais, como a escuta do(a) outro(a) e de si, e pela liberdade da construção conjunta do projeto (dieto)terapêutico, ao unir as singularidades e necessidades do sujeito ao trabalho vivo em saúde, alimentação e nutrição (Franco; Mehry, 2012FRANCO, T. B.; MERHY, E. E. Cartografias do trabalho e cuidado em saúde. Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva, Brasília, DF, v. 6, n. 2, p. 151-163, 2012.; Demétrio et al., 2011DEMÉTRIO, F. et al. A nutrição clínica ampliada e a humanização da relação nutricionista-paciente: contribuições para reflexão. Revista de Nutrição , Campinas, v. 24, n. 5, p. 743-763, 2011. DOI: 10.1590/S1415-52732011000500008
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).

Nesse sentido, Fieldhouse (2011FIELDHOUSE, P. Critical Dietetics. Journal of Critical Dietetics, Toronto, v. 1, n. 1, p. 10, 2011.) analisou criticamente, de maneira alinhada à complexidade e às ciências sociais e humanas, a ideia de “adesão ao tratamento nutricional”, apontando que a capacidade das pessoas em exercer agência sobre suas práticas alimentares é fortemente restrita por diferentes formas de dominação e controle (sociais, políticas, econômicas, entre outras). Quando o(a) nutricionista propõe responsabilizar totalmente o sujeito do cuidado, entendendo isso até como autonomia, sem abordar as estruturas condicionantes das práticas alimentares, pode-se gerar viés individualizante e, consequentemente, culpabilizante. Assim como Fieldhouse (2011)FIELDHOUSE, P. Critical Dietetics. Journal of Critical Dietetics, Toronto, v. 1, n. 1, p. 10, 2011., vemos as pessoas como atrizes/atores sociais, envolvidas em sistemas de dominação e disputa, que devem ser enfrentados para que a alimentação seja um processo emancipatório no qual as pessoas comam bem em seus próprios termos. Seguindo Ayres (2004AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 16-29, 2004. DOI: 10.1590/S0104-12902004000300003
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), em vez de adesão, vislumbramos essa(e) atriz/ator social, que se apropria do encontro com a(o) nutricionista e da sua alimentação, tornando-os seus e (re)construindo-os dentro dos seus projetos de vida e felicidade. Portanto, nos implicamos com estas reconstruções e com a proposição de Seixas et al. (2019SEIXAS, C. T. et al. O vínculo como potência para a produção do cuidado em Saúde: o que usuários-guia nos ensinam. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, p. 1-14, 2019. DOI: 10.1590/Interface.170627
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) de retorcer a ideia de adesão “do usuário ao tratamento” para a “da equipe ao projeto do outro”, reconhecendo que a centralidade na(o) outra(o) não deve esquecer as estruturas e tornar-se individualizante. Implicamo-nos com (re)construções e transformações para promoção de práxis emancipatórias, participativas, referenciadas socioculturalmente e que miram a justiça social (Gringas et al., 2014GINGRAS, J. et al. Critical dietetics: A discussion paper. Journal of Critical Dietetics , Toronto, v. 2, p. 2-12, 2014.).

Avançando mais, tais (re)construções e transformações consideram que o racismo estrutural permeia no Brasil os “processos de saúde-adoecimento das pessoas negras e indígenas em nosso país e de como este se expressa nas interações terapêuticas e práticas de cuidado em saúde” (BORRET, R. H. E. S. E se Dona Violeta fosse uma mulher negra? Reflexões a partir de “O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 10, p. 3969-3973, 2022. DOI: 10.1590/1413-812320222710.22452021
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, p. 3970). Esta consideração está longe de ser banal e traz em si muitas implicações. Os próprios “projetos de vida e felicidade”, advogados linhas atrás, podem não dar conta da saúde de pessoas cujas ancestralidades, estéticas, epistemes, subjetivações e individualidades são negadas e deslegitimadas, como ocorre entre as pessoas negras. Se há implicação, de fato, com a justiça social, também deve haver implicação com a proposição de “projetos de emancipação e liberdade”, conforme propostos porBORRET, R. H. E. S. E se Dona Violeta fosse uma mulher negra? Reflexões a partir de “O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 10, p. 3969-3973, 2022. DOI: 10.1590/1413-812320222710.22452021
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.

Cabem uma vigilância epistêmica e uma reflexão contínua sobre a prática profissional para prevenir dogmas e relações de poder que gerem cuidado alimentar e nutricional tecnicista, opressor, discriminatório, excludente e não implicado com as transformações humanas e sociais. A interseccionalidade, portanto, se traveste aqui como estratégia para o trabalho de justiça social, incluindo a saúde, a alimentação e a nutrição.

Sumariamente, não advogamos a completa rejeição a novas abordagens nutricionais baseadas em teorias comportamentais, o abandono do modelo biomédico e nem um status hegemônico para a Nutrição Clínica Ampliada e Implicada. Tratamos de um campo de relações em construção, que se constituem em práticas reflexivas, cuja hermenêutica do cuidado dar-se-á pela composição de sentidos no ato do trabalho vivo e de produção de (outras) epistemologias a cada encontro e diálogo.

Minha parte neste trabalho, entretanto, é singela. Foi Fran quem, a partir de sua vivência crítica e corporificada dos eixos e CIStemas de opressão, se propôs a trazer a interseccionalidade para o campo da Alimentação e Nutrição. Foi ela que, em mais uma de suas frases brilhantes, escreveu que esta era uma apresentação introdutória e embrionária, para a qual tínhamos a pretensão de fecundar, gestar e parir essa discussão em trabalhos futuros de ordem teórica ou empírica. Tendo a Fran em outro plano agora, peço a Oxum que esta fecundação, gestação e parto possam prosperar em todas as pessoas que leiam este texto.

Retomo aqui Fran e Exu na encruzilhada.As encruzilhadas são, nas religiões de matriz africana, locais absolutamente poderosos, por indicarem abertura de inúmeros caminhos, alguns deles até então inexplorados. Imbuído deste poder, o pensamento interseccional de Fran, “latente, potente, preto, poesia”77Trecho da música Principia, do cantor e compositor Emicida.(EMICIDA. Principia. Intérprete: Emicida; Fabiana Cozza; Henrique Vieira; Pastoras do Rosário. In: EMICIDA. AmarElo. São Paulo: Laboratório Fantasma: 2019a. Faixa 1 (5 min 56 s).), tem a potência epistemológica de se tornar um grande e necessário marco teórico na Alimentação e Nutrição.

E finalizo evocando Belchior, Emicida, Majur e Pabllo Vittar, pois ouço hoje, vindo lá da encruzilhada, a voz de Fran cantando: “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”88Referência à música AmarElo, escrita e cantada por Emicida, um homem cis negro, contando com um sample de Belchior, cantor e compositor, um homem cis branco, e participação especial de Majur, cantora e compositora, uma pessoa trans não-binária negra, e Pabllo Vittar, drag queen e cantora, pessoa de gênero fluido e branca.(EMICIDA. AmarElo (Sample: Sujeito de Sorte - Belchior). Intérprete: Emicida, Majur, Pabllo Vittar. In: EMICIDA. AmarElo . São Paulo: Laboratório Fantasma : 2019b. Faixa 10 (5 min 21s).).

Agradecimentos

À Comissão Científica do XXVII Congresso Brasileiro de Nutrição e à Comissão Organizadora do Dia Mundial da Alimentação 2022, da Faculdade de Saúde Pública, por contribuírem para o resgate deste texto. Ao Prof. Dr. José Miguel Nieto Olivar pelo estímulo à publicação. À Mestre Isis Góis e ao Prof. Dr. Ramiro Andres Fernandez Unsain pela revisão crítica.

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  • 1
    Bolsa de produtividade do CNPq, número 304385/2021-2.
  • 2
    De forma muito simplificada, nas religiões de matriz africana, todas as pessoas possuem um(a) orixá de cabeça (ou frente), que a atribui diversas características alinhadas com as do(a) orixá. Oxum era a orixá de cabeça de Fran.
  • 3
    Sugiro a leitura de DEMÉTRIO, F; et al. Pensando sobre gênero e sexualidade na saúde: notas sobre a experiência do LABTRANS/UFRB/CNPq. Revista ABPN, Goiânia, v. 10, p. 483-504, 2018.
  • 4
    Sugiro a leitura de DEMÉTRIO, F.; BENSUSAN, H.N. O conhecimento dos outros: a defesa dos direitos humanos epistêmicos. Revista do CEAM, Brasília, DF, v. 5, n. 1, p. 110-124, 2019.
  • 5
    Termo criado por Fran Demétrio para subverter o caráter masculino de ‘homenagem’ e utilizado pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia no memorial em sua honra, após sua morte
  • 6
    A exemplo desta publicação: BRASIL. Guia de cuidado e atenção nutricional à população LGBTQIA+. Brasília: Conselho Regional de Nutricionistas da 1ª Região, 2021.
  • 7
    Trecho da música Principia, do cantor e compositor Emicida.
  • 8
    Referência à música AmarElo, escrita e cantada por Emicida, um homem cis negro, contando com um sample de Belchior, cantor e compositor, um homem cis branco, e participação especial de Majur, cantora e compositora, uma pessoa trans não-binária negra, e Pabllo Vittar, drag queen e cantora, pessoa de gênero fluido e branca.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2023
  • Revisado
    17 Maio 2023
  • Aceito
    03 Jun 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br