Iniquidades de gênero entre cuidadoras de idosos dependentes11O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq) por meio do processo nº 405835/2016-7

Girliani Silva de Sousa Raimunda Magalhães da Silva Christina Cesar Praça Brasil Roger Flores Ceccon Amanda Márcia dos Santos Reinaldo Maria Cecília de Sousa Minayo Sobre os autores

Resumo

Esta pesquisa tem como objetivo compreender as experiências e os sentidos atribuídos pelas mulheres para se tornarem cuidadoras de idosos dependentes, à luz da análise da socialização de gênero. Estudo qualitativo com 53 cuidadoras familiares, realizado de junho a setembro de 2019, nas cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Araranguá, Manaus, Fortaleza e Teresina. A análise das informações guiou-se pelo referencial teórico-metodológico da hermenêutica-dialética. Os achados foram organizados em quatro categorias: a função cuidadora como algo “natural” da mulher; homens ausentes no ato de cuidar e a manutenção da masculinidade; a responsabilidade marital de esposas e a identidade de gênero para o cuidar; a economia e o cisheteropatriarcado como norteadores para assumir o cuidado. As mulheres exercem o cuidado em decorrência da socialização de gênero. Esse fato é potencializado pelas circunstâncias de estarem solteiras, residirem com a pessoa idosa, ausência masculina na partilha do cuidado, responsabilidade marital e pressão para se retirarem do mercado de trabalho. Em conclusão, o modelo de cuidado centrado na família é sustentado pelas mulheres devido as dinâmicas sociais construídas em uma sociedade capitalista e centrada no cisheteropatriarcado. Isto sinaliza para a necessidade de a sociedade intervir, refletir e propor ações para um cuidado equilibrado entre homens e mulheres.

Palavras-chave:
Cuidador familiar; Idoso frágil; Enfermagem geriátrica; Gênero; Mulheres

Introdução

Nas sociedades contemporâneas, a prestação de cuidados tem se tornado um tema relevante. Neste cenário, as mulheres assumem majoritariamente a assistência aos familiares em situação de dependência (Meira et al., 2017MEIRA, E.C. et al. Women’s experiences in terms of the care provided to dependent elderly: gender orientation for care. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, e20170046, 2021. DOI: 10.5935/1414-8145.20170046
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; Kuluski et al., 2018KULUSKI, K. et al. “You’ve got to look after yourself, to be able to look after them” a qualitative study of the unmet needs of caregivers of community based primary health care patients. BMC Geriatrics, Berlin, v. 18, 2018. DOI: 10.1186/s12877-018-0962-5
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; Araujo et al., 2019ARAUJO, M.G.O. et al. Caring for the carer: quality of life and burden of female caregivers. Revista Brasileira de Enfermagem, São Paulo, v. 72, n. 3, p. 728-736, 2019. DOI: 10.1590/0034-7167-2018-0334
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; Sousa et al., 2021SOUSA, G. S. et al. Metamorfosis in the lives of elderly people caring for dependent elderly in brazil. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 30, e20200608, 2021. DOI: 10.1590/1980-265X-TCE-2020-0608
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; Ceccon et al., 2021CECCON, R. F. et al. Envelhecimento e dependência no Brasil: características sociodemográficas e assistenciais de idosos e cuidadores. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 1, p. 17-26, 2021. DOI: 10.1590/1413-81232020261.30352020
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). Aquelas que cuidam de idosos dependentes apresentam necessidades físicas, emocionais, financeiras e sociais, além de enfrentarem o déficit de cuidado ofertado pelos serviços de saúde e pela assistência social (Meira et al., 2017MEIRA, E.C. et al. Women’s experiences in terms of the care provided to dependent elderly: gender orientation for care. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, e20170046, 2021. DOI: 10.5935/1414-8145.20170046
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; Kuluski et al., 2018KULUSKI, K. et al. “You’ve got to look after yourself, to be able to look after them” a qualitative study of the unmet needs of caregivers of community based primary health care patients. BMC Geriatrics, Berlin, v. 18, 2018. DOI: 10.1186/s12877-018-0962-5
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; Araujo et al., 2019ARAUJO, M.G.O. et al. Caring for the carer: quality of life and burden of female caregivers. Revista Brasileira de Enfermagem, São Paulo, v. 72, n. 3, p. 728-736, 2019. DOI: 10.1590/0034-7167-2018-0334
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; Sousa et al., 2021SOUSA, G. S. et al. “We are humans after all”: Family caregivers’ experience of caring for dependent older adults in Brazil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 1, p. 27-35, 2021. DOI: 10.1590/1413-81232020261.30172020
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).

As evidências científicas apontam que, em muitos países, as mulheres que cuidam de seus familiares apresentam dores crônicas; artrite; hipertensão; diabetes; problemas de sono; solidão; depressão; perda da liberdade; dificuldades financeiras; e incertezas frente ao futuro (Kuluski et al., 2018KULUSKI, K. et al. “You’ve got to look after yourself, to be able to look after them” a qualitative study of the unmet needs of caregivers of community based primary health care patients. BMC Geriatrics, Berlin, v. 18, 2018. DOI: 10.1186/s12877-018-0962-5
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; Araujo et al., 2019ARAUJO, M.G.O. et al. Caring for the carer: quality of life and burden of female caregivers. Revista Brasileira de Enfermagem, São Paulo, v. 72, n. 3, p. 728-736, 2019. DOI: 10.1590/0034-7167-2018-0334
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; Sousa et al., 2021SOUSA, G. S. et al. Metamorfosis in the lives of elderly people caring for dependent elderly in brazil. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 30, e20200608, 2021. DOI: 10.1590/1980-265X-TCE-2020-0608
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; Costa et al., 2021). Ainda, o cuidado de si fica prejudicado quando elas permanecem sozinhas, integralmente, ao lado da pessoa idosa dependente (Del-Pino-Casado et al., 2017DEL-PINO-CASADO, R. et al. Gender differences in primary home caregivers of older relatives in a Mediterranean environment: A cross-sectional study. Archives of Gerontology and Geriatrics, Amsterdam, v. 69, p. 128-133, 2017. DOI: 10.1016/j.archger.2016.11.012.
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; Fernandez et al., 2018FERNANDEZ, M. L. et al. The start of caring for an elderly dependent family member: a qualitative metasynthesis. BMC Geriatrics, Berlin, v. 18, 2018. DOI: 10.1186/s12877-018-0922-0
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; Araujo et al., 2019ARAUJO, M.G.O. et al. Caring for the carer: quality of life and burden of female caregivers. Revista Brasileira de Enfermagem, São Paulo, v. 72, n. 3, p. 728-736, 2019. DOI: 10.1590/0034-7167-2018-0334
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; Mendez-Luck; Anthony; Guerrero, 2020MENDEZ-LUCK, C. A.; ANTHONY, K. P.; GUERRERO, L. R. Burden and bad days among mexican-origin women caregivers. The Journal of Gerontology Series B Social Sciences, Oxford, v. 75, n. 8, p. 1719-1730, 2020. DOI: 10.1093/geronb/gbz102
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).

Nesse sentido, a sobrecarga, o burnout e as incertezas sobre o futuro são situações preocupantes, que exigem análises sob a perspectiva cultural e histórica da construção social e do ativismo de gênero, para que ocorra um equilíbrio entre os familiares masculinos e femininos.

Gênero é um fenômeno de natureza social, historicamente construído e culturalmente manifestado em relações de poder desiguais e hierárquicas, que se incorporam não apenas por meio de performances repetidas sobre o que se espera do homem e da mulher, mas de pedagogias afetivas que se configuram em certos dispositivos (Alves, 2013ALVES, A. E. S. Divisão sexual do trabalho: a separação da produção do espaço reprodutivo da família. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 271-289, 2013. DOI: 10.1590/S1981-77462013000200002
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; Butler, 2018BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.; Zanello, 2018ZANELLO, V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.).

Neste sentido, as transformações ocorridas na contemporaneidade ainda são insuficientes para superar as desigualdades de gênero, portanto, as mulheres são convocadas a assumir em algum momento da vida o lugar de cuidadoras, em um contrato social silencioso que demarca o retorno do estereótipo de feminilidade associado à passividade, aos cuidados domésticos e ao papel parental (Alves, 2013ALVES, A. E. S. Divisão sexual do trabalho: a separação da produção do espaço reprodutivo da família. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 271-289, 2013. DOI: 10.1590/S1981-77462013000200002
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; Fernandez et al., 2018FERNANDEZ, M. L. et al. The start of caring for an elderly dependent family member: a qualitative metasynthesis. BMC Geriatrics, Berlin, v. 18, 2018. DOI: 10.1186/s12877-018-0922-0
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; Mcdermott; Mendez-Luck, 2018MCDERMONTT, E.; MENDEZ-LUCK, C. A. The Processes of Becoming a Caregiver Among Mexican-Origin Women: A Cultural Psychological Perspective. SAGE Open, Thousand Oaks, v. 8, n. 2, 2018. DOI:10.1177/2158244018771733
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). Aos homens, a fuga da responsabilidade parental não é existencialmente marcada pelo abandono, ao contrário das mulheres, que estarão à mercê de rigoroso julgamento moral (Fernandez et al., 2018FERNANDEZ, M. L. et al. The start of caring for an elderly dependent family member: a qualitative metasynthesis. BMC Geriatrics, Berlin, v. 18, 2018. DOI: 10.1186/s12877-018-0922-0
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; Pereira et al., 2018PEREIRA, R. M. et al. Mayores cuidando mayores: sus percepciones desde una mirada integral. Enfermería: Cuidados Humanizados, Montevideo, v. 7, n. 2, p. 83-108, 2018; DOI: 10.22235/ech.v7i2.1653
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; Tavero et al., 2018TAVERO, I. L. et al. The gender perspective in the opinions and discourse of women about caregiving. Revista Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 52, e03370, 2018. DOI: 10.1590/S1980-220X2017009403370
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; Sousa et al., 2021SOUSA, G. S. et al. Metamorfosis in the lives of elderly people caring for dependent elderly in brazil. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 30, e20200608, 2021. DOI: 10.1590/1980-265X-TCE-2020-0608
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).

Assim, a relação entre o exercício do cuidado, os papéis de gênero e as repercussões na vida das mulheres sinaliza a importância de ouvir essas pessoas, para compreender suas experiências e necessidades no exercício de suas pesadas tarefas cotidianas. Desse modo, as demandas das cuidadoras mulheres precisam ser entendidas dentro de uma realidade que envolve aspectos políticos, econômicos, sociais, técnicos, simbólicos e culturais.

Este estudo tem como objetivo compreender os sentidos atribuídos por mulheres ao se tornarem cuidadoras de idosos dependentes, à luz da análise da socialização de gênero.

Método

Desenho do estudo

Este estudo é qualitativo e integra uma pesquisa multicêntrica sobre idosos dependentes e seus cuidadores (Minayo; Figueiredo, 2019MINAYO, M. C. S; FIGUEIREDO, A. E. B. (Coord.). Manual de Pesquisa: estudo situacional dos idosos dependentes que residem com suas famílias visando a subsidiar uma política de atenção e de apoio aos cuidadores. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2019. DOI: 10.48331/scielodata.8NEDAK
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). Foi aplicado o guia Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ), a fim de verificar a qualidade científica da pesquisa. Esta investigação buscou a compreensão dos sentidos que as mulheres responsáveis pela prestação de cuidados aos idosos dependentes atribuem ao processo de tornarem-se cuidadoras, dentro do contexto histórico-social cultural de gênero. O marco teórico desta pesquisa apoia-se nos estudos de construções sociais de gênero e seus desdobramentos nos estudos feministas, sintonizando-os com a função de cuidadora. Por construções sociais de gênero entendem-se as estruturas que compõem as relações de poder entre homens e mulheres, bem como quais os seus papéis adequados, as origens sociais de suas identidades e subjetividades, bem como sua representação em diferentes discursos e práticas da vida cotidiana (Alves, 2013ALVES, A. E. S. Divisão sexual do trabalho: a separação da produção do espaço reprodutivo da família. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 271-289, 2013. DOI: 10.1590/S1981-77462013000200002
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). São regras sociais e expectativas reproduzidas pela sociedade sobre o que se espera de uma mulher e de um homem (Beauvoir, 1970BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.; Alves, 2013ALVES, A. E. S. Divisão sexual do trabalho: a separação da produção do espaço reprodutivo da família. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 271-289, 2013. DOI: 10.1590/S1981-77462013000200002
https://doi.org/10.1590/S1981-7746201300...
; Butler, 2018BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.; Zanello, 2018ZANELLO, V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.).

População

Neste estudo, são exploradas as entrevistas realizadas com 53 cuidadoras mulheres, dentre as 71 participantes do sexo feminino, que trazem em seus relatos recortes relacionados as questões de gênero.

Local de estudo

As participantes são oriundas das cinco regiões do Brasil: quatro no Rio de Janeiro (RJ), quatro em Belo Horizonte (MG), seis em Porto Alegre (RS), seis em Araranguá (SC), quatro em Brasília (DF), sete em Fortaleza (CE), nove em Teresina (PI) e sete em Manaus (AM).

Critérios de seleção

O requisito principal para a mulher é que tivesse parentesco e a função de cuidadora principal da pessoa idosa; exercesse o cuidado em tempo integral por no mínimo seis meses e estivesse orientada no tempo e no espaço para relatar sua experiência. Não houve recusas em participar da pesquisa.

Coleta de dados

A coleta de dados ocorreu no período de junho a dezembro de 2019. Os instrumentos de pesquisas foram compostos por um questionário com dados sociodemográficos (idade, estado civil, grau de parentesco e tempo que cuida do familiar idoso dependente) e um roteiro de entrevista semiestruturada. O roteiro de entrevista foi construído e validado pela equipe de pesquisadores com representantes de todos os municípios em um seminário presencial em 2018. O recorte neste estudo visou conhecer como as questões de gênero se circunscrevem nas situações de vida que levaram as mulheres a se tornarem cuidadoras. A pergunta norteadora centrou-se em: “Como você se tornou a cuidadora da pessoa idosa dependente?”.

O acesso às mulheres familiares que cuidam de pessoas idosas dependentes ocorreu por intermédio dos profissionais de saúde. Todas as participantes foram convidadas pela equipe de saúde da atenção primária ou do serviço especializado em geriatria e gerontologia, por estarem inseridas na agenda de ações e programas que envolvem idosos dependentes e seus cuidadores.

As entrevistas foram agendadas de acordo com a disponibilidade das participantes, aconteceram em seu domicílio e tiveram duração média de 60 minutos. Dois pesquisadores devidamente treinados de cada município conduziram as entrevistas, iniciaram com a leitura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), obtiveram a permissão para gravar a entrevista e asseguraram o sigilo, o anonimato e o não julgamento dos relatos. Procurou-se criar um ambiente acolhedor e harmonioso, para que as participantes se sentissem confortáveis e seguras para contar suas experiências.

Análise dos dados

Para a análise dos dados, adotou-se o referencial teórico-metodológico hermenêutico-dialético, para a compreensão das falas no contexto em que são produzidas, entendendo-as como interpretações construídas a partir das ações sociais ancoradas em significados consolidados na cultura (Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14 ed. Rio de Janeiro: Hucitec, 2014.). A análise se realizou a partir de níveis de interpretação e os dados foram previamente organizados em passos, o que possibilitou a operacionalização da análise a partir de quatro aspectos: (1) questões de gênero presentes no processo de tornar-se cuidadora; (2) seleção dos trechos das entrevistas, em que as participantes discorriam sobre esse aspecto; (3) síntese interpretativa de cada aspecto, considerando todas as falas; e (4) síntese interpretativa, que incluiu todos os dados e aspectos. Como resultados dessas sínteses, foram eleitas as categorias que compõem as seções deste artigo. A análise dessas categorias se deu segundo os pressupostos da compreensão e da crítica, com apoio da literatura nacional e internacional.

Aspectos éticos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (parecer n. 1.326.631), no ano de 2018, e seguiu todas as recomendações da Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Os nomes das mulheres deste estudo foram substituídos pelo nome de feministas brasileiras. Ainda, foram apresentadas informações relativas à sua idade, estado civil, grau de parentesco, tempo como cuidadora e município onde residia.

Resultados

Breve caracterização das participantes

Do total de entrevistadas, 31 (57,4%) eram filhas, 14 (25,9%) esposas, três (5,5%) irmãs, três (5,5%) netas e duas (3,7%) noras dos idosos dependentes. Quanto à idade, a média foi de 54,2 anos, sendo a mais jovem cuidadora com 32 anos e a mais velha com 85 anos. Em relação ao estado civil, 33 (61,1%) estavam casadas, 15 (27%) solteiras, quatro (7,4%) divorciadas e duas (5,5%) viúvas. No tocante ao tempo de cuidado, a média foi de 5 anos, com o menor tempo de 1 e o maior correspondente há 30 anos.

Script de gênero: o cuidado como algo “natural” da mulher

Ao serem questionadas sobre as motivações para se tornar cuidadora, é unânime entre as entrevistadas a resposta “por ser mulher”. As filhas cuidadoras referiram o aspecto cultural, normas e costumes, em que foram socializadas para cumprir a função de cuidar de seus familiares:

Eu acho que a cultura brasileira, a mulher sempre foi a que cuidou da casa, a que teve perto, tem um senso de responsabilidade muito maior que o homem até porque quando o homem casa, ele vai cuidar é da sua família, eles têm as suas esposas e, e muitas vezes eles se dedicam a família deles, a outra família. A mulher tem mais senso de responsabilidade para ficar e cuidar dos pais, nós mulheres fomos criadas para cuidar da prole e quando nós temos nossos pais, nossos pais viram nossos filhos […] (Anita Garibaldi, 58 anos, casada, cuida do pai acometido por Acidente Vascular Cerebral, há um ano, Porto Alegre/RS).

Os relatos das participantes demonstraram a divisão de trabalho desigual e com maior peso para as mulheres, o que recai sobre elas principalmente quando é preciso decidir o destino da pessoa idosa após tornar-se dependente de cuidados. Em alguns contextos, não há espaço para negociação da divisão de responsabilidades entre os membros familiares e a mulher assume o cuidado. Em outras situações, a mulher recusa a proposta sugerida pelos familiares homens de institucionalizar a pessoa idosa e, com isso, passa a ser a cuidadora.

Para muitas participantes, lhe foram imputadas as práticas de cuidado por serem consideradas delicadas e sensíveis. Afinal, às mulheres se atribuem habilidades inatas ao gênero para a execução das atividades básicas de vida diária: “Eu cuido porque sou mulher, por causa de banho, de troca e tudo, então tem que ser eu para esse cuidado com ela […]” (Elvira Komel, 49 anos, casada, cuida da mãe acometida por Acidente Vascular Cerebral há três anos, Belo Horizonte/MG).

A visão das mulheres sobre as habilidades emocionais para cuidar da pessoa idosa pautam-se em suas próprias experiências pessoais. Comentam que desde a infância receberam atenção, afeto e carinho por meio de suas mães e de outras mulheres. Prova disso, é que acreditam que o familiar idoso se sentirá mais confortável e seguro sendo cuidado por uma mulher, principalmente quando o parente em questão também é deste gênero, pela questão da intimidade com o corpo da pessoa idosa, porque ser despida por um familiar do sexo feminino pode ser menos constrangedor do que pelo sexo masculino.

Em todas as regiões, as participantes referiram, com conformismo, que uma das razões para se tornarem cuidadoras, além do gênero feminino, é o estado civil, principalmente por serem solteiras:

Como eu sou solteira, eu disse: “não, deixa que eu cuido dela”. Tanto que eu me disponibilizei para vir para cá porque eu vi que ela estava muito depressiva e não ia dar certo lá. O meu irmão trabalha no aeroporto de Joinville, tem a minha cunhada que cuida das crianças pequenas […] (Zilda Arns, 48 anos, solteira, filha cuida da mãe com câncer há 4 anos, Araranguá/SC)

As participantes discorreram que estar solteira foi interpretado por elas e pelos seus familiares como disponibilidade para assumir a responsabilidade do cuidado. Em nenhum momento os seus desejos e projetos de vida foram levados em consideração pelos membros da família. A mulher não consegue escapar do seu destino de cumprir a cartilha patriarcal. Essa realidade também esteve presente nas situações em que a filha cuidadora era viúva, divorciada ou com os filhos já adultos.

Para outras mulheres, coabitar com a pessoa idosa pressupôs dar continuidade ao cuidado recebido pelo familiar idoso. São filhas, irmãs e netas que reproduzem o comportamento materno de zelar, cuidar e proteger: “Eu sempre morei com ela, desde quando eu nasci, passei a me dedicar mesmo ao cuidado depois que me tornei mãe, ela cuidou tanto de mim e agora estou retribuindo cuidando dela […]” (Nise da Silveira, 33 anos, solteira, cuida da avó com insuficiência renal há quatro anos, Manaus/AM).

Homens ausentes no ato de cuidar: manutenção da masculinidade

O modelo da cultura cisheteropatriarcal norteia o modo de pensar, agir e se comportar da mulher na sociedade. Tal modelo faz que, na ausência de mulheres na família, os filhos homens transfiram a responsabilidade do cuidar para as esposas: “Meu esposo viu que era melhor ela ficar conosco (…) no começo, ela não gostava de mim por eu ser negra, mas nem por isso eu tenho raiva dela, aprendi a amar ela […]” (Enedina Alves Marques, 54 anos, casada, cuida da sogra com insuficiência cardíaca há seis anos, Teresina/PI).

Enedina relata que pela união matrimonial e amor ao marido passou a cuidar da sogra, adaptou sua rotina e reprimiu quaisquer formas de expressão, como sentimentos, opiniões, desejos e planos para o futuro. A relação com a idosa era marcada por racismo e hostilidade, mas, apesar disso, aprendeu a ter afeto pela sogra. Seu marido exerceu controle sobre ela, tratando-a como se fosse sua propriedade, como ocorre nas mais tradicionais sociedades patriarcais.

Para outras mulheres, a responsabilidade de cuidar assume ares de desabafo ao longo da narrativa. Uma delas considera seu irmão uma pessoa sem ação - “nunca fez nada” -, visto que ambos foram socializados com responsabilidades distintas: a ele coube a dedicação aos estudos e a ela a responsabilidade moral pela proteção da vida da idosa, além da promoção do bem-estar afetivo:

Ele [o irmão] é o filho preferido dela, ela sempre mimou muito ele. Ele nunca foi de ajudar e filho homem é assim, nunca está muito disponível e eu via que a minha mãe precisava de ajuda. Então, desde que meu pai morreu, eu acabei ficando mais forte, amadurecendo para dar suporte a ela […] (Carmem da Silva, 36 anos, solteira, cuida da mãe com câncer há 10 meses, Porto Alegre/RS).

A mulher cuida de modo solitário, mesmo em situações em que parentes masculinos residem na mesma casa da pessoa idosa. Ademais, a habilidade para as práticas de cuidado exercida pelo irmão é percebida apenas pela força física:

Só tem eu de filha, meu irmão e a mulher dele moravam aqui com a gente, mas ele passava, subia e descia, não dava nem um bom dia. Hoje ele está separado, mas cuida num sentido de (…) a mamãe está doente e ninguém consegue colocar ela no braço, ele consegue levantar ela […] (Nísia Floresta, 54 anos, solteira, cuida da mãe que tem embolia pulmonar há 14 anos, Fortaleza/CE).

A vida dos homens não foi alterada, seguiram com a sua liberdade nas diferentes dimensões da vida profissional e familiar. Em raras ocasiões, se oferecem para levar a pessoa idosa ao médico ou visitar nos finais de semana.

“Sou a esposa”: responsabilidade marital e identidade de gênero para o cuidar

Em outros contextos, pesa na decisão de se tornarem cuidadoras familiares a responsabilidade marital das mulheres, fundada na experiência amorosa cotidiana tradicional do amor romântico, em que a compaixão e a solidariedade estão no centro da construção diária e o sentimento percebido como amor é o alicerce para as esposas assumirem o cuidado de seus companheiros: “Tem toda uma história antes, um companheiro, quando a gente casa é para o resto da vida, tem que aguentar, enquanto eu tiver força, eu vou aguentando, é minha responsabilidade como esposa. Os filhos têm a vida deles […]” (Nise da Silveira, 69 anos, casada, cuida do marido com doença de Parkinson há três anos, Araranguá/SC).

Outro tema que surgiu, a partir dos relatos das entrevistadas, é a obrigatoriedade de cuidar dos cônjuges agressores. Mesmo quando o casamento foi permeado por violência, muitas mulheres cuidam por caridade: “A gente cuida porque ele [o idoso] é um ser humano. A gente tem que fazer caridade, se não fosse por isso, ele já teria morrido de cachaça […]” (Maria da Penha, 72 anos, esposa, cuida do marido com dificuldade de locomoção há 3 anos, Fortaleza/CE).

Nesse caso, os efeitos do alcoolismo e a violência física, verbal e psicológica contra os filhos afetaram a dinâmica familiar de tal modo que não houve construção de vínculo. Com a enfermidade e a dependência, os filhos se abstiveram de cuidar do pai. As mulheres que cuidam de seus agressores referem que cuidam por não quererem vê-los em situações degradantes de adoecimento e de abandono.

A economia e o cisheteropatriarcado como norteadores para assumir o cuidado

Outra faceta da socialização de gênero que atribui o cuidado às mulheres se ampara no afastamento do mercado de trabalho por ocasião do desemprego, em que a possibilidade de retorno às atividades laborais se torna distante frente à nova realidade: “Assumi o cuidado pois estava desempregada, tive dificuldade de aceitar a minha situação de cuidar dos meus pais, não por falta de amor, mas a condição de não ter renda alguma para sobreviver […]” (Chiquinha Gonzaga, 57 anos, casada, cuida do pai com Alzheimer há 3 anos, Brasília/DF).

Ao não enxergar alternativas para cuidar dos pais dependentes, a mulher assume o cuidado e se depara com a renúncia de sua vida pessoal:

A gente se submete a isso, porque a gente não tem condição financeira para pagar uma cuidadora (…) a gente teve que se doar, a gente faz, se dedica com amor e tudo mais, mas no meio do amor tem o estresse, a gente renuncia muito, antes de estar aqui envolvida, eu trabalhava com vendas, toda vida eu trabalhei e hoje vivo na dependência dos outros […] (Bertha Lutz, 60 anos, cuida do pai com embolia pulmonar há 3 anos, Fortaleza/CE).

Para algumas famílias, o custeio do cuidador formal é uma alternativa viável para que a dinâmica da vida da mulher e suas atividades laborais não sejam alteradas, porém, a atribuição do gerenciamento do cuidado e o suporte emocional e físico ao idoso doente ainda recaem sobre a mulher. Entretanto, a maioria das famílias deste estudo não possuíam condições financeiras para pagar um cuidador formal. Dessa forma, boa parte das cuidadoras familiares tiveram que interromper ou limitar suas atividades sociais e laborais, para terem disponibilidade em tempo integral para o exercício do cuidado, composto por um trabalho ininterrupto com uma rotina diária repetitiva.

Apenas em dois contextos do grupo aqui entrevistado as mulheres reivindicaram, junto aos irmãos, receber auxílio financeiro para se dedicar integralmente aos cuidados dos pais idosos:

Um [dos irmãos da depoente] disse que não ia poder fazer nada porque ele não tinha obrigação e quem tinha que cuidar da mãe eram as filhas mulheres. Daí, tudo bem, era um pensamento dele, mas eu disse que cada um deles tinha que dar alguma coisa [ajuda financeira], pois eu não sou aposentada, tive que parar as minhas costuras, é como se eu fosse uma cuidadora dela, então eu tenho que ganhar por isso, porque eu não tenho salário […] (Marielle Franco, 59 anos, casada, filha, cuida da mãe com Acidente Vascular Cerebral há 26 anos, Rio de Janeiro/RJ).

Discussão

As evidências científicas apontam que, majoritariamente, a mulher assume o cuidado de idosos dependentes. São filhas e esposas, com idade superior a 50 anos e casadas, cuja função caracteriza-se como um marcador das desigualdades de poder entre homens e mulheres presentes na sociedade (Rodger; Neill; Nugent, 2015RODGER, D.; NEILL, M. O.; NUGENT, L. Informal carers’ experiences of caring for older adults at home: a phenomenological study. British Journal of Community Nursing, London, v. 20, n. 6, p. 280-285, 2015. DOI: 10.12968/bjcn.2015.20.6.280
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; Fernandez, et al, 2018FERNANDEZ, M. L. et al. The start of caring for an elderly dependent family member: a qualitative metasynthesis. BMC Geriatrics, Berlin, v. 18, 2018. DOI: 10.1186/s12877-018-0922-0
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; Oshio; Kan, 2018OSHIO, T.; KAN, M. Impact of parents’ need for care on middle-aged women’s lifestyle and psychological distress: evidence from a nationwide longitudinal survey in Japan. Health and Quality Life Outcomes, Berlin, v. 16, n. 63, 2018. DOI: 10.1186/s12955-018-0890-2
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; Tavero et al., 2018TAVERO, I. L. et al. The gender perspective in the opinions and discourse of women about caregiving. Revista Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 52, e03370, 2018. DOI: 10.1590/S1980-220X2017009403370
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).

Butler (2018BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.) argumenta que o poder deve ser entendido como formador do sujeito, que influencia a própria condição de existência e trajetória de desejo. Ainda, pode ser compreendido como aquilo que a pessoa internaliza e aceita para constituir-se enquanto sujeito. Portanto, estar cuidadora costuma ser um destino que as mulheres não escolhem, mas, paradoxalmente, iniciam e sustentam perante as expectativas da sociedade sobre elas.

A mulher cumpre o papel social feminino imposto pelo cisheteropatriarcado ao aceitar e validar o contexto histórico e cultural, que a coloca como responsável pelo cuidado dos membros familiares. Durante a socialização, ela está exposta à prática de cuidar, ao observar sua mãe e outras mulheres da família cuidando, e, assim, percebem o cuidado como algo exclusivo do gênero feminino e não o questionam quando imposto a si (Meira et al.,2017MEIRA, E.C. et al. Women’s experiences in terms of the care provided to dependent elderly: gender orientation for care. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, e20170046, 2021. DOI: 10.5935/1414-8145.20170046
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; Mcdermott; Mendez-Luck, 2018MCDERMONTT, E.; MENDEZ-LUCK, C. A. The Processes of Becoming a Caregiver Among Mexican-Origin Women: A Cultural Psychological Perspective. SAGE Open, Thousand Oaks, v. 8, n. 2, 2018. DOI:10.1177/2158244018771733
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; Pereira et al., 2018PEREIRA, R. M. et al. Mayores cuidando mayores: sus percepciones desde una mirada integral. Enfermería: Cuidados Humanizados, Montevideo, v. 7, n. 2, p. 83-108, 2018; DOI: 10.22235/ech.v7i2.1653
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; Zanello, 2018ZANELLO, V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.).

O cuidado exercido exclusivamente pela mulher contribui para a manutenção do modelo de cuidado centrado na família. Por essa concepção, a figura feminina também é protagonista no alto envolvimento da família nos cuidados de seus entes dependentes em outros países, como constatado em pesquisas realizadas na Espanha, em Portugal, na Grécia, no México e no Chile (Del-Pino-Casado et al., 2017DEL-PINO-CASADO, R. et al. Gender differences in primary home caregivers of older relatives in a Mediterranean environment: A cross-sectional study. Archives of Gerontology and Geriatrics, Amsterdam, v. 69, p. 128-133, 2017. DOI: 10.1016/j.archger.2016.11.012.
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; Pereira et al., 2018PEREIRA, R. M. et al. Mayores cuidando mayores: sus percepciones desde una mirada integral. Enfermería: Cuidados Humanizados, Montevideo, v. 7, n. 2, p. 83-108, 2018; DOI: 10.22235/ech.v7i2.1653
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; Mendez-Luck; Anthony; Guerrero, 2019). As crenças e os valores em relação à obrigatoriedade do cuidado atribuído à mulher fazem com que não seja socialmente aceita a institucionalização da pessoa idosa, de forma que a mulher o assume, muitas vezes de modo solitário, ou com auxílio de outras mulheres da família (Pereira et al., 2018)PEREIRA, R. M. et al. Mayores cuidando mayores: sus percepciones desde una mirada integral. Enfermería: Cuidados Humanizados, Montevideo, v. 7, n. 2, p. 83-108, 2018; DOI: 10.22235/ech.v7i2.1653
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A experiência com o cuidado desde a infância habilita as mulheres a incorporarem essa prática com sentimentos de ternura e compaixão, os quais não podem ser ofertados por nenhuma outra pessoa. As razões que as influenciam a ser carinhosas estão sustentadas pelo papel feminino tradicional, que as socializa como responsáveis pelos cuidados que assumem (Beauvoir, 1970BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.; Oshio; Kan, 2018OSHIO, T.; KAN, M. Impact of parents’ need for care on middle-aged women’s lifestyle and psychological distress: evidence from a nationwide longitudinal survey in Japan. Health and Quality Life Outcomes, Berlin, v. 16, n. 63, 2018. DOI: 10.1186/s12955-018-0890-2
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; Bourdieu, 2019BOURDIEU, P. A dominação masculina. 19 ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2019.).

A identidade masculina enquanto construção sócio-histórica se dá através da imitação de comportamentos prototípicos masculinos que se centram na racionalidade, força física e trabalho laboral/provedor da família, colocando-o no topo da cadeia hierárquica. Esses preceitos alimentam a masculinidade tóxica, que coloca a mulher em uma posição subalterna (Beauvoir, 1970BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.; Costa, 2004COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. 5ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2004.; Broady, 2015BROADY, T. R. The Carer Persona: Masking Individual Identities. Persona Studies, Bathurst, v. 1, n. 1, 2015. DOI: 10.21153/ps2015vol1no1art392
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; Butler, 2018BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.; Zanello, 2018ZANELLO, V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.). Há, portanto, o desafio de romper com esse padrão, que introduz subjetivamente a ideologia cisheteropatriarcal na infância e institui os valores das desigualdades de gênero como construções sociais.

A identidade social das cuidadoras familiares pauta-se mais na atribuição da função ao gênero feminino do que em relação ao grau de parentesco com o idoso familiar dependente (Connell; Messerschmidt, 2005CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Gender & Society, Thousand Oaks, v. 19, n. 6, p. 829-859, 2005. DOI: 10.1177/0891243205278639
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; Tavero et al., 2018TAVERO, I. L. et al. The gender perspective in the opinions and discourse of women about caregiving. Revista Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 52, e03370, 2018. DOI: 10.1590/S1980-220X2017009403370
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). A divisão sexual para o cuidado doméstico-familiar é também fortalecida pela atitude das pessoas idosas, de preferirem ser cuidadas por mulheres (Meira et al., 2017)MEIRA, E.C. et al. Women’s experiences in terms of the care provided to dependent elderly: gender orientation for care. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, e20170046, 2021. DOI: 10.5935/1414-8145.20170046
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. O trabalho emocional de realizar atividades para promover o estado emocional positivo de outra pessoa é função da mulher. É parte de uma divisão do trabalho doméstico e emocional não remunerado, altamente sensível ao gênero, em que as mulheres têm uma participação desproporcional em relação aos homens (Connell; Messerschmidt, 2005CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Gender & Society, Thousand Oaks, v. 19, n. 6, p. 829-859, 2005. DOI: 10.1177/0891243205278639
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; Thomeer; Reczek; Umberson, 2015THOMEER, M. B.; RECZEK, C.; UMBERSON, D. Gendered emotion work around physical health problems in mid-and later-life marriages. Journal of Aging Studies, Amsterdam, v. 32, p. 12-22, 2015. DOI: 10.1016/j.jaging.2014.12.001
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).

Coabitar com a pessoa idosa e o fato de as mulheres estarem solteiras foram razões atribuídas para se tornarem cuidadoras. Essa realidade reproduz fielmente a cultura cisheteropatriarcal, em que as mulheres são destinadas ao casamento e à maternidade (Beauvoir, 1970BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.; Costa, 2004COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. 5ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2004.). Na ausência destas tarefas, estão livres para cuidar dos pais enfermos. Muitas, no entanto, acumulam todas essas funções. Uma investigação longitudinal no Japão encontrou que cerca de 30% das mulheres começaram a cuidar de seus pais ou sogros por viverem na mesma residência (Oshio; Kan, 2018OSHIO, T.; KAN, M. Impact of parents’ need for care on middle-aged women’s lifestyle and psychological distress: evidence from a nationwide longitudinal survey in Japan. Health and Quality Life Outcomes, Berlin, v. 16, n. 63, 2018. DOI: 10.1186/s12955-018-0890-2
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).

O homem destina à mulher a função do cuidado da família. Essa é uma imposição velada também às noras para que cuidem dos sogros, mesmo sem terem vínculos afetivos com eles. A opressão está presente na vida das mulheres quando estas não têm poder de decisão (Beauvoir, 1970BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.; Butler, 2018BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.). A violência simbólica contra a mulher se reafirma e se reproduz quando os homens reafirmam seu lugar no mundo e a conduzem para que cumpra seu destino de cuidadora. Essa violência simbólica aparentemente suave, naturalizada, invisível e insensível às suas próprias vítimas se exerce pelas vias da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento dos sentimentos e dos desejos femininos (Bourdieu, 2019BOURDIEU, P. A dominação masculina. 19 ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2019.)

A influência da socialização pela desigualdade de gênero está presente quando as mulheres, apesar de desabafarem sobre a ausência dos homens no cuidado, aceitam sem questionar o distanciamento e o comportamento machista deles em não ofertarem ajuda, o que lhes reforça a falta de liberdade e de autonomia para romper com os papéis de gênero tradicionais (Costa, 2004COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. 5ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2004.). O efeito disso é tão forte que as cuidadoras familiares relacionam o homem com a incapacidade de cuidar (Tavero et al., 2018TAVERO, I. L. et al. The gender perspective in the opinions and discourse of women about caregiving. Revista Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 52, e03370, 2018. DOI: 10.1590/S1980-220X2017009403370
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). Os rótulos de força e racionalidade atribuídos a eles, características úteis para o trabalho físico e instrumental, estão de acordo com as crenças tradicionais de gênero que os posicionam como protetores e provedores da família, ainda que as mulheres tenham um trabalho profissional (Thomeer; Reczek; Umberson, 2015THOMEER, M. B.; RECZEK, C.; UMBERSON, D. Gendered emotion work around physical health problems in mid-and later-life marriages. Journal of Aging Studies, Amsterdam, v. 32, p. 12-22, 2015. DOI: 10.1016/j.jaging.2014.12.001
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). A ausência dos homens no cuidado contribui para a manutenção do patriarcado, dando a eles mais tempo e energia para investirem em suas carreiras (Bozalek; Hooyman, 2012BOZALEK, V.; HOOYMAN, N. R. Ageing and intergenerational care: Critical/political ethics of care and feminist gerontology perspectives. Agenda, Durban, v. 26, n. 4, p. 37-47, 2012. DOI: 10.1080/10130950.2012.755378
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; Alves, 2013ALVES, A. E. S. Divisão sexual do trabalho: a separação da produção do espaço reprodutivo da família. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 271-289, 2013. DOI: 10.1590/S1981-77462013000200002
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).

As esposas estão na linha de frente do ato de cuidar quando surgem problemas de saúde física nos maridos (Broady, 2015BROADY, T. R. The Carer Persona: Masking Individual Identities. Persona Studies, Bathurst, v. 1, n. 1, 2015. DOI: 10.21153/ps2015vol1no1art392
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), entretanto, o fazem de modo solitário. Observa-se maior oferta de apoio quando os homens cuidam de suas esposas (Sousa et al., 2021SOUSA, G. S. et al. Metamorfosis in the lives of elderly people caring for dependent elderly in brazil. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 30, e20200608, 2021. DOI: 10.1590/1980-265X-TCE-2020-0608
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).

Chama atenção, particularmente, o fato de esposas e ex-esposas que tiveram os casamentos permeados por violências e traições estarem cuidando do marido idoso e doente para que não morram abandonados. São atitudes de mulheres movidas pela responsabilidade ética e moral de ofertar cuidado (Costa et al., 2020COSTA, A. F. D. et al. Quality of life and burden of caregivers of elderly people. Texto & Contexto Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 29, e20190043, 2020. DOI: 10.1590/1980-265X-TCE-2019-0043
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; Sousa et al., 2021SOUSA, G. S. et al. Metamorfosis in the lives of elderly people caring for dependent elderly in brazil. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 30, e20200608, 2021. DOI: 10.1590/1980-265X-TCE-2020-0608
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; Sousa et al., 2021SOUSA, G. S. et al. “We are humans after all”: Family caregivers’ experience of caring for dependent older adults in Brazil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 1, p. 27-35, 2021. DOI: 10.1590/1413-81232020261.30172020
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), o que corrobora com a socialização de gênero (Beauvoir, 1970BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.; Costa, 2004COSTA, J. F. Ordem médica e norma familiar. 5ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2004.; Butler, 2018BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.; Fernandez, 2018FERNANDEZ, M. L. et al. The start of caring for an elderly dependent family member: a qualitative metasynthesis. BMC Geriatrics, Berlin, v. 18, 2018. DOI: 10.1186/s12877-018-0922-0
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). Não importam as marcas da violência que a mulher carrega na sua história de vida. A ela é destinado o ato de cuidar, inclusive de seus agressores.

Das entrevistadas, várias mulheres tiveram que renunciar a sua liberdade financeira, retirando-se do mercado de trabalho. Portanto, se por um lado, há avanços na participação feminina na vida profissional fora do ambiente doméstico, o adoecimento de um familiar as convoca diretamente para ocupar sua função tradicional de cuidadora e reservada ao lar. Com isso, é notável aqui e em outros países que quase não existe participação de cuidadoras no mercado formal de trabalho (Del-Pino-Casado et al., 2017DEL-PINO-CASADO, R. et al. Gender differences in primary home caregivers of older relatives in a Mediterranean environment: A cross-sectional study. Archives of Gerontology and Geriatrics, Amsterdam, v. 69, p. 128-133, 2017. DOI: 10.1016/j.archger.2016.11.012.
https://doi.org/10.1016/j.archger.2016.1...
; Oshio; Kan, 2018OSHIO, T.; KAN, M. Impact of parents’ need for care on middle-aged women’s lifestyle and psychological distress: evidence from a nationwide longitudinal survey in Japan. Health and Quality Life Outcomes, Berlin, v. 16, n. 63, 2018. DOI: 10.1186/s12955-018-0890-2
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).

De fato, uma das principais implicações na vida das mulheres cuidadoras, antes incluídas no mercado de trabalho, é o abandono do emprego remunerado, pela incompatibilidade com a dedicação ao cuidado (Fernandez, 2018FERNANDEZ, M. L. et al. The start of caring for an elderly dependent family member: a qualitative metasynthesis. BMC Geriatrics, Berlin, v. 18, 2018. DOI: 10.1186/s12877-018-0922-0
https://doi.org/10.1186/s12877-018-0922-...
; Tavero, 2018TAVERO, I. L. et al. The gender perspective in the opinions and discourse of women about caregiving. Revista Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 52, e03370, 2018. DOI: 10.1590/S1980-220X2017009403370
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.) Isso pode explicar também a remuneração mais baixa para mulheres em comparação aos homens. As cuidadoras mulheres estão mais dispostas a desistir do emprego, modificar seus horários de trabalho, renunciar promoções ou oportunidades de desenvolvimento da carreira para acomodar as responsabilidades de cuidado (Bozalek; Hooyman, 2012BOZALEK, V.; HOOYMAN, N. R. Ageing and intergenerational care: Critical/political ethics of care and feminist gerontology perspectives. Agenda, Durban, v. 26, n. 4, p. 37-47, 2012. DOI: 10.1080/10130950.2012.755378
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). Administrar as múltiplas atribuições geradas pelo emprego e pelo cuidado faz com que elas não tenham tempo livre, o que se torna uma fonte de tensão, estresse e preocupação constante (Kuluski et al., 2018KULUSKI, K. et al. “You’ve got to look after yourself, to be able to look after them” a qualitative study of the unmet needs of caregivers of community based primary health care patients. BMC Geriatrics, Berlin, v. 18, 2018. DOI: 10.1186/s12877-018-0962-5
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; Araujo et al., 2019ARAUJO, M.G.O. et al. Caring for the carer: quality of life and burden of female caregivers. Revista Brasileira de Enfermagem, São Paulo, v. 72, n. 3, p. 728-736, 2019. DOI: 10.1590/0034-7167-2018-0334
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; Sousa et al., 2021SOUSA, G. S. et al. Metamorfosis in the lives of elderly people caring for dependent elderly in brazil. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 30, e20200608, 2021. DOI: 10.1590/1980-265X-TCE-2020-0608
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).

As mulheres que cuidam têm menor qualidade de vida, menor bem-estar subjetivo e estão mais propensas a serem acometidas por ansiedade, depressão e problemas de saúde física (Tavero et al., 2018TAVERO, I. L. et al. The gender perspective in the opinions and discourse of women about caregiving. Revista Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 52, e03370, 2018. DOI: 10.1590/S1980-220X2017009403370
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; Araujo et al., 2019ARAUJO, M.G.O. et al. Caring for the carer: quality of life and burden of female caregivers. Revista Brasileira de Enfermagem, São Paulo, v. 72, n. 3, p. 728-736, 2019. DOI: 10.1590/0034-7167-2018-0334
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0...
). Para as mulheres casadas, há aumento da dificuldade de equilibrar as responsabilidades entre a jornada de cuidados, ser mãe e esposa (Rodger; Neill; Nugent, 2015RODGER, D.; NEILL, M. O.; NUGENT, L. Informal carers’ experiences of caring for older adults at home: a phenomenological study. British Journal of Community Nursing, London, v. 20, n. 6, p. 280-285, 2015. DOI: 10.12968/bjcn.2015.20.6.280
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; Thomeer; Reczek; Umberson, 2015THOMEER, M. B.; RECZEK, C.; UMBERSON, D. Gendered emotion work around physical health problems in mid-and later-life marriages. Journal of Aging Studies, Amsterdam, v. 32, p. 12-22, 2015. DOI: 10.1016/j.jaging.2014.12.001
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)

Um dado preocupante é que as cuidadoras tendem a buscar menos serviços de saúde para reportar seus problemas, seja pela falta de disponibilidade de tempo ou por não perceberem a si mesmas no processo de cuidar do outro (Sousa et al., 2021SOUSA, G. S. et al. Metamorfosis in the lives of elderly people caring for dependent elderly in brazil. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 30, e20200608, 2021. DOI: 10.1590/1980-265X-TCE-2020-0608
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). Por sua vez, os profissionais de saúde centram seu cuidado na pessoa dependente e não costumam ofertar suporte aos cuidadores, mesmo nos casos em que ambos são idosos (Araujo et al., 2019ARAUJO, M.G.O. et al. Caring for the carer: quality of life and burden of female caregivers. Revista Brasileira de Enfermagem, São Paulo, v. 72, n. 3, p. 728-736, 2019. DOI: 10.1590/0034-7167-2018-0334
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).

É interessante observar que, nas entrevistas realizadas, poucas mulheres viram o exercício de ser cuidadora como uma profissão ou um trabalho que devesse ser remunerado. O fato de exigir remuneração sinalizaria um movimento de empoderamento delas, ainda que não houvesse a escolha de cumprir tal função. Mas esse movimento não foi observado.

A literatura discorre sobre a falta de importância que as mulheres dão para a atividade de cuidado, porque a naturalizam e, portanto, não esperam qualquer reconhecimento econômico ou social pela sua execução, se resignando a serem dependentes de outros (Broady, 2015BROADY, T. R. The Carer Persona: Masking Individual Identities. Persona Studies, Bathurst, v. 1, n. 1, 2015. DOI: 10.21153/ps2015vol1no1art392
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). Por sua vez, a sociedade espera que elas sejam as cuidadoras primárias, embora não lhes oferte nem apoio psicológico nem financeiro. Os problemas enfrentados pelas cuidadoras soam como preocupações pessoais. Desse modo, pouca atenção tem sido direcionada aos arranjos estruturais que criam a dependência das mulheres e limitam suas escolhas, inclusive na velhice (Bozalek; Hooyman, 2012BOZALEK, V.; HOOYMAN, N. R. Ageing and intergenerational care: Critical/political ethics of care and feminist gerontology perspectives. Agenda, Durban, v. 26, n. 4, p. 37-47, 2012. DOI: 10.1080/10130950.2012.755378
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).

Ensaio teórico sobre as políticas de apoio aos idosos em situação de dependência encontrou que os países europeus incluíram as políticas sobre a dependência nos marcos de seu sistema de seguridade social; alguns oferecem proteção total, disponibilizando cuidadores formais, capacitação, treinamento e remuneração aos familiares, outros apenas auxiliam parcialmente o idoso e o cuidador familiar. Em nenhum deles a pessoa idosa dependente deixa de receber os cuidados de que precisa (Minayo et al., 2021MINAYO, M. C. S. et al. Support policies for dependent older adults: Europe and Brazil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 1, p. 137-146, 2021. DOI: 10.1590/1413-81232020261.30262020
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). No Brasil, temos duas experiências locais: em Belo Horizonte, o Programa Maior Cuidado oferta cuidadores formais custeados pelo município aos idosos com algum grau de dependência que possuam familiares e estejam em extrema vulnerabilidade financeira; e, em São Paulo, o Programa de Acompanhante de Idosos oferece cuidado domiciliar com profissionais e acompanhantes a idosos em situação de fragilidade clínica, vulnerabilidade social, isolamento ou exclusão social devido à insuficiência de suporte familiar ou social (Minayo et al., 2021MINAYO, M. C. S. et al. Support policies for dependent older adults: Europe and Brazil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 1, p. 137-146, 2021. DOI: 10.1590/1413-81232020261.30262020
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; Sousa et al., 2022SOUSA, G. S. et al. Programa de cuidado à pessoa idosa dependente: estudo de caso em um município do sudeste do Brasil. In: MINAYO, M. C. S.; SILVA, R. M.; BRASIL, C. C. P. (Org.). Cuidar da pessoa idosa dependente: desafios para as famílias, o Estado e a sociedade. Ceará: Eduece, 2022. p. 372-391.).

Ainda sobre o Brasil, encontra-se há três anos em tramitação o projeto de Lei 6.892/2010, que cria uma política nacional de apoio ao cuidador informal não remunerado de pessoas em situação de dependência para o exercício de atividades da vida diária. Dentre as propostas estão: capacitação e apoio ao cuidador informal; benefício da prestação continuada para idosos em extrema vulnerabilidade financeira; possibilidade de assistência financeira aos cuidadores informais e apoio comunitário para períodos de descanso (Brasil, 2019)BRASIL. Comissão aprova política nacional de apoio aos cuidadores informais de idosos. Câmara dos Deputados, Brasília, DF. Notícias. Disponível em: <Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/611328-comissao-aprova-politica-nacional-de-apoio-aos-cuidadores-informais-de-idosos/#:~:text=A%20Comiss%C3%A3o%20de%20Defesa%20dos,de%20atividades%20da%20vida%20di%C3%A1ria >. Acesso em: 27 dez 2022.
https://www.camara.leg.br/noticias/61132...
. O isolamento social e a pandemia por covid-19 certamente agravaram os contextos de cuidados ofertados e a saúde física e emocional das cuidadoras familiares, bem como suas perspectivas de futuro em relação a velhice e a aposentadoria, o que torna emergente nas agendas da Câmara e do Senado a aceleração da tramitação e aprovação da lei citada, para garantir algum apoio aos cuidadores familiares.

Os resultados deste estudo não podem ser generalizados, pelo fato de utilizar uma amostra pequena, entretanto, salienta-se que os achados corroboraram com a literatura nacional e internacional, acrescentando novos conhecimentos para pensar propostas de apoio e cuidado às mulheres que cuidam de seus familiares idosos. A amostra por conveniência se deve à dificuldade em localizar essas cuidadoras nos registros oficiais dos serviços de saúde, o que reforça a invisibilidade das pessoas e do tema no contexto brasileiro. Assume-se também a limitação de não ter investigado sobre a raça e a classe social - categorias que se interseccionam com o gênero -, recomenda-se, portanto, que futuras pesquisas incluam essa diferenciação social.

Considerações finais

As mulheres cuidadoras deste estudo vêm de uma geração que vivenciou desde a infância o fomento do cuidado como inerente ao sexo feminino. São mulheres educadas de modo diferente dos homens, como se fossem incapazes de exercer outras atividades senão as domésticas, por isso, é observado passividade e altruísmo no modo solitário com que assumem o cuidado. A delicadeza, a destreza, o vínculo e a aproximação com a pessoa idosa foram justificativas atribuídas pelas mulheres deste estudo para assumir o cuidado de seus familiares mais velhos. No caso deste estudo, chamou atenção as mulheres solteiras que residiam com a pessoa idosa, pois, mais que nunca, a obrigatoriedade do cuidado recaiu sobre elas. Da mesma forma, cita-se as esposas que cuidam de seus maridos, mesmo nas situações em que o casamento foi permeado por violências e muitos as haviam abandonado. Em todas as situações, à mulher não foi dada possibilidade de escolhas, a não ser assumir o cuidado, para que não ocorresse o abandono da pessoa idosa ou sua institucionalização, o que poderia levar ao não cumprimento do papel destinado a mulher na sociedade e torná-la alvo de rigoroso julgamento moral.

É preciso levar em consideração que uma das desigualdades de gênero mais cruéis é o fato das mulheres se retirarem do mercado de trabalho, passarem a depender financeiramente de outros e se empobrecerem sem que os homens nada façam para compartilhar os cuidados de seus familiares.

Os resultados deste estudo contribuem para a discussão dos papeis de gênero nas responsabilidades sociais sobre as famílias, principalmente. Igualmente, subsidia a reflexão dos profissionais de saúde, para que sejam agentes de cuidado também em relação às pessoas que cuidam. Que suas agendas possam ser adaptadas para inserir consultas com as cuidadoras, além de ouvir e atender ao idoso dependente. Na perspectiva da educação, que o conhecimento produzido sobre a inequidade de gênero que vivenciam às mulheres cuidadoras possam ser incorporado aos conteúdos pedagógicos para formar profissionais de saúde que reconheçam as necessidades das cuidadoras e proponham intervenções para melhorar sua qualidade de vida.

Do ponto de vista político, este estudo aponta para a necessidade de políticas públicas para cuidadores, com aumento da oferta e diversidade de serviços para que os familiares, tanto mulheres como homens, possam ser empoderados e escolher se querem assumir o cuidado, recebendo apoio educacional e econômico para tal. Deve ser reconhecida a legitimidade social do trabalho do cuidador com oferta de capacitação, treinamento e suporte domiciliar; oferta de cuidadores formais, remuneração ou flexibilização no trabalho remunerado para o exercício da função de cuidador familiar. Que os sacrifícios e repercussões do cuidado familiar, atualmente tão naturalizado e desvalorizado, sejam minimizados. A pessoa idosa e quem dela cuida merecem uma vida com mais atenção e qualidade.

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  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq) por meio do processo nº 405835/2016-7

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2022
  • Revisado
    27 Dez 2022
  • Aceito
    31 Jan 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br