Compreendendo o termo gordofobia médica a partir da perspectiva de pessoas gordas

Understanding the term medical fatphobia from the perspective of fat people

Marina Bastos Paim Douglas Francisco Kovaleski Bruna Lima Selau Sobre os autores

Resumo

O ativismo gordo tem como objetivo unir e mobilizar pessoas gordas, a fim de romper com a inviabilização de seus corpos e denunciar a gordofobia. Há algum tempo, o ativismo vem impulsionando a expressão “gordofobia médica” para denunciar a opressão vivenciada dentro dos serviços de saúde. Este artigo tem como objetivo compreender o termo, a partir da percepção de pessoas gordas. É uma pesquisa qualitativa, com dados coletados por meio de um questionário virtual direcionado a pessoas gordas ou ex-gordas, que alcançou 515 respondentes de todas as regiões do Brasil. Os dados foram analisados utilizando a análise temática, com a criação de seis categorias. Entre os principais resultados, pode-se compreender que a gordofobia médica envolve: despreparo, desrespeito e autoritarismo; reprodução de estereótipos, repulsa e preconceito, desumanização da pessoa gorda, diagnóstico superficial e generalizante, desprezo da queixa, foco no peso e negligência, e precarização do acesso e dos cuidados em saúde. Conclui-se que o estudo auxilia na compreensão do termo gordofobia médica, o que facilita o seu reconhecimento e prevenção na área da saúde.

Palavras-chave:
Gordofobia; Gordofobia Médica; Obesidade; Violência Institucional; Estigma do Peso

Abstract

Fat activism aims to unite and mobilize fat people to break with the impracticability of these bodies and denounce fatphobia. For some time now, activism has been pushing the expression “medical fatphobia” to denounce the oppression experienced by fat people within health services. This article aims to understand the term, from the perspective of fat people. This is a qualitative research, with data were collected via a virtual questionnaire aimed at fat or formerly fat people, which reached 515 respondents from all regions of Brazil. Data were analyzed using thematic analysis, with the creation of six categories. Among the main results, it can be understood that medical fatphobia involves: unpreparedness, disrespect and authoritarianism; reproduction of stereotypes, disgust and prejudice; dehumanization of the fat person; superficial and generalizing diagnosis; dismissal of the complaint, focus on weight and negligence; and precarious access to the health care. In conclusion, the work helps in understanding the term medical fatphobia, which facilitates its recognition and prevention in the health field.

Keywords:
Fatphobia; Medical Fatphobia; Obesity; Institutional Violence; Weight Stigma

Introdução

O ativismo gordo surgiu nos Estados Unidos no final dos anos 1960, porém se popularizou no Brasil por volta de 2010, por meio das redes sociais (Rangel, 2018RANGEL, N. F. A. O ativismo gordo em campo: política, identidade e construção de significados. 2018. 178 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2018.). Ele tem como objetivo romper com a inviabilização dos corpos gordos, lutar pelos direitos das pessoas gordas e denunciar a gordofobia (Piñeyro, 2016PIÑEYRO, M. Stop Gordofobia y las panzas subversas. Málaga: Zambra y Baladre, 2016.).

A gordofobia é explicada pela autora Magdalena Piñeyro (2016PIÑEYRO, M. Stop Gordofobia y las panzas subversas. Málaga: Zambra y Baladre, 2016.) como um sistema de opressão reproduzido pelas instituições de forma sistemática e estrutural. Ou seja, opera como um sistema de opressão estrutural e se refere à discriminação que pessoas gordas estão submetidas, como humilhação, inferiorização, ridicularização, patologização e exclusão (Rangel, 2018RANGEL, N. F. A. O ativismo gordo em campo: política, identidade e construção de significados. 2018. 178 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2018.). De acordo com Jimenez (2020JIMENEZ, M. L. J. Gordofobia: injustiça epistemológica sobre corpos gordos. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu, v. 4, n. 1, p. 144-161, 2020.), gordofobia é:

[…] uma discriminação que leva à exclusão social e, consequentemente, nega acessibilidade às pessoas gordas. Essa estigmatização é estrutural e cultural, transmitida em muitos e diversos espaços e contextos na sociedade contemporânea (Jimenez, 2020JIMENEZ, M. L. J. Gordofobia: injustiça epistemológica sobre corpos gordos. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu, v. 4, n. 1, p. 144-161, 2020., p. 147).

O setor da saúde, algumas vezes, corrobora com a responsabilização e culpabilização da pessoa gorda, e pode reforçar e/ou ignorar o processo de estigmatização sofrido por ela na sociedade (Puhl; Heuer, 2010PUHL, R. M.; HEUER, C. A. Obesity stigma: important considerations for public health. American journal of public health, Washington, DC, v. 100, n. 6, p. 1019-1028, 2010. DOI: 10.2105/AJPH.2009.159491
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). A gordofobia é sutil, profunda e enraizada, especialmente na área da saúde, e acaba sendo reproduzida dentro dela de maneira consciente ou inconsciente. Conforme Puhl e Heuer (2010PUHL, R. M.; HEUER, C. A. Obesity stigma: important considerations for public health. American journal of public health, Washington, DC, v. 100, n. 6, p. 1019-1028, 2010. DOI: 10.2105/AJPH.2009.159491
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), os serviços de saúde são relatados como um dos principais cenários de preconceito, discriminação e estigmas relacionados ao peso. A gordofobia dentro deles pode ser caracterizada por instalações inapropriadas e falta de equipamentos adequados para pessoas gordas, bem como comentários inapropriados e desrespeitosos mencionados pelos profissionais de saúde (Chrisler; Barney, 2017CHRISLER, J. C.; BARNEY, A. Sizeism is a health hazard. Fat Studies, Oxfordshire, v. 6, n. 1, p. 38-53, 2017. DOI: 10.1080/21604851.2016.1213066
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; Rangel, 2018RANGEL, N. F. A. O ativismo gordo em campo: política, identidade e construção de significados. 2018. 178 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2018.).

O estudo de Puhl e Brownell (2006PUHL, R. M.; BROWNELL, K. D. Confronting and coping with weight stigma: an investigation of overweight and obese adults. Obesity, Malden, v. 14, n. 10, p. 1802-1815, 2006. DOI: 10.1038/oby.2006.208
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) mostrou que mais de dois terços (69%) das pessoas com obesidade e sobrepeso relataram já terem se sentido estigmatizados por médicos, perdendo apenas para membros da família (72%). Logo, em ambientes onde se espera acolhimento podem virar fonte de estigma e estresse (Sutin; Stephan; Terracciano, 2015SUTIN, A.; STEPHAN, Y.; TERRACCIANO, A. Weight Discrimination and Risk of Mortality. Psychological Science, California, v. 26, n. 11, p. 1803-1811, 2015. DOI: 10.1177/0956797615601103
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). A partir desse contexto, o ativismo gordo impulsionou uma discussão a partir da expressão “gordofobia médica” para denunciar a opressão vivenciada pelas pessoas gordas dentro dos serviços de saúde. Rangel (2018RANGEL, N. F. A. O ativismo gordo em campo: política, identidade e construção de significados. 2018. 178 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2018.) conceituou gordofobia médica como:

[…] um conjunto de práticas médicas que envolvem emagrecer a qualquer custo, independentemente de uma perspectiva mais ampla de saúde, envolvendo constrangimento do/a paciente gordo/a e prescrição compulsória de dietas e/ou da cirurgia bariátrica como meios de emagrecimento (Rangel, 2018RANGEL, N. F. A. O ativismo gordo em campo: política, identidade e construção de significados. 2018. 178 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2018., p. 79).

Diante das atuais denúncias, é necessário um debate profundo para compreender a origem da discriminação e suas implicações no cuidado em saúde, pois experiências discriminatórias acarretam iniquidades e efeitos deletérios (Massignam; Dornelles; Nedel, 2015MASSIGNAM, F. M.; DORNELLES, J. L.; NEDEL, F. B. Discriminação e saúde: um problema de acesso. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, DF, v. 24, n. 3, p. 541-544, 2015. DOI: 10.5123/S1679-49742015000300020
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). Dessa forma, é necessário que a área da saúde se aproxime dos debates do ativismo gordo e escute suas demandas. Conforme Amparo-Santos, França e Reis (2020AMPARO-SANTOS, L.; FRANÇA, S. L. G.; REIS, A. B. C. (Organizadoras). Obesidade(s): diferentes olhares e múltiplas expressões. Universidade Federal da Bahia; Universidade Federal do Recôncavo da Bahia; Universidade do Estado da Bahia. Ministério da Saúde, Salvador, 2020, p. 101. Disponível em: Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1D6w_08LlSmVWCJ1fdxQ3QcEoRd1COb35/view . Acesso em: 21 set. 2021.
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), é preciso dar atenção às narrativas e ouvir quem é protagonista dessas vivências, visto o seu histórico silenciamento.

Assim, este trabalho tem como objetivo compreender o termo gordofobia médica a partir da percepção de pessoas gordas. Importante pontuar que esta pesquisa utilizará a expressão “pessoas gordas” não de forma pejorativa ou ofensiva, mas como um termo que caracteriza o grupo. Alguns estudos reiteram que palavras específicas, como obesidade, obeso e obeso mórbido são percebidas negativamente por pessoas gordas, pois carregam conotações negativas e estão associadas a alguma forma de discriminação (Ward; Gray; Paranjape, 2009WARD, S. H.; GRAY, A. M.; PARANJAPE, A. African americans’ perceptions of physician attempts to address obesity in the primary care setting. Journal of General Internal Medicine, New Jersey, v. 24, n. 5, p. 579-584, 2009. DOI: 10.1007/s11606-009-0922-z
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; Albury et al., 2020ALBURY, C. et al. The importance of language in engagement between health-care professionals and people living with obesity: a joint consensus statement. The Lancet Diabetes and Endocrinology, London, v. 8, p. 447-455, 2020. DOI: 10.1016/S2213-8587(20)30102-9
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).

Metodologia

Trata-se de um trabalho exploratório-descritivo, de caráter qualitativo, oriundo de uma tese de doutorado que teve por objetivo caracterizar como se dá a gordofobia nos serviços de saúde. Conforme já mencionado, o ativismo gordo no Brasil está concentrado nos ambientes virtuais, por isso também se optou enquanto técnica de coleta de dados a utilização de um questionário online, pois otimiza o tempo e possui baixo custo, além de ser mais flexível e alcançar taxas de resposta mais elevadas, devido à facilidade e maior garantia de anonimato dos participantes (Faleiros et al., 2016FALEIROS, F. et al. Uso de questionário online e divulgação virtual como estratégia de coleta de dados em estudos científicos. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 25, n. 4, p. 1-6, 2016. DOI: 10.1590/0104-07072016003880014
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; Santos, 2009SANTOS, T. S. Do artesanato intelectual ao contexto virtual: ferramentas metodológicas para a pesquisa social. Sociologias, Porto Alegre, v. 11, n. 21, p. 120-156, 2009. DOI: 10.1590/S1517-45222009000200007
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).

O questionário foi elaborado pelos próprios pesquisadores, a partir de pesquisas científicas, leituras de materiais da área, discussões e trocas entre pesquisadores e com o ativismo gordo. Possui 38 perguntas abertas e/ou de múltipla escolha, organizadas em quatro eixos: (1) caracterização dos participantes, (2) diagnóstico e tratamento da obesidade, (3) gordofobia na saúde, (4) consequências da gordofobia. Primeiramente, foi realizado um piloto com algumas pesquisadoras que compõem o grupo de estudos interdisciplinares do corpo gordo no Brasil. E, a fim de divulgar o questionário, foi realizado um levantamento de 112 ativistas-chaves e coletivos do ativismo gordo, que também auxiliaram na divulgação. Essa estratégia foi essencial para o alcance da pesquisa.

O questionário virtual foi elaborado no Google Docs, ficou disponível do dia 7 de maio até o dia 29 de setembro de 2020 e alcançou 515 respondentes no total, sendo direcionado para pessoas gordas ou ex-gordas por autoidentificação -categoria que considera a fluidez da identidade gorda, se referindo a aqueles que emagreceram (Rangel, 2018RANGEL, N. F. A. O ativismo gordo em campo: política, identidade e construção de significados. 2018. 178 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2018.). Entre os participantes da pesquisa, 92,6% eram pessoas gordas e 7,4% ex-gordas, 93,3% eram mulheres cis, 50,3% tinham entre 25 e 34 anos, 72,2% eram heterossexuais e 71,8% eram brancos. Grande parte dos respondentes possuíam ensino superior (53%) e pós-graduação (49,5%), e a renda mensal (per capita) da maioria estava entre um e três salários-mínimos (39,2%) e entre três e cinco salários-mínimos (25,4%).

Quando questionados se eram ativistas do movimento gordo, 39% relataram que sim, 31,8% que não e 29,1 % não sabiam informar. Entre as formas de atendimento em saúde, considerando que os participantes podiam optar por mais de uma alternativa, 64,5% disseram ter plano de saúde, 43,1% utilizavam os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e 36,3% realizavam consultas particulares. Em relação à abrangência da pesquisa, houve participantes de todas as regiões do país, porém com uma grande concentração da região Sudeste (53,6%), seguida da região Sul (24,8%), da região Nordeste (11%), do Centro-oeste (8,3%) e da região Norte (2,3%).

Neste artigo, foi analisada uma única pergunta do questionário, que fazia parte do eixo 3 e tinha por finalidade ouvir das pessoas gordas o que elas consideravam gordofobia médica, a fim de compreender esse termo levantado pelo ativismo gordo. A pergunta era: “O que é gordofobia médica para você?”. Foram obtidas 442 respostas. Realizou-se uma análise interpretativa, a partir da análise temática, que “[…] consiste em descobrir os núcleos de sentido, que compõe uma comunicação” (Minayo, 2010MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 316), de forma a “[…] identificar, analisar, interpretar e relatar padrões (temas)” (Souza, 2019SOUZA, L. K. Pesquisa com análise qualitativa de dados: conhecendo a Análise Temática. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 71, n. 2, p. 51-67, 2019. DOI: 10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.51-67
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, p. 52). A análise temática envolveu três etapas: pré-análise, que é a exploração do material por meio de leitura flutuante; interpretação, formulação e reformulação de hipóteses; criação de categorias; e tratamento dos resultados obtidos, análises e inferências, de acordo com o referencial teórico (Minayo, 2010MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.).

Os dados foram organizados em planilhas do Excel e cada participante foi identificado pelo número da sua linha (participante-número). O levantamento dos temas emergentes foi realizado de forma manual, após leitura exaustiva do banco de dados. A partir da percepção de frequência e relevância das temáticas foram elaboradas algumas categorias temáticas, e todas as respostas foram distribuídas entre elas. Após diversas revisões e análises, algumas categorias foram agrupadas, totalizando ao final seis categorias temáticas, as quais estão explicitadas abaixo nos resultados. Por fim, o tratamento dos resultados foi realizado com a descrição e análise das categorias conjuntamente com a literatura. Além disso, durante a apresentação dos resultados serão utilizadas algumas respostas pontuais dos participantes de forma a ilustrar a análise.

Acoplado ao questionário virtual foi inserido um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) virtual adaptado, e a participação foi absolutamente voluntária. O projeto foi enviado para o comitê de ética e possui aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (CEPSH/UFSC).

Resultados e discussão

Os resultados serão apresentados e discutidos nas seguintes categorias temáticas: (1) despreparo, desrespeito e autoritarismo; (2) reprodução de estereótipos, repulsa e preconceito; (3) desumanização da pessoa gorda; (4) diagnóstico superficial e generalizante; (5) desprezo da queixa, foco no peso e negligência; (6) precarização do acesso e dos cuidados em saúde; e, por fim, uma breve discussão sobre o termo “gordofobia médica”.

(1) Despreparo, desrespeito e o autoritarismo

Os participantes apontaram o despreparo dos profissionais de saúde para atender os diversos tipos de corpos e as demandas das pessoas gordas. A literatura aponta que os próprios profissionais também relatam ter conhecimento e habilidades insuficientes para lidar com a questão da obesidade dentro dos serviços de saúde, e se sentem mal equipados e mal preparados (Albury et al., 2020ALBURY, C. et al. The importance of language in engagement between health-care professionals and people living with obesity: a joint consensus statement. The Lancet Diabetes and Endocrinology, London, v. 8, p. 447-455, 2020. DOI: 10.1016/S2213-8587(20)30102-9
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).

O profissional está despreparado para ouvir e se relacionar com o paciente. Ser desrespeitoso e desatento para outros sintomas. Ignorante tecnicamente e emocionalmente. (participante-70)

Segundo os participantes, os profissionais costumam realizar suposições decorrentes de uma narrativa dominante e negativa sobre pessoas gordas. Conforme Wharton et al. (2020WHARTON, S. et al. Obesity in adults: a clinical pratical guideline. Canadian Medical Association Journal, Ottawa, v. 192, n. 31, p. 875-891, 2020. DOI: 10.1503/cmaj.191707
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), essas suposições envolvem irresponsabilidade e falta de força de vontade, afetando a qualidade dos cuidados de saúde, e reforçando a culpa e a vergonha desse grupo.

Inacreditável que profissionais de saúde passem anos estudando, se qualificando, pesquisando para reproduzir erros que acabam afetando diretamente na autoestima e saúde mental das pessoas gordas. (participante-409)

Importante relembrar que a educação médica, historicamente, tem ênfase no modelo biomédico, caracterizado por uma visão reducionista e biologicista do processo saúde-doença (Pagliosa; Da Ros, 2008PAGLIOSA, F. L.; DA ROS, M. A. O relatório Flexner: para o bem e para o mal. Revista brasileira de educação médica, Brasília, DF, v. 32, p. 492-499, 2008. DOI: 10.1590/S0100-55022008000400012
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). Esse modelo de educação ainda possui grande influência nos currículos dos cursos superiores da área da saúde e esse foco “[…] apenas em termos biológicos não é só insuficiente, como também pode vir a ser irresponsável” (Silva; Cantisani, 2018SILVA, B. L.; CANTISANI, J. R. Interfaces entre a gordofobia e a formação acadêmica em nutrição: um debate necessário. Demetra, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 363-380, 2018. DOI: 10.12957/demetra.2018.33311
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, p. 375).

Os participantes mencionaram que os profissionais de saúde não exercem o cuidado e muitas vezes não sabem atender às pessoas gordas de forma adequada. Também foi salientada a prepotência e “superioridade” dos profissionais médicos e médicas, que transparecem na sua forma de falar, no tratamento desumano e na liberdade que acreditam ter para dizer o que quiserem, ancorados no discurso de “preocupação” com a saúde da pessoa gorda.

De acordo com Aguiar et al. (2013AGUIAR, J. M. A. et al. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013. DOI: 10.1590/0102-311x00074912
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), a relação profissional-paciente é hierárquica, e o médico detém a autoridade técnico-científica sobre o corpo devido à legitimidade científica dos seus conhecimentos e à dependência do paciente com relação a ele. Martins (2004MARTINS, A. Biopolítica: o poder médico e a autonomia do paciente em uma nova concepção de saúde. Interface, Botucatu, v. 8, n. 14, 2004. DOI: 10.1590/S1414-32832004000100003
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) menciona que o médico, de forma consciente ou não, assume uma posição de onipotência perante o paciente, o qual deve necessariamente se submeter a sua tutela como se fosse uma abdicação temporária - enquanto for “seu paciente” - da própria autonomia.

É quando o médico acredita que, por ser médico e ter estudado durante muito tempo, ele sabe mais de mim ou sobre meu corpo do que eu mesma, e me trata tão mal que deixa traumas no meu emocional. (participante-44)

A autoridade pressupõe confiança e obediência voluntária, e se essa legitimidade for rompida ou questionada, a violência é utilizada como recurso de obediência (Aguiar et al., 2013AGUIAR, J. M. A. et al. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013. DOI: 10.1590/0102-311x00074912
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). No estudo de Aguiar et al (2013AGUIAR, J. M. A. et al. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013. DOI: 10.1590/0102-311x00074912
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) sobre violência institucional nas maternidades, a fim de conseguir “colaboração” do paciente é possível haver coação, como ameaças, grito, força, “brincadeirinhas” ou qualquer outro recurso violento e de submissão do paciente, o que é banalizado e praticamente invisível para os profissionais.

Sea preocupação é o engajamento no tratamento e cuidado com a saúde, é importante lembrar que os profissionais de saúde desrespeitosos são menos propensos a inspirar mudanças, portanto essas ações podem ser contraproducentes. No estudo de Ward, Gray e Paranjape (2009WARD, S. H.; GRAY, A. M.; PARANJAPE, A. African americans’ perceptions of physician attempts to address obesity in the primary care setting. Journal of General Internal Medicine, New Jersey, v. 24, n. 5, p. 579-584, 2009. DOI: 10.1007/s11606-009-0922-z
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), os participantes mencionaram que a forma como as coisas são ditas é de suma importância, também foi enfatizada a necessidade de o profissional demostrar respeito, não realizar julgamentos e expressar preocupação sincera com o bem-estar do paciente.

Não ter empatia para perceber que aquela pessoa precisa de acolhimento, e não de bronca. (participante-259)

É quando o médico não dá atenção ao que você está dizendo porque está muito ocupado em te mandar emagrecer. (participante-42)

As pessoas gordas precisam de atendimento especializado, humanizado, digno e respeitoso, mas geralmente a preocupação gira em torno do desempenho do profissional em estabelecer diagnósticos ao invés de conquistar um vínculo com o paciente, isso porquê há uma desvalorização das interações humanas na assistência à saúde (Schraiber, 2008SCHRAIBER, L. B. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Hucitec ; 2008. 256 p.). Existe uma despersonalização dos cuidados em saúde, fragilização dos vínculos entre profissional e paciente, e pouca reflexão dos profissionais sobre a sua atuação (Aguiar et al., 2013AGUIAR, J. M. A. et al. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013. DOI: 10.1590/0102-311x00074912
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).

(2) Reprodução de estereótipos, repulsa e preconceito

O profissional de saúde também pode extrapolar o plano técnico-científico, deslizando seu juízo profissional para o plano da moral (Schraiber, 2008SCHRAIBER, L. B. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Hucitec ; 2008. 256 p.). Quando isso acontece, há reprodução de estereótipos, repulsa e preconceito em relação às pessoas gordas, que pode culminar em atos discriminatórios. Esses podem ser expressos como desde agressões verbais, físicas e psicológicas, piadas e ridicularização, comentários constrangedores, maldosos e ofensivos sobre o corpo gordo e sua aparência, até a falta de acolhimento e descaso. Ou seja, a gordofobia médica, segundo os participantes, pode ser expressa quando o profissional de saúde age de forma opressiva, sem empatia e acolhimento, utilizando uma abordagem hostil, com violência e terror psicológico.

É chamar de gordo de maneira pejorativa, como se fosse xingamento. (participante-121)

Quando o profissional de saúde te julga como inferior, incapaz, preguiçoso, relaxado, sujo, com péssimos hábitos e outras características negativas apenas por você ser gordo, e usa isso como desculpa para te ofender e maltratar. (participante-295)

As respostas ilustram que a área da saúde costuma reproduzir preconceitos ao emitir opiniões que reforçam estigmas e opressões. Os participantes mencionaram a incapacidade de muitos profissionais enxergarem a pessoa gorda sem rótulos prévios e estereótipos negativos. Conforme os participantes, durante os atendimentos é recorrente que os profissionais realizem prejulgamentos em relação aos hábitos da pessoa gorda, desacreditando que essa possua e consiga manter hábitos saudáveis, além de considerá-la desleixada, incapaz, incompetente e omissa no cuidado da sua saúde.

É olhar para o formato do meu corpo e já criar todo um cenário, sem falar comigo, me ouvir, me tratar como qualquer outro paciente. (participante-233)

É quando a reprodução de estereótipos sobre o corpo gordo se torna mais relevante do que a saúde do paciente. (participante-235)

Esses dados corroboram com estudo de Rubino et al. (2020RUBINO, F. et al. Joint international consensus statement for ending stigma of obesity. Nature Medicine, New York, v. 26, n. 4, p. 485-497, 2020. DOI: 10.1038/s41591-020-0803-x
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), que aponta para a existência de estereótipos baseados no peso, os quais incluem generalizações de que pessoas gordas são preguiçosas, glutonas, carentes, não possuem força de vontade e disciplina, incompetentes, desmotivadas para cuidar da sua saúde, além de culpadas pela sua condição.

Quando nos colocam num estereotipo, dizendo que somos culpados pelas doenças, já que o corpo gordo é consequência de negligência, falta de vontade, fraqueza moral, falta de determinação. (participante-41)

O obeso é desmoralizado, perde sua legitimidade e passa por um processo de culpa que se transforma em um gatilho perigoso, que pode levar à morte. (participante-184)

Os indivíduos acabam se sentindo incompreendidos, favorecendo a internalização do viés de peso (Puhl; Heuer, 2010PUHL, R. M.; HEUER, C. A. Obesity stigma: important considerations for public health. American journal of public health, Washington, DC, v. 100, n. 6, p. 1019-1028, 2010. DOI: 10.2105/AJPH.2009.159491
https://doi.org/10.2105/AJPH.2009.159491...
; Obara; Vivolo; Alvarenga, 2018OBARA, A. A.; VIVOLO, S. R. G. F.; ALVARENGA, M. S. Preconceito relacionado ao peso na conduta nutricional: um estudo com estudantes de nutrição. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 34, n. 8, 2018. DOI: 10.1590/0102-311X00088017
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). Este fenômeno se dá quando a pessoa desenvolve auto culpa e estigma de peso autodirigido, pois internaliza esses estereótipos e realiza uma autodesvalorização (Rubino et al., 2020RUBINO, F. et al. Joint international consensus statement for ending stigma of obesity. Nature Medicine, New York, v. 26, n. 4, p. 485-497, 2020. DOI: 10.1038/s41591-020-0803-x
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). As pessoas gordas com maior Índice de Massa Corporal (IMC) e as mulheres estão mais propensas a sofrer gordofobia médica e à internalização do viés de peso (Rubino et al., 2020RUBINO, F. et al. Joint international consensus statement for ending stigma of obesity. Nature Medicine, New York, v. 26, n. 4, p. 485-497, 2020. DOI: 10.1038/s41591-020-0803-x
https://doi.org/10.1038/s41591-020-0803-...
). Segundo Piñeyro (2016PIÑEYRO, M. Stop Gordofobia y las panzas subversas. Málaga: Zambra y Baladre, 2016.), a sociedade gordofóbica faz as pessoas gordas acreditarem que seu corpo não merece ser vivido, e portanto devem estar em constante fuga dele. Esse contexto prejudica o cuidado de si, pois, segundo a autora, é impossível uma vida com saúde quando a pessoa sofre discriminação e está em constante ódio consigo mesma e seu corpo.

(3) Desumanização da pessoa gorda

Uma questão que teve ênfase nas respostas dos participantes foi em relação à desumanização da pessoa gorda, ou seja, quando o profissional de saúde a vê como um corpo “grande” e “cheio de gordura” que requer intervenção, ignorando a sua humanidade, desconsiderando suas múltiplas dimensões, sua história e seu contexto de vida, reduzindo sua existência ao seu peso e ao seu corpo.

Não tem espaço para ser um indivíduo, você vira o diagnóstico de obeso. Parte do princípio que eu centro a minha existência no fato de ser gorda, o que não é verdade. (participante-62)

É a desumanização da pessoa gorda. É não ser olhada como um ser humano. (participante-123)

Dizer que você é uma ‘bomba relógio’. (participante-229)

O profissional da saúde, pautado no modelo biomédico, observa o corpo a partir de um olhar biologicista e centrado na doença, o que faz com que veja toda pessoa gorda como uma “bomba relógio”, sem realizar uma investigação e avaliação de saúde mais profunda e integral. Conforme Aguiar et al. (2013AGUIAR, J. M. A. et al. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013. DOI: 10.1590/0102-311x00074912
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), o foco somente no corpo biomédico, sem interesse pela pessoa, conduz o atendimento para um fracasso técnico e prático que pode terminar em violência. Sendo assim, a degradação da qualidade ética nas interações entre profissional e paciente é, em grande parte, responsável pela crise de confiança (Aguiar et al, 2013AGUIAR, J. M. A. et al. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013. DOI: 10.1590/0102-311x00074912
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).

Acredito que, mesmo gorda, eu não sou uma doença ambulante, e muitos médicos me tratam assim. (participante-266)

Os médicos já olham para pessoa gorda como se ela fosse um problema. Como se a minha existência fosse o problema. (participante-241)

Essa concepção de que a pessoa gorda é um “problema” reflete no tratamento que ela irá receber, e o objetivo do atendimento em saúde se volta para apontar os riscos da obesidade, e não necessariamente para o cuidado em saúde. Além disso, a desumanização da pessoa gorda retira seus traços e direitos humanos, por isso se torna mais aceitável humilhá-la, desrespeitá-la e envergonhá-la. Conforme Silva e Cantisani (2018SILVA, B. L.; CANTISANI, J. R. Interfaces entre a gordofobia e a formação acadêmica em nutrição: um debate necessário. Demetra, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 363-380, 2018. DOI: 10.12957/demetra.2018.33311
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), a autoridade médica acaba se tornando um instrumento de inferiorização e desumanização das pessoas gordas, resultando seguidamente em negligência médica e diagnósticos superficiais, além do sofrimento infligido ao grupo, que fica desassistido. Ou seja, devido à violência verbal e psicológica que pessoas gordas estão expostas nos serviços de saúde, seus direitos à saúde são usurpados, agravando as desigualdades na área (Rangel, 2018RANGEL, N. F. A. O ativismo gordo em campo: política, identidade e construção de significados. 2018. 178 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2018.).

Conforme Deslandes (2004DESLANDES, S. F. Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar. Ciência Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, p. 7-14, 2004. DOI: 10.1590/S1413-81232004000100002
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), ir contra a violência é o primeiro passo para resgatar a humanidade do atendimento, pois ela representa a negação do outro em sua humanidade. De acordo com Armendane (2018ARMENDANE, G. D. Por um cuidado respeitoso. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 26, n. 3, p. 343-349, 2018.), as atitudes de cuidar e respeitar são maneiras de valorizar intrinsecamente os seres humanos. O ato de cuidar pretende proporcionar bem-estar, sem impor procedimentos e respeitando a autonomia do paciente; o cuidado não pode produzir danos, causar sofrimento e ofender. Por isso, os profissionais de saúde precisam aprender, além de tratar e curar, como cuidar e respeitar (Armendane, 2018ARMENDANE, G. D. Por um cuidado respeitoso. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 26, n. 3, p. 343-349, 2018.).

(4) Diagnóstico superficial e generalizante

Te examinam apenas com um olhar. (participante-78)

Indicar remédio ou bariátrica sem uma conclusão de necessidade, só de olhar. (participante-315)

Esses relatos apontam uma precipitação e possível imprecisão diagnóstica, pois para realizar um diagnóstico é preciso avaliar exames, hábitos, sintomas e ouvir as queixas. No caso da obesidade, o IMC já vêm sendo apontado como um critério diagnóstico frágil (Rubino et al., 2020RUBINO, F. et al. Joint international consensus statement for ending stigma of obesity. Nature Medicine, New York, v. 26, n. 4, p. 485-497, 2020. DOI: 10.1038/s41591-020-0803-x
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), mas conforme as respostas dos participantes na prática, ele vem sendo subutilizado e o diagnóstico de obesidade é realizado de forma superficial, baseado na aparência física.

É muito preocupante que uma análise superficial esteja fundamentando a prescrição de tratamentos farmacológicos e/ou cirúrgicos, demonstrando irresponsabilidade com a saúde e o bem-estar da pessoa gorda. Importante relembrar que a medicalização é de interesse do complexo médico-industrial, que lucra com a venda de fármacos, aparelhos de biotecnologia e cirurgias (Martins, 2004MARTINS, A. Biopolítica: o poder médico e a autonomia do paciente em uma nova concepção de saúde. Interface, Botucatu, v. 8, n. 14, 2004. DOI: 10.1590/S1414-32832004000100003
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).

Qualquer avaliação médica que use como critério apenas a minha aparência física, sem observar exames e outros fatores. (participante-386)

Antes de investigar os sintomas e ver os exames, já verbalizar que o que está acontecendo é devido ao peso. (participante-405)

Os participantes relataram que os profissionais de saúde partem do pressuposto que toda pessoa gorda tem diabetes, colesterol alto, triglicerídeos alterados e pressão alta, apresentando dificuldade em aceitar se essa não for a realidade do paciente. De forma simplória e generalista, os profissionais tratam todos os corpos gordos como se fossem iguais, estabelecendo associações sem levar em conta as individualidades de cada caso. Essa concepção antecipada chega ao extremo de eles não acreditarem em exames laboratoriais, pois é inconcebível uma pessoa gorda não ter resultados alterados.

Projetar suas expectativas de que hábitos essa pessoa tem e que aspectos de personalidade essa pessoa tem. A mim ofende profundamente quando profissionais deduzem que eu sou um conjunto de características que eles leram em um livro e não me dão espaço para ter outras características. (participante-62)

É pré-julgar todo seu quadro clínico, observando apenas o fato de estar acima do peso ideal. (participante-132)

Precisamos desconstruir pensamentos e atitudes genéricas, unilaterais e generalizadas, e abrir a mente para estudo de casos, exceções e metabolismo. Nenhum corpo é igual a outro. (participante-409)

Conforme Rangel (2018RANGEL, N. F. A. O ativismo gordo em campo: política, identidade e construção de significados. 2018. 178 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2018., p. 26), “[…] avaliação em relação à saúde metabólica de uma pessoa não pode ser avaliada apenas de maneira visual e superficial”. Nem sempre se pode estabelecer relações causais entre peso e processos de adoecimento, e muito menos condenar uma pessoa à morte. Até porque as doenças crônicas são multifatoriais, e não exclusividade das pessoas gordas.

É mencionar doenças que são popularmente desenvolvidas em todos os tipos de pessoas (crianças, jovens, idosos, atletas, magros, adultos, etc.), como diabetes, pressão arterial, doenças do coração, como se só pessoas gordas tivessem esse tipo de doença. (participante-50)

Ele olha e já te condena a morte, não vê de forma ampla tudo que você já passou, ou outros problemas existentes, vê apenas o seu peso. (participante-125)

Quando aterrorizam dizendo que eu vou morrer se não emagrecer ‘tantos’ quilos. (participante-178)

De acordo com Albury et al. (2020ALBURY, C. et al. The importance of language in engagement between health-care professionals and people living with obesity: a joint consensus statement. The Lancet Diabetes and Endocrinology, London, v. 8, p. 447-455, 2020. DOI: 10.1016/S2213-8587(20)30102-9
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), ameaçar sobre os riscos de complicações futuras não é útil, e intimidar os pacientes é desnecessário e contraproducente. Conforme Ward, Gray e Paranjape (2009WARD, S. H.; GRAY, A. M.; PARANJAPE, A. African americans’ perceptions of physician attempts to address obesity in the primary care setting. Journal of General Internal Medicine, New Jersey, v. 24, n. 5, p. 579-584, 2009. DOI: 10.1007/s11606-009-0922-z
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), o uso de táticas de intimidação não é eficaz e reduz a receptividade aos aconselhamentos dos profissionais de saúde. Esses possuem a responsabilidade de aderir a princípios éticos no cuidado, assim como ter consciência e compreender as consequências das suas abordagens. Por isso, devem ter cuidado para não basear sua conduta e prescrições em diagnósticos superficiais e generalizantes.

(5) Desprezo das queixas, foco no peso e negligência

Segundo os participantes, as queixas e sintomas relatados durante os atendimentos eram deixados em segundo plano para focar na perda de peso, como se essa fosse a única solução para todos os problemas de saúde. Além de desconsiderar a demanda inicial da consulta, nunca foi solicitado consentimento e indagada a disposição da pessoa gorda em tratar dessa questão.

Qualquer atendimento em que meu peso passe a ser o foco, e não a minha queixa. (participante-181)

Focar no meu peso como a origem de todos os meus problemas de saúde. (participante-336)

Ou seja, há uma tendência de o peso ser o culpado por todos os problemas de saúde da pessoa gorda (Puhl; Heuer, 2010PUHL, R. M.; HEUER, C. A. Obesity stigma: important considerations for public health. American journal of public health, Washington, DC, v. 100, n. 6, p. 1019-1028, 2010. DOI: 10.2105/AJPH.2009.159491
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; Obara; Vivolo; Alvarenga, 2018OBARA, A. A.; VIVOLO, S. R. G. F.; ALVARENGA, M. S. Preconceito relacionado ao peso na conduta nutricional: um estudo com estudantes de nutrição. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 34, n. 8, 2018. DOI: 10.1590/0102-311X00088017
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). No estudo de Ward, Gray e Paranjape (2009WARD, S. H.; GRAY, A. M.; PARANJAPE, A. African americans’ perceptions of physician attempts to address obesity in the primary care setting. Journal of General Internal Medicine, New Jersey, v. 24, n. 5, p. 579-584, 2009. DOI: 10.1007/s11606-009-0922-z
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), os participantes expressaram frustação e raiva com o médico que atribuiu todas as suas queixas ao peso, e embora reconheçam que esse aspecto possa contribuir para alguns quadros, desejam um atendimento voltado para suas queixas, ao invés da sugestão da perda de peso como único tratamento possível.

O estudo também aponta que os médicos deveriam primeiro avaliar a prontidão do paciente para discutir sobre seu peso e averiguar suas experiências anteriores, pois a constante perseguição e insistência foi relatada como um impacto negativo na confiança (Ward; Gray; Paranjape, 2009WARD, S. H.; GRAY, A. M.; PARANJAPE, A. African americans’ perceptions of physician attempts to address obesity in the primary care setting. Journal of General Internal Medicine, New Jersey, v. 24, n. 5, p. 579-584, 2009. DOI: 10.1007/s11606-009-0922-z
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). Além de buscar permissão para discutir o tema (Albury et al., 2020ALBURY, C. et al. The importance of language in engagement between health-care professionals and people living with obesity: a joint consensus statement. The Lancet Diabetes and Endocrinology, London, v. 8, p. 447-455, 2020. DOI: 10.1016/S2213-8587(20)30102-9
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), os profissionais deveriam cuidar para não reduzir todas as consultas da pessoa gorda à repetição da necessidade de perda de peso, o que ocasiona em um descaso com as outras condições de saúde do paciente.

Os participantes relataram que o desprezo com as demandas das pessoas gordas pode chegar ao ponto da recusa a fazer uma investigação, exames ou até mesmo a negação do atendimento e tratamento.

Nutricionista dizendo: ‘vou te atender depois que você perder uns 10 quilos pelo menos’. (participante-193)

É não ser diagnosticada corretamente porque o médico se recusou a tocar [em] você. (participante-394)

É associar todas as patologias apresentadas ao peso e se negar a tratá-las. (participante-141)

Além disso, os participantes relataram que há uma certa compulsão pela patologização do corpo gordo. Os profissionais ficam tão obcecados em procurar doenças relacionadas ao peso que chegam a inventar sintomas não relatados.

Parece que querem provar a qualquer custo que você está doente por ser gordo. (participante-258)

Quando o profissional de saúde liga todos os seus problemas, e até inventa os que você não tem, ao seu peso. (participante-399)

Um atendimento que trata a obesidade como única condição de saúde da pessoa gorda pode resultar em diagnósticos equivocados e negligência, pois acaba desconsiderando queixas, ignorando sintomas e resistindo à busca de outras associações que não sejam o peso. De acordo com Aguiar et al. (2013AGUIAR, J. M. A. et al. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013. DOI: 10.1590/0102-311x00074912
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), negligência seria um erro técnico, omitir ou não esclarecer informações importantes, abandono, e desqualificar ou ignorar as queixas.

Sai do consultório como se estivesse desperdiçando o tempo de uma pessoa que não queria me atender, já que meu problema é emagrecer. (participante-372)

Muitas vezes a negligência está fundamenta na convicção de que o emagrecimento será resolutivo para todas as queixas, como se todos os problemas de saúde fossem sumir quando a pessoa for magra. Ou seja, um atendimento baseado em uma abordagem normativa de peso, em que o emagrecimento é visto enquanto único tratamento para obter saúde (Tylka et al., 2014TYLKA, T. L. et al. The weight-inclusive versus weight-normative approach to health: evaluating the evidence for prioritizing well-being over weight loss. International Journal of Obesity , New York, 2014. DOI: 10.1155/2014/983495
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).

É você chegar com dores horríveis e o desgraçado do médico só te olhar e mandar emagrecer! (participante-247)

A suposição de que qualquer queixa possa ser resolvida com emagrecimento. (participante-253)

A negligência se configura em um risco à saúde da pessoa gorda, pois dificulta o rastreamento de doenças, leva a atrasos diagnósticos e a um agravamento do quadro. Os participantes relatam negligência nos seus atendimentos e indignação de não receberem o mesmo tratamento que pessoas não gordas recebem. Ou seja, segundo eles, as pessoas gordas perdem direitos.

É não ter acesso aos mesmos direitos básicos de saúde que uma pessoa magra, falta de preparo humano, falta de preparo material. (participante-392)

A “preocupação” com a saúde das pessoas gordas se torna um paradoxo, pois não garante mais atenção e cuidado, nem um maior acesso à saúde. Essa não é apenas uma percepção, alguns estudos já indicam que médicos gastam menos tempo em consultas e fornecem menos orientações para pessoas gordas em comparação com pacientes magros, o que significa que essas atitudes podem impactar na qualidade do atendimento prestado (Phelan et al., 2015PHELAN, S. M. et al. Impact of weight bias and stigma on quality of care and outcomes for patients with obesity. Obesity Reviews, Oxford, v. 16, p. 319-326, 2015. DOI: 10.1111/obr.12266
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).

(6) Precarização do acesso e dos cuidados em saúde

A gordofobia médica dificulta o acesso ao sistema de saúde e precariza os cuidados à pessoa gorda. Uma das barreiras de acesso é a falta de acessibilidade na estrutura física, na mobília, nos equipamentos e nos trajes, tornando os serviços de saúde não inclusivos para esse grupo. A gordofobia médica está ligada à retirada de direitos e de acesso das pessoas gordas.

Quando se é gordo, seu corpo se torna, muitas vezes, uma barreira para receber um tratamento adequado. Desde exames e avaliações simples, até equipamentos necessários (maca, cadeira de rodas, mesa de exames ou até uma cadeira na recepção) (participante-156)

Não ter equipamentos médicos onde caibamos. Humilhação que muitos passam de ter que ser atendidos em clínicas veterinárias de animais de grande porte. É muita humilhação! (participante-190)

É privar os gordos do acesso à saúde. (participante-435)

De acordo com Albury et al. (2020ALBURY, C. et al. The importance of language in engagement between health-care professionals and people living with obesity: a joint consensus statement. The Lancet Diabetes and Endocrinology, London, v. 8, p. 447-455, 2020. DOI: 10.1016/S2213-8587(20)30102-9
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), ter um ambiente de saúde acessível para pessoas gordas é o mínimo, e constitui o primeiro passo para abordagem da questão do estigma de peso dentro da área da saúde. As instalações devem ser apropriadas para todos, independente do peso, e cadeiras de tamanho adequado devem ser o padrão. Os corredores devem ser planejados para livre circulação e o medidor de pressão arterial de tamanho grande deve ser de fácil acesso (Albury et al, 2020ALBURY, C. et al. The importance of language in engagement between health-care professionals and people living with obesity: a joint consensus statement. The Lancet Diabetes and Endocrinology, London, v. 8, p. 447-455, 2020. DOI: 10.1016/S2213-8587(20)30102-9
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).

Ademais, a precarização do cuidado em saúde se dá quando não é ofertado um atendimento digno, com as crenças e atitudes profissionais impactando nos cuidados prestados (Phelan et al., 2015PHELAN, S. M. et al. Impact of weight bias and stigma on quality of care and outcomes for patients with obesity. Obesity Reviews, Oxford, v. 16, p. 319-326, 2015. DOI: 10.1111/obr.12266
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). Por exemplo, considerar a pessoa gorda um “caso perdido”, como se ela não fosse digna de esforço do profissional e não merecesse um bom atendimento. Outra forma de precarizar o cuidado é a culpabilização do paciente gordo por sua condição, o que não irá ajudar e poderá afastá-la ainda mais dos serviços de saúde.

Ser rotulado como ‘caso perdido’, como se por esses motivos não fosse digno do esforço do médico. Na cabeça deles suponho que passe: se nem o próprio paciente está se esforçando pela saúde dele, por que eu vou me esforçar? (participante-301)

É quando um profissional de saúde nos vê apenas como pessoas que comem muito e que por isso somos gordos, e por isso não merecemos um bom tratamento. Porque a culpa é nossa. (participante-151)

Alguns estudos apontam que pacientes que experimentaram situações de estigma de peso dentro do serviço de saúde têm piores resultados no tratamento, e é mais provável que evitem futuros cuidados, pois perceberam que seu peso corporal poderá ser uma fonte de constrangimento nesse ambiente (Phelan et al., 2015PHELAN, S. M. et al. Impact of weight bias and stigma on quality of care and outcomes for patients with obesity. Obesity Reviews, Oxford, v. 16, p. 319-326, 2015. DOI: 10.1111/obr.12266
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). Como no estudo de Puhl, Peterson e Luedicke (2013PUHL, R.; PETERSON, J. L.; LUEDICKE, J. Motivating or stigmatizing? Public perceptions of weight-related language used by health providers. International Journal of Obesity, London, v. 37, p. 612-619, 2013. DOI: 10.1038/ijo.2012.110
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) com adultos americanos, em que 19% dos pacientes relataram que evitariam futuras consultas médicas e 21% buscariam um novo médico caso se sentissem estigmatizados. Os participantes da pesquisa também relataram evitar a busca por serviços de saúde.

Ir ao médico para mim é frequentemente humilhante, logo eu evito fazer isso, prejudicando a minha saúde. (participante-369)

Ter crise de pânico só de lembrar e imaginar, e ir postergando cuidar da minha própria saúde. (participante-216)

É um dos motivos para eu não procurar ajuda médica. Faz seis anos que não passo por uma consulta. (participante-185)

Esse afastamento dos serviços de saúde muitas vezes é provocado por medo de procurar ajuda médica, o que constitui outra barreira de acesso ao serviço de saúde. Consequentemente, o adiamento ou evitação na busca por cuidados e aconselhamentos poderá fazer com que pessoas gordas apresentem condições mais avançadas e mais difíceis de tratar (Phelan et al., 2015PHELAN, S. M. et al. Impact of weight bias and stigma on quality of care and outcomes for patients with obesity. Obesity Reviews, Oxford, v. 16, p. 319-326, 2015. DOI: 10.1111/obr.12266
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). Sendo assim, a gordofobia médica se configura como um fator de risco e está associada a declínios na saúde física e mental das pessoas gordas (Piñeyro, 2016PIÑEYRO, M. Stop Gordofobia y las panzas subversas. Málaga: Zambra y Baladre, 2016.).

Compreendendo o termo gordofobia médica

Importante pontuar que, com a análise das respostas, ficou explícito que quando se referiam ao termo “gordofobia médica” os participantes estavam englobando todos os profissionais de saúde, e não apenas os médicos. Mas então por que a expressão faz referência direta à categoria médica? Talvez o termo escolhido apenas reitere e reproduza a assistência centrada neles e a hegemonia do modelo biomédico.

A partir da análise dessa pesquisa, verificou-se que a gordofobia médica está associada: a uma abordagem violenta; ao despreparo, desrespeito e autoritarismo dos profissionais de saúde; à reprodução de estereótipos, repulsa e preconceito em relação ao corpo gordo, os quais podem culminar em atos discriminatórios; à desumanização e culpabilização da pessoa gorda; aos julgamentos antecipados sobre hábitos, características pessoais e quadro clínico; ao estabelecimento do peso como causa exclusiva de todos os seus problemas de saúde; ao desprezo das queixas e da motivação da consulta, limitando o atendimento à prescrição de emagrecimento; à utilização de táticas de intimidação para motivar mudanças de comportamento; à falta de acessibilidade; à realização de diagnósticos superficiais; e à negligência no atendimento.

Um crime, um atentado contra os direitos, você passa a não querer usufruir do acesso à saúde, por medo de ir ao médico e sair pior que chegou, você é muito negligenciado e tratado como animal quanto fica à mercê desse tipo de atendimento. (participante-184)

Silva e Santos (2019SILVA, S. E.; SANTOS, P. R. Gordofobia médica: manifestação de um estigma social como violação de direitos humanos. In: SILVA JUNIOR, A. G. S. et al. (Org.). Direitos sociais e efetividade. Rio de Janeiro: Multifoco, 2019. p. 709-728.) também conceituam o termo a gordofobia médica como uma violação aos direitos humanos e da dignidade da pessoa. Segundo as autoras, o direito à saúde da pessoa gorda não está sendo garantido. A gordofobia médica reforça preconceitos, estereótipos e se manifesta no atendimento hostil e/ou inadequado (Silva; Santos, 2019SILVA, S. E.; SANTOS, P. R. Gordofobia médica: manifestação de um estigma social como violação de direitos humanos. In: SILVA JUNIOR, A. G. S. et al. (Org.). Direitos sociais e efetividade. Rio de Janeiro: Multifoco, 2019. p. 709-728.). Isso pode se configurar como uma forma de violência. A gordofobia é uma opressão estrutural que ultrapassa o setor da saúde (Rangel, 2018RANGEL, N. F. A. O ativismo gordo em campo: política, identidade e construção de significados. 2018. 178 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2018.), porém quando é reproduzida e vivenciada dentro dessas instituições, seja por protocolos de atendimento, por falta de ética profissional, por falta de acessibilidade ou por negligência, pode-se referir a ela enquanto uma violência institucional. Segundo Minayo (2007MINAYO, M. C. S. Conceitos, teorias e tipologias de violência: a violência faz mal à saúde. In: NJAINE, K. et al. Impactos da Violência na Saúde. 4 ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007. p. 21-42. DOI: 10.7476/9786557080948.0003
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), a violência institucional é aquela que se realiza dentro das instituições, como por exemplo quando a instituição de saúde produz uma violência contra os usuários. Conforme o Ministério da Saúde, a violência institucional:

[…] é aquela exercida nos/pelos próprios serviços públicos, por ação ou omissão. Pode incluir desde a dimensão mais ampla da falta de acesso à saúde, até a má qualidade dos serviços. Abrange abusos cometidos em virtude das relações de poder desiguais entre usuários e profissionais dentro das instituições (Brasil, 2003BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Básica - nº 8. Violência Intrafamiliar - Orientações para a Prática em Serviço. Brasília, DF, 2003., p. 21).

Na relação profissional-paciente, as situações de violência são difíceis de serem percebidas, pois a violência institucional frequentemente está mascarada de boa intencionalidade, ainda que implique anulação da autonomia e discriminação de classe, raça ou gênero (Aguiar et al., 2013AGUIAR, J. M. A. et al. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013. DOI: 10.1590/0102-311x00074912
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). Além disso, muitas condutas são vistas como toleráveis e necessárias, contribuindo e revelando uma banalização da violência institucional nos serviços de saúde. Essa banalização sistematicamente permite uma assistência violenta em um contexto em que se espera cuidado (Aguiar et al., 2013AGUIAR, J. M. A. et al. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 11, p. 2287-2296, 2013. DOI: 10.1590/0102-311x00074912
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).

Reconhecer a existência de gordofobia médica se trata de combater o desrespeito, pois são inúmeros os relatos de pessoas hostilizadas e humilhadas nos serviços de saúde em virtude de serem gordas (Silva; Santos, 2019SILVA, S. E.; SANTOS, P. R. Gordofobia médica: manifestação de um estigma social como violação de direitos humanos. In: SILVA JUNIOR, A. G. S. et al. (Org.). Direitos sociais e efetividade. Rio de Janeiro: Multifoco, 2019. p. 709-728.). Logo, está ligada à retirada de direitos e acesso à saúde das pessoas gordas, além de se configurar como um fator de risco para a saúde física e mental delas (Piñeyro, 2016PIÑEYRO, M. Stop Gordofobia y las panzas subversas. Málaga: Zambra y Baladre, 2016.). Conforme Sutin, Stephan e Terracciano (2015SUTIN, A.; STEPHAN, Y.; TERRACCIANO, A. Weight Discrimination and Risk of Mortality. Psychological Science, California, v. 26, n. 11, p. 1803-1811, 2015. DOI: 10.1177/0956797615601103
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), o efeito cumulativo desse tratamento hostil pode ser uma menor expectativa de vida. No seu estudo, as pessoas que experimentaram o estigma tiveram o aumento de 60% no risco de mortalidade em comparação com aquelas que não sofreram, independentemente de seus hábitos (Sutin; Stephan; Terracciano, 2015SUTIN, A.; STEPHAN, Y.; TERRACCIANO, A. Weight Discrimination and Risk of Mortality. Psychological Science, California, v. 26, n. 11, p. 1803-1811, 2015. DOI: 10.1177/0956797615601103
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). A gordofobia médica pode estar contribuindo para o aumento da morbidade e risco de mortalidade de pessoas gordas (Wharton, 2020WHARTON, S. et al. Obesity in adults: a clinical pratical guideline. Canadian Medical Association Journal, Ottawa, v. 192, n. 31, p. 875-891, 2020. DOI: 10.1503/cmaj.191707
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).

Considerações finais

O estudo foi abrangente e teve muitos participantes, mas não obteve uma grande diversificação, visto que as respondentes, em quase sua totalidade, foram mulheres cis, principalmente heterossexuais e brancas, com acesso à internet, o que representa uma das limitações. Este é um estudo preliminar sobre a questão, mas já foi possível levantar diversas discussões ainda incipientes na área da saúde. A pesquisa permitiu ouvir a perspectiva das pessoas gordas, o que é essencial para qualificar o atendimento e elaborar políticas públicas voltadas para o bem-estar delas, e não o seu combate.

Além disso, são necessárias mais pesquisas sobre como a gordofobia afeta o acesso aos serviços e a saúde das pessoas gordas, envolvendo uma maior diversidade e investigando as singularidades nos diferentes serviços de saúde, permitindo, assim, avaliar os impactos de acordo com as diferentes realidades sociais. Com esta pesquisa, pode-se compreender que a gordofobia médica está relacionada à retirada de direitos das pessoas gordas e pode ser compreendida como uma violência institucional exercida pelos serviços de saúde no atendimento desse grupo, resultando no seu afastamento e estabelecendo precarização no acesso e cuidado em saúde, tornando-se um fator de risco à saúde das pessoas gordas. Esse aprofundamento no entendimento do termo “gordofobia médica” é essencial para facilitar seu reconhecimento e visibilizar a necessidade de promover estratégias de prevenção dentro das instituições de saúde.

A gordofobia médica deve ser inaceitável. E mesmo que a área da saúde esteja relutante em debatê-la, é urgente reconhecer que ela existe e é prejudicial à saúde das pessoas gordas. Erradicar o estigma de peso exigirá educação e, embora ainda não seja abordada na formação permanente dos profissionais de saúde, há evidências de que o estigma pode ser reduzido se houver capacitações sobre diversidade corporal e viés de peso nos serviços de saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2023
  • Revisado
    22 Mar 2023
  • Revisado
    30 Maio 2023
  • Aceito
    13 Jun 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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