Processos de vulnerabilização em comunidades camponesas afetadas pela transposição do rio São Francisco em Sertânia

Vulnerability processes in peasant communities affected by the transposition of the São Francisco river in Sertânia

José Erivaldo Gonçalves Glaciene Mary da Silva Gonçalves Lia Giraldo da Silva Augusto Wanessa da Silva Gomes Mariana Olívia Santana dos Santos Aline do Monte Gurgel André Monteiro Costa Sobre os autores

Resumo

O projeto da transposição do rio São Francisco é parte do conjunto de políticas de acesso à água no semiárido brasileiro e tem incidido sobre os processos de desterritorialização e vulnerabilização na região. O objetivo deste estudo foi analisar os processos de vulnerabilização em comunidades camponesas, decorrentes das obras da transposição do rio São Francisco. Trata-se de um estudo qualitativo, com aplicação de entrevistas semiestruturadas e realização de oficina com camponeses atingidos pela transposição no município de Sertânia (PE). O enfoque teórico-metodológico foi a matriz da reprodução social. Foram identificados diversos processos de vulnerabilização material e simbólica, além de agravos à saúde, como a destruição de reservatórios de água, poços artesianos, cacimbas e terras férteis, a desterritorialização, a incidência de doenças respiratórias agudas, decorrente das escavações para construção dos canais, e processos relativos à saúde mental, relacionando-se à reprodução social e ao modo de vida. A leitura sistêmica ancorada na autoconsciência e na conduta dos processos de vulnerabilização identificou uma ruptura do modo de vida tradicional e efeitos à saúde física e mental dos habitantes da região. Os efeitos negativos desse processo retroagem sobre as vulnerabilidades históricas nos territórios afetados, produzindo novas fragilidades nessas comunidades.

Palavras-chave:
Saúde Ambiental; Vulnerabilidade em Saúde; Conflito pela Água; Política Ambiental

Abstract

The project for the transposition of the São Francisco River is part of the set of policies for access to water in the Brazilian semi-arid region and has focused on the processes of deterritorialization and vulnerability in the region. The objective of this study was to analyze the processes of vulnerability in peasant communities, resulting from the transposition of the São Francisco River. This is a qualitative study, applying semi-structured interviews and carrying out a workshop with peasants affected by the transposition in the municipality of Sertânia (PE). The theoretical-methodological approach was the social reproduction matrix. Several processes of material and symbolic vulnerability, in addition to health problems, were identified, such as the destruction of water reservoirs, artesian wells, waterholes and fertile land, deterritorialization, the incidence of acute respiratory diseases, resulting from excavations for the construction of canals, and processes related to mental health, relating to social reproduction and to the way of life. The systemic reading anchored in self-awareness and in the conduct of vulnerability processes identified a break in the traditional way of life and effects on physical and mental health of the region inhabitants. The negative effects of this process retroact on historical vulnerabilities in the affected territories, producing new fragilities in these communities.

Keywords:
Environmental Health; Health Vulnerability; Water Conflicts; Environmental Policy

Introdução

O Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional (PISF) integrou, em 2006, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que, subsidiado pela lógica desenvolvimentista, implementou grandes empreendimentos no país com o objetivo de crescimento econômico, , afetando diretamente diversas comunidades tradicionais em seus territórios (Henkes, 2014HENKES, S. L. A política, o direito e o desenvolvimento: um estudo sobre a transposição do rio São Francisco. Revista DIREITO GV, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 497-534, 2014. DOI: 10.1590/1808-2432201421
https://doi.org/10.1590/1808-2432201421...
). A ideia central desse grande empreendimento foi transpor as águas do rio São Francisco por meio de dois eixos, o norte e o leste, com o objetivo de inclusão social da população do semiárido, por meio da oferta de acesso à água e combate à seca. O eixo leste transpõe suas águas para os rios Pajeú e Moxotó, no estado de Pernambuco, e para o rio Paraíba, no estado da Paraíba. O eixo norte teve as águas transpostas para os rios Salgado e Jaguaribe, no Ceará; Apodi, no Rio Grande do Norte; e Piranhas-Açu, na Paraíba e Rio Grande do Norte (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Relatório de impacto ambiental (RIMA): Projeto de integração do rio São Francisco com bacias hidrográficas do nordeste setentrional. Brasília, DF, 2004.).

A transposição das águas do rio São Francisco como estratégia de combate à seca se mostrou insuficiente, assim como engendrou conflitos ambientais, adoecimento, perdas simbólicas e materiais - como terras férteis -, qualidade de vida, acesso à água e diversos outros processos de vulnerabilização, principalmente em comunidades tradicionais atingidas pelas obras, configurando contextos de injustiça ambiental e social (Domingues, 2016DOMINGUES, R. C. A vulnerabilização camponesa no contexto da transposição do rio São Francisco: o desterro na vila produtiva rural Baixio dos Grandes (Junco). 2016. 113 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.; Bezerra, 2016BEZERRA, V. C. R. Injustiça ambiental e saúde: a perspectiva dos agricultores familiares afetados pela transposição do rio São Francisco. 2016. 91 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.; Gonçalves et al., 2018GONÇALVES. G. M. S. et al. A transposição do rio São Francisco e a saúde do povo Pipipã, em Floresta, Pernambuco. Saúde e sociedade, São Paulo, v. 27, n. 3, p. 909-921, 2018. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018170388
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201817...
; Santos, 2022SANTOS, J. G.; PEDROZO, E. A.; IORIS, A. A reterritorialização e a luta pela água dos atingidos pela transposição do rio São Francisco no nordeste brasileiro. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 34, n. 1, p. e65239, 2022. DOI: 10.14393/SN-v34-2022-65239
https://doi.org/10.14393/SN-v34-2022-652...
). O conceito de vulnerabilização, segundo Porto, Rocha e Finamore (2014PORTO, M. F. S.; ROCHA, D. F; FINAMORE, R. Saúde coletiva, território e conflitos ambientais: bases para um enfoque socioambiental crítico. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 10, p. 4071-4080, 2014. DOI: 10.1590/1413-812320141910.09062014
https://doi.org/10.1590/1413-81232014191...
), diz respeito aos processos nocivos pelos quais as comunidades tradicionais passam, decorrentes das incidências de empreendimentos e políticas em seu território, caracterizando uma exposição desigual dessas populações ao risco proveniente do modelo de acumulação de capital (Acselrad, 2010ACSELRAD, H. Ambientalização das lutas sociais - o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 68, p. 103-119, 2010. DOI: 10.1590/S0103-40142010000100010
https://doi.org/10.1590/S0103-4014201000...
).

Verificam-se interfaces essenciais que configuram o modo de vida de uma comunidade tradicional e como os processos de vulnerabilização, a partir da lógica desenvolvimentista, podem incidir nessa mesma população. Uma dessas interfaces é a transformação da natureza - o que legitima um modo de vida tradicional é a relação simbiótica com a natureza e o trabalho coletivo que transformam o território ao longo das gerações, a partir de conhecimento particular, atravessados por questões espirituais, culturais e sociais, tornando o espaço um lugar habitável e produtivo (Brandão, 2012BRANDÃO, C. R. A comunidade tradicional. In: COSTA, J. B. A.; OLIVEIRA, C. L. (Org.). Cerrados, gerais, sertão: comunidades tradicionais nos sertões roseanos. Santos: Intermeios, 2012. p. 347-361.). Assim, a relação entre lógicas da natureza e sociais vai moldar o espaço de desenvolvimento humano em suas relações históricas, culturais e em saúde.

Samaja (2000SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.) propõe que a análise da realidade do processo saúde-doença seja realizada a partir da aplicação do conceito de reprodução social, permitindo uma compreensão ampliada, complexa e sistemática da realidade do sujeito e suas interações sócio-ecossistêmicas no território.

Definido por Milton Santos (2009SANTOS, M. O dinheiro e o território. GEOgraphia, Niterói, v. 1, n. 1, p. 7-13, 2009. DOI: 10.22409/GEOgraphia1999.v1i1.a13360
https://doi.org/10.22409/GEOgraphia1999....
), o território é um lugar em que ocorrem os processos de vida dos indivíduos, tornando-se universo único e particular das pessoas que nele habitam. Assim, o ponto de partida deste estudo foi buscar compreender os processos de vulnerabilização em comunidades camponesas afetadas pela transposição do rio São Francisco em Sertânia, na perspectiva teórico metodológica da reprodução social e a saúde conforme Samaja (2000SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.).

Procedimentos metodológicos

Trata-se de um estudo de caso, com abordagem qualitativa. Foi utilizada matriz de dados com base na reprodução social (Samaja, 2000SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.), compreendendo a saúde a partir da inter-relação e interdependência das reproduções sociais em cinco dimensões: a) biocomunal, que refere-se ao modo como seus membros se renovam corporalmente e em suas inter-relações, construindo o meio comunal no qual se realizam como indivíduos; b) autoconsciência e conduta, que relaciona-se com a produção da cultura; c) tecno-econômica, que abrange os meios de vida e de trabalho, e o intercâmbio dos bens em todas as suas escalas; d) política, que diz respeito ao nível estatal de organização, por meio de políticas públicas, incluindo as relações materiais e jurídicas que constituem o Estado; e e) ecológica, que refere-se ao macro ambiente social e condições territoriais/ambientais.

A ancoragem deste estudo será na reprodução da autoconsciência e da conduta, que se refere a processos relativos ao modo de vida tradicional. As outras dimensões serão analisadas como interdependentes, e irão contribuir na compreensão sistêmica dos processos relacionados ao modo de vida nas unidades de análise (Samaja, 2000SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.).

Esta pesquisa foi realizada nas comunidades camponesas de Cipó, Vila Produtiva Rural Salão e Hortifrutigranjeiro, afetadas diretamente pelas obras da transposição do rio São Francisco, localizadas no município de Sertânia, a 263 quilômetros de distância de Recife, capital do estado de Pernambuco (PE). Sertânia possui 2.421,511 km2 de área e população estimada de 33.787 habitantes. Situa-se na região do semiárido, na mesorregião do Sertão de Pernambuco e na microrregião do Sertão do Moxotó, fazendo parte da bacia hidrográfica do Rio Moxotó (IBGE, 2018IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mapa do semiárido brasileiro. 2018. Disponível em: Semiárido brasileiro. Disponível em: <https://geoftp.ibge.gov.br/organizacao_do_territorio/estrutura_territorial/semiarido_brasileiro/Situacao_23nov2017/mapa_Semiarido_2017_11_23.pdf>
https://geoftp.ibge.gov.br/organizacao_d...
). O município está inserido no eixo leste da transposição do rio São Francisco, trecho em que a água transposta tem origem no lago da barragem de Itaparica, no município de Floresta (PE), passando pela cidade de Sertânia com destino a Monteiro e ao rio Paraíba (PB) (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Relatório de impacto ambiental (RIMA): Projeto de integração do rio São Francisco com bacias hidrográficas do nordeste setentrional. Brasília, DF, 2004.).

Os participantes da pesquisa foram contactados por meio da articulação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Sertânia (SRT/Sertânia), sendo camponeses maiores de 18 anos, de qualquer sexo, residentes do território diretamente afetado pelas obras da transposição, que tenham aceitado participar do estudo. Também foram incluídas lideranças comunitárias e de movimentos sociais e membros do SRT. A amostra foi do tipo intencional, sendo considerada a formação de uma amostra heterogênea e em número suficiente para saturação das respostas - quando ocorre a repetição do discurso sobre o objeto de estudo (Yin, 2016YIN, R. K. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso, 2016.).

Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas e uma oficina com metodologia participativa, que tiveram como objetivo compreender a percepção dos sujeitos quanto aos processos de vulnerabilização decorrentes da implantação das obras da transposição do rio São Francisco. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas nas três comunidades camponesas (quatro em Cipó, duas em Hortifrutigranjeiro e quatro em Vila Produtiva Rural Salão), com um total de 10 entrevistas, sendo três entrevistados do sexo masculino e sete do sexo feminino.

As entrevistas foram realizadas na residência dos participantes, mediante definição prévia de dia e horário disponível. Elas foram transcritas e analisadas a partir da análise temática do conteúdo das falas, com base nos estudos desenvolvidos por Víctora, Knauth e Hassen (2000VÍCTORA, C. G.; KNAUTH, D. R.; HASSEN, M. N. A. Pesquisa qualitativa em saúde: uma introdução ao tema. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000.), vinculadas à antropologia da saúde. Os dados transcritos foram organizados e sistematizados por comunidade, em planilhas do Excel 2007, e posteriormente categorizados com base nas dimensões propostas por Samaja (2000SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.).

A oficina foi realizada em um espaço comunitário, na comunidade Vila Produtiva Rural Salão, com cinco participantes (quatro do sexo feminino e um do sexo masculino). Foi utilizada a técnica de ‘‘mapa de sonhos’’, que permite a caracterização de direitos não cumpridos, nascidos do contexto de iniquidade ou vulnerabilização da comunidade, moldando desejos dos sujeitos que podem estar relacionados aos sentimentos quanto às reparações que foram ou não feitas no território (Soliz; Maldonado, 2012SOLIZ, F.; MALDONADO, A. Guía 5: guía de metodologías comunitarias participativas. 5. ed. Quito: Clínica Ambiental, 2012.). Os dados da oficina receberam tratamento descritivo, com os pontos principais foram organizados por meio de uma descrição resumida, anteposta por citações interpretadas como importantes e sistematizadas.

A oficina e as entrevistas aconteceram no período de setembro a outubro de 2021, com duração média de uma hora, e foram gravadas em áudio. A pesquisa foi aprovada segundo a Resolução da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa n. 196/96 na versão 2012 (Brasil, 2012BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília, DF, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf >. Acesso em: 9 jan. 2024.
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes...
). Para preservar a identidade dos sujeitos, foram utilizados codinomes de plantas nativas da Caatinga.

Resultados e discussão

Impactos ambientais e mudança na paisagem

Observa-se diversos processos de vulnerabilização nas dimensões aplicadas à matriz de dados. O não cumprimento das promessas feitas à população camponesa pelo Estado no projeto da transposição do rio São Francisco, especialmente a garantia da ampliação de acesso a água, foi agravado pelos danos da dimensão ecológica. A destruição e cacimbões e poços para a construção do canal da transposição incide na reprodução biocomunal, afetando a dimensão da autoconsciência e a conduta, relacionadas respectivamente às perdas materiais e simbólicas e ao modo de vida dos indivíduos (Quadro 1).

Quadro 1
Representação dos processos de vulnerabilização de camponeses, conforme dimensões da reprodução social, e suas nocividades para a saúde nas obras de transposição do rio São Francisco, Sertânia, PE, Brasil, 2021

O processo de subsunção ensaiado entre as dimensões permite compreender de forma sistêmica as vulnerabilizações comunitárias, considerando níveis macroestruturais e particulares do modo de vida camponês. O desmatamento de árvores nativas do semiárido e o acúmulo de terras das escavações foram reorganizando o espaço e mudando o sentimento da população em relação ao lugar que habitam, que, de acordo com Jurema, perdeu a beleza:

Ah, a paisagem que era bonita demais, a paisagem aí, agora ficou só um buraco véio feio, coisa feia danada. Não vê nada de bonito aí não. Eles falaram que ia ter um reflorestamento, né? Que eles fala, mas eles hora vem aí com uma máquina, joga um não sei o que é danado que eles tão jogando pra lá, depois ninguém vê nascer nada. (Jurema, em entrevista)

O vínculo construído com o território está imbricado com os tipos e práticas de relação exercidos pelos indivíduos e que promovem autonomia e autodeterminação, configurando disposições do uso da biodiversidade e da caracterização do lugar em que vivem. A interrupção relacional desse processo é concebida como a ruptura de uma entidade multidimensional ancorada na percepção dos sujeitos enquanto pertencentes ao território (Escobar, 2015ESCOBAR, A. Territorios de diferencia: la ontología política de los “derechos al territorio”. Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, v. 35, p. 89-100, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://www.furb.br/_upl/files/ppgdr/Territorios%20de%20diferena.pdf >. Acesso em: 9 jan. 2024.
https://www.furb.br/_upl/files/ppgdr/Ter...
).

Os impactos ambientais da transposição do São Francisco foram previamente identificados por meio do Relatório de Impacto do Meio Ambiente (Rima), produzido por técnicos do Ministério da Integração Nacional (MIN) - atualmente Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) - antes das obras. Foram definidos 38 Planos Básicos Ambientais (PBA) para mitigar os impactos. No que diz respeito à fauna/flora, o PBA 23 compreendeu como uma das medidas de mitigação o replantio simultâneo às obras de mudas de árvores que foram desmatadas, preservando no ambiente as características ecológicas endêmicas dos lugares atingidos (Brasil, 2005BRASIL. Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Programa Básico Ambiental de Conservação da fauna e da flora (PAB 23). Brasília, DF, 2005. Disponivel em: <Disponivel em: https://antigo.mdr.gov.br/images/stories/ProjetoRioSaoFrancisco/ArquivosPDF/PBA23.pdf > acesso em: 13 jan. 2024.
https://antigo.mdr.gov.br/images/stories...
).

No entanto, o PAB 17 foi evidenciado como ineficiente pelas narrativas encontradas nos territórios afetados. O replantio das árvores, quando realizado, não correspondia à vegetação nativa anteriormente presente nos locais, como apontado por Caroá em entrevista:

[…] home plantasse uma planta que…pra quê facheiro? Pra quê urtiga? Diz que é pra os bode, quem vai criar bode se não tem cerca, que não é nem da urtiga da terra daqui, tá entendo? Eles trouxeram outra que diz que o bode come que eu não sabia, é outro tipo de urtiga. Aí eu não vi nada não de benefício dessas plantação que eles estão fazendo. (Caroá, em entrevista)

A desertificação do solo em sinergia com a introdução de espécies estrangeiras de plantas representa danos à saúde e ao ambiente, repercutindo no aumento de vulnerabilidades nas dimensões biocomunal e tecno-econômica, ao interromper subsídios necessários à organização da produção e reprodução social dessa população, como a criação e manutenção de animais que dependem de plantas específicas para sua alimentação, antes encontradas na região. A alteração dessa dinâmica implica em custos financeiros adicionais com a manutenção dos animais, relacionados à impossibilidade de criação vinculada ao modo de vida e atividades rotineiras relacionadas às questões pecuniárias. Essas ações de reparação foram realizadas sem a participação social, como descrito:

Se eles tivessem botado o Mandacaru, que o Mandacaru tinha muito pé de Mandacaru, o Mandacaru aqui no tempo da seca mesmo de novembro pra dezembro, quem não tem palma assa o mandacaru e dá ao gado. (Caroá, em entrevista)

No caso da comunidade de Cipó, além de espécies de plantas nativas, houve a destruição de fruteiras que serviam como renda extra, espaço de lazer e socialização entre as pessoas da comunidade. É no território que as expressões particulares de uma determinada comunidade se manifestam. A intervenção nos ritos ou práticas dos sujeitos pode deflagrar processos de adoecimentos e/ou agravos na relação da reprodução cultural em distintos níveis, - comunitário, familiar ou individual (Samaja, 2000SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.; Medeiros, 2022MEDEIROS, M. S.et al. A Reprodução social como perspectiva metodológica para análise contextualizada das condições de vida e de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 28, n. 10, p. e00150320, 2022. DOI: 10.1590/0102-311XPT150320
https://doi.org/10.1590/0102-311XPT15032...
). Esse fato incide diretamente nas dimensões da autoconsciência e da conduta, sobretudo no modo de vida tradicional e na desarticulação do coletivo, que gera desânimo e individualismo nos processos sociais, como relata Jurema:

Ninguém se interessa mais por fruteira pra plantar, porque nós tinha tudo isso. As vagem ali onde passou o canal, era as fruteiras, era dos vizinhos, mas era de nós, no mesmo tempo era de nós, porque aqui todo mundo no tempo da fruta: “ó, pode ir pegar uma manga, uma coisa, uma goiaba”, desse jeito. (Jurema, em entrevista)

O acesso à água da transposição não foi garantido

Para a construção dos canais da transposição, foram soterrados poços e cacimbas e, com as explosões das obras, açudes começaram a apresentar vazamento e a secar, inviabilizando o acesso à água para consumo. Além disso, casas foram danificadas, vulnerabilizando material e simbolicamente essa população, afetando todas as dimensões da reprodução social da vida. Essas eram reservas naturais, que traziam autonomia, alívio e segurança hídrica para a sobrevivência da comunidade nos tempos de seca no sertão. A destruição dessas reservas repercute na possibilidade de um maior risco de consumo de águas contaminadas, oneração financeira pela demanda da compra de água e sofrimento mental, como pode-se observar nas falas de Jurema e Juazeiro. Diversos processos de doenças respiratórias agudas, como alergias e asma, e agravamento de doenças respiratórias crônicas, como bronquite, também foram identificadas por conta do excesso de poeira das obras nos territórios.

Nós tinha um poço aqui, que meu pai tinha um poço, que podia deixar ele jogando água o dia todo, aí depois das explosões, aí pronto, ele […] diz que ele fecha embaixo as veias, aí perdemos o poço. Aí fiquemo nesse negócio aí de esperar que eles colocassem água. (Jurema, em entrevista)

Era poço, era cacimbão. Nos cacimbão nunca faltava água pra gente, era cacimba… quem não podia fazer cacimbão tinha cacimba. Olha, dali da passarela até aqui a gente contava com um poço, dois cacimbão e uma cacimba de água pra distribuir. Aqui era um lugar muito rico de água, mas agora nós estamos nessa agonia e nesse sofrimento depois que passou destruíram, passou esse canal aí. (Juazeiro, em entrevista)

A autonomia dos processos no território, característica central das comunidades tradicionais, foi comprometida, vulnerabilizando esses sujeitos na manutenção e reprodução da vida (Brandão, 2010). Ao perder seus reservatórios de água, a insegurança hídrica e a ausência da soberania dessas famílias fazem com que elas passem a depender de terceiros ou do Estado, tornando-as, segundo Costa e Diniz (2021COSTA, A. M; DINIZ, P. C. O. Territórios tutelados e processos de vulnerabilização: história social da transposição. In: SANTOS, S. E. B. et al. (Org.). Transvergente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco. São Paulo: Dialética, 2021. p. 17-35.), pessoas tuteladas. Sobrepondo-se aos problemas relacionados ao não acesso à água para consumo humano, acrescentou-se outro desafio, que tem como consequência prejuízos na criação de animais, impactando o modo de vida camponês e a subsistência dessas famílias, como é refletido na fala de Facheiro:

A gente tinha aquele açude, o açude da propriedade que pertence às 16 famílias, a gente tinha bastante água, a água era cheia, aí dentro da minha roça fica assim, como se fosse a correnteza da barragem e então tem um córrego que ficava daquela água. Então era melhor do que com a transposição, porque com a transposição acabou isso, esse acesso aquela área que tem água, entendeu? Ela foi embora e a gente ficou com a terra seca. (Facheiro, em entrevista)

A destruição de terras férteis, antes usadas para agricultura, impõe ao indivíduo procurar outros lugares para sua plantação, incitando o uso das práticas de queimada para produção agrícola, existindo a possibilidade do aumento da rotatividade do lugar escolhido para plantação, o que provoca maiores focos de desmatamento, prejuízos ao solo e a todo o ecossistema, como expressa Mandacaru:

Tem mais nada. Aí fomos pro alto, que a gente costumava ir onde forçou a turma fazer desmatamento. Tanto desmataram pra construir novas casas, como desmataram pra fazer novas roças no alto, aí obriga você todo ano a fazer uma roça, uma queimada, quem trabalha ainda. Aí todo mundo faz uma queimada pra ter, como a gente chama aqui, uma broca, terra nova. Aí é onde a destruição vem, desmata tudo. (Mandacaru, em entrevista)

O caráter desterritorializador da transposição

Ainda sobre as mudanças territoriais que a transposição provocou, Juazeiro e Jurema apontam que foram construídas várias estradas alternativas nos territórios, que implicaram em perigo para a população, bem como na falta de acessibilidade. Muitas famílias tiveram que adaptar sua rotina por conta dos trechos utilizados pelos transportes das firmas durante as obras, que posteriormente foram abandonados, sendo agora usados como rotas de fuga para assaltos e outros tipos de violência, conforme depoimentos:

Aqui apareceu uns roubo que não tinha antes. Aqui mesmo de frente a esse quebra-mola aí… agora não, um ano atrás, um ano e dois ano atrás os cabra assaltava carro aqui […] pegava os carro levava pra esse… pra essa transposição aí, tudo pra beira de canal que é meio isolado, lá pra frente, e roubava os carro […] Por causa que na beira de canal é uma estrada, tá entendendo? É estrada. Quando desmataram aí ficou estrada pra transitar os carros da firma quando estavam trabalhando, aí pronto ficou essa estrada e dessa estrada ficou meio isolada. (Juazeiro, em entrevista)

Já teve assalto quando os aluno vinha, porque a passarela ali que eles fizeram no lugar da ponte, que eles tiraram as estradas principal de gente, né? Deixaram aí a gente tendo que fazer retorno grande aí, se adoece, pronto. A gente vai fazer compra na rua e os carro não querem vim trazer não, as lotação. Porque as lotação que é de Monteiro, eles vão querem passar direto de Sertânia a Monteiro, não vão querer fazer esse arrudeio tudinho, arrudear pra vim trazer aqui não. Aí a gente tem que pegar um que seja daqui mesmo, tratar o dia certo pra ir fazer as compras da gente. (Jurema, em entrevista)

Jurema fala do prejuízo que a comunidade sofreu na locomoção e acesso a serviços e hábitos comuns, como “ir à feira”, e que a reorganização das estradas a partir da logística da transposição dificultou o acesso à prestação de serviços de emergência em saúde, vulnerabilizando a autonomia do território, diante da dificuldade da realização dos hábitos e costumes. Esse fato também pode ser constatado nos estudos de Domingues (2016DOMINGUES, R. C. A vulnerabilização camponesa no contexto da transposição do rio São Francisco: o desterro na vila produtiva rural Baixio dos Grandes (Junco). 2016. 113 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.) e Bezerra (2016BEZERRA, V. C. R. Injustiça ambiental e saúde: a perspectiva dos agricultores familiares afetados pela transposição do rio São Francisco. 2016. 91 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.), os quais apontam transformações e perda de autonomia ocorridas em territórios afetados pelas obras da transposição.

Pode-se constatar nas comunidades contextos de insegurança e medo a partir do aumento da movimentação de carros e máquinas, barulho do trânsito e explosivos utilizados na escavação do canal, que se conectaram à perda de sossego comunitário, resultando em quadros de insônia e estresse. Os condutores dos veículos também não respeitavam a velocidade recomendada de tráfego, colocando em risco a vida das famílias e engendrando insegurança e medo, como destacado na fala de Facheiro:

A gente não tinha costume com tanto carro e eles não respeitam a velocidade, né? Em frente às casas. Quanto a essa questão do movimento, do barulho, isso foi uma perda de sossego grande […] pra mim o peso maior foi por causa da construção ou irresponsabilidade, foi a perda do meu genro que ficou irreparável. Foram muitos os acidentes que aconteceram, né? (Facheiro, em entrevista)

Essas situações também foram encontradas no estudo realizado por Gonçalves et al. (2018GONÇALVES. G. M. S. et al. A transposição do rio São Francisco e a saúde do povo Pipipã, em Floresta, Pernambuco. Saúde e sociedade, São Paulo, v. 27, n. 3, p. 909-921, 2018. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018170388
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201817...
) em território indígena vulnerabilizado pelas obras da transposição. Facheiro também ressalta que, em decorrência dessa transformação, houve mudanças na rotina calma e sossegada que existia antes das obras da transposição e expressiva quantidade de acidentes e mortes durante as obras. As alterações no território também modificaram a rotina de criação de animais, como ovelhas e cabras, decorrentes da abertura das estradas e escavações para construção dos canais, dividindo a terra, o que, muitas vezes, deixava as áreas com pastagem do outro lado do canal, impossibilitando a passagem dos animais para se alimentar. As cercas que serviam para prender os animais foram danificadas, ocasionando muitas mortes por acidentes e a perda dos animais que ficavam soltos, como relatado em entrevistas:

O canal não deixou cerca no meio, ele veio abrindo. Então ficou tudo aberto, a gente se solta uma criação… muita gente teve prejuízo com perda de animais, de criação de cabra e ovelha, eu mesmo perdi umas cabra minha, […] eu comprei umas criaçãozinha de cabra pra começar a criar, só que as minhas, na época eu comprei cinco, elas foram embora e até hoje eu não sei onde elas pararam, desapareceram, cinco criação de cabra, duas grandes e três era menor, foram embora. Então muita gente perdeu por conta disso que ficou tudo aberto os bichos não tinham mais limite. (Palma, em entrevista)

Quem tem alguma criaçãozinha agora, às vezes tá soltando pra ir comer um capinzinho ali no canal. Meu esposo já pegou bichinho ali nadando, morrendo ali, aí foi que foram socorrer e tiraram os bichinhos, ainda bem que conseguiram. Porque acontece dos animais caírem dentro, não tá cercado nada. (Jurema, em entrevista)

Processos de vulnerabilização com perdas materiais, simbólicas e agravos à saúde foram encontrados em outros territórios ao longo das obras da transposição do rio São Francisco, como demonstram os estudos de Baracho (2014BARACHO, L. M. S. Feridas da transposição do São Francisco: um olhar sobre comunidades quilombolas no semiárido pernambucano. 2014. 231 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2014.), nas comunidades quilombolas no município de Salgueiro (PE); Domingues (2016DOMINGUES, R. C. A vulnerabilização camponesa no contexto da transposição do rio São Francisco: o desterro na vila produtiva rural Baixio dos Grandes (Junco). 2016. 113 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.), na Vila Produtiva Rural dos Baixio dos Grandes-Junco, em Cabrobó (PE); Gonçalves et al. (2018GONÇALVES. G. M. S. et al. A transposição do rio São Francisco e a saúde do povo Pipipã, em Floresta, Pernambuco. Saúde e sociedade, São Paulo, v. 27, n. 3, p. 909-921, 2018. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018170388
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201817...
), na Terra Indígena Pipipã em Floresta (PE); e Bezerra (2016BEZERRA, V. C. R. Injustiça ambiental e saúde: a perspectiva dos agricultores familiares afetados pela transposição do rio São Francisco. 2016. 91 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.), com comunidades camponesas em Sertânia (PE) e Monteiro (PB). Entre as implicações das perdas ocasionadas pela transposição, negar o modo de viver, como refere Cacto em entrevista, se configura como uma vulnerabilização cultural-comunal, que tem como consequência, o enfraquecimento da soberania e o modo de vida dessas comunidades.

Muita gente além de ter perdido suas terrinha, né? Ainda perdeu seus ente queridos, que teve muita gente aí que perdeu. Ter esse negócio da água foi bom? Foi. Todo ser humano precisa de água, uma plantação também precisa de uma água, mas é assim, nem todos têm essa água. Aqui nós também não tem essa água do rio São Francisco ainda. Mas é tipo, sei lá, você analisando, pensando direitinho, perdeu muita coisa, até a forma de viver, né? Porque mudou muito, mudou bastante. (Cacto, em entrevista)

A desterritorialização está para além de um processo geográfico, representa um desenraizamento cultural e afetivo dos sujeitos, que pode significar rupturas dos meios de reprodução social e estabelecimento de novas territorialidades (Santos, 2022SANTOS, J. G.; PEDROZO, E. A.; IORIS, A. A reterritorialização e a luta pela água dos atingidos pela transposição do rio São Francisco no nordeste brasileiro. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 34, n. 1, p. e65239, 2022. DOI: 10.14393/SN-v34-2022-65239
https://doi.org/10.14393/SN-v34-2022-652...
; Gonçalves et al., 2022GONÇALVES, G. M. S. et al. Demarcação de terra indígena, saúde e novas territorialidades na transposição do São Francisco no povo Pipipã, em Floresta - PE. Physis, Rio de Janeiro, v. 32, n. 1, p. e320115, 2022. DOI: 10.1590/S0103-73312022320115
https://doi.org/10.1590/S0103-7331202232...
). A reterritorialização pode implicar na impossibilidade da prática de hábitos que identificam um modo de vida, determinado pelos processos que incidem nas dimensões particulares dos indivíduos, agindo e retroagindo na forma de existir (Santos, 2021SANTOS, S. E. B. et al. (Org.). Transvergente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco. São Paulo: Dialética , 2021.). O estranhamento pode ser identificado como uma das consequências desse processo, repercutindo na saúde física e mental dos sujeitos e levando a episódios de depressão e ansiedade, como referidos no Quadro 1 e observados na fala de Cumaru:

Muitos tem casa aqui, mas não é assim, morar ter aquele amor, aquela terra não, muita gente ainda sofre um bocado. (Cumaru, em oficina)

Como única vantagem da chegada da transposição, foi citada pelas comunidades a oferta de empregos nas firmas e empresas contratadas. Mas esta logo apresentou problemas jurídicos diante da expectativa da aposentadoria como camponês e a perda da qualidade do trabalho de agricultor. Outros problemas identificados estão na alta rotatividade e na diminuição progressiva dos empregos ofertados por essas firmas, e, com isso, a instauração do medo e da insegurança entre os trabalhadores:

Olhe, muita gente mudou, porque de qualquer maneira, muita gente que era agricultor e começou a trabalhar, quando chegou a época de se aposentar, deu problema que teve vínculo com Ministério, então é assim aquela questão, eu só não cheguei a saber se perdeu a aposentadoria, mas a gente foi alertado disso […] então esse vínculo aí, durante esse período, a pessoa deixou de ser agricultor e passou a ser trabalhador público, não, é um nome que eles deram lá, então assim foi quando começou a gerar mais medo do pessoal trabalhar fichado. (Facheiro, em entrevista)

A transposição mesmo, quantas firmas não veio pra aí e empregou meio mundo de Sertaniense aqui dentro de Sertânia […] Hoje em dia não tem emprego não, hoje em dia você vai na porta de uma empresa dessa daí você leva: “não, tá pegando ninguém não”. (Coroa de frade, em entrevista)

Essa é uma das consequências encontradas em diversos territórios após as instalações dos grandes empreendimentos. Observa-se que os prejuízos são principalmente direcionados a uma determinada população e que os empreendimentos têm um padrão na escolha dos territórios onde serão implantados (Lacaz; Porto; Pinheiro, 2017LACAZ, F. A. C.; PORTO, M. F. S.; PINHEIRO, T. M. M. Tragédias brasileiras contemporâneas: o caso do rompimento da barragem de rejeitos de Fundão/Samarco. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 42, p. e9, 2017. DOI: 10.1590/2317-6369000016016
https://doi.org/10.1590/2317-63690000160...
; Gonçalves et al., 2018GONÇALVES. G. M. S. et al. A transposição do rio São Francisco e a saúde do povo Pipipã, em Floresta, Pernambuco. Saúde e sociedade, São Paulo, v. 27, n. 3, p. 909-921, 2018. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018170388
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201817...
; Oliveira, 2020OLIVEIRA, R. M. O jabuti e a anta: povo Munduruku, hidrelétrica, conflito e consulta prévia na bacia do rio Tapajós. Amazônica - Revista de Antropologia, Belém, v. 12, n. 2, p. 621-657, 2020. DOI: 10.18542/amazonica.v12i2.7947
https://doi.org/10.18542/amazonica.v12i2...
; Porto; Rocha, 2022PORTO, M. F. S.; ROCHA, D. Neoextrativismo, garimpo e vulnerabilização dos povos indígenas como expressão de um colonialismo persistente no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, n. 133, p. 487-500, 2022. DOI: 10.1590/0103-1104202213317
https://doi.org/10.1590/0103-11042022133...
; Rigotto; Santos; Costa, 2022RIGOTTO, R. M.; SANTOS, V. P.; COSTA, A. M. Territórios tradicionais de vida e as zonas de sacrifício do agronegócio no Cerrado. Saúde em Debate, Rio de janeiro, v. 46, n. spe2, p. 13-27, 2022. DOI: 10.1590/0103-11042022E201
https://doi.org/10.1590/0103-11042022E20...
). As dimensões apresentadas (Quadro 1) são centrais para compreender os desdobramentos dos processos macroecológicos e relacionais dos impactos à vida e à saúde, contribuindo para a necessidade de se implementar processos de reparação integral nas comunidades vulnerabilizadas pela transposição (Martín Beristain, 2010MARTÍN BERISTAIN, C. El derecho a la reparación en los conflictos socioambientales: experiencias, aprendizajes y desafíos prácticos. Bilbao: Hegoa, 2010.).

O Estado brasileiro segue ineficiente na resolução dos problemas apresentados pelas comunidades neste estudo. No entanto, existem ações em curso nesses territórios, encampadas por instituições de ensino e pesquisa - como a Universidade de Pernambuco e a Fundação Oswaldo Cruz -, no sentido da reparação integral para essas comunidades vulnerabilizadas. Entre essas ações, há uma denúncia ao Ministério Público Federal, protocolada em 2020, relatando as perdas materiais e simbólicas e os agravos à saúde relacionados ao contexto de implantação das obras da transposição do rio São Francisco.

Considerações finais

O projeto da transposição do rio São Francisco, ao longo de sua área de abrangência, determinou profundas transformações territoriais, caracterizando-se como um grande empreendimento desterritorializador, ao ampliar as vulnerabilidades das comunidades camponesas do município de Sertânia (PE) e produzir novos processos de vulnerabilização, repercutindo negativamente sobre a reprodução social e a saúde dessa população. Os efeitos negativos desses processos retroagem sobre vulnerabilizações históricas.

Um empreendimento desse porte requer, desde o seu projeto até sua execução, medidas protetoras dos territórios, resguardando a qualidade de vida da população local e as expectativas reais de acesso aos bens comuns e seus desejos de bem viver. No entanto, isso não foi vivenciado pela população deste estudo, que foi afetada diretamente no seu modo de vida em suas dimensões materiais e simbólicas. A categoria da reprodução social contribuiu para a compreensão da determinação social da saúde, permitindo evidenciar os processos de vulnerabilização ocorridos. As interações entre as diversas dimensões da reprodução social puderam ser vistas a partir da observação daquelas relacionadas à autoconsciência e à conduta - que dizem respeito aos aspectos culturais -, incluindo os modos de vida tradicionais, que funcionaram no início como fragilidades da coesão social para fazer frente à instauração do empreendimento.

A reprodução social sistematizada em uma matriz de variáveis em diversos níveis hierárquicos de observação - individual, familiar, comunitário, municipal e nacional - permitiu compreender a produção da vulnerabilização e da injustiça ambiental em saúde decorrente da transposição. A perspectiva sistêmica, também, permitiu refletir sobre a necessidade de implementação de práticas de intervenção em busca da promoção da justiça ambiental, por exemplo, a reparação integral dos danos comunitários que foram evidenciados.

São necessárias maiores reflexões sobre o tema da reparação integral no campo da saúde coletiva e sua aplicabilidade nos territórios, ou seja, que incluam práticas de reparação integral interconectadas a todos os níveis hierárquicos da reprodução social que implicam na saúde e no bem-estar de forma participativa, não limitando sua aplicação apenas ao campo material ou às questões financeiras.

Referências

  • ACSELRAD, H. Ambientalização das lutas sociais - o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados, São Paulo, v. 24, n. 68, p. 103-119, 2010. DOI: 10.1590/S0103-40142010000100010
    » https://doi.org/10.1590/S0103-40142010000100010
  • BARACHO, L. M. S. Feridas da transposição do São Francisco: um olhar sobre comunidades quilombolas no semiárido pernambucano. 2014. 231 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2014.
  • BEZERRA, V. C. R. Injustiça ambiental e saúde: a perspectiva dos agricultores familiares afetados pela transposição do rio São Francisco. 2016. 91 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.
  • BRANDÃO, C. R. A comunidade tradicional. In: COSTA, J. B. A.; OLIVEIRA, C. L. (Org.). Cerrados, gerais, sertão: comunidades tradicionais nos sertões roseanos. Santos: Intermeios, 2012. p. 347-361.
  • BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília, DF, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf >. Acesso em: 9 jan. 2024.
    » https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
  • BRASIL. Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Programa Básico Ambiental de Conservação da fauna e da flora (PAB 23). Brasília, DF, 2005. Disponivel em: <Disponivel em: https://antigo.mdr.gov.br/images/stories/ProjetoRioSaoFrancisco/ArquivosPDF/PBA23.pdf > acesso em: 13 jan. 2024.
    » https://antigo.mdr.gov.br/images/stories/ProjetoRioSaoFrancisco/ArquivosPDF/PBA23.pdf
  • BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Relatório de impacto ambiental (RIMA): Projeto de integração do rio São Francisco com bacias hidrográficas do nordeste setentrional. Brasília, DF, 2004.
  • COSTA, A. M; DINIZ, P. C. O. Territórios tutelados e processos de vulnerabilização: história social da transposição. In: SANTOS, S. E. B. et al. (Org.). Transvergente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco. São Paulo: Dialética, 2021. p. 17-35.
  • DOMINGUES, R. C. A vulnerabilização camponesa no contexto da transposição do rio São Francisco: o desterro na vila produtiva rural Baixio dos Grandes (Junco). 2016. 113 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Instituto Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2016.
  • ESCOBAR, A. Territorios de diferencia: la ontología política de los “derechos al territorio”. Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, v. 35, p. 89-100, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://www.furb.br/_upl/files/ppgdr/Territorios%20de%20diferena.pdf >. Acesso em: 9 jan. 2024.
    » https://www.furb.br/_upl/files/ppgdr/Territorios%20de%20diferena.pdf
  • GONÇALVES, G. M. S. et al. Demarcação de terra indígena, saúde e novas territorialidades na transposição do São Francisco no povo Pipipã, em Floresta - PE. Physis, Rio de Janeiro, v. 32, n. 1, p. e320115, 2022. DOI: 10.1590/S0103-73312022320115
    » https://doi.org/10.1590/S0103-73312022320115
  • GONÇALVES. G. M. S. et al. A transposição do rio São Francisco e a saúde do povo Pipipã, em Floresta, Pernambuco. Saúde e sociedade, São Paulo, v. 27, n. 3, p. 909-921, 2018. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902018170388
    » https://doi.org/10.1590/S0104-12902018170388
  • HENKES, S. L. A política, o direito e o desenvolvimento: um estudo sobre a transposição do rio São Francisco. Revista DIREITO GV, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 497-534, 2014. DOI: 10.1590/1808-2432201421
    » https://doi.org/10.1590/1808-2432201421
  • IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mapa do semiárido brasileiro. 2018. Disponível em: Semiárido brasileiro. Disponível em: <https://geoftp.ibge.gov.br/organizacao_do_territorio/estrutura_territorial/semiarido_brasileiro/Situacao_23nov2017/mapa_Semiarido_2017_11_23.pdf>
    » https://geoftp.ibge.gov.br/organizacao_do_territorio/estrutura_territorial/semiarido_brasileiro/Situacao_23nov2017/mapa_Semiarido_2017_11_23.pdf
  • LACAZ, F. A. C.; PORTO, M. F. S.; PINHEIRO, T. M. M. Tragédias brasileiras contemporâneas: o caso do rompimento da barragem de rejeitos de Fundão/Samarco. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 42, p. e9, 2017. DOI: 10.1590/2317-6369000016016
    » https://doi.org/10.1590/2317-6369000016016
  • MARTÍN BERISTAIN, C. El derecho a la reparación en los conflictos socioambientales: experiencias, aprendizajes y desafíos prácticos. Bilbao: Hegoa, 2010.
  • MEDEIROS, M. S.et al. A Reprodução social como perspectiva metodológica para análise contextualizada das condições de vida e de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 28, n. 10, p. e00150320, 2022. DOI: 10.1590/0102-311XPT150320
    » https://doi.org/10.1590/0102-311XPT150320
  • OLIVEIRA, R. M. O jabuti e a anta: povo Munduruku, hidrelétrica, conflito e consulta prévia na bacia do rio Tapajós. Amazônica - Revista de Antropologia, Belém, v. 12, n. 2, p. 621-657, 2020. DOI: 10.18542/amazonica.v12i2.7947
    » https://doi.org/10.18542/amazonica.v12i2.7947
  • PORTO, M. F. S.; ROCHA, D. F; FINAMORE, R. Saúde coletiva, território e conflitos ambientais: bases para um enfoque socioambiental crítico. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 10, p. 4071-4080, 2014. DOI: 10.1590/1413-812320141910.09062014
    » https://doi.org/10.1590/1413-812320141910.09062014
  • PORTO, M. F. S.; ROCHA, D. Neoextrativismo, garimpo e vulnerabilização dos povos indígenas como expressão de um colonialismo persistente no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, n. 133, p. 487-500, 2022. DOI: 10.1590/0103-1104202213317
    » https://doi.org/10.1590/0103-1104202213317
  • RIGOTTO, R. M.; SANTOS, V. P.; COSTA, A. M. Territórios tradicionais de vida e as zonas de sacrifício do agronegócio no Cerrado. Saúde em Debate, Rio de janeiro, v. 46, n. spe2, p. 13-27, 2022. DOI: 10.1590/0103-11042022E201
    » https://doi.org/10.1590/0103-11042022E201
  • SAMAJA, J. A reprodução social e a saúde: elementos teóricos e metodológicos sobre a questão das relações entre saúde e condições de vida. Salvador: Casa da Qualidade, 2000.
  • SANTOS, J. G.; PEDROZO, E. A.; IORIS, A. A reterritorialização e a luta pela água dos atingidos pela transposição do rio São Francisco no nordeste brasileiro. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 34, n. 1, p. e65239, 2022. DOI: 10.14393/SN-v34-2022-65239
    » https://doi.org/10.14393/SN-v34-2022-65239
  • SANTOS, M. O dinheiro e o território. GEOgraphia, Niterói, v. 1, n. 1, p. 7-13, 2009. DOI: 10.22409/GEOgraphia1999.v1i1.a13360
    » https://doi.org/10.22409/GEOgraphia1999.v1i1.a13360
  • SANTOS, S. E. B. et al. (Org.). Transvergente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco. São Paulo: Dialética , 2021.
  • SOLIZ, F.; MALDONADO, A. Guía 5: guía de metodologías comunitarias participativas. 5. ed. Quito: Clínica Ambiental, 2012.
  • VÍCTORA, C. G.; KNAUTH, D. R.; HASSEN, M. N. A. Pesquisa qualitativa em saúde: uma introdução ao tema. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000.
  • YIN, R. K. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2023
  • Revisado
    30 Maio 2023
  • Revisado
    15 Ago 2023
  • Aceito
    31 Ago 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br