“Eu não sei como eu tenho força pra vir na escola”: manifestações e implicações do bullying entre adolescentes escolares

“I don’t know how I have the strength to come to school:” manifestations and implications of bullying between school adolescents

Diego Raone Ferreira Isaias Batista de Oliveira Junior Ieda Harumi Higarashi Sobre os autores

Resumo

Este artigo tem como objetivo compreender, pelo uso do Photovoice, as representações de bullying presentes entre adolescentes escolares do ensino médio. Trata-se de um estudo qualitativo, realizado com 54 adolescentes da rede pública de ensino do estado do Paraná, organizados em seis grupos focais. Os dados foram coletados mediante a técnica participativa Photovoice e submetidos à análise de conteúdo proposta por Bardin. Da análise dos dados emergiram três categorias: “Bullying estético, homofóbico e de gênero: estratégias subversivas”, “Os efeitos danosos do bullying” e “O diálogo interdisciplinar como estratégia de prevenção e combate ao bullying”. Com os resultados, foi possível evidenciar que a prática do bullying acontece a partir das dissonâncias entre agressores e vítimas, com insultos à condição de conformação corporal, orientação sexual, identidade de gênero, entre outros. Por essa razão, é preciso viabilizar ações articuladas entre educação e saúde para o diálogo e escuta a respeito do bullying na comunidade escolar, com vistas a seu enfrentamento, prevenção e proteção, almejando, sobretudo, o respeito e valorização das diferenças.

Palavras-chave:
Bullying; Adolescente; Violência; Serviços de Saúde Escolar; Enfermagem

Abstract

This article aims to understand, by using Photovoice, the representations of bulling among high school adolescents. This is a qualitative study, conducted with 54 adolescents from the public school system of the state of Paraná, organized into six focus groups. The data were collected using the Photovoice participatory technique and submitted to content analysis proposed by Bardin. Three categories emerged from the data analysis: “Esthetic, homophobic, and gender bullying: subversive strategies”, “The harmful effects of bullying”, and “Interdisciplinary dialogue as a strategy to prevent and combat bullying.” With the results, it was possible to evidence that the practice of bullying happens from dissonances between aggressors and victims, with insults to the condition of body conformation, sexual orientation, gender identity, among others. For this reason, it is necessary to enable articulated actions between education and health for dialogue and listening about bullying in the school community, with a view to coping with it, prevent it, and protect against it, seeking above all the respect and appreciation of differences.

Keywords:
Bullying; Adolescent; Violence; School Health Services; Nursing

Introdução

A escola tem se constituído como um espaço onde ocorrem múltiplas formas de violência. Seus partícipes vivenciam, de maneiras distintas, práticas subversivas que provocam marcas e sequelas em suas vidas como constrangimento, exposições vexatórias, ameaças, provocações, intimidações e violência física e psicológica. Essas podem ser traduzidas, em outros termos, como bullying (Gouveia; Leal; Cardoso, 2017GOUVEIA, P.; LEAL, I.; CARDOSO, J. Bullying e agressão: estudo dos preditores no contexto de programa de intervenção da violência escolar. Revista Psicologia, Lisboa, v. 31, n. 2, p. 69-88, 2017. DOI: 10.17575/rpsicol.v31i2.1116
https://doi.org/10.17575/rpsicol.v31i2.1...
; Arrúa et al., 2019ARRÚA, A. L. A. et al. Violência Escolar. Revista Psicologia & Saberes, Maceió, v. 8, n. 10, p. 170-177, 2019. DOI: 10.3333/ps.v8i10.884
https://doi.org/10.3333/ps.v8i10.884...
).

O bullying é uma palavra de origem inglesa, empregada para definir comportamentos violentos recorrentes intencionais e sem motivação aparente, praticados em distintos contextos, incluindo no escolar, onde quem pratica se vale da relação de desequilíbrio de poder com as vítimas. Em outras palavras, é um comportamento subversivo predominante nas relações interacionais de crianças e adolescentes, causando prejuízos em seu desenvolvimento biopsicossocial e na descoberta de suas potencialidades (Gonçalves; Cardoso; Argimon, 2019GONÇALVES, F. V.; CARDOSO, N. O.; ARGIMON, I. I. L. Estratégias de intervenção para adolescentes em situações de bullying escolar: uma revisão sistemática. Revista Contextos Clínicos, São Leopoldo, v. 12, n. 2, p. 636-658, 2019. DOI: 10.4013/ctc.2019.122.12
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; Alencastro et al., 2020ALENCASTRO, L. C. S. et al. Teatro do Oprimido e bullying: atuação da enfermagem na saúde do adolescente escolar. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 73, n. 1, e20170910, 2020. DOI: 10.1590/0034-7167-2017-0910
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).

O reflexo desse comportamento foi “supostamente” apontado como a motivação para o Massacre do Realengo, no Rio de Janeiro, em 7 de abril de 2011, quando um rapaz de 23 anos invadiu uma escola municipal e ceifou a vida de doze alunos com idade entre 13 e 15 anos. Segundo relatos, o agressor teria sofrido inúmeras humilhações, ofensas e agressões quando era aluno, o que refletiu em suas emoções e comportamentos, impulsionando-o a exteriorizar a violência sofrida contra a própria escola e comunidade (Cattapan, 2020CATTAPAN, P. Uma análise crítica dos fenômenos do bullying e do terrorismo. Revista Iluminart, Sertãozinho, v. 18, p. 28-38, 2020.).

Em 2019, um caso semelhante sucedeu-se numa escola estadual da cidade de Suzano, no estado de São Paulo, que se tornou campo de massacre para dois adolescentes, encapuzados e armados com os mais distintos artefatos, que tiraram a vida de oito pessoas, feriram onze e cometeram ato extremo após o feito. Semelhante ao caso anterior, ambos eram ex-alunos do colégio que atacaram (Brum; Silva, 2021BRUM, A.; SILVA, R. L. O massacre de Suzano e a (in)atuação dos atores de proteção integral à luz da liquidez social e suspensão ética. Disciplinarum Scientia, Santa Maria, v. 17, n. 1, p. 41-59, 2021.).

Esses dois episódios, que não são casos isolados e revelam as consequências do bullying escolar, predominante em vítimas adolescentes do gênero feminino (26,5%), em comparação ao gênero masculino (19,5%), de acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entre ambos os grupos, 23% dos escolares que se declararam vítimas de humilhação por provocação de seus colegas estão na faixa etária entre 13 e 17 anos (adolescentes) (IBGE, 2021IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional de saúde do escolar: 2019. Rio de Janeiro, 2021.).

No que se refere a prática do bullying, os meninos foram apontados como maiores causadores (14,6%) do que o gênero oposto (9,5%). A concentração de vítimas foi maior em escolas públicas (23%) do que em privadas (22,9%), até o findar de 2019. Ao serem entrevistadas, as vítimas de bullying relataram marcas e sequelas emocionais, como mágoa, incômodo, aborrecimento, ofensa ou humilhação decorrentes de chacotas e intimidação pelos colegas, que depreciam sua aparência corporal (16,5%), do rosto (11,6%) e/ou a cor ou raça (4,6%) (IBGE, 2021IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa nacional de saúde do escolar: 2019. Rio de Janeiro, 2021.).

Os dados aqui apresentados, por si só, são suficientes para acionar uma rede de proteção com o objetivo de problematizar o impacto do bullying na escola. Esse debate nos impele a pensar o papel da escola na promoção de estratégias garantidoras de proteção integral e na contenção de episódios de violência, pois é, por excelência, uma instituição formadora de proteção da integridade física, emocional e de direitos das crianças e adolescentes (Brum; Silva, 2021BRUM, A.; SILVA, R. L. O massacre de Suzano e a (in)atuação dos atores de proteção integral à luz da liquidez social e suspensão ética. Disciplinarum Scientia, Santa Maria, v. 17, n. 1, p. 41-59, 2021.).

Uma das estratégias de prevenção ao bullying deu-se com a sanção da Lei 13.185, de 6 de novembro de 2015, conhecida como “Lei do Bullying”, cujo objetivo é combater a violência no âmbito escolar em todo o território nacional por meio do Programa de Combate a Intimidação Sistemática (Bullying) (Brasil, 2009).

Para além de resoluções, é precípuo viabilizar propostas e ações que visem garantir o direito ao acesso e permanência de todos os adolescentes na escola, indistintamente. Antes de promover esse diálogo, é necessário que se escute o sujeito dessa prática: os adolescentes. É a partir daí que emerge uma questão norteadora que auxilia na compreensão desse processo: de que modo as manifestações e implicações do bullying são percebidas entre os adolescentes escolares11A Organização Mundial de Saúde (OMS) caracteriza a adolescência como a faixa etária compreendida dos 10 aos 19 anos. A partir dessa definição, foi adotado para este estudo o termo “adolescentes escolares”, como forma de referenciar estudantes dessa idade., tanto na figura de quem pratica (bully) quanto de quem é vítima?

As considerações sobre os dados obtidos não têm como intuito findar as discussões acerca do combate e prevenção ao bullying escolar, mas sim estimular novos olhares e possíveis proposições sobre a temática a serem pensadas coletivamente e, de antemão, elicitar a intersetorialidade e articulação entre educação e saúde, representadas pela figura da Escola e Atenção Primária a Saúde (APS) como estratégia de enfrentamento às vulnerabilidades e violências (Chiari et al., 2018CHIARI, A. P. G. et al. Rede intersetorial do Programa Saúde na Escola: sujeitos, percepções e práticas. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 5, e00104217, 2018.).

Diante do exposto, o presente estudo tem como objetivo compreender as representações de adolescentes escolares do ensino médio acerca do bullying, por meio do uso do Photovoice.

Percurso metodológico

Trata-se de um estudo de natureza qualitativa e do tipo participativo, desenvolvido com auxílio da técnica participativa de investigação Photovoice, proposta por Caroline Wang e Mary Ann Burris em 1997, que permite compreender fenômenos sociais e culturais em diferentes contextos por meio de crenças, valores e significados presentes em imagens, narrativas, concepções e vivências de uma sociedade (Araújo et al., 2015ARAÚJO, L. et al. As potencialidades do Photovoice enquanto metodologia participativa na formação de educadores sociais. Revista de Estudios e Investigación en Psicología y Educacíon Coruña, v. 6, p. 72-75, 2015. DOI: 10.17979/reipe.2015.0.06.198
https://doi.org/10.17979/reipe.2015.0.06...
; Meirinho, 2016MEIRINHO, D. Olhares em foco: fotografia participativa e empoderamento juvenil. Covilhã: LabCom IFP, 2016.; Gil, 2019GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2019.).

A técnica Photovoice tem como essência a fotografia documental e o seu potencial de promover o empoderamento de grupos vulneráveis, como no caso dos adolescentes escolares deste estudo, pois lhes possibilita resgatar memórias, refletir e ampliar suas concepções acerca dos fenômenos, e também atribuir sentido a tudo aquilo que é vivenciado e compreendido do ponto de vista individual ou coletivo, pelo registro de imagens à produção de narrativas (Araújo et al., 2015ARAÚJO, L. et al. As potencialidades do Photovoice enquanto metodologia participativa na formação de educadores sociais. Revista de Estudios e Investigación en Psicología y Educacíon Coruña, v. 6, p. 72-75, 2015. DOI: 10.17979/reipe.2015.0.06.198
https://doi.org/10.17979/reipe.2015.0.06...
; Meirinho, 2016MEIRINHO, D. Olhares em foco: fotografia participativa e empoderamento juvenil. Covilhã: LabCom IFP, 2016.).

O estudo foi realizado em uma instituição da rede pública de ensino do estado do Paraná, com 54 adolescentes escolares do terceiro ano do ensino médio distribuídos em seis grupos focais, organizados conforme afinidade entre eles. Os participantes elegíveis foram abordados conforme indicação da coordenação pedagógica, respeitando a acessibilidade, logística e interesse, sem causar infortúnios à rotina escolar.

Após a apresentação do estudo, a anuência da participação se deu mediante assinatura firmada dos pais/responsáveis e participantes, no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE), contendo detalhadamente todas as informações referente a pesquisa.

A coleta de dados ocorreu no primeiro semestre de 2022, quando os participantes, após um momento de instrução e preparo técnico sobre o Photovoice, receberam a tarefa de explorar o território escolar e capturar em seus dispositivos móveis (smartphones) imagens que retratassem diferentes representações de violência escolar, executada em um período médio de dez minutos. A obtenção das fotografias teve como critério elementar prezar pela originalidade e preservar a identidade de estabelecimentos, marcas e pessoas, bem como respeitar todos os princípios ético-legais.

Foram apresentadas 54 fotografias de autoria própria de cada participante, que subsidiaram os debates sobre o tema em investigação. Dentre as quais, duas imagens foram selecionadas em consenso para representar a concepção coletiva sobre o tema. As escolhidas foram projetadas com o auxílio de recursos audiovisuais e, na sequência, realizou-se as entrevistas com cada grupo focal, seguindo um roteiro semiestruturado de questões disparadoras sobre o tema, em um período de 30 a 45 minutos.

Neste momento, não houve participação de professores, equipe pedagógica e diretiva, pois foi entendido que a presença deles poderia causar desconforto e inibição na exposição de ideias e discussões. A instituição de ensino disponibilizou uma sala apropriada, em local reservado, garantindo a privacidade e segurança dos envolvidos.

As entrevistas foram gravadas em dispositivo móvel (smartphone) e transcritas na íntegra, resultando em 26 páginas digitadas no programa Microsoft Word®, com espaçamento entrelinhas de 1,5. O corpus textual foi importado para o programa QDA Miner ®, versão 5.0.35, como recurso auxiliar de análise de conteúdo, que se desdobrou nas etapas de pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, interferência e interpretação (Bardin, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.).

Como forma de garantir o sigilo e o anonimato, os participantes foram codificados por um arranjo alfabético e um número, portanto, pela letra “E”, derivada de “escolar”, seguida pelo algarismo arábico conforme ordem cronológica de realização das entrevistas, para ambos os gêneros.

Os dados aqui apresentados são excertos de uma Tese de Doutorado em Enfermagem, que objetivou analisar as representações de adolescentes escolares a respeito da violência na comunidade escolar. O estudo atendeu todas as diretrizes regulamentadoras da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), foi submetido para apreciação do Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá (COPEP/UEM) e aprovado sob parecer 5.385.942 e CAAE 57997422.4.0000.0104, em 3 de maio de 2022.

Resultados

Dos 54 participantes deste estudo, 29 (53,70%) eram do sexo feminino e 25 (46,30%) do sexo masculino, com faixa etária predominante dos 16 a 17 anos entre 36 (66,67%) adolescentes. Em relação a escolarização, 29 (53,70%) referiram conciliar estudo e trabalho e 25 (46,30%) apenas estudam. A renda salarial assinalada foi menor que um salário mínimo para os 18 (33,33%) escolares que informaram trabalhar.

Foram produzidas 54 fotografias pelos adolescentes escolares. Dentre elas, 12 foram selecionadas para compor corpus fotográfico deste estudo. A exposição fotográfica e os depoimentos obtidos por meio delas retrataram dizeres violentos e pejorativos em rabiscos na parede de banheiro, cenas de “puxão de cabelo” e socos, imagem de sala de aula, quadra de esportes e pátio como possíveis lócus para violência, e equipamentos de segurança. Das 12 imagens, seis foram selecionadas para este estudo, as quais comporão as categorias a seguir.

A partir da apresentação das fotografias e da análise das narrativas produzidas pelos adolescentes escolares nas interações dos grupos focais, emergiram três categorias temáticas: “Bullying estético, homofóbico e de gênero: estratégias subversivas”; “Os efeitos danosos do bullying” e “O diálogo interdisciplinar como estratégia de prevenção e combate ao bullying”.

Bullying estético, homofóbico e de gênero: estratégias subversivas

As inferências dos discursos e das imagens produzidas pelos estudantes revelam, como estratégia para compreensão das estruturações discursivas e como ferramenta para análise de suas vivências nos espaços escolares, a violência praticada no espaço escolar como um problema real que (retro)alimenta práticas subversivas, podendo se manifestar em diferentes intensidades, desde piadas ou brincadeiras jocosas até apelidos, intrigas e fofocas, como destacado na sequência:

[...] se eu tirasse o fone eu ia escutar as meninas rindo, fazendo piadinhas, e isso ia me deixar mal. (E18)

É muitafofoca, intriga, é muita exclusão.

Tipo assim, grupinho aqui, grupinho ali, e aquela pessoa sozinha. (E19)

Quando vocêtira sarro da pessoa, quando você faz o bullying. Acontece frequentemente. (E29)

Uma coisa que acontece bastante aqui no colégio [...] é o ódio gratuito e a difamação também. É bullying que algumas pessoas fazem com outras [...]. E acontece bastante, mais do que se imagina. (E38)

Tem de tudo, osapelidos. (E32)

E eu era a única diferente. E os meninos começaram a fazer bullying comigo,me chamar de nomes, me empurrar, essas coisas. (E39)

Figura 1
Quadra de esportes

A condição física foi apresentada pelos adolescentes escolares como predominante para prática do bullying, principalmente quando diverge de um suposto “padrão de beleza” imposto pela sociedade. Assim, o bullying pode ser compreendido como corriqueiro e, ao mesmo tempo, despercebido, uma vez que também pode ser julgado como uma “simples brincadeira”.

Eu já sofribody shaming, que é pegar uma característica do seu corpo [...] e usar isso contra ela é algo muito cruel de se fazer. (E13)

[...] Sabe, era meu físico. Desculpa [choro]. Era o meu físico , era na escola. As vezes era por nada, sabe?. (E16)

É muita gente querendofalar da aparência dos outros, sendo que todo mundo é diferente, ninguém é igual a ninguém, e tem que aceitar, entendeu?. (E19)

O bullying que deprecia a sexualidade ou uma suposta homossexualidade também se fez presente e foi descrito como brincadeiras, gozações e humilhações. Não necessariamente a pessoa precisa se assumir, mas somente estar em dissintonia com aquilo convencionado como norma é o suficiente para ser alvo de piadas. Embora o depoimento tenha sido proferido por terceiro, o bullying e homofobia fazem parte das relações juvenis e “autoriza” o destrato e a violência.

Uma vez entrou um moleque e ele era gay, e os meninos ficavam zoando ele. Ele não queria mais ir para o colégio. [...] Os meninos ficavam chamando de viadinho, bichinha [...]. Eu lembro que uma semana inteira ele não foi e a professora ficou preocupada. (E22)

Outro aspecto enfatizado foi a violência de gênero, manifestada em rabiscos nas paredes e portas de sanitários femininos como forma de causar exposição, constrangimento e vergonha. Na perspectiva de alguns adolescentes escolares, locais que deveriam ser considerados como mobilizadores de união e acolhimento entre seus frequentadores tornaram-se ambientes de disseminação de marcas comportamentais violentas.

[...] as pessoas anonimamente elas escrevem coisas maldosas das outras. (E7)

Você pegaum defeito da pessoa ou alguma coisa erradaque ela fez ou alguma coisa que as pessoas acham engraçado, e daí escreve anonimamente no banheiro. [...] então isso gera boatos na escola e fica marcado na vida das pessoas. (E12)

Tem o nosso banheiro também,nosso banheirointeiro, das meninas,todo mundo xingando. (E17)

Figura 2
Grifos e rabiscos

A maioria das representações evocadas pelos estudantes não fazem referência à violência física, mas sim à violência de gênero, de orientação sexual e de aparência física, que se manifestam em tom de brincadeira e piadas, em xingamentos e em pixações nos espaços privativos. Portanto, tornam-se invisíveis na (e pela) escola e, embora não causem danos aparentes, desrespeitam a identidade e a singularidade da vítima, promovendo nela transtornos ou desconfortos psíquicos e emocionais, como descrito na seção que segue.

Os efeitos danosos do bullying

O bullying, expressão latente da violência escolar, tem sido objeto de estudos devido a sua influência na qualidade de vida dos envolvidos e pelos danos causados à saúde física e psicológica. As consequências desse fenômeno se traduzem em sérios problemas psicológicos entre os adolescentes escolares, como traumas, depressão, síndrome do pânico e até suicídio, conforme relatado por eles.

Ficar traumatizado e no seu futuro ter medo de fazer alguma coisa por ter acontecido isso na sua fase de escola. (E8)

Eu já fui muito ameaçada, abusada. Psicologicamente, fisicamente.Eu não sei como eu tenho força pra vir, sabe?É muito difícil pra mim. Eu falto muito. (E15)

[...] É um trauma que ficou, que eu não consigo tirar isso da minha cabeça. [...] eu chegava no colégio e tinha crise de pânico , e eles me levavam embora. Aí eu parei de falar, parei, deixei, eu guardei pra mim. E isso fica até hoje. (E16)

Afeta o psicológico da gente, e quandoataca o psicológicoacaba atacando o resto, tudo. Cada vez mais se afundando. (E17)

Atrapalha o psicológico da pessoa e faz com que ela tenha traumas. Vira um hábito se ela começar a sofrer bullying e xingamento, tanto psicológico como físico, epode levar ela até ao suicídio. (E26)

A pessoa que sofre fica comansiedade, combaixa autoestima, não consegue assistir as aulas. A maior parte é isso. (E29)

Figura 3
Agressão

As emoções, sentimentos negativos e a dor psíquica causadas pelo bullying destituem a esperança de uma sobrevivência digna, colocam os jovens em dúvidas acerca de suas potencialidades e afetam relações interpessoais, fazendo com que a vítima se torne cada vez mais reclusa. Os resultados desse sofrimento se traduzem no desinteresse pelas atividades escolares, na desmotivação e na queda do rendimento, fatores que tendem a impulsioná-los ao fracasso, ao abandono e à evasão escolar, conforme relatos.

Podeatrapalharmuito no rendimento da pessoa. [...] (E1)

Eu não tenho vontade de vir, sabe? Se eu venho eu não consigo me concentrar. Eu posso me esforçar ao máximo, maseu não me concentro. Eume fechei, eu me reclusei, porque eu tenho medo. Eu odeio vir pra cá. É o lugar mais difícil. [voz embargada] (E16)

[...] na escola vinha por obrigação, porque não tinha vontade de estudar . Chegava, abria o caderno, a professora falava e eu colocava as músicas no fone e não prestava atenção porque eu simplesmente não conseguia. (E18, grifos nossos)

Eu já saí do meu colégio antigo por conta desse bullying. (E35)

Figura 4
Puxão de cabelo

A sobrecarga psicológica e emocional faz com que as vítimas apresentem sinais de embotamento, desânimo, propensão ao choro e à atos lesivos, sensação de pânico e tristeza nem sempre visíveis, mas decorrentes da sequência de violências sofridas. Com isso, destaca-se o papel dos educadores e agentes escolares na identificação e enfrentamento do bullying de forma articulada e interdisciplinar, no sentido de prevenir sua ocorrência e minimizar implicações.

O diálogo interdisciplinar como estratégia de prevenção e combate ao bullying

Com os relatos obtidos, ficou evidente que o bullying pode ocorrer silenciosamente, manifestando-se em microviolências e dificultando seu entendimento e identificação por outras pessoas. Como atores principais desse processo, os adolescentes escolares sugerem que, para modificar essa realidade, é preciso lançar mão do diálogo e de ações educativas, objetivando ampliar a visão dos envolvidos para violência de modo a reconhecê-la como algo ruim e insolúvel, e provocando reflexões e mudanças de comportamentos.

Tinha queconversarmais. (E10)

Por isso é muito importante o que você tá fazendo, de conversar, porque isso não tem aqui também, entendeu? [...] E a gente nunca teve isso aqui.

Então é muito bom ter alguém pra conversar,muita gente precisa disso. (E18)

É a primeira vez! [que aconteceu esse tipo de diálogo] (E17, E19, E20).

Compalestras, falar mais com os alunos, com as mães também. (E29)

Para os adolescentes escolares, o trabalho de conscientização para prevenção e enfrentamento do bullying deve ser realizado de forma constante e precoce, envolvendo não só a comunidade escolar como também pais e familiares, de maneira a prepará-los para identificar mudanças de comportamento e sinais de violência, intervindo em tempo hábil e com segurança.

Pelo que eu vejo ninguém fala muito sobre isso. [...] Ninguém nunca ensinou a gente sobre isso, como saber lidar . Conversar com as pessoas que praticam também, pra elas entenderem também. Porque as vezes, elas mesmo não sabem por que elas tão fazendo isso. (E38)

Se esse assunto fosse introduzido na nossa vida desde o momento que a gente entrou na escola, hoje em dia esse problema ia ter uma proporção muito menor etodo mundo ia ter uma forma de saber como lidar com isso, e quem sofre também ia saber lidar com isso. (E38)

Figura 5
Sala de aula

O debate acerca do bullying na comunidade escolar revela que tanto os sujeitos quanto o sistema possuem limitações para atender casos do tipo, mesmo com sua constância e divulgação.

[...] quando a gente culpa o colégio, o jeito que a gente fala a gente se refere como se fosse errada a pedagoga ou a diretora. Só que na realidade quando a gente cita isso, a gente se refere ao Estado . É todo um sistema , o problema tá na raiz. (E35)

[...] na escola eu espero que a secretaria e a pedagoga façam algo , tipo, fale com os pais dos envolvidos, fale com pessoas que possam resolver ou fale com a própria pessoa para que ela possa entender o que fez de errado. Só que na maioria das vezes isso não acontece , eles simplesmente deixam passar. (E14)

Algumas ações anti-bullying foram citadas como necessárias e efetivas, por exemplo promover o diálogo entre os partícipes da comunidade escolar e interação da gestão escolar com as famílias e/ou responsáveis e outros setores, como a área da saúde, possibilitando a construção de uma rede de proteção com vistas à promoção do bem-estar, conscientização, prevenção e enfrentamento do bullying.

[...] falta auxílio quando alguém vai procurar uma ajuda psicológica. (E7)

Euquero ir no psicólogo, eu quero fazer alguma coisa”. E agente nunca teve issoaqui. Entãoé muito bom ter alguém pra conversar, muita gente precisa disso. (E18)

[...] eu acho que tinha que ter pelo menos um psicólogo no colégio. (E37)

A intervenção interdisciplinar identificada nas narrativas deve ser pensada como uma demanda articulada, com a intenção de superar a fragmentação do conhecimento e somar forças estruturais e sociais para subversão da prática ao bullying, no sentido de produzir efeitos significativos acerca da integridade física e mental dos adolescentes escolares.

Figura 6
Folhas ao chão

Discussão

O bullying representa um conjunto de violências com gradações que perpassam pela agressão verbal (insultar, ofender, falar mal, colocar apelidos pejorativos, “zoar”), física e material (bater, empurrar, beliscar, roubar, furtar ou destruir pertences da vítima), psicológica e moral (humilhar, excluir, discriminar, chantagear, intimidar, difamar), sexual (abusar, violentar, assediar, insinuar) e virtual - o cyberbullying, realizado com o emprego de ferramentas tecnológicas (Silva, 2010SILVA, A. B. B. Bullying: cartilha 2010. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça, 2010.).

O modus operandi da violência é determinado a partir do momento que os agressores identificam em suas vítimas características que as tornam vulneráveis e “diferentes” de seus pares, podendo ser sua condição econômica, corpo, gênero, raça, etnia, orientação sexual, crenças e costumes. Em outras vezes, o bullying apoia-se em padrões de beleza e comportamento idealizados pela sociedade como forma de hostilizar e praticar a discriminação, opressão e “correção” de pessoas vistas como divergentes do imaginário estético (Silva et al., 2020SILVA, J. C. A. F. et al. Compreensão sobre o bullying em escolas de educação básica de Arapiraca/AL: semelhanças e dissonâncias. Diversitas Journal, Santana do Ipanema, v. 5, n. 2, p. 876-887, 2020. DOI: 10.17648/diversitas-journal-v5i2-697
https://doi.org/10.17648/diversitas-jour...
; Brasil, 2021).

As categorias de análise aqui apresentadas demonstraram que o bullying praticado naquele contexto escolar, dentro de uma realidade específica, teve predominância da agressão verbal, psicológica e moral, afetando diretamente estudantes cuja conformação corporal estava em dessintonia com o padrão estético mercadológico ou cuja orientação sexual encontrava-se em dicotomia com a heterossexualidade, sendo a agressão promovida com o intuito de desmoralizar principalmente estudantes do gênero feminino.

Essas estratégias subversivas sempre estiveram presentes nas relações humanas, porém não se atribuía a atenção necessária, visto que sua compreensão sempre foi controversa devido a “naturalidade” com que se manifestavam em forma de brincadeiras e conversas. O bullying manifesto por essas estratégias inclui atos e vocábulos que visam “[...] desqualificar, ridicularizar, fazer zombarias, injúrias, insultos, usar mal ou inconveniente de qualquer situação de superioridade de que se desfruta e exceder-se em limites que ultrapassam o respeito ao outro” (Caetano, 2008CAETANO, M. R. V. Rompendo fronteiras e problematizando as diferenças sexuais. In: RIBEIRO, P. R. C. et al. (Org.). Educação e Sexualidade: identidades, famílias, diversidade sexual, prazeres, desejos, preconceitos, homofobia. 2. Ed. Rio Grande: Editora da FURG, 2008.. p. 165).

As vítimas geralmente são mais frágeis em relação a seus agressores e demoram para sinalizar os sinais de violência. Essa prática reiterada afeta diretamente sua integridade psicossocial e física. Em alguns casos, a indiferença de instituições que deveriam ser protetoras, como a escola, faz com que as vítimas se sintam inseguras, coagidas e envergonhadas em denunciar, maximizando o bullying (Alencastro et al., 2020ALENCASTRO, L. C. S. et al. Teatro do Oprimido e bullying: atuação da enfermagem na saúde do adolescente escolar. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 73, n. 1, e20170910, 2020. DOI: 10.1590/0034-7167-2017-0910
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
).

A hostilidade contra pessoas que apresentam desvio de peso aparente acontece em resposta a uma falha de comportamento e de hábito, pois, equivocadamente, o corpo gordo é visto como resultado exclusivo do consumo excessivo de comida e o corpo extremamente magro como indício de alguma comorbidade. É nesse sentido que o bullying propaga a prerrogativa do corpo “sarado” e esbelto como sinônimo de saúde, e a cobrança reiterada de atendimento a um suposto padrão físico promove sofrimento psicológico e moral, com inferiorização e culpa perante o próprio corpo daqueles que divergem, assim como sua exclusão, chacota e repulsa (Murari; Dorneles, 2018MURARI, K. S.; DORNELES, P. P. Uma revisão acerca do padrão de autoimagem em adolescentes. Revista Perspectiva: Ciência e Saúde, Osório, v. 3, n. 1, p. 155-168, 2018.; Bonetto; Gonçalves, 2022BONETTO, P. X. R.; GONÇALVES, B. C. Bullying gordofóbico na educação física escolar: a perspectiva dos/as professores/as. Temas em Educação Física Escolar, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, 2022. DOI: 10.33025/tefe.v7i1.3179
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).

Padrões normativos de condições e de aparência física perduram na sociedade e acometem, em sua maior parte, adolescentes expostos à influência da mídia e redes sociais, que cada vez mais tem idealizado estereótipos de beleza e imagem e levado pessoas à insatisfação acerca do próprio corpo. Por isso, é preciso conversar mais sobre aceitação e desconstruir imagens estereotipadas, estimulando o respeito e a valorização das diferenças (Murari; Dorneles, 2018MURARI, K. S.; DORNELES, P. P. Uma revisão acerca do padrão de autoimagem em adolescentes. Revista Perspectiva: Ciência e Saúde, Osório, v. 3, n. 1, p. 155-168, 2018.; Bonetto; Gonçalves, 2022BONETTO, P. X. R.; GONÇALVES, B. C. Bullying gordofóbico na educação física escolar: a perspectiva dos/as professores/as. Temas em Educação Física Escolar, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, 2022. DOI: 10.33025/tefe.v7i1.3179
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).

Para além do rápido acesso às informações, a internet merece atenção quanto ao seu conteúdo e utilização para não se tornar ambiente propício à violência. Se por um lado ela permite o exercício do discernimento entre o certo e o errado nas escolhas de fontes de informação e habilidades para construção de conhecimento, por outro pode comprometer a relação do jovem com o mundo real e o imaginário, levando a comportamentos e ao acesso à conteúdo impróprios, constituindo-se, também, como espaço para o cyberbullying (Oliveira, 2017OLIVEIRA, E. S. G. Adolescência, internet e tempo: desafios para educação. Educar em Revista, Curitiba, n. 64, p. 283-298, 2017. DOI: 10.1590/0104-4060.47048
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).

Entre pessoas cujo gênero e sexualidade se apresentam opostos ou ausentes a uma pseudonormatividade, o bullying é praticado como forma de ferir a dignidade embasado em uma lógica preconceituosa, LGBTQIA+fóbica,22Sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Queers, Questionadores/as, Intersexos, Assexuais, Arromânticos e Agênero. que se acentua durante a escolarização, depreciando de forma mais cruel e direta aqueles que possuem traços mais expressivos de identidade e sexualidade. A normativa heterossexual imposta outorga aos agressores o falso direito de promover o ódio, a repulsa e a fobia a essas pessoas nos mais sórdidos moldes de brincadeiras ou agressões, utilizando a escola como locus para intolerância, discriminação e violência (Martins et al., 2020MARTINS, J. G. B. A. et al. Enfrentamentos ao bullying homofóbico na escola: convite para uma reflexão. Temporalidades, Belo Horizonte, v. 12, n. 1, p. 681-701, 2020.).

Essa heteronormatividade é empregada para padronizar comportamentos, costumes e formas de expressão, com base no patriarcado e nos princípios religiosos que “regularizam” a relação das pessoas com a sociedade de um ponto de vista reducionista, anulando demais identidades e sexualidades destoantes desse padrão. Diante disso, adolescentes escolares tidos como desiguais tornam-se vulneráveis à violência e passam a conceber a escola como um ambiente inseguro, principalmente para pessoas cujas identidades de gênero divergem do sexo biológico, como é o caso de estudantes travestis, transexuais e transgêneros (Martins et al., 2020MARTINS, J. G. B. A. et al. Enfrentamentos ao bullying homofóbico na escola: convite para uma reflexão. Temporalidades, Belo Horizonte, v. 12, n. 1, p. 681-701, 2020.; Costa; Campos; Silva; Coutinho, 2020COSTA, J. C. A. et al. “Quando estamos em silêncio, ainda temos medo, por isso é melhor falar”: a invisibilidade das produções acadêmicas sobre heteronormatividade, homossexualidade e contexto escolar - uma revisão sistemática. Brazilian Journal of Development, São José dos Pinhais, v. 6, n. 2, p. 9133-9145, 2020. DOI: 10.34117/bjdv6n2-284
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).

Consequentemente, as pessoas vitimadas por esses comportamentos tendem a manifestar tristeza, baixa autoestima, isolamento social, transtornos psíquicos e marcas físicas, incluindo doenças psicossomáticas com maior intensidade em casos graves, prolongados e recorrentes de bullying. Não obstante, atos de violência podem refletir de forma negativa nas relações interpessoais e no processo de aprendizagem dos estudantes, principalmente daqueles cuja relação com o corpo, o gênero e a sexualidade se apresentam oposta a normatividade imposta (Silva et al., 2020SILVA, J. C. A. F. et al. Compreensão sobre o bullying em escolas de educação básica de Arapiraca/AL: semelhanças e dissonâncias. Diversitas Journal, Santana do Ipanema, v. 5, n. 2, p. 876-887, 2020. DOI: 10.17648/diversitas-journal-v5i2-697
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; Brasil, 2021).

Com o escopo de promover a cultura do respeito, as ações intersetoriais entre escola, saúde e assistência social têm sido apontadas como estratégias fundamentais para responder de maneira eficaz aos problemas de adolescentes escolares na articulação de saberes e práticas no combate e prevenção ao bullying.

A escola, enquanto espaço de formação e desenvolvimento de crianças e adolescentes, deve oportunizar em seu currículo o debate sobre diversidade, gênero e outras pautas consideradas “minorias” como forma de combater a violência contra pessoas LGBTQIA+, buscando diminuir o alto índice de evasão e abandono escolar dessa comunidade (Neves et al., 2019NEVES, S. et al. Bullying homofóbico: crenças e práticas de estudantes do Ensino Superior em Portugal. Revista Psicologia, Lisboa, v. 33, n. 2, p. 47-59, 2019.; Costa et al., 2020COSTA, J. C. A. et al. “Quando estamos em silêncio, ainda temos medo, por isso é melhor falar”: a invisibilidade das produções acadêmicas sobre heteronormatividade, homossexualidade e contexto escolar - uma revisão sistemática. Brazilian Journal of Development, São José dos Pinhais, v. 6, n. 2, p. 9133-9145, 2020. DOI: 10.34117/bjdv6n2-284
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).

A inobservância e a falta de debates sobre o bullying na comunidade escolar são constructos para a prática recorrente de comportamentos violentos sobre grupos mais vulneráveis. Portanto, o diálogo acerca desta conduta deve ser urgente, constante e problematizador, de modo que alunos, professores, familiares e outros agentes tornem-se ativos na construção do próprio conhecimento, no combate ao bullying e na promoção da cultura do respeito e valorização da diversidade (Silva et al., 2020SILVA, J. C. A. F. et al. Compreensão sobre o bullying em escolas de educação básica de Arapiraca/AL: semelhanças e dissonâncias. Diversitas Journal, Santana do Ipanema, v. 5, n. 2, p. 876-887, 2020. DOI: 10.17648/diversitas-journal-v5i2-697
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).

Em 2007 foi instituído o Programa Saúde na Escola (PSE), em uma parceria entre Ministério da Educação e Ministério da Saúde, com a proposta de trabalhar assuntos relacionados a saúde, vulnerabilidades e violência na comunidade escolar, sendo divididos em eixos temáticos. A sua multidisciplinaridade abriu um leque para participação de profissionais da área da saúde, principalmente a enfermagem, no desenvolvimento e formação integral de escolares na prevenção, promoção e atenção à saúde no âmbito da APS (Chiari et al., 2018CHIARI, A. P. G. et al. Rede intersetorial do Programa Saúde na Escola: sujeitos, percepções e práticas. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 5, e00104217, 2018.).

Essa política apresenta uma vertente voltada para a inserção da temática anti-bullying na comunidade escolar, de modo a conscientizar e preparar alunos, professores e comunidade escolar para a prevenção e controle de comportamentos violentos. Essa interação entre escola e saúde permite instrumentar os envolvidos para melhor compreender o bullying, conduzir as vítimas e realizar o acolhimento necessário, orientar agressores e responsáveis e tomar condutas, bem como incluir famílias no processo de controle da violência na escola (Chiari et al., 2018CHIARI, A. P. G. et al. Rede intersetorial do Programa Saúde na Escola: sujeitos, percepções e práticas. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 5, e00104217, 2018.; Silva et al., 2020SILVA, J. C. A. F. et al. Compreensão sobre o bullying em escolas de educação básica de Arapiraca/AL: semelhanças e dissonâncias. Diversitas Journal, Santana do Ipanema, v. 5, n. 2, p. 876-887, 2020. DOI: 10.17648/diversitas-journal-v5i2-697
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).

Para Santos e Machado (2019SANTOS, J. V. T.; MACHADO, E. M. A violência na escola e os dilemas do controle social: uma proposta dialógica. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 106-125, 2019. DOI: 10.31060/rbsp.2019.v13.n2.1113
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), é preciso estabelecer uma rede de atenção no território em que a escola está localizada, a fim de combater a violência e o bullying entre os adolescentes escolares por meio de campanhas internas na escola, marchas populares, petições a autoridades representativas e disseminação de informações na sociedade pelo uso da imprensa, construindo ações coletivas contra a prática. A abordagem intersetorial e interdisciplinar da violência e do bullying se assenta no trabalho em rede e no território partilhado pelos distintos setores de formação e assistência que compõem a comunidade escolar.

Desse modo, diante da constante presença do bullying entre os adolescentes escolares, há de se considerar a relevância do trabalho articulado entre educação e atenção à saúde no que tange fomentar debates e momentos de aprendizado para que esses sujeitos se posicionem, reflitam e tomem decisões a respeito de suas próprias condições de saúde. Essa articulação possibilita a formação de “[...] indivíduos questionadores e coautores de sua saúde”, promovendo comportamentos saudáveis (Baggio et al., 2018BAGGIO, M. A. et al. Implantação do programa Saúde na Escola em Cascavel: relato de enfermeiros. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 71, n. suppl. 4, p. 1631-1638, 2018. DOI: 10.1590/0034-7167-2017-0188
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, p. 1636).

Além disso, é preciso voltar o olhar da comunidade e dos gestores escolares para a enfermagem enquanto potencial promotora da integridade dos escolares, por meio da intersetorialidade de conhecimento entre saúde e educação e incorporando tópicos antiviolência, antidrogas e de sexualidade intrínsecos à adolescência. Os esforços antiviolência pela própria escola ou pelo trabalho intersetorial, como o diálogo e a negociação, podem prevenir ou solucionar conflitos, transformar comportamentos e aumentar a rejeição à violência (Chiari et al., 2018CHIARI, A. P. G. et al. Rede intersetorial do Programa Saúde na Escola: sujeitos, percepções e práticas. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 5, e00104217, 2018.; Silva et al., 2020SILVA, J. C. A. F. et al. Compreensão sobre o bullying em escolas de educação básica de Arapiraca/AL: semelhanças e dissonâncias. Diversitas Journal, Santana do Ipanema, v. 5, n. 2, p. 876-887, 2020. DOI: 10.17648/diversitas-journal-v5i2-697
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).

Considerações finais

Diante dos dados apresentados, depreende-se que a prática do bullying acontece de forma recorrente a partir de dissonâncias entre agressores e vítimas, atrelada a condição física, estilo de vida, religião, raça, etnia, orientação, sexual, identidade de gênero, conformação corporal, dentre outros. Independentemente de como e qual grau ela se manifesta, pode não ser percebida ou mesmo invisibilizada pela escola devido a naturalidade que lhe fora atribuída e, por vezes, soar em tom de brincadeira.

A escola, enquanto agente formador, precisa rever sua participação no combate e prevenção da violência e bullying, de modo a promover a conscientização e o cuidado constante, por meio de discussões e métodos que envolvam toda a comunidade para identificação de todos os tipos de violência e, assim, minimizar riscos e prejuízos não só para o desenvolvimento, como também para o rendimento escolar, além de garantir o direito dos adolescentes a sua integridade física, mental e emocional.

Tem-se como premissa, a partir dos dados aqui apresentados e das observações realizadas no desenvolvimento dessa pesquisa que adolescentes escolares tendem a se interessar pela temática, o que os tornam abertos para intervenções de sensibilização e conscientização, inclusive para a integração de setores e profissionais distintos.

Pode-se perceber a relevância da participação do enfermeiro na comunidade escolar, pois este profissional detém habilidades educativas com essência no cuidado, que se destacam devido a sua criatividade, multiplicidade de alternativas e estratégias com satisfatória aceitação, uma vez que contribui com ensino e qualidade de vida dos alunos quando o assunto diz respeito a promoção da saúde, comportamentos saudáveis e benefícios individuais ou coletivos.

Essas ações podem ser desenvolvidas com o auxílio de métodos ativos, como o Photovoice, para que se alcance maior adesão e efetividade com a temática, abarcando todos os sujeitos e, quiçá, seus familiares, e fortalecendo uma rede de proteção e de protagonistas da construção do próprio conhecimento.

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    » https://doi.org/10.17648/diversitas-journal-v5i2-697

  • 1
    A Organização Mundial de Saúde (OMS) caracteriza a adolescência como a faixa etária compreendida dos 10 aos 19 anos. A partir dessa definição, foi adotado para este estudo o termo “adolescentes escolares”, como forma de referenciar estudantes dessa idade.
  • 2
    Sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Queers, Questionadores/as, Intersexos, Assexuais, Arromânticos e Agênero.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2023
  • Revisado
    30 Maio 2023
  • Revisado
    12 Ago 2023
  • Aceito
    30 Ago 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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