Inclusão da espiritualidade do paciente durante o tratamento quimioterápico

Inclusion of the patient’s spirituality during chemotherapy

Agnes Claudine Fontes De La Longuiniere Sérgio Donha Yarid Sobre os autores

Resumo

A relação da espiritualidade com a saúde tem sido estudada e apontada como uma dimensão que traz benefícios na promoção, proteção e recuperação, além de colaborar com o enfrentamento de doenças. Assim, o objetivo deste estudo é relatar uma experiência vivenciada durante um ensaio clínico randomizado, que incluiu a dimensão espiritual do paciente no tratamento contra o câncer, a partir da realização de uma pesquisa que incluiu a espiritualidade do paciente oncológico durante o processo quimioterápico. O ensaio clínico foi composto por 30 pacientes portadores de câncer atendidos em uma Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia. Percebeu-se que eles demonstraram surpresa por terem sua dimensão espiritual incluída, relatando que era uma questão importante para vivenciarem o que estavam passando. Também se notou a importância de incluir estudantes de medicina na coleta dos dados, oportunizando aos futuros profissionais contato com essa temática no contexto do cuidado em saúde. A vivência de experiências que trazem questões tão subjetivas, delicadas, profundas e essenciais sobre o ser humano, como são a espiritualidade e a fé, permitiu ao pesquisador desenvolver uma reflexão sobre a necessidade de mudança de paradigma na forma de prestar cuidado à saúde.

Palavras-chave:
Espiritualidade; Neoplasias; Saúde Holística; Qualidade de Vida; Esperança

Abstract

The relationship between spirituality and health has been studied and pointed out as a dimension that brings benefits in the promotion, protection, and recovery of health, in addition to collaborating with the combat against diseases. Thus, the objective of this study is to report an experience of a randomized clinical trial that included the spiritual dimension of patients in clinical treatment against cancer, resulting from a research that included the spirituality of cancer patients during chemotherapy. This randomized clinical trial consisted of 30 cancer patients treated at a High Complexity Care Unit in Oncology. We noticed that the patients showed surprise for having their spiritual dimension included, reporting that it was an important dimension for experiencing the moment they were going through. We also perceived the importance of including medical students in the data collection, providing opportunities for the future professional to have contact with this issue in the context of healthcare. The experience that brings such subjective, delicate, profound, and essential questions about the human being, such as spirituality and faith, allowed the researcher to develop a reflection on the need for a paradigm shift in the way of providing healthcare.

Keywords:
Spirituality; Neoplasms; Holistic Health; Quality of Life; Hope

Introdução

A dimensão da espiritualidade humana tem sido estudada cientificamente nos últimos anos, sobretudo na sua relação com aspectos que promovem a saúde e colaboram no enfrentamento de doenças. Pesquisas que relacionam a espiritualidade com a saúde têm demonstrado que ela pode promover uma redução no número de adoecimentos, melhor controle de níveis pressóricos, com redução de eventos cardíacos, e melhor resposta do sistema imunológico (Guimarães; Avezum, 2007GUIMARÃES, H. P.; AVEZUM, A. O impacto da espiritualidade na saúde física. Revista De Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 34, supl 1, p. 88-94, 2007. DOI: 10.1590/S0101-60832007000700012
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), além de trazer bem-estar físico e mental (Koenig, 2012KOENIG, H. G. Religion, spirituality, and health: the research and clinical implications. ISRN Psychiatry, London, 2012. DOI: 10.5402/2012/278730
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) e melhoria no enfrentamento de doenças graves, impactando diretamente na sobrevida e qualidade de vida das pessoas (Gonçalves et al., 2015GONÇALVES, J. P. B. et al. Religious and spiritual interventions in mental health care: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled clinical trials. Psychological Medicine, Cambridge, v. 45, n. 14, p. 2937-2949, 2015. DOI: 10.1017/S0033291715001166
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).

A espiritualidade é entendida como uma dimensão inerente ao ser humano, sendo definida como algo mais amplo que a religião e se relacionando com valores individuais de completude e harmonia com tudo que compõe a vida, a natureza e o universo (Guerrero et al., 2011GUERRERO, G. P. et al. Relação entre espiritualidade e câncer: perspectiva do paciente. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 64, n. 1, p. 53-59, 2011. DOI: 10.1590/S0034-71672011000100008
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). É compreendida como uma busca pessoal para compreender o sentido da existência e sua relação com o sagrado, além de reflexões sobre a origem, o objetivo e o fim da vida terrena, podendo ou não levar à prática de uma religião (Koenig, 2012KOENIG, H. G. Religion, spirituality, and health: the research and clinical implications. ISRN Psychiatry, London, 2012. DOI: 10.5402/2012/278730
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).

No que diz respeito às doenças graves, principalmente aquelas que afetam a qualidade de vida e exigem uma adaptação psicológica aos aspectos envolvidos (medo da morte, incapacidade, danos a autoimagem, afastamento social), a abordagem da dimensão espiritual pode ser uma ferramenta que auxilia no tratamento clínico e a recuperação do paciente.

Em doenças como o câncer, a espiritualidade pode ser uma aliada durante o tratamento, colaborando para o enfrentamento da doença e melhora dos níveis de esperança e bem-estar (Bai; Lazenby, 2015BAI, M.; LAZENBY, M. A. Systematic review of associations between spiritual well-being and quality of life at the scale and factor levels in studies among patients with cancer. Journal of Palliative Medicine, London, v. 18, n. 3, p. 286-298, 2015. DOI:10.1089/jpm.2014.0189
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), além de promover um cuidado mais integral à pessoa na medida que leva em consideração outras dimensões da sua existência, não centrando-a apenas na dimensão física.

O número de pessoas diagnosticadas com câncer tem crescido ao longo dos anos, e os índices de mortalidade dessa doença são altos, colocando-a como a segunda causa de morte no mundo (OMS, 2018OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Folha informativa - Câncer. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://www.paho.org/bra.../index.php?option=com_content&view=article&id=5588:folha-informativa-cancer&Itemid=839 >. Acesso em: 15 set 2018.
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) e terceira causa de morte no Brasil. É esperado que, mundialmente, mais de 14 milhões de pessoas desenvolvam câncer anualmente, devendo esse número atingir mais de 21 milhões de pessoas em 2030. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que aproximadamente 8,8 milhões de pessoas morrem todos os anos em decorrência do câncer, sendo a maioria de países de baixa renda (OMS, 2017OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Early cancer diagnosis saves lives, cuts treatment costs. 2017. Disponível em: <Disponível em: http://www.who.int/en/news-room/detail/03-02-2017-early-cancer-diagnosis-saves-lives-cuts-treatment-costs >. Acesso em: 15 set 2018.
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).

O diagnóstico de uma doença grave, considerada maligna e que apresenta risco de vida, como o câncer, traz para o indivíduo situações diversas de enfrentamento, sendo uma experiência que muda a sua percepção sobre a vida e provoca muitos questionamentos ligados à espiritualidade (Hatamipour et al., 2015HATAMIPOUR, K. et al. Spiritual needs of cancer patients: a qualitative study. Indian Journal of Palliative Care, Mumbai, v. 21, n. 1, p. 61-67, 2015. DOI: 10.4103/0973-1075.150190
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).

Muitas pesquisas já trouxeram as contribuições da espiritualidade para a saúde, mas ainda é um desafio incluir essa dimensão na prática do cuidado em saúde. Atualmente, as pesquisas sobre espiritualidade tentam verificar quais os impactos da sua inclusão na prática clínica. Buscam-se formas de inserção da espiritualidade individual do paciente durante a assistência, e analisa-se quais os impactos na recuperação, no enfrentamento de doenças graves e/ou incuráveis, na qualidade de vida e na promoção de saúde das pessoas.

Dessa forma, este trabalho tem o objetivo de relatar uma experiência vivenciada durante um ensaio clínico randomizado que incluiu a dimensão espiritual do paciente no tratamento clínico contra o câncer. Isto nos permitirá refletir sobre os impactos de ações que abordam a espiritualidade no cuidado à saúde e a influência disso na recuperação e enfrentamento de doenças.

Método

Este relato de experiência surgiu a partir de uma pesquisa de doutorado em Ciências da Saúde, em que se realizou um ensaio clínico randomizado com o objetivo geral de verificar as alterações ocorridas após a inclusão da espiritualidade do paciente no tratamento clínico contra o câncer.

Para constituir a equipe de coleta dos dados, foi convidado um grupo de estudantes de medicina para colaborarem na pesquisa. Esse convite ocorreu após uma palestra sobre Espiritualidade e Saúde, realizada pela pesquisadora principal em uma universidade federal. Um grupo de 10 estudantes se disponibilizou a colaborar, relatando interesse em compreender a temática, ainda pouco discutida no meio acadêmico.

Esse grupo participou de reuniões para treinamento sobre o tema e, principalmente, sobre a pesquisa e os instrumentos a serem utilizados na coleta. Realizaram-se treinamentos teóricos e práticos com a aplicação do questionário entre eles, para que qualquer dúvida fosse sanada nessa etapa.

A pesquisa foi realizada na Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon), vinculada a um Hospital Geral do SUS na Bahia, Brasil. Em média, 1.273 pessoas são atendidas mensalmente nessa Unacon, que presta serviço conveniado ao SUS atendendo pessoas portadoras de variados tipos de câncer, exceto de tireoide e leucemia aguda.

A equipe de administradores da Unacon foi receptiva à temática, e reafirmou a importância de desenvolvimento de pesquisas e parcerias entre universidades e instituições de cuidado em oncologia. Não houve, dessa forma, nenhuma dificuldade de aceitação em relação ao tema abordado.

Antes de iniciar a coleta dos dados, foi realizada uma reunião com a equipe de assistência que atua na sala de quimioterapia, o administrativo e as coordenações para apresentar a pesquisa que seria desenvolvida, seus objetivos e os procedimentos que seriam realizados com os pacientes do grupo de intervenção durante o período da quimioterapia. A equipe de assistência também demonstrou boa aceitação à pesquisa, relatando inclusive a importância da abordagem de temáticas envolvendo a espiritualidade dos pacientes em momentos difíceis, como o tratamento contra o câncer.

Os dados foram coletados no período de 28 de outubro de 2019 a 4 de junho de 2020.

Como critérios de inclusão, foram considerados os pacientes com diagnóstico médico confirmado de câncer, idade acima de 18 anos, condições clínicas e cognitivas para participar da pesquisa e que tivessem pelo menos três ciclos do tratamento para serem realizados.

Foram excluídos deste estudo aqueles que não apresentavam condições cognitivas mínimas para participar, identificados pelas respostas aos questionamentos: onde se encontrava naquele momento, ano de nascimento, procedência, qual o mês e dia da semana. Foram também excluídos aqueles em situação de terminalidade ou cuidados paliativos, por entendermos que é um público muito específico que pode, em decorrência da finitude, apresentar comportamentos e necessidades espirituais diferentes dos demais participantes, além de evitar perdas amostrais.

A pesquisa constou de dois grupos de pacientes: de controle e de intervenção, nos quais os participantes foram alocados através de sorteio aleatório. A intervenção foi uma prática espiritual que buscou desenvolver a expressão da espiritualidade individual de cada um e a relação desse consigo mesmo, com o outro e com um ser divino da crença pessoal, reconhecendo-se como parte de um todo.

A pesquisa teve a inclusão inicial de 40 pacientes, dos quais 20 faziam parte do grupo de controle e 20 do grupo de intervenção. Durante o período da pesquisa, dois pacientes saíram do grupo controle por terem seu tratamento quimioterápico suspenso; do grupo de intervenção, um foi a óbito, dois apresentaram condições clínicas desfavoráveis (sentiam bastante náuseas, mal-estar geral, fraqueza generalizada) durante a quimioterapia e solicitaram sua saída da pesquisa por não terem condições de continuar a intervenção, e cinco tiveram a quimioterapia suspensa antes da conclusão das seis sessões da intervenção. Dessa forma, a pesquisa foi finalizada com 18 pacientes no grupo controle e 12 no grupo de intervenção.

A prática espiritual escolhida para trabalhar a espiritualidade dos participantes foi a Intervenção Rime (Relaxamento, Imagens Mentais e Espiritualidade). Ela está fundamentada na teoria junguiana e nos estudos das Experiências de Quase Morte (EQM), sendo considerada uma Psicoterapia Breve por imagens alquímicas, de caráter complementar, desenvolvida para ambiente hospitalar e ambulatorial, integrando as técnicas de relaxamento, imaginação dirigida e elementos da espiritualidade individual em uma abordagem simbólica e transpessoal.

O método Rime foi desenvolvido no Brasil pela psicóloga Dra. Ana Catarina Elias no período de quase 20 anos, pelos estudos desenvolvidos em seu mestrado (Elias, 2001ELIAS, A. C. A. Relaxamento mental, imagens mentais e espiritualidade na re-significação da dor simbólica da morte de pacientes terminais. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.) e doutorado (Elias, 2005ELIAS, A. C. A Programa de treinamento sobre a intervenção terapêutica Relaxamento, Imagens Mentais e Espiritualidade (RIME) para ressignificar a dor espiritual de pacientes terminais. 2005. 358 f. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.), na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e de pós-doutorado (Elias, 2015ELIAS, A. C. A Programa de treinamento sobre a intervenção terapêutica Relaxamento, Imagens Mentais e Espiritualidade (RIME) para ressignificar a dor espiritual de pacientes terminais. 2005. 358 f. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.) na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Todos os participantes responderam, no início e no final da pesquisa, a um questionário com escalas: a Escala Modos de Enfrentamento de Problemas (EMEP) (Seidl; Trócoli; Zannon, 2001SEIDL, E. M. F.; TRÓCCOLI, B. T.; ZANNON, C. M. L. C. Análise fatorial de uma medida de estratégias de enfrentamento. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 17, n. 3, p. 225-234, 2001. DOI: 10.1590/S0102-37722001000300004
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); a Escala de Esperança de Herth (Sartore; Grossi, 2008SARTORE, A. C.; GROSSI, S. A. A. Escala de esperança de Herth - Instrumento adaptado e validado para a língua portuguesa. Revista da Escola de Enfermagem USP, São Paulo, v. 42, n. 2, p. 227-232, 2008. DOI: 10.1590/S0080-62342008000200003
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); e a Escala de Qualidade de Vida da Organização Europeia para a Pesquisa e Tratamento do Câncer (EORTC QLQ-30) (Pais Ribeiro; Pinto; Santos, 2008PAIS-RIBEIRO, J.; PINTO, C.; SANTOS, C. Validation study of the Portuguese version of the QLC-C30-V.3. Psicologia, Saúde e Doenças, Lisboa, v. 9, n. 1, p. 89-102, 2008. Disponível em: <Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=36290108 >. Acesso em: 21 ago. 2019.
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). Além das escalas, responderam também a um questionário contendo dados sociodemográficos e questões abertas sobre a espiritualidade relacionada à saúde.

A primeira fase da pesquisa foi o preenchimento do questionário com os dados sociodemográficos e das escalas, seguida de três questões abertas sobre o papel da espiritualidade na vida do paciente, mudanças adotadas na relação com o sagrado/transcendente após o diagnóstico e se o paciente gostaria de ter sua dimensão espiritual abordada em ambientes do setor da saúde. Essa etapa foi aplicada a todos os pacientes (grupo controle e intervenção).

Somente o grupo intervenção foi submetido à psicoterapia com a Rime. Cada participante recebeu seis sessões de intervenção, durante o período que compareciam à unidade para realizar quimioterapia. O agendamento de quimioterapia destes pacientes ocorria de três a quatro sessões na semana, com intervalos que variavam de 15 a 21 dias para um novo ciclo semanal. Durante as sessões semanais de quimioterapia, os participantes foram submetidos a duas sessões de Rime, de modo a completar seis sessões (geralmente durante três ciclos de quimioterapia).

Essa intervenção era aplicada em um quarto individual e se explicava ao paciente como seria a condução desse momento. Após orientação, o paciente era posicionado na cama e iniciava a intervenção Rime, que tem sua condução parecida com uma meditação guiada, em que são realizadas as etapas de relaxamento, a inclusão de imagens mentais e elementos da espiritualidade do paciente. Esse momento permite ao paciente uma experiência de relaxamento, reflexão e contato com elementos do seu eu interior.

A intervenção foi aplicada pela pesquisadora principal (que recebeu treinamento presencial com a autora da intervenção Rime) e por um estudante do quinto ano de medicina de uma universidade federal, que também era presidente da Liga acadêmica de Oncologia (recebeu treinamento da pesquisadora principal). Participaram também como colaboradores desta pesquisa - apenas na coleta dos dados, com a aplicação do questionário - estudantes do segundo ano de medicina da mesma universidade. A equipe de coleta passou por treinamento teórico e prático, e em todos os dias dessa, a pesquisadora principal esteve presente na unidade, orientando a equipe de colaboradores.

A pesquisa original seguiu as diretrizes da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que trata de pesquisas com seres humanos, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer nº 3.483.361.

Também foi cadastrada no Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos (ReBEC) sob o número RBR-9qpmcfr.

Resultados

A decisão de convidar estudantes da área da saúde para participar da coleta de dados permitiu que eles tivessem uma percepção do quanto a espiritualidade fazia parte do cotidiano de pessoas que enfrentam problemas de saúde, e o quanto essa abordagem poderia influenciar o tratamento de doenças que trazem muitos questionamentos internos sobre a existência e a finitude da vida, como o câncer.

Tal participação permitiu que esses futuros profissionais desenvolvessem uma reflexão acerca da temática e a importância atribuída a ela pelos pacientes, sobretudo por poder ser uma ferramenta de enfrentamento quando estão com a saúde fragilizada.

O envolvimento dos estudantes nesta pesquisa gerou reflexões e discussões sobre a percepção multidimensional das pessoas que são cuidadas e a necessidade de um olhar global para o ser, para além da sua dimensão biológica.

Após a colaboração como equipe de coleta, a maioria dos estudantes se engajaram na criação de uma liga acadêmica sobre espiritualidade e saúde, bem como leituras e produção de escritos acerca da temática para apresentar em congressos e revistas científicas.

Em relação aos pacientes, quando a pesquisa foi iniciada, a maioria dos que foram convidados aceitaram participar ,e muitos relataram estarem surpresos por terem sua dimensão espiritual e aspectos relacionados a sua fé abordados em um serviço de saúde durante o tratamento.

As perguntas abertas permitiram aos pacientes falarem um pouco da sua espiritualidade e, nesse aspecto, eram acolhidos em sua dimensão subjetiva espiritual. Em todo momento, desde a abordagem inicial até as perguntas subjetivas, a equipe de coleta deixava claro que a pesquisa tratava da dimensão espiritual e que não havia nenhuma vinculação com religião ou dogma. Contudo, era dada ao paciente liberdade para falar e, algumas vezes, eles relacionaram a sua espiritualidade à prática de alguma religião - o que era respeitado. Da mesma forma, alguns pacientes falaram sobre a vivência da sua dimensão espiritual independentemente de religião.

Os principais relatos surgidos após as sessões de Rime eram de paz interior e sensações de fortalecimento, físico e emocional, para continuar o tratamento. Alguns pacientes também relataram melhora ao lidar com problemas do seu cotidiano familiar e social. Ao final das seis sessões, houve sempre agradecimentos, sobretudo dos que iniciaram a pesquisa de um modo mais cético, mas que relataram, ao final, que haviam alcançado mudanças que melhoraram seu bem-estar não apenas no âmbito do tratamento, mas também da vida pessoal.

Ao final das seis sessões de Rime, as escalas foram novamente aplicadas aos pacientes do grupo de intervenção e uma questão subjetiva solicitava que relatassem se houve mudanças durante o tratamento após a inclusão da espiritualidade através da Rime. Relatos como sentimento de paz e relaxamento, aproximação com o sagrado, com sua fé e esperança foram as principais mudanças informadas pelos pacientes ao final da pesquisa.

Relatos de que essa intervenção poderia ser estendida a todos os pacientes da unidade foram sugestões apontadas por alguns pacientes. Outros mencionaram a importância dessa abordagem em serviços de saúde de um modo geral, mas principalmente no tratamento de doenças graves.

Aos pacientes do grupo controle, após três ou quatro ciclos de quimioterapia, aplicou-se novamente o questionário, contendo as mesmas escalas da fase inicial da coleta (enfrentamento, esperança e qualidade de vida).

Discussão

A espiritualidade tem sido bastante difundida no âmbito da saúde, com número crescente de publicações, mas ainda pouco discutida no campo da formação acadêmica. Diversas pesquisas (Ferreira; Oliveira; Jórdan, 2016FERREIRA, A. G. C.; OLIVEIRA, J. A. C.; JORDÁN, A. P. W. Educação em saúde e espiritualidade: uma proposta de transversalidade na perspectiva do estudante. Interdisciplinary Journal of Health Education, Belém, v. 1, n. 1, p. 3-12, 2016.; Freitas; Piasson, 2016FREITAS, M. F.; PIASSON, D. L. Religião, religiosidade e espiritualidade: repercussão na mídia e formação profissional em psicologia. Esferas, Brasília, DF, v. 5, n. 8, p. 103-112, 2016. DOI: 10.19174/esf.v1i8.7909
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; Lucchetti et al., 2013LUCCHETTI, G. et al. Medical students, spirituality and religiosity-results from the multicenter study SBRAME. BMC Medical Education, v. 13, n. 162, 2013. Disponível em: <inserir link> DOI: 10.1186/1472-6920-13-162
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) apontam uma necessidade de abordagem dessa temática durante a formação de profissionais da área, principalmente sobre as formas da aplicabilidade dessa dimensão durante o cuidado em saúde.

Estudos sobre a sua aplicabilidade na prática clínica, inclusive com orientação de como deve ser essa abordagem durante o cuidado, ainda discutem pouco o tema, tanto no meio acadêmico quanto entre os pesquisadores, o que torna essa questão um desafio para profissionais da área da saúde (Silva; Vitorino, 2018SILVA, M.; VITORINO, L. M. Religiosidade e espiritualidade na prática clínica da enfermagem: revisão da literatura e desenvolvimento de protocolo: aplicações práticas. HU revista, Juiz de Fora, v. 44, n. 4, p. 469-7, 2018. Disponível em: DOI: 10.34019/1982-8047.2018.v44.28148
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).

Um estudo realizado com estudantes da área da saúde e ciências humanas relacionadas à saúde ouviu 180 acadêmicos dos cursos de medicina, enfermagem, biomedicina, fisioterapia, educação física, nutrição, terapia ocupacional, psicologia e serviço social, a fim de analisar suas percepções acerca da relação entre espiritualidade e saúde. A maior parte (95%) relatou que a espiritualidade traz significado à vida e, consequentemente, beneficia a saúde dos pacientes, reconhecendo a importância da inserção da temática durante a formação acadêmica para um cuidado integral. Segundo eles, a abordagem da espiritualidade dos pacientes permite também que o estudante/profissional tenha uma aproximação com a sua própria espiritualidade (Ferreira et al., 2018FERREIRA, T. T. et al. Percepção de acadêmicos de medicina e de outras áreas da saúde e humanas (ligadas à saúde) sobre as relações entre espiritualidade, religiosidade e saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 42, n. 1, p. 67-74, 2018. DOI: 10.1590/1981-52712018v42n1RB20160044
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).

Vivenciar na prática a abordagem dessa dimensão do paciente, através de perguntas simples que trazem uma reflexão acerca dela, permitiu aos estudantes inseridos na coleta de dados a oportunidade de contato com a temática e com a abordagem dessa dimensão do paciente durante a coleta de dados. Questionar o paciente sobre o papel da espiritualidade na sua vida levava a uma reflexão sobre a sua dimensão espiritual e como essa influenciava o seu tratamento, abrindo um canal de fala e escuta sobre o subjetivo dessa dimensão do ser.

Permitiu, também, que os estudantes tivessem uma percepção do quanto a espiritualidade fazia parte do cotidiano daqueles que recebem o cuidado, e o quanto essa abordagem poderia influenciar o tratamento de doenças que trazem muitos questionamentos internos e impactos sociais, como o câncer.

Os estudantes também questionaram se o paciente achava importante ter a sua dimensão espiritual abordada durante o tratamento quimioterápico, o que criou uma oportunidade para que conhecessem a opinião dos pacientes oncológicos e suas necessidades subjetivas para além do tratamento medicamentoso e do corpo físico, permitindo um olhar diferente do modelo mecanicista e biomédico que ainda é parâmetro para a formação em saúde.

Apesar do reconhecimento da importância dessa abordagem para a qualidade de vida do paciente, o impacto positivo na saúde e a melhor relação profissional-paciente, um estudo realizado em escolas médicas no Brasil demonstra que os estudantes se sentem desencorajados a realizarem essa abordagem, pois não se sentem preparados para isso, pois têm medo de impor o seu ponto de vista ou ofender o paciente. Assim, reconhecem a relevância da abordagem do tema, mas não tiveram durante a graduação um preparo para realizá-la, apontando uma limitação de conteúdos humanistas e subjetivos da dimensão humana na formação (Lucchetti et al., 2013LUCCHETTI, G. et al. Spirituality and health in the curricula of medical schools in Brazil. BMC Medical Education , New York, v. 12, n. 78, p. 2-8, 2012. DOI: 10.1186/1472-6920-12-78
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; Costa et al., 2019COSTA, M. S. et al. Espiritualidade e religiosidade: saberes de estudantes de medicina. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 27, n. 2, p. 350-358, 2019. DOI: 10.1590/1983-80422019272319
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).

Isso revela a importância da inclusão do tema na formação profissional, para que possa haver cuidado integral, incluindo questões existenciais relevantes na formação. Em estudo publicado em 2012, sobre avaliação do currículo das escolas médicas do Brasil, verificou-se que só havia disciplina abordando o tema da religiosidade/espiritualidade na formação em saúde em 10% das escolas (Lucchetti et al., 2012LUCCHETTI, G.; ALMEIDA, L. G. C.; LUCCHETTI, A. L. G. Religiousness, mental health, and quality of life in brazilian dialysis patients. Hemodialysis International, Massachusetts. v. 16, n. 1, p. 89-94, 2012. DOI: 10.1111/j.1542-4758.2011.00623.x
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). Essa abordagem ocorre em 90% das escolas médicas dos EUA e em 59% das escolas Britânicas, sendo um desafio para as escolas médicas brasileiras tal inclusão, para o cuidado integral ao paciente.

Desta forma, inserir estudantes de medicina nesta pesquisa foi uma forma de despertar reflexões sobre a influência da dimensão espiritual durante o processo de cuidar no futuro profissional, já que essa pode influenciar o comportamento clínico dos profissionais de saúde, independentemente da crença em Deus ou vínculo religioso (Oliveira; Santos; Yarid, 2018OLIVEIRA, R. M.; SANTOS, R. M. M.; YARID, S. D. Espiritualidade/religiosidade e o humanizaSUS em Unidades de Saúde da Família. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, Fortaleza, v. 31, n. 1, 2018. DOI: 10.5020/18061230.2018.6524
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). Após a conclusão da coleta de dados, alguns estudantes se inseriram na criação de uma liga acadêmica para estudo e discussão da espiritualidade no contexto da saúde, demonstrando assim o impacto da experiência na construção do ser profissional atento a questões que vão além do modelo biomédico.

Para o paciente oncológico, essa abordagem tem um significado importante, pois o diagnóstico e o tratamento podem trazer questionamentos relacionados às dimensões mais profundas do existir e da busca por sentido na vida. Um estudo realizado no Instituto do Câncer da Carolina do Norte (EUA) analisou dados de 1.249 pacientes, relacionados à necessidade de cuidados espirituais daqueles que estavam sendo acompanhados pelo ambulatório de oncologia. Os dados indicam que 30% desses pacientes têm pelo menos uma necessidade espiritual, estando associadas a angústia espiritual, ansiedade, medo da morte e busca de sentido na vida. Eles também apresentam maior chance de aceitação de intervenções espirituais durante o acompanhamento na unidade de saúde. Assim, há uma necessidade de avaliação das demandas espirituais dos pacientes oncológicos para que se verifique a necessidade de acompanhamento e assistência no que diz respeito a essas questões.

Essa necessidade pode ir além do contexto do paciente com câncer, envolvendo também seus familiares. Um estudo que avaliou as necessidades espirituais de familiares cuidadores de pessoas com câncer identificou que eles utilizam a espiritualidade como suporte para questões existenciais e situações estressoras relacionadas ao papel de cuidador. Desta forma, esses familiares encontram na espiritualidade uma forma de transpor obstáculos e ressignificar as experiências vivenciadas a partir da doença do seu ente querido, tendo, portanto, necessidade de terem também a sua dimensão espiritual considerada durante o plano terapêutico do paciente (Rocha et al., 2018ROCHA, R. C. N. P. et al. Spiritual needs experienced by the patient’s family caregiver under oncology palliative care. Revista Brasileira de Enfermagem , Brasília, DF, v. 71, n. suppl. 6, p. 2635-2642, 2018. DOI: 10.1590/0034-7167-2017-0873
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)

Diversos estudos também mostraram que os pacientes desejam receber esse tipo de suporte, variando de 33 a 94% nos estudos internacionais (Adanikin, Onwudiegwu; Akintayo, 2014ADANIKIN, A. I.; ONWUDIEGWU, U.; AKINTAYO, A. A. Reshaping maternal services in Nigeria: any need for spiritual care? BMC Pregnancy Childbirth, London, v. 14, n. 196, 2014. DOI:10.1186/1471-2393-14-196
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; Koenig; King; Carson, 2012KOENIG, H. G.; KING, D.; CARSON, V. B. Handbook of religion and health. 2. ed. New York: Oxford University Press, 2012.) e 79 a 87% nos estudos nacionais (Lucchetti; Almeida; Lucchetti, 2012LUCCHETTI, G.; ALMEIDA, L. G. C.; LUCCHETTI, A. L. G. Religiousness, mental health, and quality of life in brazilian dialysis patients. Hemodialysis International, Massachusetts. v. 16, n. 1, p. 89-94, 2012. DOI: 10.1111/j.1542-4758.2011.00623.x
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), dependendo do tipo de atendimento, local de atuação e contexto clínico. Para muitos pacientes, a espiritualidade é utilizada como forma de enfrentamento da doença com a finalidade de minimizar o sofrimento ou obter maior esperança, impactando na sua qualidade de vida, conforme um estudo realizado em Boston com pacientes oncológicos (Vallurupalli et al., 2012VALLURUPALLI, M. et al. The role of spirituality and religious coping in the quality of life of patients with advanced cancer receiving palliative radiation therapy. The Journal of Supportive Oncology, New Jersey, v. 10, n. 2, p. 81-87, 2012. DOI: 10.1016/j.suponc.2011.09.003
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).

A publicação que avaliou atitudes de médicos e enfermeiros de oncologia sobre cuidados espirituais em 14 países do Oriente Médio relacionou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e atitudes profissionais no cuidado espiritual. Assim, revelou que o cuidado espiritual é mais valorizado em países com IDH mais elevados. Os entrevistados de países com níveis de IDH mais altos tiveram atitudes relativamente mais positivas em relação às intervenções de assistência espiritual, que envolveram a coleta de informações aplicáveis ao atendimento ao paciente (Bar-Sela et al., 2019BAR-SELA, G. et al. Human Development Index and its association with staff spiritual care provision: a Middle Eastern oncology study. Support Care Cancer, New York, v. 27, n. 9, p. 3601-3610, 2019. DOI 10.1007/s00520-019-04733-0
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).

Durante a experiência da coleta dos dados deste estudo, os pacientes, em sua maioria, demonstraram surpresa por terem sua dimensão espiritual abordada durante a quimioterapia. Relatos de que ela deveria ser trazida de maneira mais frequente para o ambiente de tratamento em saúde foram comuns tanto para o grupo controle quanto para o grupo de intervenção.

Para o grupo de intervenção, além da abordagem de questões de espiritualidade, houve uma prática espiritual incluída durante seis sessões de quimioterapia. Nesse grupo, obtivemos muitos relatos ao final da aplicação da Rime sobre o quanto esses momentos de contato com a sua dimensão espiritual haviam colaborado na forma como eles vivenciaram a doença e, sobretudo, como passaram a enfrentar o período do tratamento quimioterápico. A intervenção Rime coloca o indivíduo em contato com a sua espiritualidade enquanto aspecto imanente, assim como com a sua relação com um ser espiritual de luz transcendente. Além disso, benefícios como o encontro de paz interna, a clareza mental na percepção dos acontecimentos que antes eram estressantes e o melhor relacionamento consigo, com o outro e com o Sagrado foram relatados pela maioria dos participantes do grupo de intervenção.

Principalmente o grupo que recebeu a intervenção espiritual atribuiu importância essencial para a inclusão da espiritualidade no plano terapêutico, inclusive com sugestão de que essa abordagem fosse estendida aos demais pacientes da unidade como rotina no cuidado oncológico. Houve um reconhecimento da importância da sua inclusão para que o cuidado fosse mais integral, levando em consideração outras dimensões do ser que está em tratamento.

As pessoas que vivem com câncer geralmente mobilizam mecanismos adaptativos para lidar com questões relacionadas ao diagnóstico e tratamento. Um estudo analítico/observacional realizado com 40 pacientes da Unidade de Alta Complexidade em Oncologia de um hospital universitário no Brasil avaliou a relação entre o uso do enfrentamento (coping) religioso/espiritual e as respostas orgânicas às toxicidades da quimioterapia. Esse estudo concluiu que os pacientes com câncer submetidos à quimioterapia fizeram uso de estratégias de coping positivo em maior intensidade. Dessa forma, a dimensão religiosa/espiritual é uma ferramenta de enfrentamento que o paciente utiliza para lidar com o estresse gerado pelo diagnóstico e o tratamento, incluindo a toxicidade da quimioterapia (Filho; Khoury, 2018FILHO, L.S.M.; KHOURY, H.T.T. Uso do coping religioso/espiritual diante das toxicidades da quimioterapia no paciente oncológico. Revista Brasileira de Cancerologia. , v. 64, n. 1, p. 27-33, 2018. DOI: 10.32635/2176-9745.RBC.2018v64n1.112
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). Por isso, mostra-se importante que essa dimensão do paciente seja considerada durante o seu plano terapêutico, sobretudo durante a quimioterapia.

Há diversos relatos de pacientes e familiares de pessoas com câncer sobre o surgimento de desesperança e sofrimento após o diagnóstico, pois traz uma carga emocional ligada ao medo da morte e ao desfecho da doença. Para os pacientes oncológicos em internamento hospitalar, o apoio espiritual tem um significado relevante por promover aspectos positivos de enfrentamento (dá força, esperança de cura e melhor ajustamento à doença e seu tratamento, auxiliando o processo de aceitação da doença e buscando sentido para a situação de saúde atual). Esse apoio pode dar a eles a oportunidade de expressar seus sentimentos de fé, paz, esperança e solidariedade consigo e com os demais, possibilitando uma reorganização da vida durante a reabilitação. Assim, a espiritualidade é um instrumento importante no enfrentamento da doença oncológica, já que traz um significado positivo, proporcionando um pensar construtivo durante o tratamento (Freire et al., 2017FREIRE, M. E. M. et al. Assistência espiritual e religiosa a pacientes com câncer no contexto hospitalar. Revista Online de Pesquisa, Juiz de Fora, v. 9, n. 2, p. 356-362, 2017. DOI: 10.9789/2175-5361.2017.v9i2.356-362
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).

Existe bastante informação na literatura científica comprovando os benefícios da espiritualidade para a saúde e relatos de pacientes, familiares e profissionais sobre a importância dessa abordagem na prática clínica. No entanto, tem sido um desafio para o contexto do trabalho na área a forma como essa dimensão deve ser abordada durante o cuidado. A ação deve ser cuidadosa, ética e pautada no preparo e bom senso do profissional. Diante da subjetividade que o tema sugere, o profissional deve estar preparado para respeitar os valores e crenças de pacientes e familiares dentro de suas adversidades, possibilitando maior e melhor compreensão sobre o assunto, para que haja um cuidado humanizado, integral e ético.

Um estudo de revisão, que analisou publicações dos últimos 10 anos sobre a aplicabilidade da religiosidade/espiritualidade na prática clínica da enfermagem, verificou que, apesar do reconhecimento da importância da abordagem dessa dimensão, poucas publicações descrevem como deve ser realizada, apontando para uma limitação de protocolos que orientem a conduta profissional na abordagem da espiritualidade. Esse estudo faz ainda recomendações gerais baseadas na literatura atual sobre alguns aspectos a serem considerados no contexto clínico, como: avaliar bem-estar espiritual, diagnóstico espiritual, avaliação, colher anamnese espiritual, avaliar demandas de cunho espiritual e identificação de rede de apoio espiritual, ressaltando a importância de levar em consideração sempre os aspectos éticos e o bom senso durante a sua prática (Costa et al., 2019COSTA, M. S. et al. Espiritualidade e religiosidade: saberes de estudantes de medicina. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 27, n. 2, p. 350-358, 2019. DOI: 10.1590/1983-80422019272319
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).

Dessa forma, percebemos a importância das escolas formadoras nesse desafio que tem sido a inclusão da abordagem da espiritualidade durante a atuação do profissional de saúde, pois existe uma necessidade cada vez mais evidente de que ela seja incluída no plano terapêutico das pessoas em tratamento.

Considerações finais

A vivência de uma experiência que traz questões tão subjetivas, delicadas e profundas sobre o ser humano, como a espiritualidade e a fé, permitiu ao pesquisador desenvolver uma reflexão sobre a necessidade de mudança de paradigma na forma de prestar cuidado à saúde.

Ações consideradas simples, como a escuta dos medos e aflições do paciente e como esse utiliza a sua fé para enfrentar, ter esperança e se apoiar durante o tratamento contra o câncer, podem ter um grande valor e impacto na condução e desfecho do tratamento.

Em doenças como o câncer nem sempre a cura é possível, mas trazer a abordagem da espiritualidade durante todo o acompanhamento do paciente no serviço de saúde, pode amenizar o sofrimento, trazer paz e tranquilidade, colaborar em novas formas de olhar para a experiência vivenciada e criar novas formas de enfrentamento, contribuindo para o aumento do seu nível de esperança e da sua qualidade de vida.

Dessa forma, os profissionais devem ser preparados para esse desafio que tem surgido como uma necessidade da humanidade, que é um cuidado em saúde mais abrangente e integral, que leve em consideração outros aspectos e dimensões do ser humano que influenciam na promoção, proteção e recuperação da saúde, em sua definição mais ampla.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2023
  • Aceito
    05 Jun 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br