Gestão do cuidado e interdisciplinaridade: desafios do cotidiano da atenção psicossocial

Care management and interdisciplinarity: daily challenges of psychosocial care

Gestión del cuidado e interdisciplinaridad: desafíos del cotidiano de la atención psicosocial

Karine Lima Verde Pessoa Maria Salete Bessa Jorge Lídia Andrade Lourinho Ana Maria Fontenele Catrib Sobre os autores

RESUMO

Objetivo

Comprender os desafios enfrentados pelos trabalhadores no cotidiano da atenção psicossocial, considerando as relações afetivas, a gestão do cuidado e a interdisciplinaridade.

Método

Pesquisa qualitativa reflexiva de cunho fenomenológico em uma perspectiva hermenêutica, realizado com profissionais da saúde mental do Centro de Apoio Psicossocial em Fortaleza-CE, Brasil.

Resultados

Do cotidiano da atenção psicossocial emergiram subjetividades relacionadas a precarização do trabalho em saúde determinado pela infraestrutura física deficiente, quantidade e qualidade de material insatisfatórios, trazendo desalentos para o exercício das práticas e do cuidado com qualidade.

Conclusões

A gestão do cuidado como norteador das práticas inovadoras de saúde mental, nos dá a sustentabilidade de uma prática necessária para consolidação e reso-lutividade da demanda da vida social dos usuários e que os processos de trabalho no campo da saúde mental.

Palavras-chave:
Saúde mental; atenção primária a saúde; serviços de saúde mental (fonte: DeCS, BIREME)

ABSTRACT

Objective

To understand the challenges faced by workers in the daily activities related to psychosocial care, considering affective relationships, care management and interdisciplinarity.

Materials and Methods

Reflective qualitative research of phenomenological nature from a hermeneutic perspective, carried out with mental health professionals of the Psychosocial Support Center of Fortaleza-CE, Brazil.

Results

Subjectivities related to the precariousness of health work, determined by deficient physical infrastructure, quantity and quality of material, arose from the daily routine of psychosocial care, exposing discouragement in the exercise of practices and quality care.

Conclusions

The management of care as a guide to innovative mental health practices provides sustainability for a practice that is necessary to consolidate and solve the social life demands of users and of work processes in the field of mental health.

Key Words:
Mental health; primary health care; mental health services (source: MeSH, NLM)

RESUMEN

Objetivo

Comprender los desafíos enfrentados por los trabajadores en el cotidiano de la atención psicosocial, considerando las relaciones afectivas, la gestión del cuidado y la interdisciplinariedad.

Método

Investigación cualitativa reflexiva de cuño fenomenológico en una perspectiva hermenéutica, realizado con profesionales de la salud mental del Centro de Apoyo Psicosocial en Fortaleza-CE, Brasil.

Resultados

De lo cotidiano de la atención psicosocial surgieron subjetividades relacionadas con la precarización del trabajo en salud determinado por la infraestructura física deficiente, cantidad y calidad de material insatisfactorio, lo cual trae desaliento en el ejercicio de las prácticas y del cuidado con calidad.

Conclusiones

La gestión del cuidado como orientador de las prácticas innovadoras de salud mental, nos da la sostenibilidad de una práctica necesaria para la consolidación y resolución de la demanda de la vida social de los usuarios y de los procesos de trabajo en el campo de la salud mental.

Palabras Clave:
Salud mental; atención a la salud; servicios de salud mental (fuente: DeCS, BIREME)

A partir do desejo de aprofundar os estudos e a reflexão acerca da gestão do cuidado em saúde mental no cotidiano da atenção psicossocial, em especial os aspectos micro políticos dos processos de trabalho, iniciou-se uma reflexão sobre os afetos subjacentes às relações interpessoais, muitas vezes viven-ciados e expressos de modo imaturo, alimentando um clima de hostilidade ou ressentimento no cotidiano das práticas em saúde mental.

Parece evidente que as transformações paradigmáticas referentes à saúde mental no Brasil exigem a transformação dos processos de trabalho e impõem novos desafios à gestão do cuidado. O novo modelo tecnoassistencial coloca em evidência as inter-relações entre subjetividade, processo de trabalho e gestão, ocupando esta última, uma posição de destaque na medida em que a gerência e as formas de gestão nos serviços podem contribuir de maneira significativa na decodificação de diretrizes gerais em práticas alinhadas ética e ideologicamente às premissas da reforma 11. Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2000..

Na pesquisa aderiu-se o conceito de 'processo de trabalho em saúde' na dimensão microscópica do cotidiano do 'trabalho em saúde', ou seja, à prática dos trabalhado-res/ profissionais de saúde inseridos no dia-a-dia da produção e consumo de serviços de saúde 22. Onocko-Campos RT, Palombini AL, Leal E, Serpa Junior OD, Baccari lOP, Ferrer AL et al. Narrativas no estudo das práticas em saúde mental: contribuições das perspectivas de Paul Ricoeur, Walter Benjamim e da antropologia médica. Ciênc Saúde Coletiva. 2013; 18(10):2847-57..

Evidencia-se a necessidade de reflexão permanente acerca da qualidade das ações de saúde e a fundamentação de tais ações em aspectos ético-humanísticos, entendidos como princípios norteadores da prática dos trabalhadores de saúde 33. Barros MMMA, Jorge MSB, Pinto AGA. Desafios e possibilidades na rede de atenção integral à saúde mental: o discurso do sujeito coletivo dos usuários de um centro de atenção psicossocial. Saúde Debate. 2011; 34:744-53.. Apoiando essa ideia, autores defendem a construção de modos de se fazer a gestão que se orientem para a construção de um novo pacto ético-político, que tenha como referência e ponto de partida, sempre, o mundo do trabalho e as relações reais que estabelecem seus atores entre si e com os usuários 44. Cecílio LCO, Mendes TC. Propostas Alternativas de Gestão Hospitalar e o Protagonismo dos Trabalhadores: por que as coisas nem sempre acontecem como os dirigentes desejam? Saúde Soc. 2004; 13(2):39-55..

Além disso, a gestão é um campo de ação humana que visa à coordenação articulação e interação de recursos e trabalho humano para a obtenção de fins/metas/objetivos. Trata-se, portanto, de um campo de ação que tem por objeto o trabalho humano que, disposto sob o tempo e guiado por finalidades, deveria realizar tanto a missão das organizações como os interesses dos trabalhadores 55. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de atenção básica. Programa Nacional de humanização da Atenção e gestão do SUS. Gestão Participativa e co-gestão. Brasília: Ministério da Saúde; 2009..

Desta forma, questionou-se quais os desafios enfrentados pelos trabalhadores de saúde mental no seu dia-a-dia, considerando a gestão do cuidado e desafios e suas relações disciplinares e interdisciplinares? Quais as relações afetivas que se manifestam em relação aos processos de trabalhos em saúde mental?

Com esses questionamentos e na tentativa de ampliar os horizontes do pensar e fazer desses trabalhadores de saúde pretendeu-se com a pesquisa compreender os desafios enfrentados pelos trabalhadores no cotidiano da atenção psicossocial, considerando as relações afetivas, a gestão do cuidado e a interdisciplinaridade.

MÉTODOS

A pesquisa caracterizou-se como qualitativa reflexiva de cunho fenomenológico em uma perspectiva hermenêutica, que constrói o percurso compreensivo que nos possibilita considerar a hermenêutica reflexiva e da esfera fe-nomenológica 66. Ricoeur P. Do texto à ação: ensaios de hermenêutica II. Tradução de Alcino Ricoeur Paul. São Paulo: Fundação Editora UNESP; 2002.. Outrossim, problema de submeter um texto para à compreensão não se distingue o problema da compreensão de qualquer outro objeto, mas sim de uma particularidade que denomina-se tríplice autonomia do texto: em relação a intensão do autor a recepção do leitor e ao contexto histórico social, econômico e cultural de sua produção. Assinala que o texto tem sempre a pretensão de fazer emergir uma experiência ou uma forma de viver e nele estar e que pede passagem à linguagem 77. Onocko-Campos RT. Clínica: a palavra negada - sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental. Saúde Debate. 2011; 25(58):99-111..

Para a construção de narrativas utilizou-se a transcrições das gravações de grupos focais com gestores, trabalhadores, usuários e familiares. Posteriormente, foram identificados e extraídos do material transcritos, os núcleos argumentais que respondiam as questões da investigação. Os núcleos argumentais constituíram o fio condutor para a construção das narrativas a partir do dito pelos participantes. Após essa fase, as narrativas foram apresentadas aos participantes, para que os mesmos pu dessem contestá-las, corrigi-las e valida-las, no sentido de aprofundar o discutido em grupos anteriores.

O objeto da fenomenologia é o estudo da experiência como foco na relação intencional onde consciência e mundo constituem-se mutuamente e coexista como polo inseparável. O termo experiência na tradição fenomeno-lógica dirá do modo de ser do sujeito no mundo, indicará como estamos mergulhados e nele agimos no tempo e no espaço e que isto está para além do mundo como representamos cognitivamente. Um sentido possível do vivido são dados pela dimensão encarnada da existência 88. Leal EM, Serpa Junior OD. de. Acesso à experiência em primeira pessoa na pesquisa em Saúde Mental. Ciênc Saúde Coletiva. 2013; 18(10):2939-48..

Para fins dessa pesquisa, utilizamos como cenário para a coleta de informações, o Centro de apoio psicossocial -CAPS geral da Secretaria Regional de Saúde - SER IV, em funcionamento desde 2001 na cidade de Fortaleza. Este CAPS contava em 2012 com 9

756 cadastrados e equipe composta pela coordenadora, por auxiliares administrativos; auxiliares de enfermagem; artistas; assistentes sociais; digitador; enfermeiras; farmacêuticos; guardas municipais; médicos; nutricionista; terapeutas ocupacionais; porteiro; psicólogas; vigilantes; zeladores.

A equipe era formada por uma maioria significativa de mulheres (74%), enquanto os homens compõem apenas 26%. Em relação aos vínculos contratuais a maioria dos trabalhadores (56%) era terceirizada, contratados através do Instituto de Desenvolvimento e Apoio em Gestão a Saúde (IDGS) e 39% concursados, contratados pela Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF).

A escolha por uma equipe objetivou compreender, em profundamente, a micropolítica dos processos de trabalho no cotidiano da produção do cuidado em saúde mental, observando, investigando e analisando as relações de trabalho, as quais possuem dimensões técnicas, políticas, subjetivas e afetivas, constituindo uma complexa rede de relações interpessoais. Participavam desta equipe 15 trabalhadores de saúde mental, os quais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido após explicação da importância da pesquisa.

Além dos trabalhadores, foram incluídos na pesquisa 03 coordenadores, sendo estes: 01 coordenador municipal de saúde mental; 01 coordenador regional de saúde mental (SER IV); e 01 coordenador da unidade (CAPS geral da SER IV) com a finalidade de assegurar mais informações, complementar dados e acrescentar novos informantes na pesquisa.

Desta forma, a composição dos grupos de entrevistados foi organizada em dois grupos, sendo um representado por coordenadores em atuação no CAPS geral da SER IV e o outro representado por trabalhadores de saúde mental da equipe do CAPS geral da SER IV.

O limite máximo de 18 entrevistas com trabalhadores e gestores, se deu por profundidade das questões levantadas, abrangência dos objetivos durante o processo de coleta e análise, denominado de saturação teórica e empírica. A saturação é construída através de um processo contínuo de análise de dados, iniciado já no início do processo de coleta. Considerando os objetivos da pesquisa, dá-se um momento em que pouco de substancialmente novo aparece no conjunto dos entrevistados 99. Fontanella BJB, RICAS, J.; TURATO, E. R. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cad Saúde Pública. 2008; 24(1):17-27..

Para coleta de dados utilizou-se a entrevista semiestruturada e a observação sistemática das práticas e o grupo focal. A coleta das experiências se deu no período de abril a agosto de 2012, incluindo participação quinzenal nas rodas de equipe. Para proceder à análise organizaram-se os dados nas temáticas: subjetividade dos trabalhadores no enfrentamento dos desafios do cotidiano da atenção psicossocial; precarização do trabalho e sentimentos; modos e níveis de resistência às condições estressoras; relações interpessoais e interdisciplinares dos trabalhadores.

A análise das experiências foi orientada pela hermenêutica e Rede de Petições e Compromissos 66. Ricoeur P. Do texto à ação: ensaios de hermenêutica II. Tradução de Alcino Ricoeur Paul. São Paulo: Fundação Editora UNESP; 2002., objetivando ampliar a análise do serviço em sua dimensão micropolítica.

O projeto foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da Universidade Estadual do Ceara (UECE) onde foi avaliado e aprovado com parecer favorável n° 11581869-3.

RESULTADOS

Subjetividade dos trabalhadores no enfrentamento dos desafios do cotidiano da atenção psicossocial

Do cotidiano da atenção psicossocial emergiram subjetividades relacionadas ao próprio processo de trabalho em equipe e aos trabalhadores gerando um enfrentamento que se constituem desafios que qualificam este percurso.

O cotidiano da equipe influencia significativamente o processo de trabalho individual, [...] eu acho que isso vem da sua história de vida, do que você pensa, mas eu aprendi muito com a equipe. Tem profissional aqui que têm uma disponibilidade tão grande que você aprende, se contagia e quer fazer também [...].

A compreensão da demanda que se apresenta no dia a dia exige da equipe, abertura e disponibilidade ao encontro com o outro através da escuta. [...] Tem colega que diz que não tá aqui pra fazer terapia com ninguém, mas a parte mais importante da saúde mental é a escuta. Porque se você não escutar o paciente você não vai saber, não vai nem ter ideia do que ele precisa [...]. Uma escuta qualificada pode muitas vezes mudar completamente os rumos de um diagnóstico e de um projeto terapêutico.

Essa escuta ampliada não pode se restringir ao diálogo verbal. Alguns comportamentos, gestos, expressões ou mesmo dados objetivos podem informar muito acerca de um usuário e expandir as possibilidades de cuidado. [...] Então a gente vai começando a entender, que, muitas vezes, por trás de um dado de uma ficha, a gente pode perceber algo que o paciente não consegue verbalizar e começa a se aproximar. Então a gente tem uma referência, na verdade, na escuta, e não pode ser só da fala [...].

Até o momento, debateu-se o afeto em sua materialidade positiva, porém, concomitantemente, encontramos relatos de condições estressoras enfrentadas no dia a dia, potencialmente capazes de transformar a motivação em desmotivação, a alegria em tristeza, a saúde em adoecimento.

Precarização do trabalho e sentimentos

Nesse contexto, a precarização do trabalho emerge nos discursos dos trabalhadores de saúde mental como um ponto fundamental. A vulnerabilidade dos trabalhadores submetidos a frágeis vínculos contratuais foi um dos elementos centrais identificados, acarretando, por exemplo, grande rotatividade com consequente descontinuidade de projetos terapêuticos e quebra de vínculos. [...] Infelizmente, essa dinâmica do serviço é afetada pela rotatividade de profissionais e pelo sistema de relações que se coloca pro trabalhador de saúde mental.

A possibilidade de saída dos trabalhadores terceirizados permanece como uma ameaça constante à que a equipe está exposta, dificultando a construção de vínculos e projetos, conforme podemos observar no discurso a seguir: [...] Do nível médio só três ou quatro pessoas são concursadas. O restante, todo mundo é terceirizado. Sabe, é como se tivesse um discurso não tão claro de que o terceirizado tá mais fragilizado, como se não fizesse parte do grupo, como se estivesse só temporariamente aqui [...].

Há uma diferença, no entanto, no modo como a fragilidade dos vínculos contratuais é vivenciada pelos trabalhadores com nível médio de escolaridade e àqueles com nível superior, o que pode ser decorrente das possibilidades de cada um no que se refere à empregabilidade. [... ] A diferença é que talvez, na nossa cabeça passe a ideia de que a gente tem uma facilidade maior de conseguir outro emprego e pra um terceirizado que ganha um salário mínimo, isso não funciona tão fácil assim [...]. Essa fragilidade afeta também a possibilidade de atuação política na medida em que questionar ou enfrentar situações em que os trabalhadores estejam em desacordo com os gestores pode acarretar punições ou demissões.

Entretanto, nos discursos dos trabalhadores, submetidos à fragilidade de vínculos trabalhistas, a lógica do mercado pode ainda ser compreendida de modo positivo ou, talvez, naturalizado. Nessa perspectiva, o medo diante de possíveis punições, dentre as quais a demissão seria a principal delas, o trabalhador ampliaria a produtividade e fortaleceria o compromisso com a resolubilidade dos atos de saúde, favorecendo, desse modo, a qualidade da atenção oferecida. [... ] A gente tem muitos profissionais aqui que são concursados, que não são terceirizados, então é um pessoal mais difícil. Apesar de que, pra ter funcionários concursados aqui, eu acho que a equipe trabalha muito, porque em outros lugares eu vejo que o povo é mais lento [...].

Outro aspecto referente à precarização do trabalho ganha destaque nos discursos dos trabalhadores: as más condições de trabalho, principalmente no que se refere à estrutura física e disponibilidade de materiais e equipamentos indispensáveis à execução do projeto terapêutico institucional. [... ] O meu problema com saúde mental é que nós não temos espaço para trabalhar, você já entrou na farmácia? Não tem espaço.

A própria integridade física dos trabalhadores é colocada em risco em decorrência da inadequação das instalações do serviço. [...] Falta estrutura de trabalho. Aqui teve uma vez que o paciente quis me agredir e como é que eu saio? Não saio. Eu fui salva por outro paciente que estava entrando [...].

As más condições da estrutura física afetam não apenas o bem-estar dos trabalhadores, mas também dos usuários, [... ] me desencanta ter pacientes com sentimentos e delírios persecutórios fortíssimos e quando estão aqui olham pros buracos e dizem "doutora, não vai cair nada dali não? Ele tá me ouvindo é ali" [...]. [...] Na primeira semana de janeiro eu tava pagando o pintor, comprando a tinta e pintando a sala. Minha colega disse "eu não acredito que tu vai fazer isso", e eu disse "vou, é o meu ambiente de trabalho e eu não acho digno receber meu paciente num ambiente tão desestruturado desse jeito" [...].

Do mesmo modo, o subsídio financeiro para execução de ações chega a ser liberado pelos próprios trabalhadores. Esse ato é valorizado por alguns, sendo compreendido de modo positivo, como responsabilização e compromisso com a qualidade do cuidado. [... ] Eu acho que é feito muita coisa ainda. E isso depende do que? Do esforço pessoal de cada um. A equipe ainda tá de parabéns, porque a gente ainda consegue fazer muita coisa, às vezes sem poder, batendo xérox do nosso dinheiro, porque vai demorar e a gente tá precisando na mesma hora.

Além dos sentimentos expressos anteriormente, a frustração, o cansaço e o constrangimento, expressam solidariedade dos próprios usuários. [...] Muitas vezes eu cheguei ao grupo aqui e disse "gente, eu estou constrangida de dizer pra vocês, mas não tem vale".

A precarização do trabalho chega a ser percebida com uma violência a que está submetido o profissional de saúde, conforme discurso a seguir: [... ] essas coisas deixam a gente constrangido, muitas vezes revoltado, por isso a gente acaba falando em tom de deboche como eu falei ali [referência à reunião de equipe]. Passaram aquele papelzinho [notificação de casos de violência] e eu fiquei perguntando, daquilo ali, o que é que se aplica a gente? Que tipo de violência a gente sofre como profissional? [...].

Relações interpessoais e interdisciplinares dos trabalhadores

Quanto às relações interpessoais e interdisciplinares dos trabalhadores, indicam um clima afetivo positivo, [... ] eu realmente consigo me dar com todos, tenho carinho, já fiz laços de amizade, alguns só profissionalmente mesmo, mas eu não tenho nenhum problema com a equipe [...]. Nessa conjuntura, a confiança no trabalho dos demais membros da equipe também favorece as relações interprofissionais no cotidiano e o fluxo do usuário pelo serviço. [... ] O bom relacionamento da equipe ajuda também, o paciente precisa ser visto, você atende porque seu colega de trabalho atendeu e pediu.

Em contraponto, a relação entre os diversos saberes e práticas no cotidiano do trabalho ocupam lugares diferenciados o que dificultam a atuação interdisciplinar ao estabelecer relações verticais, com assimetria de poderes. [... ] Eu acho que é muito forte aqui esse caráter de assimetria de poderes [...]. Nesse cenário, a centralidade do saber médico ganha destaque.

Percebeu-se nas experiências contadas a verticalidade das relações de trabalho, com diferente valorização dos trabalhadores em relação às funções que cumprem. Em um polo, estão os trabalhadores de nível médio de escolaridade realizando funções de apoio administrativo e serviços gerais. No polo oposto, no topo, estaria o médico. Nesse cenário, as relações cordiais no cotidiano parecem não esconder o distanciamento revelado fortemente por posicionamentos coletivos e pelo silencio.

É interessante apreender nas narrativas dos profissionais pautada em uma cultura do saber medico historicamente e socialmente construída. Isto significa que a cultura desses trabalhadores ainda se pauta na doença e na cura visualizando procedimentos e olhar para o corpo e não considerar a pessoa como sujeito histórico e de vida social

DISCUSSÃO

Os discursos reafirmam a relação do mundo do trabalho, compreendendo-o como uma micropolítica "na qual somos individual e coletivamente fabricadores e fabricados nos nossos modos de agir e nos nossos processos relacionais" (10:182-3).

O cuidar em saúde mental, portanto, não comporta apenas uma dimensão técnica, procedimental, engloba dimensões afetivas, éticas, ideológicas e políticas. Concorda-se com Góis ao referir-se à noção de "atividade" como ação consciente, criativa e transformadora, ou seja, ação que permite ao ser humano apropriar-se da natureza, produzir a sociedade e sua existência conforme sua vontade 1111. Góis CWL. Saúde comunitária: pensar e fazer. São Paulo: Aderaldo & Rothschild; 2008..

A escuta qualificada deve configurar uma "escuta ampliada", considerando a complexidade da experiência do sofrimento e permitindo a expressão singular do sujeito. As ações em saúde mental devem utilizar a escuta e a palavra como organizadores da vivência do sujeito e facilitadores do acolhimento e vinculação deste ao serviço e ao projeto terapêutico 1212. Silveira DP, Vieira ALS. Reflexões sobre a ética do cuidado em saúde: desafios para a atenção psicossocial no Brasil. Estud Pesqui Psicol. 2005; 5(1):92-101..

O discurso reafirma o mesmo cenário encontrado em uma pesquisa realizada em Fortaleza entre janeiro de 2005 e fevereiro de 2006. Diversas formas de contratação no serviço público com vínculo temporário, terceirização, bolsas de trabalho, entre outros, deixam os trabalhadores sem garantia de direitos trabalhistas, ficando desprovidos de proteção social 1313. Barros MMM, Jorge MSB, Pinto AGA. Prática de saúde mental na rede de atenção psicossocial: a produção do cuidado e as tecnologias das relações no discurso do sujeito coletivo. Rev APS. 2010; 13:72-83..

A rotatividade de profissionais torna-se ainda mais acentuada em períodos eleitorais, diante de possíveis mudanças partidárias na gestão municipal, o que afeta não apenas usuários, causando também grande ansiedade na equipe e interferindo em seu processo de trabalho.

Esse discurso confirma os resultados da pesquisa que apontam que os trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial de Fortaleza estão submetidos a condições de trabalho insatisfatórias. Nesse cenário, o incômodo é tão intenso que os próprios trabalhadores relatam pagar por reformas e melhorias em seu ambiente de trabalho 1313. Barros MMM, Jorge MSB, Pinto AGA. Prática de saúde mental na rede de atenção psicossocial: a produção do cuidado e as tecnologias das relações no discurso do sujeito coletivo. Rev APS. 2010; 13:72-83..

Apesar dos avanços, a precarização ainda representa problema relevante para a maior parte dos municípios brasileiros, sobretudo em relação aos médicos. Mais de 70% dos municípios informam que a prática da contratação temporária, em especial o profissional médico 1414. Girardi SN, Carvalho CL, Wan Der Mass L, Farah J, Araújo JF. O trabalho precário em saúde: tendências e perspectivas na Estratégia de Saúde da Família. Divulg Saúde Debate. 2010; 45:11-23.. No entanto, a violência repercute de forma simbólica nas relações, ocasionando constrangimento, deboche, desestímulos entre trabalhadores, gestores e produção do cuidado como explicitam os participantes da pesquisa, podendo assim, gerar desconforto e intolerância quanto ao atendimento a clientela e até mesmo aos próprios funcionários que podem entender esse tipo de comportamento como violência simbólica 1515. Cecílio LCO, Mendes TC. Propostas Alternativas de Gestão Hospitalar e o Protagonismo dos Trabalhadores: por que as coisas nem sempre acontecem como os dirigentes desejam? Saúde Soc. 2004; 13(2):39-55..

Há conflitos com característica intrínseca e inerradicável da vida organizacional. Há, entretanto, conflitos abertos e encobertos, sendo possível alterar as possibilidades de manejo dos mesmos e não sua existência 1616. Cecilio LCO. É possível trabalhar o conflito como matéria-prima da gestão em saúde? Cad Saúde Pública. 2005; 21(2):508-16..

Destaca-se que o silêncio expresso pelos trabalhadores, em relação ao serviço demonstra medo, submissão em revelar as relações de poder em seu cotidiano. Pois, não basta os trabalhadores compartilharem a mesma situação de trabalho ou estabelecerem relações cordiais para se constituírem como uma equipe integrada 1717. Peduzzi M. Trabalho em equipe de saúde no horizonte normativo da integralidade, co cuidado e da democratização das relações de trabalho In: Pinheiro R, Barros ME, Mattos RA. Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: CEPESC; 2007. p. 1-11..

É possível identificar, no caso da equipe pesquisada (não nos cabendo aqui qualquer generalização), que o campo das ciências sociais detém clareza da importância da atuação interdisciplinar. Dessa maneira, constitui no cotidiano efetivar o olhar e a atuação interdisciplinar, havendo inclusive sido citada por vários trabalhadores durante as entrevistas ao se referirem a exemplos práticos de sua atuação.

Por outro lado, a tradição biomédica do cuidado em saúde mental destaca que, apesar de haver existido nas instituições psiquiátricas diversas categorias de trabalhadores (equipes multiprofissionais), o trabalho era fundamentado no modelo médico hegemônico e tinha por característica essencial uma acentuada hierarquia nas relações de trabalho, tornando os demais trabalhadores reféns do saber e do poder do psiquiatra 1818. Sampaio JJC, Guimarães JMX, Abreu LM. Supervisão clínico-institucional e a organização da atenção psicossocial no Ceará. São Paulo: Hucitec ; 2010..

Complementando essa ideia, embora exista um amplo reconhecimento sobre a pertinência do trabalho em equipe no contexto da atenção à saúde, o cotidiano da prática multiprofissional usualmente reitera a subordinação dos profissionais de saúde ao modelo biomédico, assim como a subordinação dos demais profissionais ao profissional médico. Mesmo aqueles com postura crítica em relação ao modelo médico hegemônico, tendem a secundarizar os demais saberes e ações, colocando-os na periferia do projeto assistencial e terapêutico. Percebemos que essa hierarquia ainda não conseguiu ser rompida nos novos espaços substitutivos propostos pela Reforma Psiquiátrica 1717. Peduzzi M. Trabalho em equipe de saúde no horizonte normativo da integralidade, co cuidado e da democratização das relações de trabalho In: Pinheiro R, Barros ME, Mattos RA. Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: CEPESC; 2007. p. 1-11..

O trabalho e em equipe e interdisciplinar com os trabalhadores do campo da saúde, possibilita o diálogo, a reflexão tão relevante no cuidado em Saúde mental. Essa proposta reconstrutiva, o diálogo se mostra como elemento central. Não basta o profissional fazer o que demanda cuidado, falar o que sabe ser relevante; é preciso ter interesse efetivo pelo outro, estabelecendo uma escuta atenta e desarmada em frente à alteridade encontrada, abandonando a arrogância de falar para o outro e passar a falar com o outro 1919. Cecilio LCO. O "trabalhador moral" na saúde: reflexões sobre um conceito. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):345-63..

Nesse cuidado, as perguntas simples podem ser um excelente dispositivo para desencadear a fusão de horizontes entre profissionais e usuários, o que permitirá aproximar as racionalidades práticas e instrumentais necessárias para o encontro com o outro, para resolução das necessidades de saúde das pessoas em sofrimento psíquico no campo da saúde mental.

A gestão do cuidado como norteador das práticas inovadoras de saúde mental, nos dá a sustentabilidade de uma prática necessária para consolidação e resolutividade da demanda da vida social dos usuários 2020. Leyton-Pavez, CE, Valdés-Rubilar, SA, Huerta-Riveros, PC. Metodología para la prevención e intervención de riesgos psicosociales en el trabajo del sector público de salud. Rev. Salud Pública (Bogotá). 2017;19(1): 10-16..

Outro aspecto intrínseco na resolutividade dos processos de trabalho no campo da saúde mental relaciona-se a precarização do trabalho em saúde determinado pela in-fraestrutura física deficiente, quantidade e qualidade de material insatisfatórios, e recursos humanos com necessidade de qualificação, trazendo desalentos para o exercício das práticas e do cuidado com qualidade ♠

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2017
  • Revisado
    15 Dez 2017
  • Aceito
    10 Jun 2018
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