Autopercepção de saúde em quilombolas do norte de Minas Gerais, Brasil

Stéphany Ketllin Mendes Oliveira Mayane Moura Pereira André Luiz Sena Guimarães Antônio Prates Caldeira Sobre os autores

Resumo

Comunidades quilombolas vivenciam situação de vulnerabilidade social, mesmo mais de um século da abolição da escravatura, principalmente em relação aos cuidados de saúde. O estudo objetivou conhecer a autopercepção da saúde (APS) em comunidades quilombolas do Norte de Minas Gerais e os fatores associados à percepção negativa da própria saúde. Inquérito domiciliar com amostra representativa das comunidades quilombolas da região estudada. Foram utilizados instrumentos validados para coleta de dados sobre a APS, condições socioeconômicas e demográficas, hábitos de vida e morbidade autorreferida. Após análise bivariada, conduziu-se análise de regressão logística hierarquizada. A prevalência de APS negativa foi de 46,0%. As seguintes variáveis mostraram-se estatisticamente associados a uma APS negativa: idade e escolaridade, como variáveis distais e hipertensão, diabetes, artrite, depressão e problemas de coluna como variáveis proximais. A APS mostrou-se associada a dimensões demográficas, socioeconômicas e, especialmente, à morbidade autorreferida. O conceito de saúde para as comunidades quilombolas estudadas parece estar intimamente ligado à ausência de doenças, especialmente as crônicas.

Palavras-chave
Nível de saúde; Grupo com ancestrais do continente africano; Inquéritos epidemiológicos; Comunidades vulneráveis; Desigualdades em saúde

Introdução

No Brasil ainda são observados grandes traços de iniquidade relacionados à cor da pele, com evidente prejuízo para a população negra, inclusive em relação aos cuidados de saúde11 Gomes KDO, Reis EA, Guimarães MDC, Cherchiglia ML. Utilização de serviços de saúde por população quilombola do Sudoeste da Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1829-1842.,22 Bezerra VM, Andrade ACS, César CC, Caiaffa WT. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: hipertensão arterial e fatores associados. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1889-902.. Entre essa população, as comunidades quilombolas, formadas, em sua maioria, por indivíduos de ancestralidade africana, apresentam-se particularmente mais vulneráveis, devido às desigualdades sociais e posição geográfica predominantemente rural22 Bezerra VM, Andrade ACS, César CC, Caiaffa WT. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: hipertensão arterial e fatores associados. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1889-902.. O conceito ampliado para comunidades quilombolas traz em si aspectos ligados a uma identidade étnica e à territorialidade, que não podem ser negligenciados33 Schmitt A, Turatti MCM, Carvalho MCP. A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas. Ambient soc 2002; 10(1):129-136.. A legislação brasileira define tais comunidades como grupos étnico-raciais com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida, e atribui à Fundação Cultural Palmares a responsabilidade pelo registro e certificação das mesmas44 Brasil. Presidência da República. Decreto n° 4887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da União 2003; 21 nov..

Infelizmente, os recentes investimentos na Atenção Primária à Saúde, com a expansão de equipes da Estratégia de Saúde da Família, não têm alcançado de forma significativa esse grupo populacional. Pouco se conhece do processo saúde-doença das comunidades quilombolas, do perfil de morbidade desse grupo e das suas percepções acerca dos cuidados de saúde e da própria saúde55 Kochergin CN, Proietti FA, César CC. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: autoavaliação de saúde e fatores associados. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1487-1501.. Alguns autores já destacaram a necessidade de cuidados de saúde mais equânimes para essa população, a partir dos registros de condições de saúde precária e restrito acesso aos serviços de saúde11 Gomes KDO, Reis EA, Guimarães MDC, Cherchiglia ML. Utilização de serviços de saúde por população quilombola do Sudoeste da Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1829-1842.,22 Bezerra VM, Andrade ACS, César CC, Caiaffa WT. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: hipertensão arterial e fatores associados. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1889-902.,66 Oliveira SKM, Pereira MM, Freitas DA, Caldeira A P. Saúde materno-infantil em comunidades quilombolas no norte de Minas Gerais. Cad Saúde Colet 2014; 22(3):307-313..

A autopercepção da saúde (APS), embora subjetiva, é considerada um meio eficaz, rápido e barato de reunir informações sobre a saúde de grupos populacionais, sendo uma medida válida e aceita no meio científico77 Reichert FF, Loch MR, Capilheira MF. Autopercepção de saúde em adolescentes, adultos e idosos. Cien Saude Colet 2012; 17(12):3353-3362.,88 Singh-Manoux A, Martikainen P, Ferrie J, Zins M, Marmot M, Goldberg M. What does self-rated health measure? Results from the British Whitehall II and French Gazel cohort studies. J Epidemiol Community Health 2006; 60(4):364-372.. A literatura recente tem apresentado uma crescente produção sobre esse tema99 Silva RJS, Smith-Menezes A, Tribess S, Rómo-Perez V, Virtuoso Júnior JS. Prevalência e fatores associados à percepção negativa da saúde em pessoas idosas no Brasil. Rev Bras Epidemiol 2012; 15(1):49-62., porém no âmbito da saúde de comunidades quilombolas, ainda é pouco discutido. Relevante contribuição nessa área tem sido apresentada por estudos conduzidos em comunidades quilombolas no Sudoeste da Bahia11 Gomes KDO, Reis EA, Guimarães MDC, Cherchiglia ML. Utilização de serviços de saúde por população quilombola do Sudoeste da Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1829-1842.,22 Bezerra VM, Andrade ACS, César CC, Caiaffa WT. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: hipertensão arterial e fatores associados. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1889-902.,55 Kochergin CN, Proietti FA, César CC. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: autoavaliação de saúde e fatores associados. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1487-1501.. Esses estudos ressaltam, de modo geral, dificuldades para o acesso e subutilização de serviços de saúde pelos quilombolas11 Gomes KDO, Reis EA, Guimarães MDC, Cherchiglia ML. Utilização de serviços de saúde por população quilombola do Sudoeste da Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1829-1842., necessidade de atividades de promoção de saúde mais inclusivas22 Bezerra VM, Andrade ACS, César CC, Caiaffa WT. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: hipertensão arterial e fatores associados. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1889-902. e, particularmente, em relação a APS, foram registrados resultados que também permitem inferir situação de saúde precária dessas comunidades, pois houve elevado registro de autopercepção de saúde muito ruim/ruim55 Kochergin CN, Proietti FA, César CC. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: autoavaliação de saúde e fatores associados. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1487-1501..

Além da carência do tema no contexto das comunidades quilombolas, é preciso destacar que transição epidemiológica também imprime mudanças para tais comunidades, com destaque para o aumento das condições crônicas. Estas são caracterizadas, principalmente, pela presença de longos períodos de latência e poucos sintomas iniciais e já representam uma das principais causa de morte no Brasil1010 Azevedo ALS, Silva RA, Tomasi E, Quevedo LA. Doenças crônicas e qualidade de vida na atenção primária à saúde. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1774-1782.. Pelas suas particularidades e pelos fatores de risco associado, as doenças crônicas também podem interferir na percepção do estado de saúde99 Silva RJS, Smith-Menezes A, Tribess S, Rómo-Perez V, Virtuoso Júnior JS. Prevalência e fatores associados à percepção negativa da saúde em pessoas idosas no Brasil. Rev Bras Epidemiol 2012; 15(1):49-62..

Também é consenso que desigualdades sociais, baixa qualidade de vida, baixa escolaridade, falta de acesso à informação e o fato de pertencer a grupos vulneráveis são condições que, seguramente, interferem no processo saúde-doença e que podem influenciar na APS1111 Barros MBA, Francisco PMSB, Zanchetta LM, César CLG. Tendências das desigualdades sociais e demográficas na prevalência de doenças crônicas no Brasil, PNAD: 2003– 2008. Cien Saude Colet 2011; 16(9):37553768.,1212 Oliveira-Campos M, Rodrigues-Neto JF, Silveira MF, Neves DMR, Vilhena JM, Oliveira JF, Magalhães JC, Drumond D. Impacto dos fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis na qualidade de vida. Cien Saude Colet 2013; 18(3):873-882.. O presente estudo teve como objetivo conhecer a autopercepção do estado de saúde em comunidades quilombolas do Norte de Minas Gerais e os fatores associados à percepção negativa da própria saúde.

Metodologia

Trata-se de um estudo transversal, de base populacional, analítico, conduzido em comunidades quilombolas no norte de Minas Gerais. A região incorpora 86 municípios, dos quais, 20 possuem comunidades quilombolas. Inicialmente, efetuou-se o levantamento de todas as comunidades quilombolas reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares existentes na região norte de Minas Gerais. A partir das 33 comunidades identificadas, elaborou-se um plano amostral para alocação de amostra representativa de todas as comunidades.

O cálculo amostral considerou uma prevalência de 50% para os eventos estudados, por se tratar de um valor conservador, que fornece o maior número de elemento na amostra. A margem de erro aceitável foi de 5% e o nível de confiança de 95%. Para a população estimada nas comunidades quilombolas da região (aproximadamente 22 mil pessoas), o cálculo amostral definiu a necessidade de 378 pessoas a serem entrevistadas. Como o processo de alocação da amostra foi por conglomerados (comunidades), o número calculado foi multiplicado por 1,5 como fator de correção do desenho (deff) e acrescido de 30% para eventuais perdas. Definiu-se assim, a necessidade de 737 entrevistas. Os critérios de inclusão destacavam a idade igual ou superior a 18 anos e a residência fixa em qualquer das comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares, na região norte de Minas Gerais. Foram tomados como critérios de exclusão a incapacidade cognitiva da pessoa sorteada para responder as questões, segundo avaliação da própria família.

A amostragem probabilística ocorreu em dois estágios. Em um primeiro momento, as comunidades foram alocadas de forma aleatória. Em cada comunidade selecionou-se um ponto de referência, a partir do qual os domicílios foram visitados, em espiral, dada a variabilidade da ocupação do espaço (comunidades localizadas em zonas rurais). O número de residências selecionadas em cada localidade foi proporcional ao tamanho da mesma e em cada residência foi sorteado um único adulto para participar do estudo, incluindo os ausentes no momento da visita, que foram abordados em momentos posteriores.

A coleta de dados foi realizada ao longo do segundo semestre de 2013, no próprio domicílio do entrevistado. Todas as entrevistas foram conduzidas por profissionais de saúde de nível superior, previamente treinados e calibrados.

O instrumento de coleta de dados foi baseado em outros instrumentos já validados, especialmente, o questionário para a pesquisa “Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico” (VIGITEL) do Ministério da Saúde, com adaptação apenas para a variável dependente, categorizada em quatro opções de respostas. A aferição de grande parte das variáveis avaliadas foi, portanto, por declaração do próprio entrevistado1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Vigitel Brasil 2010: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: MS; 2011.. Foram coletados também dados sociodemográficos (sexo, idade, cor da pele autodeclarada, escolaridade, estado conjugal, situação de abastecimento água, uso de energia elétrica, esgotamento sanitário, renda familiar e destino do lixo) e avaliação das condições subjetivas de saúde por meio da autopercepção do estado de saúde, definida neste estudo como variável dependente.

Também foi calculado Índice de Massa Corporal (IMC), após aferição direta do peso e estatura e os participantes foram classificados conforme definição: abaixo do peso, para IMC ≤ 18,49 Kg/m2; peso normal, para IMC entre 18,5 e 24,99 Kg/m2; sobrepeso para IMC entre 25,0 e 29,99 Kg/m2 e obesidade para IMC ≥ 30,0 Kg/m2. Após essa classificação, o excesso de peso foi considerado a somatória dos indivíduos com sobrepeso e obesidade. O peso foi mensurado em uma balança antropométrica periodicamente calibrada, com capacidade para até 200 kg e precisão de 100 g. Todas as medidas seguiram os procedimentos classicamente recomendados e foram aferidas em duplicata.

Os entrevistados também foram indagados sobre consumo de álcool, tabagismo e sobre a realização de atividades físicas. O instrumento utilizado contém os itens do Questionário Internacional de Atividade Física (IPAQ), já validado para aferir a frequência e a intensidade das atividades físicas realizadas. Foram classificados em ativos os indivíduos que desenvolviam pelo menos 150 minutos de atividade física semanal1414 Matsudo SM, Matsudo VR, Araújo T, Andrade D, Andrade E, Oliveira L, Braggion G. Nível de atividade física da população do estado de São Paulo: Análise de acordo com o gênero, idade, nível socioeconômico, distribuição geográfica e de conhecimento. Rev Bras Ciên e Mov 2002; 10(4):41-50..

Os dados coletados foram tabulados e analisados com auxílio do programa SPSS (Software Statistical Package for the Social Sciences) v. 17.0. A análise estatística deu-se a partir da variável dependente “Autopercepção do Estado de Saúde,” mensurada a partir da seguinte pergunta: Como você considera seu estado de saúde, sendo as opções de respostas: Muito bom, bom, regular e ruim. Para as análises estatísticas optou-se por agrupar as opções de resposta da variável dependente da seguinte forma: Percepção positiva (Muito bom e bom) e Percepção Negativa (Regular e Ruim). Essa classificação procurou estabelecer uma abordagem diferente do que registram outros estudos no país, pois estabelece quatro opções de resposta, em vez de cinco, sendo duas necessariamente positivas e outras duas necessariamente negativas, evitando a possibilidade de uma situação intermediária, passível de análises equivocadas. A opção dos autores levou em consideração o fato de que o termo “regular” ou “razoável,” em grandes estudos nacionais, com diferentes instrumentos de coleta de dados, não se inclui na percepção positiva da saúde1515 Szwarcwald CL, Souza-Júnior PRB, Esteves MAP, Damacena GN, Viacava F. Socio-demographic determinants of self-rated health in Brazil. Cad Saude Publica 2005; 21(Supl. 1):S54-S64.,1616 Pavão ALB, Werneck GL, Campos MR. Autoavaliação do estado de saúde e a associação com fatores sociodemográficos, hábitos de vida e morbidade na população: um inquérito nacional. Cad Saude Publica 2013; 9(4):723-734..

Em uma primeira etapa foram realizadas análises bivariadas. As variáveis que se mostraram associadas até o nível de 20% (p < 0,20) foram incluídas na análise múltipla (regressão logística), com análise hierarquizada conforme o esquema da Figura 1. O modelo utilizado foi baseado nos estudos de Höfelmann e Blank1717 Höfelmann DA, Blank N. Auto-avaliação de saúde entre trabalhadores de uma indústria no sul do Brasil. Rev Saude Publica 2007; 41(5):777-787. e Guimarães et al.1818 Guimarães JMN, Werneck GL, Faerstein E, Lopes CS, Chor D. Early socioeconomic position and self-rated health among civil servants in Brazil: a cross-sectional analysis from the Pró-Saúde cohort study. BMJ Open 2014; 4:e005321.. A análise múltipla foi conduzida inicialmente dentro de cada um dos blocos de variáveis independentes utilizando a regressão logística binária, método stepwise forward procedure. Posteriormente, a elaboração do modelo final foi realizada com a introdução das variáveis finais de cada bloco, iniciando a partir daquele com associação teoricamente considerada mais distal até aquele com relação mais proximal em relação à APS. Nessa etapa, as magnitudes das associações entre a variável dependente e as variáveis independentes foram estimadas usando-se a odds ratio (OR), com seu respectivo intervalo de confiança de 95% (IC95%), e o modelo final foi ajustado segundo o teste de Hosmer e Lemeshow, mantendo-se as variáveis associadas até o nível de 5% (p < 0,05).

Figura 1
Estrutura conceitual hierarquizada, em blocos, sobre a autopercepção do estado de saúde.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros. A participação das comunidades contou com o apoio das lideranças locais e estadual. Todos os participantes foram orientados sobre os objetivos da pesquisa e concordaram com a participação assinando o termo de consentimento livre e esclarecido (ou com registro de digital, para os que não podiam assinar). O acesso às comunidades foi mediado pelo representante estadual das comunidades quilombolas, fato que possibilitou a colaboração das comunidades no processo de coleta de dados, com participação universal, sem recusas.

Resultados

Foram visitados 756 domicílios identificando-se um indivíduo para cada domicílio. As comunidades se mostraram receptivas, o que eliminou a perda amostral. A maioria dos entrevistados era do sexo feminino, tinha idade entre 18 e 40 anos, era casada ou vivia em união estável. Estas e outras características do grupo estão discriminadas na Tabela 1.

Tabela 1
Características sociodemográficas e hábitos de vida em quilombolas no norte de Minas Gerais, 2013.

A análise da APS revelou que 41 indivíduos (5,4%) avaliaram seu estado de saúde como “Muito bom,” 367 (48,5%) avaliaram como “bom,” 254 (33,6%) avaliaram como “Regular” e 94 indivíduos (12,4%) avaliaram como “Ruim”. Registrou-se, portanto, que 348 pessoas (46,0%) possuíam uma percepção negativa de sua própria saúde (“Regular” ou “Ruim”).

A Tabela 2 apresenta a associação entre as variáveis sociodemográficas estudadas e a APS, por meio de análises bivariadas. Nesta etapa, mostraram-se associadas até o nível de 20% as variáveis idade, escolaridade, abastecimento de água, atividade física e tabagismo.

Tabela 2
Análise bivariada para APS e condições sociodemográficas e hábitos de vida em quilombolas no Norte de Minas, 2013.

Registrou-se que, entre todos os entrevistados, 446 (59,0%) referiam pelo menos um problema de saúde. Os mais destacados foram: hipertensão (n = 234; 31,0%), problemas de coluna (n = 204; 27,0%), depressão (n = 103; 13,6%), colesterol alto (n = 78; 10,7%) e diabetes (n = 50; 6,6%). A análise detalhada do IMC revelou as seguintes prevalências: 41 pessoas abaixo do peso (5,4%), 353 com peso normal (46,7%), 233 com sobrepeso (30,8%) e 129 com obesidade (17,1%). O excesso de peso (sobrepeso + obesidade) foi identificado em 362 pessoas (47,9%).

A Tabela 3 apresenta a associação bivariada entre os problemas de saúde referidos e a autopercepção do estado de saúde, junto ao grupo estudado. Apenas o excesso de peso não se mostrou associado com a variável desfecho nesta análise.

Tabela 3
Análise bivariada para APS e Doenças Crônicas em quilombolas no Norte de Minas, 2013.

Após análise hierarquizada, mostraram-se estatisticamente associados a uma APS negativa, as variáveis distais idade e escolaridade e as variáveis proximais, hipertensão, diabetes, artrite, depressão e problemas de coluna (Tabela 4).

Tabela 4
Modelo final de associação da APS, utilizando análise hierarquizada, em quilombolas no norte de Minas Gerais, 2013.

Discussão

A APS é um fenômeno multidimensional que fornece informações sobre a saúde física e mental do individuo e que tem sido associada com a mortalidade, morbidade e utilização de serviços de saúde88 Singh-Manoux A, Martikainen P, Ferrie J, Zins M, Marmot M, Goldberg M. What does self-rated health measure? Results from the British Whitehall II and French Gazel cohort studies. J Epidemiol Community Health 2006; 60(4):364-372.. O que é percebido pela pessoa muito se aproxima da situação real, portanto, acredita-se que a autoperceção seja uma medida eficaz para avaliar o estado de saúde, e sua simplicidade na execução faz com que esta medida de aferição esteja presente em várias pesquisas em saúde1515 Szwarcwald CL, Souza-Júnior PRB, Esteves MAP, Damacena GN, Viacava F. Socio-demographic determinants of self-rated health in Brazil. Cad Saude Publica 2005; 21(Supl. 1):S54-S64.,1616 Pavão ALB, Werneck GL, Campos MR. Autoavaliação do estado de saúde e a associação com fatores sociodemográficos, hábitos de vida e morbidade na população: um inquérito nacional. Cad Saude Publica 2013; 9(4):723-734..

O presente estudo permitiu identificar uma elevada prevalência de APS negativa na população quilombola do Norte de Minas Gerais. A prevalência observada para APS negativa na população estudada apresentou-se similar àquela registrada em população exclusivamente idosa99 Silva RJS, Smith-Menezes A, Tribess S, Rómo-Perez V, Virtuoso Júnior JS. Prevalência e fatores associados à percepção negativa da saúde em pessoas idosas no Brasil. Rev Bras Epidemiol 2012; 15(1):49-62.,1919 Carvalho FF, Santos JN, Souza LM, Souza NRM. Análise da percepção do estado de saúde dos idosos da região metropolitana de Belo Horizonte. Rev bras geriatr gerontol 2012; 15(2):285-294.. A literatura registra, de forma inconteste, que pessoas idosas possuem uma percepção pior de sua própria saúde77 Reichert FF, Loch MR, Capilheira MF. Autopercepção de saúde em adolescentes, adultos e idosos. Cien Saude Colet 2012; 17(12):3353-3362.,2020 McCullough ME, Laurenceau JP. Gender and the natural history of self-rated health: A 59-year longitudinal study. Health Psychol 2004; 23(6):651-655.. Considerando que a amostra avaliada contava com menos de 10% de pessoas idosas, é natural concluir que as comunidades estudadas apresentam uma percepção mais crítica e negativa acerca das suas condições de saúde, em relação à população em geral.

Existem poucos estudos que abordem a APS em comunidades quilombolas. Em pesquisas realizadas no Sudoeste da Bahia, os autores registraram uma APS “ruim” e “muito ruim” em 12,4% da população, mas quando se insere a percepção de saúde “regular” no conjunto de percepção negativa, o percentual observado passa a ser de aproximadamente 55%, ou seja, bem próximo do valor observado no presente estudo11 Gomes KDO, Reis EA, Guimarães MDC, Cherchiglia ML. Utilização de serviços de saúde por população quilombola do Sudoeste da Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1829-1842.,55 Kochergin CN, Proietti FA, César CC. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: autoavaliação de saúde e fatores associados. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1487-1501..

É importante destacar a carência de estudos nacionais que avaliam saúde da população negra de modo geral. Esse dado é ainda mais notável quando se trata de comunidades quilombolas2121 Batista LE, Monteiro RB, Medeiros RA. Iniquidades raciais e saúde: o ciclo da política de saúde da população negra. Saúde em Debate 2013; 37(99):681-690.. Estudos mais recentes têm abordado alguns aspectos da saúde quilombola, com ênfase em uso de medicamentos2222 Medeiros DS, Moura CS, Guimarães MDC, Acúrcio FA. Utilização de medicamentos pela população quilombola: inquérito no Sudoeste da Bahia. Rev Saude Publica 2013; 47(5):905-913., prevalência de hipertensão22 Bezerra VM, Andrade ACS, César CC, Caiaffa WT. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: hipertensão arterial e fatores associados. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1889-902. e utilização de serviços de saúde11 Gomes KDO, Reis EA, Guimarães MDC, Cherchiglia ML. Utilização de serviços de saúde por população quilombola do Sudoeste da Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1829-1842.. Assim, a discussão que se segue sobre os fatores associados à APS negativa da saúde tomará como referência, estudos conduzidos com outras populações, na ausência de estudos específicos para a população negra ou quilombola.

No presente estudo, as variáveis que se mostraram associadas após análise hierarquizada foram: idade, escolaridade, hipertensão, diabetes, artrite/artrose, depressão e problemas de coluna. Em relação à idade, os dados coincidem com os encontrados em outros estudos, confirmando que o avançar da idade está relacionado ao aumento da autopercepção negativa do estado de saúde dos indivíduos77 Reichert FF, Loch MR, Capilheira MF. Autopercepção de saúde em adolescentes, adultos e idosos. Cien Saude Colet 2012; 17(12):3353-3362.,99 Silva RJS, Smith-Menezes A, Tribess S, Rómo-Perez V, Virtuoso Júnior JS. Prevalência e fatores associados à percepção negativa da saúde em pessoas idosas no Brasil. Rev Bras Epidemiol 2012; 15(1):49-62.,2323 Agostinho MR, Oliveira MC, Pinto MEB, Balardin GU, Harzheim E. Autopercepção da saúde entre usuários da Atenção Primária em Porto Alegre, RS. R Bras Med Fam e Comun 2010; 5(17):9-15.,2424 Teh JKL, Tey NP, Ng ST. Ethnic and Gender Differentials in Non-Communicable Diseases and Self-Rated Health in Malaysia. PLoS ONE 2014; 9(3):e91328., inclusive em quilombolas22 Bezerra VM, Andrade ACS, César CC, Caiaffa WT. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: hipertensão arterial e fatores associados. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1889-902.. Avaliando estratos etários diferentes, um estudo conduzido no Sul do Brasil registrou percentual crescente de autopercepção da saúde “regular ou ruim” para adolescentes, adultos e idosos77 Reichert FF, Loch MR, Capilheira MF. Autopercepção de saúde em adolescentes, adultos e idosos. Cien Saude Colet 2012; 17(12):3353-3362.. Seguramente, algumas características do processo de envelhecimento podem contribuir para a percepção negativa da saúde2020 McCullough ME, Laurenceau JP. Gender and the natural history of self-rated health: A 59-year longitudinal study. Health Psychol 2004; 23(6):651-655.,2525 Loyola Filho AI, Firmo JOA, Uchoa E, Lima-Costa MF. Associated factors to self-rated health among hypertensive and/or diabetic elderly: results from Bambuí project. Rev Bras Epidemiol 2013; 16(3):559-571.. Com o passar dos anos a pessoa diminui sua capacidade produtiva e ocorre o aparecimento de maior número de doenças. Esta situação torna-se mais preocupante quando atinge grupos vulneráveis, como quilombolas, que também sofrem com o isolamento geográfico e iniquidade racial2121 Batista LE, Monteiro RB, Medeiros RA. Iniquidades raciais e saúde: o ciclo da política de saúde da população negra. Saúde em Debate 2013; 37(99):681-690..

Sobre a escolaridade, outra variável que se manteve no modelo final, é relevante destacar que a prevalência de analfabetismo da população estudada foi superior ao encontrado no resto do estado de Minas Gerais2626 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). IBGE. [site da internet]. [acessado em 2014 jul 24]. Disponível em: http://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/negros/populacao-negra-no-brasil
http://brasil500anos.ibge.gov.br/territo...
. Na avaliação da escolaridade foi possível observar que os indivíduos que nunca haviam frequentado a escola tinham uma pior percepção de sua saúde. Essa associação de baixo nível instrucional com pior percepção da saúde foi registrada por outros pesquisadores em outros grupos populacionais77 Reichert FF, Loch MR, Capilheira MF. Autopercepção de saúde em adolescentes, adultos e idosos. Cien Saude Colet 2012; 17(12):3353-3362.,1515 Szwarcwald CL, Souza-Júnior PRB, Esteves MAP, Damacena GN, Viacava F. Socio-demographic determinants of self-rated health in Brazil. Cad Saude Publica 2005; 21(Supl. 1):S54-S64.,1616 Pavão ALB, Werneck GL, Campos MR. Autoavaliação do estado de saúde e a associação com fatores sociodemográficos, hábitos de vida e morbidade na população: um inquérito nacional. Cad Saude Publica 2013; 9(4):723-734.,1919 Carvalho FF, Santos JN, Souza LM, Souza NRM. Análise da percepção do estado de saúde dos idosos da região metropolitana de Belo Horizonte. Rev bras geriatr gerontol 2012; 15(2):285-294.. Porém, o estudo realizado em comunidades quilombolas no Sudoeste da Bahia mostrou que a APS negativa está associada a indivíduos com maior escolaridade. Os autores observaram que pessoas com 4 a 7 anos de estudos apresentaram menor chance de reportar a saúde muito boa/boa. Nesse caso, os autores especulam que essa situação talvez seja devido ao aumento da expectativa do indivíduo com sua própria saúde, à medida que aumenta a escolaridade55 Kochergin CN, Proietti FA, César CC. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: autoavaliação de saúde e fatores associados. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1487-1501..

Sobre as doenças crônicas, estas foram avaliadas no componente proximal da análise hierarquizada deste estudo e, pelo potencial de interferir diretamente na qualidade de vida das pessoas, também se mostraram como variáveis que modificam a APS. A presença de pelo menos uma doença crônica foi elevada na população estudada, o que é concordante com outro estudo também realizado exclusivamente com população quilombola55 Kochergin CN, Proietti FA, César CC. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: autoavaliação de saúde e fatores associados. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1487-1501.. No presente estudo observou-se que a presença de doenças crônicas esteve associada com a APS negativa por parte do individuo, concordando com outro estudo que também verificou esta associação, principalmente em diabéticos e cardiopatas77 Reichert FF, Loch MR, Capilheira MF. Autopercepção de saúde em adolescentes, adultos e idosos. Cien Saude Colet 2012; 17(12):3353-3362.. Por outro lado, estudo conduzido no Sul do Brasil com população adulta em geral não demonstrou uma relação inversa entre a presença de doença crônica e melhor APS2323 Agostinho MR, Oliveira MC, Pinto MEB, Balardin GU, Harzheim E. Autopercepção da saúde entre usuários da Atenção Primária em Porto Alegre, RS. R Bras Med Fam e Comun 2010; 5(17):9-15.. Naturalmente, devem ser considerados os distintos contextos avaliados, pois a população do Sul do Brasil tem características bem diferentes das comunidades quilombolas avaliadas e os autores do estudo gaúcho conduziram a pesquisa apenas entre usuários dos serviços de atenção primária.

Em outros estudos, a hipertensão e diabetes foram as doenças crônicas mais estudas, provavelmente devido a elevada prevalência das mesmas e aos riscos associados. A presença de hipertensão e diabetes se mostrou associada à APS negativa, conforme dados deste estudo. Em um estudo realizado em Bambuí- MG, cujos entrevistados eram exclusivamente idosos, este dado também ficou evidente2525 Loyola Filho AI, Firmo JOA, Uchoa E, Lima-Costa MF. Associated factors to self-rated health among hypertensive and/or diabetic elderly: results from Bambuí project. Rev Bras Epidemiol 2013; 16(3):559-571.. Entre os estudos internacionais, um realizado na Malásia e outro na Colômbia, cujos entrevistados também eram idosos, esta associação também foi observada2424 Teh JKL, Tey NP, Ng ST. Ethnic and Gender Differentials in Non-Communicable Diseases and Self-Rated Health in Malaysia. PLoS ONE 2014; 9(3):e91328.,2727 Ocampo-Chaparro JM, Zapata-Ossa HJ, Cubides-Munévar AM, Curcio CL, Villegas JD, Reyes-Ortiz CA. Prevalence of poor self-rated health and associated risk factors among older adults in Cali, Colombia. Colomb Med 2013; 44(4):224-231.. O fato de se observar a associação entre hipertensão e diabetes com a APS negativa em diferentes comunidades deve-se, provavelmente, ao caráter crônico dessas doenças, que implicam em mudanças de comportamento, de hábitos alimentares e em uso contínuo de medicamentos, o que, seguramente, leva o indivíduo a uma percepção de menos valia do seu estado de saúde. Embora a literatura nacional destaque a elevada prevalência de hipertensão e outras DCNT entre pessoas negras e quilombolas22 Bezerra VM, Andrade ACS, César CC, Caiaffa WT. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: hipertensão arterial e fatores associados. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1889-902.,2828 Barros MBA, Zanchetta LM, Moura EC, Malta DC. Auto-avaliação de saúde e fatores associados, Brasil 2006. Rev Saude Publica 2009; 43(Supl. 2):S27-37., não foram identificados estudos que avaliaram a associação entre tais condições e a APS. Kochergin et al. registraram que existe associação entre a ocorrência de doenças crônicas (com diagnóstico médico) e APS negativa da saúde, mas os autores não discriminaram as doenças55 Kochergin CN, Proietti FA, César CC. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: autoavaliação de saúde e fatores associados. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1487-1501..

Outra doença crônica autorreferida intimamente relacionada à APS negativa, neste estudo, foi a depressão. Sendo o problema de saúde mental mais comum na população, esta doença tem aumentando com o decorrer dos anos1111 Barros MBA, Francisco PMSB, Zanchetta LM, César CLG. Tendências das desigualdades sociais e demográficas na prevalência de doenças crônicas no Brasil, PNAD: 2003– 2008. Cien Saude Colet 2011; 16(9):37553768.. Outras pesquisas também revelaram sua relação com a APS negativa99 Silva RJS, Smith-Menezes A, Tribess S, Rómo-Perez V, Virtuoso Júnior JS. Prevalência e fatores associados à percepção negativa da saúde em pessoas idosas no Brasil. Rev Bras Epidemiol 2012; 15(1):49-62.,2727 Ocampo-Chaparro JM, Zapata-Ossa HJ, Cubides-Munévar AM, Curcio CL, Villegas JD, Reyes-Ortiz CA. Prevalence of poor self-rated health and associated risk factors among older adults in Cali, Colombia. Colomb Med 2013; 44(4):224-231.,2929 Ambresin G, Chondros P, Dowrick C, Herrman H, Gunn JM. Self-Rated Health and Long-Term Prognosis of Depression. Ann Fam Med 2014; 12(1)57-65., inclusive em populações quilombolas55 Kochergin CN, Proietti FA, César CC. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: autoavaliação de saúde e fatores associados. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1487-1501.. Neste estudo observou-se um número superior de indivíduos com relato de depressão em relação ao encontrado nacionalmente1111 Barros MBA, Francisco PMSB, Zanchetta LM, César CLG. Tendências das desigualdades sociais e demográficas na prevalência de doenças crônicas no Brasil, PNAD: 2003– 2008. Cien Saude Colet 2011; 16(9):37553768.. O indivíduo que se sente deprimido, muitas vezes se sente excluído socialmente. Esse aspecto pode estar atuando sinergicamente para a população estudada, pois as comunidades quilombolas passam por várias limitações sociais, que podem contribuir para o aumento da depressão.

A presença da artrite/artrose foi relacionada com APS negativa segundo os resultados do presente estudo, mas não foram identificados estudos nacionais com tal análise. Dado semelhante, entretanto, foi encontrado em um estudo realizado na Malásia com diferentes etnias (Malaios, Chineses e Índios), o que pode deixar em evidência as influências étnicas2424 Teh JKL, Tey NP, Ng ST. Ethnic and Gender Differentials in Non-Communicable Diseases and Self-Rated Health in Malaysia. PLoS ONE 2014; 9(3):e91328.. Aspectos relacionados à mobilidade podem também estar relacionados ao resultado observado. Ressalta-se que, em se tratando de uma população predominantemente rural, a questão da mobilidade é fundamental, tendo em vista a necessidade do esforço físico na atividade laboral. O mesmo raciocínio pode ser feito sobre outra morbidade referida que se mostrou associada: os problemas de coluna. Todavia essa questão deve ser mais bem estudada futuramente, pois não foram encontradas associações similares na literatura.

A literatura registra que o uso do cigarro pode interferir na qualidade de vida das pessoas, através de acometimento por doenças pulmonares, cardiovasculares, câncer e, consequentemente, pode interferir também na APS3030 Oliveira A, Valente J, Leite I. Aspectos da mortalidade atribuível ao tabaco: revisão sistemática. Rev Saude Publica 2008; 42(2):335-345.. Não foi encontrada associação estatística entre a presença do tabagismo e APS neste estudo. A literatura ainda não apresenta consenso sobre o papel dessa variável sobre a APS. O mesmo achado foi encontrado em um estudo realizado em Belo Horizonte1919 Carvalho FF, Santos JN, Souza LM, Souza NRM. Análise da percepção do estado de saúde dos idosos da região metropolitana de Belo Horizonte. Rev bras geriatr gerontol 2012; 15(2):285-294. e também entre os quilombolas do Sudoeste da Bahia55 Kochergin CN, Proietti FA, César CC. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: autoavaliação de saúde e fatores associados. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1487-1501., enquanto outro estudo realizado no Rio Grande do Sul mostrou que tabagismo funciona como um fator de proteção para APS negativa dos indivíduos2323 Agostinho MR, Oliveira MC, Pinto MEB, Balardin GU, Harzheim E. Autopercepção da saúde entre usuários da Atenção Primária em Porto Alegre, RS. R Bras Med Fam e Comun 2010; 5(17):9-15.. Registra-se ainda que o hábito de fumar se mostrou associado a APS negativa em dois estudos, um composto pela população geral e outro realizado exclusivamente com adolescentes77 Reichert FF, Loch MR, Capilheira MF. Autopercepção de saúde em adolescentes, adultos e idosos. Cien Saude Colet 2012; 17(12):3353-3362.,3131 Cureau FV, Duarte PM, Santos DLD, Reichert FF. Autopercepção de saúde em adolescentes: prevalência e associação com fatores de risco cardiovascular. Rev Bras Ativ Fis e Saúde 2013; 18(6):750-760..

Sobre outras variáveis que também não se mostraram associadas com a APS negativa da saúde, destaca-se que o sedentarismo não se manteve no modelo final da análise múltipla. Esse resultado diverge do encontrado por outro estudo realizado com quilombolas55 Kochergin CN, Proietti FA, César CC. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: autoavaliação de saúde e fatores associados. Cad Saude Publica 2014; 30(7):1487-1501.. Em outro estudo realizado com pessoas idosas esta associação também foi observada1919 Carvalho FF, Santos JN, Souza LM, Souza NRM. Análise da percepção do estado de saúde dos idosos da região metropolitana de Belo Horizonte. Rev bras geriatr gerontol 2012; 15(2):285-294.. Todavia, trata-se de uma característica que também não encontra consenso na literatura, pois outros dois estudos identificaram o sedentarismo como fator de proteção para a APS negativa2323 Agostinho MR, Oliveira MC, Pinto MEB, Balardin GU, Harzheim E. Autopercepção da saúde entre usuários da Atenção Primária em Porto Alegre, RS. R Bras Med Fam e Comun 2010; 5(17):9-15.,3232 Siqueira FV, Facchini LA, Piccini RX, Tomasi E, Thumé E, Silveira DS, Hallal, PC. Atividade física em adultos e idosos residentes em áreas de abrangência de unidades básicas de saúde de municípios das regiões Sul e Nordeste do Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(1):39-54..

Alguns estudos têm demonstrado as desigualdades com relação de saúde, quando se leva em conta a cor da pele, sendo necessário que este tema seja mais bem explorado no contexto da saúde pública2121 Batista LE, Monteiro RB, Medeiros RA. Iniquidades raciais e saúde: o ciclo da política de saúde da população negra. Saúde em Debate 2013; 37(99):681-690.,3333 Chor D. Desigualdades em saúde no Brasil: é preciso ter raça. Cad Saude Publica 2013; 29(7):1272-1275.. Outros autores, em outros contextos, já registraram que a discriminação racial tem influência sobre a APS3434 Hudson DL, Puterman E, Bibbins-Domingo K, Matthews KA, Adler NE. Race, life course socioeconomic position, racial discrimination, depressive symptoms and self-rated health. Soc Sci Med 2013; 97:7-14.. No Brasil, somente em 2006 foi aprovada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra (PNSIPN). Todavia, a portaria que reconhece o racismo existente no âmbito da saúde, só foi exposta em 2009. A PNSIPN reconhece que a desigualdades raciais interferem no processo saúde-doença e, a partir daí, seu objetivo é tratar de forma diferenciada as populações negras, respeitando o princípio da equidade. Contudo, sua implementação ainda é recente e pouco tem atingido as populações negras e menos ainda as quilombolas2121 Batista LE, Monteiro RB, Medeiros RA. Iniquidades raciais e saúde: o ciclo da política de saúde da população negra. Saúde em Debate 2013; 37(99):681-690..

Atualmente o Brasil tem mais de 1500 comunidades quilombolas distribuídas em 23 estados3535 Fundação Cultural Palmares. [site da internet]. [acessado em 2014 out 7]. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/quilombola/#
http://www.palmares.gov.br/quilombola/#...
, contudo, as informações sobre estas comunidades ainda são escassas principalmente no que diz respeito à saúde. Esta característica de invisibilidade social constitui uma marca que acompanha esta população no decorrer da história brasileira. Isto caracteriza as comunidades quilombolas como grupo vulnerável, que está sujeito a discriminação de origem social e racial3636 Brandão A, Dalt S, Gouveia VH. Comunidades quilombolas no Brasil: Características socioeconômicas, processos de etnogênese e políticas sociais. Niteroi: EdUFF; 2010..

Concluindo, os resultados do presente estudo reiteram a iniquidade vivenciada pelas comunidades quilombolas, que apresentam uma elevada prevalência de APS negativa. Tal percepção mostrou-se associada a dimensões demográficas, socioeconômicas e, especialmente, à morbidade autorreferida, salientando que, para as comunidades avaliadas, o conceito de saúde ainda está muito ligado a ausência de doenças.

Os resultados do estudo devem ser considerados à luz de algumas limitações: as variáveis estudadas que foram aferidas por meio de autorrelato e não se verificou a disponibilidade e o acesso aos serviços de saúde das comunidades estudadas. Trata-se de um estudo transversal que não permite inferências sobre causalidade ou temporalidade. Outro aspecto diz respeito à dificuldade em comparar os resultados com outros estudos, pois existem diferenças nas categorias de resposta para a pergunta sobre autoavaliação, que neste estudo foram apresentadas em quatro categorias. Todavia registra-se o mérito do estudo apresentar resultados de uma amostra representativa de todas as comunidades quilombolas do norte de Minas. Sobre a categorização das respostas, estudos clássicos sobre APS destacam que a definição do estado de saúde como “regular” ou “ruim” tem elevado potencial de predizer o uso de serviços de saúde e risco de morte em estudos longitudinais3737 Idler EL, Benyamini Y. Self-rated health and mortality: a review of twenty-seven community studies. J Health Soc Behav 1997; 38(1):21-37.,3838 Jylhä M. What is self-rated health and why does it predict mortality? Towards a unified conceptual model. Soc Sci Med 2009; 69(3):307-316.. Portanto, a inclusão da percepção “regular” como percepção negativa da própria saúde não representa um ponto crítico.

É imperiosa a realização de estudos com outras comunidades rurais quilombolas para avaliar a situação real da saúde dessas comunidades que ficam, quase sempre, sob isolamento geográfico e com limitado acesso aos cuidados de saúde. A partir daí, será possível obter novas informações que possam contribuir para implementação de políticas públicas de saúde, capazes de reduzir a vulnerabilidade destas comunidades e promover a incorporação de um conceito ampliado de saúde e bem-estar.

  • Errata

    Ciência e Saúde Coletiva
    volume 20 número 9 - 2015
    p. 2879
    onde se lê:
    Luiz Sena Guimarães 1
    leia-se:
    André Luiz Sena Guimarães 1

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2014
  • Revisado
    14 Fev 2015
  • Aceito
    16 Fev 2015
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