Saúde Mental: como as equipes de Saúde da Família podem integrar esse cuidado na Atenção Básica?

Guilherme Gryschek Adriana Avanzi Marques Pinto Sobre os autores

Resumo

A Saúde Mental é parte das atribuições da Saúde da Família. Esta revisão procurou entender como a Saúde Mental se insere na prática da Estratégia de Saúde da Família. Realizou-se uma revisão de literatura científica, na Base de Dados Biblioteca Virtual de Saúde, com os descritores: "Saúde Mental;" "Saúde da Família;" "Atenção Primária à Saúde". Os critérios de inclusão foram estudos brasileiros de 2009 a 2012 que contribuíssem para a compressão da seguinte pergunta: "Como inserir os cuidados em Saúde Mental na rotina da Estratégia Saúde da Família?". Encontraram-se 11 artigos, que identificam dificuldades e estratégias dos profissionais na Atenção Básica com Saúde Mental. O encaminhamento e a medicalização foram práticas comuns. O Apoio Matricial é a estratégia de capacitação das equipes que permite novas abordagens em Saúde Mental no contexto da Atenção Básica. A Gestão deve ter papel ativo na construção de redes de cuidado em Saúde Mental.

Palavras-chave
Atenção Primária à Saúde; Saúde Mental; Saúde da Família

Introdução

Nas últimas décadas, tem-se notado no Brasil um aumento significativo da abrangência da Estratégia de Saúde da Família (ESF) na Atenção Básica (AB) e dos novos serviços substitutivos em Saúde Mental (SM), resultantes, respectivamente, dos processos de Reforma Sanitária e Psiquiátrica11. Dalla Vecchia MD, Martins STF. Desinstitucionalização dos cuidados a pessoas com transtornos mentais na atenção básica: aportes para a implementação de ações. Interface (Botucatu) 2009; 13(28):151-164.,22. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 648/GM, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União2006; 29 mar.. Ao mesmo tempo, a articulação entre SM e AB desperta crescente interesse científico, tendo em vista que os transtornos mentais representam uma parcela significativa da demanda da AB33. Fortes S, Lopes CS, Villano LAB, Campos MR, Gonçalves DA, Mari JJ. Transtornos mentais comuns em Petrópolis-RJ: um desafio para a integração da saúde mental com a estratégia de saúde da família. Rev Bras Psiquiatria 2011; 33(2):150-156..

Estimativas internacionais e do Ministério da Saúde do Brasil apontam que 3% da população necessitam de cuidados contínuos em SM devido a transtornos mentais graves e persistentes44. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção a Saúde. Saúde Mental e atenção básica: o vínculo e o dialogo necessários[Internet]. Brasília: MS; 2003 [acessado em 2015 abr 20]. Disponível em: http://portal. saude.gov/portal/arquivos/pdf/diretrizes.pdf
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. Outros 9% necessitam de atendimentos eventuais em função de problemas menores, como o Transtorno Mental Comum, que pode representar de um terço a 50% da demanda da AB33. Fortes S, Lopes CS, Villano LAB, Campos MR, Gonçalves DA, Mari JJ. Transtornos mentais comuns em Petrópolis-RJ: um desafio para a integração da saúde mental com a estratégia de saúde da família. Rev Bras Psiquiatria 2011; 33(2):150-156.,44. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção a Saúde. Saúde Mental e atenção básica: o vínculo e o dialogo necessários[Internet]. Brasília: MS; 2003 [acessado em 2015 abr 20]. Disponível em: http://portal. saude.gov/portal/arquivos/pdf/diretrizes.pdf
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. Somandose esta demanda aos problemas decorrentes de álcool e drogas, cuja necessidade de atendimento regular atingiria de 6 a 8% da população, podese ter uma ideia da amplitude do problema a ser enfrentado no cuidado em SM44. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção a Saúde. Saúde Mental e atenção básica: o vínculo e o dialogo necessários[Internet]. Brasília: MS; 2003 [acessado em 2015 abr 20]. Disponível em: http://portal. saude.gov/portal/arquivos/pdf/diretrizes.pdf
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Sabe-se que a demanda da SM na AB tem particularidades e complexidades que não podem ser solucionadas pelo saber clássico da Psiquiatria11. Dalla Vecchia MD, Martins STF. Desinstitucionalização dos cuidados a pessoas com transtornos mentais na atenção básica: aportes para a implementação de ações. Interface (Botucatu) 2009; 13(28):151-164., implicando em novas propostas de desinstitucionalização dos cuidados aos portadores de transtornos mentais: atenção em equipe multiprofissional, integralidade, responsabilização da equipe vinculada a uma comunidade, intersetorialidade e integração da rede do nível primário ao especializado55. Nunes M, Jucá VJ, Valentim CPB. Ações de saúde mental no programa saúde da família: confluências e dissonâncias das práticas com os princípios das reformas psiquiátrica e sanitária. Cad Saude Publica 2007; 23(10):2375-2384.. Assim, desde a década de 1970, a Organização Mundial da Saúde (OMS) vem apontando a amplitude da problemática em SM, preconizando a descentralização dos serviços, a integração de serviços psiquiátricos à AB e o aumento da participação comunitária66. World Health Organization (WHO). Mental health care in developing countries: a critical appraisal of research findings. Geneva: WHO; 1984..

Coerente com a recomendação da OMS, em vários países do mundo, a Reforma Psiquiátrica sedimentou-se sobre a desinstitucionalização dos portadores de transtornos mentais e a consolidação de bases territoriais do cuidado em SM através de redes que contemplam a AB55. Nunes M, Jucá VJ, Valentim CPB. Ações de saúde mental no programa saúde da família: confluências e dissonâncias das práticas com os princípios das reformas psiquiátrica e sanitária. Cad Saude Publica 2007; 23(10):2375-2384., partindo do pressuposto de que grande parte dos problemas em SM pode ser resolvido nesse nível de assistência, sem necessidade de encaminhamento aos níveis especializados77. World Health Organization (WHO). Organization of mental health services in developing countries. Geneva: WHO; 1975. (Sixteen report of WHO Expert Committee on Mental Health)..

Segundo a atual política de SM no Brasil, que norteia atualmente a Reforma Psiquiátrica, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são "dispositivos estratégicos para a organização da rede de atenção em SM"44. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção a Saúde. Saúde Mental e atenção básica: o vínculo e o dialogo necessários[Internet]. Brasília: MS; 2003 [acessado em 2015 abr 20]. Disponível em: http://portal. saude.gov/portal/arquivos/pdf/diretrizes.pdf
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, territorializados e capazes de resgatar as potencialidades dos serviços comunitários ao seu entorno, visando a reinserção social de seus usuários, podendo ser implantados em municípios a partir de 20.000 habitantes.

Embora os CAPS sejam considerados estratégicos, cada vez mais a atenção em SM tem sido compreendida como uma rede de cuidados que inclui a AB, as residências terapêuticas, os ambulatórios, os centros de convivência, os clubes de lazer, dentre outros recursos44. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção a Saúde. Saúde Mental e atenção básica: o vínculo e o dialogo necessários[Internet]. Brasília: MS; 2003 [acessado em 2015 abr 20]. Disponível em: http://portal. saude.gov/portal/arquivos/pdf/diretrizes.pdf
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. No entanto, depara-se com a queixa da falta de instrumentalização desses profissionais para intervir na SM, o que muitas vezes gera um encaminhamento precipitando desses pacientes para o CAPS88. Quinderé PHD, Jorge MSB, Nogueira MSL, Costa LFA, Vasconcelos MGF. Acessibilidade e resolubilidade da assistência em saúde mental: a experiência do apoio matricial. Cien Saude Colet 2013; 18(7):2157-2166.. Por isso, apesar do estímulo à territorialização e à articulação em redes ampliadas de serviços de SM, parece haver grande distância entre as diretrizes da Política de SM e o que se observa na realidade concreta55. Nunes M, Jucá VJ, Valentim CPB. Ações de saúde mental no programa saúde da família: confluências e dissonâncias das práticas com os princípios das reformas psiquiátrica e sanitária. Cad Saude Publica 2007; 23(10):2375-2384..

Então, para que as ações da SM sejam desenvolvidas na AB, é fundamental a capacitação destas equipes por meio de atividades permanentes de discussão de casos com equipes de SM, permitindo estratégias de cuidado que considerem as múltiplas determinações do processo saúdedoença e apoiem a superação do enquadramento medicalizante no cuidado à pessoa com transtornos mentais11. Dalla Vecchia MD, Martins STF. Desinstitucionalização dos cuidados a pessoas com transtornos mentais na atenção básica: aportes para a implementação de ações. Interface (Botucatu) 2009; 13(28):151-164.. A discussão em equipe de casos de SM permite conhecer dados anteriormente não percebidos e acolhidos, justamente por não existir o entendimento da importância dos mesmos por todos envolvidos no cuidado. Essa discussão em equipe, de certa forma, promove a integração dos serviços e consequentemente uma melhor resolutividade, pois é possível se concretizar um cuidado integral ao individuo portador de algum transtorno mental88. Quinderé PHD, Jorge MSB, Nogueira MSL, Costa LFA, Vasconcelos MGF. Acessibilidade e resolubilidade da assistência em saúde mental: a experiência do apoio matricial. Cien Saude Colet 2013; 18(7):2157-2166..

A aplicação do princípio da integralidade no cuidado em SM na AB pode ser viabilizada pelo modelo de Matriciamento ou Apoio Matricial (AM)99. Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad Saude Publica 2007; 23(2):399-407., entendido como um "modelo de integração de especialistas na atenção primária à saúde". O AM é um arranjo institucional que promove uma interlocução entre os equipamentos de saúde mental e as Unidades de Saúde, de modo a tornar horizontais os saberes e estes atuarem em todo o campo de trabalho das equipes1010. Cavalcante CM, Pinto DM, Carvalho AZT, Jorge MSB, Freitas CHA. Desafios do cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Rev Brasileira em Promoção da Saúde 2011; 24(2):102-108.. Trata-se de um dispositivo técnico-pedagógico importante para definir fluxos, qualificar as ESF, promover assistência conjunta e compartilhada. De acordo com este modelo, trabalhadores de diversas especialidades interagem com as equipes de referência da AB e desenvolvem ações tais como: consultoria técnico-pedagógica, atendimentos conjuntos, ações assistenciais específicas coletivas e, excepcionalmente, assistência individual1111. Tófoli LF, Fortes S. O apoio matricial de saúde mental na atenção primária no município de Sobral, CE: o relato de uma experiência. Sanare2007; 6(2):34-42..

Frente às necessidades em SM presentes na AB, é fundamental entender como as equipes da ESF podem oferecer cuidados de SM com a devida resolutividade. Assim, este estudo visa realizar revisão da literatura científica para compreender como a SM se insere atualmente nos cuidados oferecidos pela ESF.

Metodologia

Este estudo compõem-se de uma revisão de literatura científica, com pesquisa na Biblioteca Virtual de Saúde, que reúne as principais bases de dados em Ciências da Saúde, como Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde), SciELO (Scientific Electronic Library Online) e Medline (Medical Literature Analysis and Retrievel System Online), no período de 15 a 20 de julho de 2013, com os seguintes descritores combinados: Saúde Mental; Saúde da Família; Atenção Primária à Saúde.

Utilizaram-se como Critérios de Inclusão: estudos disponíveis em meio eletrônico, publicados no Brasil nos últimos 5 anos, de modo a contemplar a literatura científica mais recente sobre o assunto. Foram selecionados os artigos que, após sua leitura, pudessem dar contribuições à pergunta de pesquisa: "Como inserir os cuidados em Saúde Mental na rotina da Estratégia Saúde da Família?". Encontrou-se inicialmente 1.725 artigos. Ao se aplicar o critério de inclusão relativo ao país de publicação chegou-se a 72 artigos e aplicando o critério de inclusão de publicações referentes aos últimos 5 anos resultaram em 36 artigos. Após leitura criteriosa dos artigos na íntegra pelos dois autores e discussões sobre as possíveis contribuições de cada artigo à pergunta de estudo, selecionou-se 11 artigos que traziam achados e discussões que tratavam da rotina de SM na AB, publicados entre 2009 e 201133. Fortes S, Lopes CS, Villano LAB, Campos MR, Gonçalves DA, Mari JJ. Transtornos mentais comuns em Petrópolis-RJ: um desafio para a integração da saúde mental com a estratégia de saúde da família. Rev Bras Psiquiatria 2011; 33(2):150-156.,1010. Cavalcante CM, Pinto DM, Carvalho AZT, Jorge MSB, Freitas CHA. Desafios do cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Rev Brasileira em Promoção da Saúde 2011; 24(2):102-108.,1212. Camuri D, Dimenstein M. Processos de trabalho em saúde: práticas de cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Saúde Soc 2010; 19(4):803-813.2020. Sousa FSP, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Barros MMM, Quinderé PHD, Gondim LGF. Tecendo a rede assistencial em saúde mental com a ferramenta matricial. Physis Revista de Saúde Coletiva 2011; 21(4):1579-1599..

Resultados

Apresenta-se a seguir um quadro resumo com os onze artigos selecionados e seus principais resultados (Quadro 1).

Quadro 1
Estudos, Autores, Ano de Publicação, Tipo de Estudo e Principais Resultados.

Após a leitura dos artigos e análise de seus principais achados e discussões, identificou-se três aspectos principais, que perfizeram a temática conjunta dos onze artigos, conforme as sessões a seguir: a presença da SM na AB e ESF, as limitações da SM na AB e discussões sobre como potencializar as ações de SM na AB.

Saúde Mental na Atenção Básica e Estratégia de Saúde da Família

As comunidades em que a ESF se insere são áreas pobres, contando com poucos recursos comunitários e sociais, sendo comum a presença de drogas, violência e desemprego. Essas condições de exclusão se associam com problemas de SM1212. Camuri D, Dimenstein M. Processos de trabalho em saúde: práticas de cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Saúde Soc 2010; 19(4):803-813..

Assim, no cotidiano de atendimento da ESF há uma importante demanda em SM, mas as equipes nem sempre sabem como lidar com essa demanda1212. Camuri D, Dimenstein M. Processos de trabalho em saúde: práticas de cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Saúde Soc 2010; 19(4):803-813.,1313. Dalla Vecchia MD, Martins STF. Concepções dos cuidados em saúde mental por uma equipe de saúde da família, em perspectiva histórico-cultural. Cien Saude Colet 2009; 14(1):183-193. ou não encaram algumas de suas práticas cotidianas como ‘cuidado em SM’1010. Cavalcante CM, Pinto DM, Carvalho AZT, Jorge MSB, Freitas CHA. Desafios do cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Rev Brasileira em Promoção da Saúde 2011; 24(2):102-108.. Isto ocorre pela persistência do modelo biomédico e positivista na formação e atuação desses profissionais, fazendo-os sentir-se ‘incapacitados’ para aprender, se capacitar e atuar em SM na sua prática diária1010. Cavalcante CM, Pinto DM, Carvalho AZT, Jorge MSB, Freitas CHA. Desafios do cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Rev Brasileira em Promoção da Saúde 2011; 24(2):102-108..

Por outro lado, as equipes da ESF tem potencial para oferecer cuidados em SM, em especial devido ao vínculo que estabelecem com as famílias1414. Arce VAR, Sousa MF de, Lima MG. A práxis da Saúde Mental no Âmbito da Estratégia Saúde da Família: contribuições para a construção de um cuidado integrado. Physis Revista de Saúde Coletiva 2011; 21(2):541-560.. Para intervenções de promoção à SM, os Agentes Comunitário de Saúde têm papel estratégico na identificação de ofertas em potencial e em propiciar escuta e acolhimento de modo mais próximo à população1515. Campos RO, Gama CA, Ferrer AL, Santos DVD, Stefanello S, Trapé TL, Porto K. Saúde mental na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em uma grande cidade brasileira. Cien Saude Colet 2011; 16(12):46434652..

Observa-se assim uma necessidade dos profissionais da ESF assumirem um papel central no cuidado integral à SM, tornando as Unidades da ESF locais, não só de diagnóstico e encaminhamentos, mas com ofertas de cuidado em SM1414. Arce VAR, Sousa MF de, Lima MG. A práxis da Saúde Mental no Âmbito da Estratégia Saúde da Família: contribuições para a construção de um cuidado integrado. Physis Revista de Saúde Coletiva 2011; 21(2):541-560..

Principais Limitações da Saúde Mental na Atenção Básica

A SM é motivo de preocupação das equipes da ESF por se sentirem despreparados e com receio de lidarem com situações difíceis em SM, como tentativa de suicídio e episódios psicóticos1313. Dalla Vecchia MD, Martins STF. Concepções dos cuidados em saúde mental por uma equipe de saúde da família, em perspectiva histórico-cultural. Cien Saude Colet 2009; 14(1):183-193.. Isso ocorre porque o ‘cuidado em SM’ é focado na medicação e encaminhamentos para avaliação especializada1616. Dimenstein M, Severo AK, Brito M, Pimenta AL, Medeiros V, Bezerra E. O apoio matricial em unidades de saúde da família: experimentando inovações em saúde mental. Saúde Soc. 2009; 18(1):63-74.. Mesmo quando há a proposta de AM, muitos profissionais não têm clareza da proposta por não terem participado de sua construção. Com isso encaram a ampliação da oferta de cuidados em SM na AB como ‘acréscimo’ de trabalho e uma ‘não responsabilização’ da Atenção Especializada1010. Cavalcante CM, Pinto DM, Carvalho AZT, Jorge MSB, Freitas CHA. Desafios do cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Rev Brasileira em Promoção da Saúde 2011; 24(2):102-108.,1616. Dimenstein M, Severo AK, Brito M, Pimenta AL, Medeiros V, Bezerra E. O apoio matricial em unidades de saúde da família: experimentando inovações em saúde mental. Saúde Soc. 2009; 18(1):63-74..

Coerente com esse panorama, o cuidado em SM acaba sendo focado em ações intramuros (dentro das Unidades de Saúde), com abordagem psicológica (psicoterapia individual) ou psiquiátrica (especializada e focada na medicalização)1717. Silveira D P, Vieira ALS. Saúde mental e atenção básica em saúde: análise de uma experiência no nível local. Cien Saude Colet 2009; 14(1):139-148.. Instrumentos de cuidado em SM como o acolhimento e a escuta são pouco explorados pelas equipes da ESF, mantendo a lógica assistencialista e medicalizada1717. Silveira D P, Vieira ALS. Saúde mental e atenção básica em saúde: análise de uma experiência no nível local. Cien Saude Colet 2009; 14(1):139-148..

Além disso, outros pontos em relação ao processo de trabalho devem ser levados em conta. É necessário superar a rigidez e a formatação da gestão da ESF, que ocorre pela execução de programas prescritivos e frequentemente não contempla toda a complexidade dos cuidados em SM1818. Neves HG, Lucchese R, Munari DB. Saúde mental na atenção primária: necessária constituição de competências. Rev Bras Enferm 2010; 63(4):666-670.; lidar com a escassez de recursos humanos qualificados para o trabalho em saúde mental; e desburocratizar o processo de trabalho que tem dificultado a interação entre as equipes da SM e AB1717. Silveira D P, Vieira ALS. Saúde mental e atenção básica em saúde: análise de uma experiência no nível local. Cien Saude Colet 2009; 14(1):139-148..

Como potencializar: saúde mental x atenção básica

Há muitas possibilidades de cuidados em SM na AB. É necessário que a formação e a capacitação dos profissionais da AB superem o conhecimento técnico, que envolve diagnóstico e uso de medicações, e abranjam também habilidades de comunicação, capacidade de trabalhar num modelo ampliado de atenção e manejo de problemas psicossociais33. Fortes S, Lopes CS, Villano LAB, Campos MR, Gonçalves DA, Mari JJ. Transtornos mentais comuns em Petrópolis-RJ: um desafio para a integração da saúde mental com a estratégia de saúde da família. Rev Bras Psiquiatria 2011; 33(2):150-156.,1818. Neves HG, Lucchese R, Munari DB. Saúde mental na atenção primária: necessária constituição de competências. Rev Bras Enferm 2010; 63(4):666-670.. Essas ações por si só já fortalecem o acolhimento e o vínculo, trazendo benefícios na SM.

Diversas intervenções psicossociais podem ser realizadas1010. Cavalcante CM, Pinto DM, Carvalho AZT, Jorge MSB, Freitas CHA. Desafios do cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Rev Brasileira em Promoção da Saúde 2011; 24(2):102-108., como o uso do relacionamento terapêutico, em que o profissional utiliza a si mesmo e técnicas clínicas para estimular a introversão e mudanças comportamentais; e a Terapia Comunitária, que é uma forma de atuação em espaço público em que há uma resignificação das relações, eliminando as hierarquias, e todos os participantes têm vez e voz, se expõem como pessoas e reafirmam suas identidades, tendo como resultado a construção e o fortalecimento de relações, onde se reconhece e se respeita a legitimidade de visão de mundo dos outros. Também acontecem os grupos terapêuticos, em que a relação com o coletivo é terapêutica e, através do compartilhamento de ideias e sentimentos, emerge um tratamento individual de cada membro na presença dos demais1010. Cavalcante CM, Pinto DM, Carvalho AZT, Jorge MSB, Freitas CHA. Desafios do cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Rev Brasileira em Promoção da Saúde 2011; 24(2):102-108..

Para o desenvolvimento dessas habilidades fundamentais nos profissionais das equipes de ESF é importante a presença de profissionais da SM na AB1919. Delfini PSS, Sato MT, Antoneli PP, Guimarães POS. Parceria entre CAPS e PSF: o desafio da construção de um novo saber. Cien Saude Colet 2009; 14(Supl. 1):1483-1492.. No entanto, não é suficiente inserir profissionais de SM na AB e planejar ações de supervisão às equipes da ESF. É necessário que esses profissionais sejam capacitados para detectar problemas de SM no território e proponham formas de intervenção adequadas, e criem cooperação e coordenação entre a AB e o cuidado especializado1212. Camuri D, Dimenstein M. Processos de trabalho em saúde: práticas de cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Saúde Soc 2010; 19(4):803-813.,1818. Neves HG, Lucchese R, Munari DB. Saúde mental na atenção primária: necessária constituição de competências. Rev Bras Enferm 2010; 63(4):666-670.. Isso ocorre com o AM, que é discutido em sete dos onze artigos como a principal estratégia para desenvolver habilidades e permitir novas abordagens em SM na AB1010. Cavalcante CM, Pinto DM, Carvalho AZT, Jorge MSB, Freitas CHA. Desafios do cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Rev Brasileira em Promoção da Saúde 2011; 24(2):102-108.,1212. Camuri D, Dimenstein M. Processos de trabalho em saúde: práticas de cuidado em saúde mental na estratégia saúde da família. Saúde Soc 2010; 19(4):803-813.,1515. Campos RO, Gama CA, Ferrer AL, Santos DVD, Stefanello S, Trapé TL, Porto K. Saúde mental na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em uma grande cidade brasileira. Cien Saude Colet 2011; 16(12):46434652.,1616. Dimenstein M, Severo AK, Brito M, Pimenta AL, Medeiros V, Bezerra E. O apoio matricial em unidades de saúde da família: experimentando inovações em saúde mental. Saúde Soc. 2009; 18(1):63-74.,1818. Neves HG, Lucchese R, Munari DB. Saúde mental na atenção primária: necessária constituição de competências. Rev Bras Enferm 2010; 63(4):666-670.2020. Sousa FSP, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Barros MMM, Quinderé PHD, Gondim LGF. Tecendo a rede assistencial em saúde mental com a ferramenta matricial. Physis Revista de Saúde Coletiva 2011; 21(4):1579-1599..

O AM permite "ampliar o poder resolutivo local, alterar a lógica compartimentalizada de referência/contrarreferência, pensar ações intersetoriais ampliadas, promover projetos terapêuticos em parceria e corresponsabilizar as outras instituições pertinentes no processo de atenção à SM"1515. Campos RO, Gama CA, Ferrer AL, Santos DVD, Stefanello S, Trapé TL, Porto K. Saúde mental na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em uma grande cidade brasileira. Cien Saude Colet 2011; 16(12):46434652.. Isso mobiliza diversos atores (médicos, enfermeiros, agentes comunitários, assistentes sociais, entre outros) para lidar com o andamento dos casos discutidos, propiciando uma ampla variedade de estratégias, enriquecendo e viabilizando a articulação de redes de cuidado33. Fortes S, Lopes CS, Villano LAB, Campos MR, Gonçalves DA, Mari JJ. Transtornos mentais comuns em Petrópolis-RJ: um desafio para a integração da saúde mental com a estratégia de saúde da família. Rev Bras Psiquiatria 2011; 33(2):150-156.,2020. Sousa FSP, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Barros MMM, Quinderé PHD, Gondim LGF. Tecendo a rede assistencial em saúde mental com a ferramenta matricial. Physis Revista de Saúde Coletiva 2011; 21(4):1579-1599..

Desse modo, o AM permite um processo compartilhado de construção do cuidado, permitindo uma aproximação do especializado com a AB e reforçando que a resolução de problemas de SM não acontece necessariamente com este, mas através de uma característica fundamental da ESF: a integralidade1616. Dimenstein M, Severo AK, Brito M, Pimenta AL, Medeiros V, Bezerra E. O apoio matricial em unidades de saúde da família: experimentando inovações em saúde mental. Saúde Soc. 2009; 18(1):63-74..

A prática do AM junto às equipes de SF ocorre através de reuniões e visitas domiciliares. Nas reuniões, as equipes da ESF e de SM discutem conjuntamente casos, há troca de experiências e acolhem-se angústias e dificuldades dos profissionais da ESF. Há um estímulo à corresponsabilização e à decisão conjunta de quando encaminhar ao nível especializado. Nesses momentos, percebe-se que a construção conjunta de estratégias é essencial ao cuidado, além de permitir capacitação horizontal, com discussões de casos que levam a reflexões teóricas e práticas.

As visitas domiciliares são realizadas em situações de maior vulnerabilidade, de crise, quando há risco de internação psiquiátrica, conflitos familiares, sofrimento psíquico intenso e casos que não chegam aos serviços de SM, como ameaças, violência e aprisionamento. As visitas conjuntas, com participação de profissionais de ambas as equipes, podem fazer parte do projeto terapêutico, com discussão e aprendizado, além de valorizar o papel estratégico dos Agentes Comunitários de Saúde pelo vínculo e cuidado com as famílias1919. Delfini PSS, Sato MT, Antoneli PP, Guimarães POS. Parceria entre CAPS e PSF: o desafio da construção de um novo saber. Cien Saude Colet 2009; 14(Supl. 1):1483-1492..

No entanto, para efetivo funcionamento e resolução em SM pela AB é necessária, além do AM, a existência de Redes de Serviços em SM, formada por diversos dispositivos substitutivos à lógica manicomial (CAPS, ambulatórios especializados e residências terapêuticas, por exemplo), bem como a articulação com dispositivos das diversas áreas, como justiça, cultura, entre outros, contemplando ações intersetoriais2020. Sousa FSP, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, Barros MMM, Quinderé PHD, Gondim LGF. Tecendo a rede assistencial em saúde mental com a ferramenta matricial. Physis Revista de Saúde Coletiva 2011; 21(4):1579-1599..

Finalmente, não basta somente as equipes de saúde desejarem se capacitar, mas é importante que haja preocupação da Gestão em saúde em viabilizar e incentivar esse processo. No contexto geral, devem aplicar e fortalecer Políticas Públicas de SM, que incluem: o compromisso dos gestores com a expansão da SM na AB; a criação de diretrizes para as ações de SM; a promoção de condições para implantação da SM por meio de contratação de especialistas para o AM, bem como qualificar esse apoio para integrar a rede; articulação de políticas intersetoriais para atuar nos determinantes sociais do processo saúdedoença; promover o cuidado em rede, compartilhando o saber sobre psicotrópicos evitando a medicalização desnecessária; e incentivar a formação de especialistas em SM que saibam corresponsabilizar e favoreçam a participação do portador de transtorno mental na escolha do tratamento e terapêutica1515. Campos RO, Gama CA, Ferrer AL, Santos DVD, Stefanello S, Trapé TL, Porto K. Saúde mental na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em uma grande cidade brasileira. Cien Saude Colet 2011; 16(12):46434652..

Considerações Finais

Na atualidade, problemas relacionados com a SM estão presentes e representam uma parcela expressiva da demanda na AB. Apesar disso, as equipes da ESF nem sempre se sentem capazes de lidar com a demanda de SM ou se focam em ações que perpetuam a lógica centrada no cuidado médico especializado e na terapêutica medicamentosa. Por outro lado, a AB, por meio das equipes da ESF, tem plenas condições de desenvolver e ofertar cuidados integrais em SM para os indivíduos e famílias sob sua responsabilidade.

Considerando esse potencial de cuidado em SM na AB, a literatura apresenta o AM como ferramenta adequada para capacitar as ESF. Permite a inserção de profissionais de SM na AB numa proposta de trabalho conjunto, primando pela educação e integralidade no cuidado em SM, envolvendo profissionais da ESF, da SM, usuários, comunidade e gestores. Desse modo, é importante a persistência em implantar e aprimorar esse modelo de AM para abordar os problemas em SM na AB, tendo em vista seu potencial de resolução, contribuindo para um uso mais racional de todo o sistema de saúde.

Esse esforço é parte das ações necessárias para organizar a rede de cuidados em SM. Essa rede deve se estruturar a partir da AB e incluir diversas técnicas, em especial um melhor uso da comunicação, do vínculo, do acolhimento e de práticas integrativas e coletivas. Apesar de ser tarefa difícil, há evidências do potencial desse arranjo, com experiências que demonstram resultados positivos para as equipes de saúde e comunidades envolvidas. A gestão tem papel fundamental por incentivar e dar apoio no estabelecimento e fortalecimento um novo modelo de cuidados em SM na AB. Avaliações e pesquisas periódicas dos resultados alcançados com o AM na AB são essenciais para a ampliação e integralidade das ações em SM no Brasil.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2014
  • Revisado
    15 Maio 2015
  • Aceito
    17 Maio 2015
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