Acesso aos serviços de atenção em álcool, crack e outras drogas – o caso do município do rio de Janeiro, Brasil

José Mendes Ribeiro Marcelo Rasga Moreira Francisco I. Bastos Aline Inglez-Dias Fernando Manuel Bessa Fernandes Sobre os autores

Resumo

A reforma psiquiátrica enfatizou garantias individuais, restrições a internações involuntárias, desincentivo a internações psiquiátricas e formação de redes comunitárias de atenção. A diversificação de clientelas e as normativas do Ministério da Saúde se adaptaram às necessidades de suporte aos indivíduos e familiares e às demandas decorrentes crescentes da agenda de atenção aos usuários de drogas. A escassez de serviços públicos comunitários favoreceu a difusão de serviços com práticas clinicamente não padronizadas e o debate sobre internações involuntárias. Analisamos a oferta de serviços de atenção em álcool, crack e outras drogas no município do Rio de Janeiro e observamos barreiras de acesso para serviços públicos especializados e de caráter comunitário de 24 horas e escassez de psiquiatras nas equipes multiprofissionais. Há uma difusão experimental de serviços privados, religiosos ou não, e de abrigos públicos, em resposta às novas demandas. O processo observado configura uma trajetória de experimentalismo na política setorial e são efetuadas recomendações sobre políticas governamentais.

Palavras-chave
Saúde mental; Políticas de saúde; Álcool e drogas

Introdução

As políticas de saúde mental expressam a influência contínua da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) e o alinhamento às experiências internacionais de crítica radical ao modelo asilar e aos grandes manicômios. A RPB lançou foco sobre as mazelas das hospitalizações psiquiátricas, se associou às mudanças no conjunto do sistema sanitário e se consolidou em 1987, em torno da luta antimanicomial11. Amarante P. Novos sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma psiquiátrica. Cad Saude Publica 1995; 11(3):491-494.. Experiências locais e inovadoras legitimaram as alternativas de substituição da atenção hospitalar pela comunitária e a RPB evoluiu como movimento político, em sinergia com a transição democrática e a Reforma Sanitária. As inovações introduzidas têm sido amplamente analisadas quanto à montagem de uma rede comunitária de serviços22. Costa NR. Reforma psiquiátrica, federalismo e descentralização da saúde pública no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(12):4603-4614.. A mudança na ênfase nas internações psiquiátricas em prol de uma atenção de base comunitária fundada na experiência italiana foi impulsionada a partir da Declaração de Caracas, em 1990, e se disseminou no Brasil33. Alves DSN, Silva PRF, Costa NR. Êxitos e desafios da reforma psiquiátrica no Brasil, 22 anos após a declaração de Caracas. Medwave 2012; 12(10):e5545.. Por outro lado, limites ao desenvolvimento dos serviços comunitários em função de sua dependência às dinâmicas do Sistema Único de Saúde (SUS), do padrão de financiamento e das restrições de oferta de serviços têm sido assinalados44. Ribeiro JM, Inglez-Dias A. Políticas e inovação em atenção a saúde mental: limites ao descolamento do desempenho do SUS. Cien Saude Colet 2011; 16(12):4623-4633..

A Lei 10.216 (Lei Paulo Delgado), de 2001, representa o marco legal da Reforma e, além da garantia de direitos individuais e restrições a internações involuntárias, reforçou as diretrizes preconizadas pelo SUS quanto à universalidade de acesso e ao direito à assistência aos usuários de serviços de saúde mental. Como consequência, houve diversificação de clientelas atendidas e reforço a orientações comunitárias. Políticas recentes têm dado destaque aos serviços voltados para a atenção aos usuários de drogas e para crianças e adolescentes portadores de transtornos mentais. Este processo, impulsionado por incentivos financeiros e indução política pelo Ministério da Saúde (MS), resultou na progressiva expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e em mecanismos de suporte social e financeiro a pacientes e familiares. Observamos que a atenção aos usuários de drogas, embora objeto de atos normativos do MS desde o início da década de 2000, surgiu de modo mais intenso na agenda da RPB a partir de 2010, quando a regulamentação destas políticas se intensificou, culminando na elaboração, pelo Governo Federal, do “Plano Integrado de Enfrentamento do Crack e outras Drogas”55. Brasil. Decreto n° 7.179, de 20 de maio de 2010. Institui o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, cria o seu Comitê Gestor, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2010; 21 maio.. A relevância do tema se manteve elevada e diversos Projetos de Lei de caráter conflitante vêm tramitando no Congresso Nacional. O impacto do problema do crack é percebido, por exemplo, por estudo realizado em 2012 sobre usuários que interagem com as cenas abertas de crack e que mostrou, além de uma distribuição do uso de caráter nacional e disseminado entre capitais e não capitais, um perfil majoritário de adultos jovens, do sexo masculino e de baixa escolaridade e que associam fortemente o consumo do crack nestas cenas ao de álcool e de outras drogas66. Bastos FI, Bertoni N, organizadores. Pesquisa Nacional sobre o uso de crack. Rio de Janeiro: Ed. ICICT/Fiocruz; 2014..

A emergência desta agenda tem sido acompanhada da diversificação dos serviços disponíveis, desvinculados dos protocolos preconizados pelo MS. Uma rede filantrópica difusa, com foco nas Comunidades Terapêuticas (CT), tem se disseminado, apesar da ausência de protocolos clínicos apresentados por estas instituições. A expansão de tais serviços e o financiamento governamental oferecido podem gerar insatisfações entre especialistas e dirigentes mais diretamente vinculados à RPB. Além disso, outros setores governamentais também têm sido convocados a preencher o espaço antes preconizado à saúde, em resposta à demanda por tratamento e suporte aos usuários de drogas. Tal fato é ilustrado pelo surgimento de novos centros e abrigos de assistência social.

Este quadro caracteriza um experimentalismo político baseado em inovações muitas vezes não testadas e na entrada e saída de propostas governamentais na agenda política, tais como: (i) credenciamento de comunidades terapêuticas no SUS e na assistência social; (ii) debate sobre internações voluntárias, involuntárias e compulsórias; (iii) financiamento governamental a serviços orientados a este amplo leque de indivíduos; e (iv) disseminação de abrigos e serviços governamentais similares na área da assistência social.

Em particular, a emergência da agenda de álcool, crack e outras drogas, em ambiente de escassez de serviços públicos ambulatoriais orientados aos dependentes graves, traz à tona questões relacionadas ao controle sobre internações psiquiátricas involuntárias e afeta objetivos primários da RPB. A multiplicação difusa de serviços dissociados das boas práticas de atenção em saúde mental pode ser decorrente, em parte, da citada escassez de serviços consonantes aos padrões da RPB.

O objetivo deste artigo é analisar as políticas governamentais de atenção em saúde mental, álcool e outras drogas (SMAD), segundo os efeitos do fortalecimento da agenda de atenção aos usuários de drogas. Para esta análise, consideramos que a progressiva diferenciação na oferta de serviços sociais e de saúde representa um processo adaptativo a esta demanda e promove conflitos normativos com a agenda convencional da RPB.

Em termos metodológicos, realizamos um estudo de caso sobre o município do Rio de Janeiro que permitiu a análise da configuração dos serviços públicos de saúde e de assistência social. Como objetivo secundário, analisamos a capacidade de cobertura de atenção em saúde mental em resposta à emergência da agenda de álcool e outras drogas. Os dados aqui analisados buscam responder, por meio da disponibilidade de profissionais especializados, sobre a capacidade do sistema público de prover serviços à população. Não foram tecidas considerações acerca da qualidade dessa rede.

A grande concentração de serviços públicos na área de saúde e de assistência social, neste município, associada às diferentes iniciativas de caráter experimental recentemente observadas, permite a análise dos processos mais gerais associados à política de saúde mental. Como base teórica, utilizamos categorias usuais do incrementalismo, delineadas adiante, tais como inovação e experimentalismo. Os procedimentos metodológicos envolveram principalmente a pesquisa documental e a consulta às bases administrativas do MS. A experiência dos autores nesta área e consultas a dirigentes, em caráter exploratório, auxiliaram a compor o quadro analítico aqui desenvolvido.

Aspectos recentes das políticas de atenção em saúde mental, álcool e drogas

Como visto, a RPB foi influenciada pela experiência italiana e a desospitalização e a formação de redes comunitárias foram paradigmáticas para as soluções aqui preconizadas. Características específicas das redes organizadas na Itália são importantes, tais como os parâmetros de cobertura de serviços. Girolamo et al.77. Girolamo G, Bassi M, Neri G, Ruggeri M, Santone G, Picardi A. The current state of mental health care in Italy: problems, perspectives, and lessons to learn. Eur Arch Psychiatry Clin Neurosci 2007; 257(2):83-91. destacam que a psiquiatria italiana revisou seu sistema a partir de 1978, com o fechamento gradual de todos os hospitais psiquiátricos. Uma rede nacional oferece cuidados hospitalares e extra-hospitalares, mas também gerencia serviços residenciais (2,9 leitos por 10.000 habitantes) e semirresidenciais. O cuidado hospitalar é prestado por meio de unidades psiquiátricas de pequeno porte (não mais que 15 leitos). Considerando a oferta pública e privada, o número de leitos para casos agudos é de 1,7 por 10.000 habitantes.

A Organização Mundial de Saúde88. World Health Organization (WHO). Mental health action plan 2013-2020. Geneva: WHO; 2013. destaca que o número de profissionais de saúde trabalhando com saúde mental em países de renda média e baixa é insuficiente. Quase metade da população mundial vive em países onde, em média, existe apenas um psiquiatra para atender 200.000 pessoas ou mais. Outros profissionais de saúde mental treinados no uso de intervenções psicossociais são ainda mais escassos. Esta escassez de profissionais reflete no acesso aos serviços.

A atenção em álcool e outras drogas foi analisada em conjunto com as políticas de atenção em saúde mental em geral, na medida que as normativas governamentais, os aspectos regulatórios e a rede preconizada de serviços se encontram sob o mesmo foco administrativo. A especificidade da atenção aos usuários de drogas foi aqui tratada pelos seus efeitos em termos de demanda ampliada aos serviços públicos e na difusão de tratamentos baseados em asilamento e internações de longa permanência.

Quanto às drogas ilícitas, segundo o World Drug Report99. United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). World Drug Report 2012. Viena: UNODC; 2012. na América Latina e Caribe estimase que ao menos 5,7 milhões de pessoas tenham sido afetadas por transtornos relacionados ao uso de drogas em algum momento de suas vidas. No Brasil, um estudo1010. Schmidt MI, Duncan BB, Azevedo e Silva G, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM, Chor D, Menezes PR. Doenças Crônicas não Transmissíveis no Brasil: Carga e Desafios Atuais. Saúde no Brasil 2011; 4(5):61-74. concluiu que a maior parte da carga originada de transtornos neuropsiquiátricos é devido à depressão, às psicoses e aos transtornos relacionados ao consumo de álcool. O consumo de crack no Brasil teve início no final dos anos 1980, em São Paulo e, em conjunto com a cocaína, passou a predominar no consumo de drogas em geral. Em meados da década seguinte, passou a incluir a afluência de crianças aos círculos de sociabilidade1111. Raupp L, Adorno RCF. Circuitos de uso de crack na região central da cidade de São Paulo (SP, Brasil). Cien Saude Colet 2011; 16(5):2613-2622. no que pode ser definido como cenas urbanas de consumo de crack. A associação entre consumo de drogas, violência e vulnerabilidade social tem sido analisada há longa data na literatura nacional especializada1212. Neto OC, Moreira MR, Sucena LFM. Nem soldados, nem inocentes: juventude e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2001. e os arranjos sociais observados expressam desafios para as políticas de saúde e de proteção social.

Em termos de oferta de serviços públicos, o MS1313. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde Mental em Dados - 10. 2012. [acessado 2014 set 04]. Disponível em: http://www.saude.gov.br/bvs/saudemental
http://www.saude.gov.br/bvs/saudemental...
assinala uma expansão de serviços não hospitalares ao longo da última década e cobertura nacional de CAPS para 2012 de 72% da população, segundo seus parâmetros (1/100.000 habitantes). No entanto, para a atenção aos casos graves, em 2011, existiam apenas 68 serviços especializados na forma de CAPS III. Outras modalidades de suporte ao processo de desospitalização, como as Residências Terapêuticas, atendiam a 3.470 moradores e, em 2010, foram registrados 92 Consultórios de Rua em todo o país. Especialistas têm assinalado que a baixa oferta de serviços comunitários 24 horas, além do predomínio dos leitos em hospitais psiquiátricos em detrimento dos hospitais gerais, entram em contradição com o modelo antimanicomial de experiências bemsucedidas como na Itália33. Alves DSN, Silva PRF, Costa NR. Êxitos e desafios da reforma psiquiátrica no Brasil, 22 anos após a declaração de Caracas. Medwave 2012; 12(10):e5545.,77. Girolamo G, Bassi M, Neri G, Ruggeri M, Santone G, Picardi A. The current state of mental health care in Italy: problems, perspectives, and lessons to learn. Eur Arch Psychiatry Clin Neurosci 2007; 257(2):83-91..

Em relação ao tratamento da dependência, o sucesso parece depender do controle do comportamento compulsivo, nos ciclos de uso ou nos de abstinência1414. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo AS. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1168-1175.. Não há evidências de fármacos eficientes no controle da dependência e terapias não farmacológicas têm sido experimentadas em casos agudos1515. Balbinot AD, Alves GSL, Amaral Junior AF, Araujo RB. Associação entre fssura e perfil antropométrico em dependentes de crack. J Bras Psiquiatr 2011; 60(3):205-9., o que pode favorecer soluções baseadas em internações de longa permanência e no encaminhamento a CT1616. Kessler F, Pechansky F. Uma visão psiquiátrica sobre o fenômeno do crack na atualidade. Rev Psiquiatr RS 2008; 30(2):96-98.. Além disso, no caso específico do consumo de crack, suas características de cenas de rua afetam os modos tradicionais de abordagem terapêutica1717. Veloso Filho CL. Cenas de uso de crack no município do Rio de Janeiro - perfil em 2011/2012 [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013.. Estas mudanças com relação ao uso de drogas e a rapidez com que o tema do crack se instalou na agenda política setorial brasileira têm exercido forte pressão sobre os serviços. A emissão de normativas pelo MS para a atenção em saúde mental reflete este cenário.

O processo regulatório sequencial e aditivo expresso pelas diversas portarias, decretos e leis é definido como de caráter incremental. Isto segue a tradição em estudos de políticas iniciada por Lindblom1818. Lindblom CE. The science of muddling through. Public Administration Review 1959; 19(2):79-88., ao analisar processos decisórios no poder legislativo e destacar o desenvolvimento de políticas por meio de escolhas entre propostas semelhantes e com diferenças na margem, porém, de tendência incremental. Nas reformas do setor saúde, este é o processo que predomina quando não estão em jogo processos de reformas profundas conhecidas como big-bang, conforme a clássica definição de Klein1919. Klein R. The new politics of the NHS. 3ª ed. Essex: Longman Group; 1995..

As políticas de redução de danos, muitas vezes mencionadas em documentos oficiais, têm seu possível alcance afetado por restrições legais ao uso de drogas substitutivas. As características desta agenda têm sido discutidas a partir da experiência internacional e quanto aos seus efeitos para o caso brasileiro2020. Inglez-Dias A, Ribeiro JM, Bastos FI, Page K. Políticas de redução de danos no Brasil: contribuições de um programa norte-americano. Cien Saude Colet 2014; 19(1):147-157.. A criação do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), em 2006, com ênfase em ações intersetoriais, foi seguida pela Lei 6.117, de 2007, que organizou um arcabouço abrangente de política orientada ao uso de drogas sob o comando do Ministério da Justiça e tratou do conjunto formado por consumo, violência e criminalidade. Em 2010, o Governo Federal elaborou o citado Plano Crack, consolidando a agenda de álcool e outras drogas no centro da política setorial.

A partir de 2011, observamos uma preocupação direta com os dispositivos de atenção comunitária. Refletiu a disposição dos especialistas e dirigentes da área de saúde mental em reafirmar a excelência do modelo CAPS e a necessidade de sua expansão mais acelerada. Buscou-se associar estas políticas à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), conferindo cada vez mais prioridade ao tema do crack, álcool e outras drogas no SUS. Casas de Acolhimento Transitório e Unidades de Acolhimento para usuários de crack e outras drogas foram criadas como serviços residenciais. Nesta mesma direção, a formação de Equipes de Consultório de Rua foi orientada para a atenção à flutuante população em situação de rua usuária de crack e outras drogas.

Como assinalado, o objetivo deste estudo é analisar as políticas de saúde mental em resposta à crescente importância da agenda de álcool e outras drogas. A proposta das últimas normativas do Ministério da Saúde na definição da RAPS, que envolve os serviços de atenção primária associados a serviços hospitalares, ilustra este processo adaptativo. Não dispomos de estudos independentes que respondam de modo definitivo à questão do equilíbrio entre oferta e demanda e que dimensionem a possível escassez aqui considerada. No entanto, a resposta governamental de caráter emergencial à dependência de drogas, o número elevado de internações em hospitais psiquiátricos, a escassez de serviços comunitários resolutivos e a proliferação de serviços fora da rede formal de saúde são fortes indícios de escassez sistêmica.

O caso do município do Rio de Janeiro

Segundo dados do Censo Demográfico de 20102121. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico de 2010. Rio de Janeiro: IBGE; 2010., o município tem um total de 6.320.446 habitantes. O seu Índice de Desenvolvimento Humano em 2011 foi de 0,799 e equivale ao 45° do país e ao 9° dentre as capitais. Como ex-capital do país mantém um grande número de instituições federais de saúde. Quanto ao consumo de drogas, a cidade apresenta grandes cenas urbanas de consumo de crack. Observamos também, neste município, importantes conflitos em termos de enfoques, soluções, experimentos sociais e debates públicos envolvendo a questão do uso de drogas.

Analisamos a configuração, no Rio de Janeiro, dos serviços de saúde, de assistência social e aqueles à margem dos sistemas públicos formais, em termos de atenção em SMAD. A redução de internações psiquiátricas, assim como a montagem de uma rede de atenção comunitária foram implementadas no município. A Tabela 1 mostra a evolução das internações psiquiátricas no município, com uma redução na oferta de leitos psiquiátricos no setor público de 1992 (quando mostrou predomínio sobre as demais especialidades) a 2012. A participação de leitos psiquiátricos sobre o total de leitos do SUS caiu de 21% (1992) para 8% (2012). Como se observa, houve uma redução geral na oferta de leitos do SUS no período para o conjunto das especialidades em um quadro de racionamento de oferta2222. Ribeiro JM. Desenvolvimento do SUS e racionamento de serviços hospitalares. Cien Saude Colet 2009; 14(3):771-782.. Entretanto, medida pelo total de AIH pagas pelo SUS, a intensidade desta redução é superior à redução total de leitos do SUS no país. No caso da saúde mental, a redução contínua de internação – de 97.598, em 1992, para 20.404, em 2012 – reflete um efeito conjugado entre as orientações gerais RPB, em termos de desospitalização e uma importante série de programas inovadores desenvolvidos pelo MS como incentivo à atenção comunitária.

Tabela 1
Internações Hospitalares do SUS (AIH pagas) segundo especialidades no Município do Rio de Janeiro, 1992-2012.

A desospitalização psiquiátrica (ao contrário de outras especialidades) converge com os objetivos da política, embora os recursos substitutivos não pareçam desenvolvidos na mesma proporção. O regime de hospital-dia é residual e as Residências Terapêuticas (RT) ainda estão vinculadas a poucos hospitais. Os serviços comunitários concentram a responsabilidade clínica e social em termos de atenção em saúde mental. As novas demandas sobre o sistema, frutos de crescimento populacional e emergência da agenda de álcool, crack e outras drogas, somadas ao acolhimento dos casos de desospitalização, pressionam os CAPS. A escassez destes serviços, em especial dos CAPS III, favorece a absorção destas demandas por serviços à margem dos sistemas formais de atenção, como tratado na Tabela 1.

Segundo dados do MS1414. Chaves TV, Sanchez ZM, Ribeiro LA, Nappo AS. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1168-1175., a cobertura de CAPS no estado do Rio de Janeiro em 2011 foi de 59% (abaixo da média nacional de 72%), com apenas um CAPS III e um CAPS ad III habilitados. As RT, orientadas a indivíduos com alta dos hospitais especializados, em todo o Estado somaram 106 unidades com 593 moradores. Representa uma escala reduzida para as dimensões de desospitalização observadas. Em termos de Consultórios de Rua, existiam apenas oito em todo o Estado, dentre os 92 existentes no país.

Para identificar de modo mais abrangente os serviços públicos em saúde mental, disponíveis no município do Rio de Janeiro, utilizamos as horas contratadas informadas de psiquiatras como indicativo da disponibilidade potencial. Tal informação não assegura que estes profissionais atuem em plena capacidade, daí o caráter potencial dos dados apurados. Esta identificação foi efetuada a partir do Cadastro Nacional de Estabelecimento em Saúde (CNES), uma vez que este banco de dados representa o registro oficial de todos os estabelecimentos em saúde no país. Na prática, há maior fluxo de informações dos estabelecimentos prestadores do SUS do que no setor privado não prestador.

Como critério de seleção dos estabelecimentos utilizamos a presença de pelo menos um médico psiquiatra registrado e excluímos os consultórios médicos isolados. O potencial de atendimento aqui identificado foi mais abrangente do que o preconizado nas portarias do MS sobre a RAPS. Isto ocorre porque a seleção baseada na presença de psiquiatras agrega dados de serviços não identificados formalmente na RAPS. Assim, os recursos profissionais disponíveis têm o caráter de potencial máximo de disponibilidade de profissionais. Por outro lado, o viés decorrente deste tipo de seleção é inevitável, na medida em que não existia o registro formal da conformação da RAPS no município do Rio de Janeiro.

No entanto, cabem algumas ressalvas a este tipo de procedimento. Uma delas diz respeito a estabelecimentos que utilizam pessoal capacitado em saúde mental, porém sem a presença de um médico psiquiatra. É evidente, a partir da RPB e dos atos normativos do MS, que existe um incentivo às equipes multiprofissionais e interdisciplinares na atenção em saúde mental na atenção básica e nos CAPS. Também existem incentivos à vinculação do trabalho dos psiquiatras e dos psicólogos à dinâmica destas equipes. A escolha pelo rastreamento dos estabelecimentos a partir dos médicos psiquiatras decorre do seu papel essencial em termos de diagnóstico, prescrição de medicamentos e status para designar transferências e internações. A literatura especializada2323. Wang PS, Lane M, Olfson M, Pincus HA, Wells KB, Kessler RC. Twelve-Month Use of Mental Health Services in the United States. Arch Gen Psychiatry 2005; 62(6):629-640. destaca que o tratamento adequado em saúde mental deve combinar farmacoterapia aos recursos de psicoterapia, o que torna imprescindível a presença do médico psiquiatra nos serviços de saúde mental de maior complexidade. Desta forma, o nosso critério de seleção não conflita com os fundamentos interdisciplinares da política.

O rastreamento realizado segundo estes critérios revelou a existência de um total de 171 estabelecimentos no município do Rio de Janeiro, para o mês de maio de 2013. Destes, 109 (63,7%) são prestadores exclusivos do SUS e 10 (5,9%) combinam o atendimento ao SUS e a clientela privada. Os restantes 52 serviços (30,4%) atendem exclusivamente à clientela privada. O atendimento de caráter exclusivamente ambulatorial ocorre em 95 serviços (55,6%) e, em outros 69 (40,4%), há o atendimento combinado ao de urgências e de internações. Restam 7 serviços (4,1%) exclusivamente orientados à internação.

Na Tabela 2, os serviços estão classificados segundo o tipo de atendimento prestado. Independente do atendimento ou não ao SUS, a maior parte dos psiquiatras atende em hospitais. Os dados mostram que o grupo formado pelos hospitais gerais e os especializados concentra 40,9% dos serviços, 70,4% dos psiquiatras e 74,0% das suas horas semanais contratadas. Os CAPS foram responsáveis por apenas 7,8% das horas contratadas. Além disso, os Centros de Atenção Psicossocial em Álcool e Drogas (CAPS-AD) representam apenas uma pequena parcela dos 25 dos aqui contabilizados. Há também outros serviços (disponíveis ou não à clientela do SUS) de atenção ambulatorial que dispõem de psiquiatras, como centros de saúde, unidades básicas, policlínicas e centros de especialidades, mas que respondem por apenas 18,2% desta oferta.

Tabela 2
Totais de serviços, de psiquiatras e de horas semanais contratadas segundo tipo de serviço, Município do Rio de Janeiro, 2013.

Cabe aqui uma ressalva importante. Os atos normativos do MS, como dito, tratam da participação de psicólogos e de outros profissionais de saúde no atendimento como um atributo positivo do modelo multiprofissional. A própria escassez de psiquiatras acaba por limitar a formação de equipes completas quando se trata, por exemplo, de serviços de maior complexidade e atenção emergencial, como nos CAPS III. A dificuldade em definir quais profissionais pertencem a estas equipes não permitiu dimensionar com precisão esta oferta, porém nos CAPS todos os profissionais de nível superior estão disponíveis a estas atividades.

Segundo os dados da Tabela 3, os serviços de saúde próprios da administração pública concentram 77,6% dos psiquiatras e 84,0% das suas horas semanais contratadas. Com relação aos mecanismos de acesso, notamos que os serviços exclusivos do SUS (80,5%) predominam no potencial de atendimento. Existem 25 CAPS, todos atendendo pelo SUS. Destes, 23 realizam atendimento exclusivamente ambulatorial e apenas dois combinam este atendimento à internação ou atendimento de urgência. Todos os CAPS são da administração pública. Estes 25 CAPS possuem 60 psiquiatras com um total de 1.370 horas semanais contratadas. Considerando a demanda estimada, esta disponibilidade de profissionais parece insuficiente para sustentar a política em larga escala.

Tabela 3
Número total de psiquiatras e de horas semanais contratadas segundo características selecionadas de serviços, Município do Rio de Janeiro, 2013.

Os serviços de assistência social são orientados às populações vulneráveis. Ao contrário do setor saúde, no caso da assistência social, as informações não estão disponíveis em bases administrativas e devem ser diretamente obtidas com os dirigentes. Aqui nos baseamos em documentos e informações obtidas junto a órgãos dos governos estadual e municipal do Rio de Janeiro, em especial a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS). A definição de responsabilidades entre o governo estadual e o municipal não é estabelecida com nitidez. A SEASDH concentra a gestão dos principais serviços estaduais e certa superposição de competências ocorre em relação à SMDS.

O governo estadual aderiu ao Plano de Enfrentamento ao Crack do governo federal. Por meio de recursos financeiros desse Plano, a SEASDH firmou convênios com instituições privadas que mantêm os Centros de Acolhimento Regionalizado Especializado para Usuários de Álcool e outras Drogas (CARE-AD). Estes serviços integram as redes públicas de saúde e de assistência social. Existem seis destas unidades em todo o Estado do Rio de Janeiro que recebem usuários encaminhados pelos CAPS e que responderam, em 2013, por 230 vagas para todo o RJ, sendo dois destes serviços localizados na capital. A principal articulação SEASDH com o governo municipal do Rio de Janeiro se dá por meio dos Consultórios de Rua.

Com relação à SMDS, os CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) itinerantes funcionam de forma semelhante aos Consultórios de Rua, embora a articulação entre estes dois serviços seja precária. Os CREAS itinerantes realizam abordagens aos usuários de crack, fazem seu cadastramento, orientam e referem para a rede de CAPS do município. Quando os usuários são abordados e aceitam voluntariamente alguma forma de tratamento, segundo os relatos das equipes, eles são encaminhados para o Abrigo de Paciência (bairro da capital). Esse serviço possui capacidade para 400 pessoas, mas não é específico para o atendimento de usuários de drogas. Atende a população de rua em geral, embora conte com equipe multiprofissional e ambulatório capaz de prestar atendimento aos usuários de drogas com quadros menos graves. O abrigo também encaminha os indivíduos para os CAPS.

As crianças e adolescentes abordados são encaminhados a uma Central de Recepção da Vara de Infância e Juventude e os Conselhos Tutelares são comunicados. Os jovens que fazem uso de drogas são encaminhados ao Programa Casa Viva ou outra unidade especializada de atendimento e, em casos onde o acolhimento não se faz necessário, são encaminhados para os CAPS. Existem seis centros especializados de acolhimento conveniados à SMDS. Essas unidades possuem capacidade para 20 adolescentes cada, somando um total de 120 vagas para todo o município do Rio de Janeiro. Outra porta de entrada para essas unidades é o judiciário e muitos dos adolescentes encaminhados não apresentam problemas relacionados ao uso de substâncias e, com frequência, vêm de outros municípios.

A SEASDH dispõe de informações mais organizadas sobre a atenção à população assistida, por meio do Observatório de Gestão e Informação sobre Drogas, mantido em parceria com a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Segundo os dados do Observatório, para janeiro a outubro de 2012, foram realizados 714 atendimentos a usuários de drogas em situação de rua e o padrão de consumo de drogas observado envolve cocaína, crack e álcool em usos isolados ou combinados. O público-alvo destes serviços é de indivíduos maiores de 18 anos de idade, encaminhados para acolhimento, a partir da rede de saúde mental, em condição de compulsão por drogas ou risco psicossocial. As condições clínicas mais graves, como intoxicação, síndromes de abstinência ou crises psicóticas, são encaminhadas a serviços como emergências psiquiátricas, hospitais gerais ou Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Desta forma, os CARE-AD não estão indicados para o acolhimento de casos graves associados ao uso de drogas e oferecem um total de 90 vagas de acolhimento. O tempo de acolhimento médio foi na faixa de 30 a 60 dias.

Com relação a serviços e ações fora dos sistemas públicos de saúde e de assistência social, obtivemos informações junto à Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT), com tradicional atuação neste setor. Consultas a informações na internet foram importantes para identificar outros serviços e organizações atuantes no setor, em especial a Arquidiocese do Rio de Janeiro.

No caso das CT, tais informações envolvem dados de pouca abrangência e consistência, o que representa uma importante restrição para uma análise sobre a qualidade destes serviços. No site da FEBRACT (www.febract.org.br) não constam informações sobre o perfil destes serviços. Informações obtidas com dirigentes apontam para a existência de cerca de 1.000 CT no país. Em linhas gerais, o atendimento nestes serviços é gratuito e prestado a indivíduos a partir de 15 anos de idade. Não seguem protocolos clínicos anunciados ou reportam equipes mínimas de atendimento. O financiamento é feito por doações voluntárias e o acesso tem caráter voluntário, embora também existam casos de encaminhamento judicial.

Quanto à listagem de serviços fornecida pela FEBRACT, foi possível observar que estes não se restringem a uma denominação específica ou possuem, necessariamente, vinculação com entidades religiosas. Essa lista denota uma rede cooperativa e seus mecanismos de governança não estão definidos. Além disso, a rede apresentada possui baixa visibilidade, expressa por apenas 20,1% dos serviços informados estarem registrados no CNES.

Para analisar o alcance de serviços caracterizados como CT, consultamos o mapeamento de instituições de atenção ao uso de álcool e outras drogas, efetuado em 2007, pela Secretaria Nacional de Drogas. Na área de assistência social, consultamos documentos do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) com listagens de serviços como CREAS e Abrigos Especializados para o acolhimento de dependentes de drogas. Dentre os serviços referenciados pelo Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas (COMAD), uma lista variada apresentava serviços ambulatoriais públicos, privados com e sem fins lucrativos, além de hospitais gerais e especializados, predominantemente públicos. Em comum a estas listagens, há uma combinação entre instituições públicas conhecidas e diversas associações de caráter filantrópico.

De cunho religioso, a Pastoral da Sobriedade da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil coordena uma rede integrada por comunidades terapêuticas, casas de recuperação e grupos de mútua ajuda. Trata-se de iniciativa declarada de recuperação e reinserção social para dependentes e seus familiares. Esta pastoral mantém registros de seus totais de atendimentos segundo país, estado e município.

Desse modo, utilizando um critério muito abrangente a partir destas listas, incluindo os estabelecimentos públicos, compusemos uma base para o município do Rio de Janeiro com um total de 227 serviços reportados como de atenção em saúde mental e drogas, dos quais os prestadores do SUS representariam 46,7%.

No caso específico da FEBRACT, a associação de maior ativismo político no setor, foi observado um conjunto de 46 serviços situados no município do Rio de Janeiro. Nesta rede, observamos a presença de alguns estabelecimentos que prestam serviços privados a outras clientelas ou são conveniadas ao SUS. Os mecanismos de governança para esta rede revelam laços frágeis e concentrados no encaminhamento de usuários entre si e para a rede pública. Entre os serviços listados, alguns representam núcleos vinculados a instituições públicas conhecidas, como a UERJ e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Outros representam Organizações Não Governamentais (ONG) atuantes na saúde e a maior parte constitui associações de cunho religioso católico ou evangélico.

Existem também quatro CT listadas pela Federação das Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil e, segundo o COMAD, cinco instituições autodenominadas de assistência social. Assim como para o conjunto das CT e similares, não obtivemos registros públicos ou dados adicionais para uma avaliação preliminar de sua capacidade de atuação.

Com relação aos grupos de mútua-ajuda, a referida Pastoral da Sobriedade informa a realização de atividades combinadas de treinamento de agentes multiplicadores e de sessões de mútua ajuda no país. São considerados atendimentos as participações individuais nas sessões mediadas por agentes treinados em cursos. Segundo seus dados, no município do Rio de Janeiro, entre 2002-2012, foram treinados 414 agentes, realizados 18 cursos e um total de 73.389 atendimentos (média de 9,3 participantes por reunião). A distribuição do uso de drogas, segundo a percepção dos agentes, foi de 21,5% para álcool; 15,5% nicotina; 11,7% maconha; 11,0% cocaína; 5,9% crack (outros na ordem de 34,4%). Não foram disponibilizados dados sobre a quantidade de atendimentos realizados, condição clínica dos pacientes e procedimentos ou terapias utilizadas.

Em seu conjunto, estes setores e estabelecimentos se desenvolvem por fora dos sistemas públicos de saúde e de assistência social, possuem baixa transparência em termos de práticas clínicas, abordagens terapêuticas e não são nítidas as suas habilitações jurídicas, ao menos para os tratamentos que informam praticar. Regulamentações recentes do MS têm enfrentado estas restrições por meio de exigências mais precisas em termos de composição de equipes e de protocolos de atenção, em termos de credenciamento destes serviços para fns de financiamento pelo setor público.

Considerações finais

Neste artigo, analisamos as respostas de setores governamentais e societários aos principais elementos associados às políticas de atenção em saúde mental após a institucionalização da reforma psiquiátrica nos termos da Lei Paulo Delgado. Consideramos como principais desafios para os diferentes governos, em termos de implantação de redes comunitárias, as necessidades decorrentes da desospitalização e da emergência da agenda de álcool e outras drogas na última década.

A análise dos atos normativos do MS apresenta um caráter aditivo e incremental, pelo qual responde às necessidades de fortalecimento dos CAPS e do conjunto da rede de atenção em resposta à complexidade do processo político e às novas demandas identificadas após a Reforma. O uso de leitos em hospitais gerais para a saúde mental, por um lado, e a criação de serviços mais ágeis e adaptados às populações em situação de rua, como os consultórios de rua, mostram o caráter incremental da resposta governamental. Na mesma direção se inscrevem programas como as residências terapêuticas e as bolsas de auxílios às famílias. O recente impulso à criação mais acelerada de CAPS III mostra a necessidade de respostas mais objetivas à escassez de oferta de serviços de atenção aos casos mais graves e agudos.

Por outro lado, como mostramos por meio do rastreamento da disponibilidade de especialistas, a oferta de serviços comunitários (CAPS e demais serviços de atenção primária) é evidentemente inadequada, especialmente no suporte a pessoas em condições críticas e às suas famílias.

Em meio à resposta governamental do setor saúde, orientado aos fundamentos da reforma psiquiátrica, dois tipos de serviços se disseminaram e, em certos casos apenas se tornaram mais visíveis após uma antiga existência, e ocupam as lacunas aqui assinaladas. Em comum estes serviços tratam do abrigamento em unidades públicas, filantrópicas ou de caráter religioso por períodos que podem ser bastante prolongados. Isto traz de volta o debate sobre a institucionalização prolongada de doentes mentais e, em especial, de dependentes de drogas. Como observamos, estes grupos são representados, por um lado, pelos serviços sociais na forma de abrigos, em geral implantados pelas secretarias de assistência social e, por outro, pelas comunidades terapêuticas ou similares organizadas por grupos de caráter filantrópico, religiosos ou não. Os serviços de assistência social tendem a adotar algum tipo de protocolo e articulação com o SUS. As comunidades terapêuticas tendem a ser independentes e não costumam contar com a sistematização e a divulgação de informações sobre suas práticas ou explicitação de protocolos de conduta e costumam rejeitar controles governamentais sobre suas práticas.

O caso do Município do Rio de Janeiro expressa este conjunto de experiências nos setores público e privado e as iniciativas de entidades civis. Os achados aqui analisados representam desafios importantes para a política pública, entre os quais destacamos: (i) a necessidade de se evitar que internações compulsórias retomem o antigo modelo asilar; (ii) definir em que nível a retomada de soluções de caráter asilar refletem as fragilidades da rede comunitária de atenção em saúde mental; (iii) definir mecanismos de ajustar as práticas das comunidades terapêuticas a critérios mínimos de atuação como serviços de saúde; (iv) desenvolver uma política mais agressiva de instalação de serviços como os CAPS III, para atenção aos casos graves; (v) acelerar a integração entre serviços difusos em uma rede integrada de atenção psicossocial; e (vi) promover incentivos adequados e soluções inovadoras para conferir escala aos serviços em meio a grande escassez de psiquiatras no setor público.

Tais desafios traduzem recomendações de políticas que são alinhadas com tendências locais e internacionais em saúde, como o incentivo à desospitalização e à atenção ambulatorial e comunitária, à regulação de processos decisórios de profissionais e de prestadores de serviços e a reformas nos sistemas de formação de profissionais em geral, de especialistas e de equipes interdisciplinares.

O desempenho das políticas de saúde mental é fortemente dependente da estrutura e da qualidade dos serviços do SUS. O sistema público de saúde enfrenta restrições em termos de um financiamento adequado e o aumento de gastos enfrenta limites de caráter fiscal e macroeconômico. Este conjunto de circunstâncias obriga às lideranças setoriais comprometidas com os princípios da reforma psiquiátrica a investir em inovações e no aproveitamento ao máximo das instalações disponíveis, de forma a evitar que estratégias de internações prolongadas ou compulsórias, além do abandono das famílias à própria sorte, configurem um padrão dominante no quadro político.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2014
  • Revisado
    06 Maio 2015
  • Aceito
    08 Maio 2015
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