O enfoque ecológico-social e a atenção primária na construção de sistemas universais na trajetória de Hernán San Martin

Eleonor Minho Conill Sobre o autor

Resumo

O texto descreve as contribuições do médico chileno Hernán San Martín Ferrari (1915–2000) argumentando que se constituíram em importantes pilares da saúde coletiva no Brasil, na América Latina e na Península Ibérica. Sua obra é revisada estabelecendo-se um diálogo com a atual produção teórica nesse campo e com o cenário dos sistemas de saúde contemporâneos. Dois aspectos principais se destacam: o pioneirismo de San Martín ao insistir na importância de análises que incorporem a relação ambiente e saúde; sua atuação na construção do serviço de saúde chileno e do sistema nacional espanhol. Embora tenham surgido em momentos distintos e tido trajetórias diferentes, ambos se constituíram em imagens-objetivos para a criação de sistemas públicos universais como a reforma brasileira e o permanente desafio de aprimorar o Sistema Único de Saúde. A análise de sua obra e biografia traz elementos para estudos comparados dessas reformas como, também, para uma abordagem ecossistêmica da saúde.

Palavras-chave
Meio ambiente; Sistemas de saúde; Atenção primária

Introdução

Foram muitos os construtores na saúde coletiva, mas certamente Hernán San Martín Ferrari contribuiu com alicerces para muitos deles, tanto no Brasil como na América Latina e na Península Ibérica. Durante muitos anos seu livro intitulado Salud y Enfermedad11. San Martín H. Salud y Enfermedad. 4ª ed. México: La Prensa Médica Mexicana; 1981. se constituiu no principal tratado de referência da área. Publicado originalmente em Cuba (1962), foi lançado no México em 1964, com sucessivas reedições nos anos de 1968, 1975, 1981 e 1995. Em 1970, a segunda edição desse livro foi objeto de uma revisão no periódico Milbank Quarterly22. Teruel J. Review: Salud y Enfermedad by Hernan San Martin. Milbank Quarterly 1970; 48(3):373–378. que destacava uma das ideias centrais da obra de San Martín: saúde e doença não são estados opostos, mas gradações de um permanente processo de adaptação do homem ao seu ambiente. Seria imprescindível para o futuro da medicina sua integração com outras ciências, deslocando-se do individual para o social de modo a medir, interpretar e atuar sobre os fatores que interferem nesse processo.

Composto por quarenta e cinco tópicos organizados em seis seções, o livro mostra um raro equilíbrio entre a oferta de conteúdos técnicos clássicos e uma abordagem ampla do tema. A primeira seção, El hombre, objetivo de la medicina y de las ciências de la salud, contempla tópicos de ecologia, ciências sociais e comportamento humano. A de medicina preventiva inclui saúde mental e sexologia, enquanto a de meio ambiente inicia com um tópico sobre clima e saúde que apenas recentemente tem sido objeto de uma maior atenção. Nas seções finais, Planificación y administración en salud e El papel de la medicina en la sociedad, também encontramos temas inovadores para a época

É possível que parte do pioneirismo de sua produção possa ser explicada por particularidades do contexto econômico, político e social da América Latina e do Chile naquele período. Esse contexto possibilitou um movimento para a criação do serviço nacional de saúde chileno iniciado em 1952, o segundo após o do National Health Service-NHS do Reino Unido, ícone de uma organização socializada da atenção médica. No entanto, é também necessário conhecer alguns aspectos de sua trajetória pessoal e profissional para compreender seu modo ampliado de entender a produção da saúde ou da doença em nossas sociedades.

Formado em medicina pela Universidad de Chile em Santiago em 1943, cursa muito cedo um mestrado em saúde pública na Johns Hopkins University. Ao voltar assume a direção do serviço de doenças infecciosas do hospital regional de Concepción, tornando-se, em 1947, Director Zonal de Salubridad dessa região. Após a criação do Servicio Nacional de Salud, em 1952, dará início à organização de um sistema local de saúde orientado pelos princípios da saúde comunitária em colaboração com a Universidade de Concepción. Atua como docente e, posteriormente, como diretor do Departamento de Medicina Preventiva e Social dessa Universidade (1960), realizando um doutorado em antropologia social na Inglaterra. Este percurso o leva a trabalhar como consultor de organismos internacionais e como docente no México (Universidade de Nuevo León, Monterrey) e no sul da Ásia (Faculdades de Medicina de Rangum, atual Mianmar, e de Surabaia na Indonésia). Em 1973, no momento do golpe de Estado, atuava como embaixador do Chile em Zâmbia, de onde parte para um longo, porém produtivo, exílio em Paris. Uma das marcas de sua personalidade foi o de cultivar uma permanente interação com expressões artísticas como o teatro, o folclore, a literatura e a poesia. Em Concepción participou da fundação do teatro da Universidade, foi diretor do Museu de Hualpén (Parque Museo Pedro del Rio Zanãrtu) e, em 1962, recebeu um Prêmio Municipal de Arte e Literatura por seu livro intitulado Viajes a traves del Arte Universal, até hoje disponível em sites internacionais33. San Martín H. Viajes a traves del arte universal. Concepción: Universidad de Concepción; 1962..

O que priorizar na descrição do legado de uma vida com tantas e diversificadas vivências? Optamos por destacar dois aspectos de sua contribuição que dialogam com preocupações atuais no campo da saúde coletiva. O primeiro se refere ao pioneirismo de San Martín em insistir na importância da ecologia ou de análises que incorporem a relação do ambiente com a saúde, e o segundo trata de sua atuação na construção do serviço e do sistema nacional de saúde chileno e espanhol. Embora tenham surgido em momentos distintos e tido trajetórias diferentes44. Labra ME. Política e saúde no Chile e no Brasil. Contribuições para uma comparação. Cien Saude Colet 2001; 6(2):361–376.,55. Conill EM. Sistemas Comparados de Saúde. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Júnior MD, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 623–631., esses sistemas foram imagens-objetivos para sistemas universais com cuidados integrais que buscam reduzir desigualdades, como foi o caso da reforma sanitária brasileira e o permanente desafio de aprimorar o Sistema Único de Saúde-SUS.

A compreensão ampliada do processo saúde-doença e a importância de integrar a dimensão econômica, cultural e ecológica na análise do desenvolvimento social

Os conceitos de saúde pública, medicina preventiva e medicina social abrem o primeiro tópico de Salud y Enfermedad, tratando de um dos principais debates que marcaram a década de 1970 em nosso país. A conhecida tese “O dilema preventivista: contribuição para a compreensão da medicina social”, defendida por Sérgio Arouca66. Arouca ASS. O dilema preventivista. Contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 1975. em 1975, se constituiu num marco de referência desse momento. Essa conjuntura é bem descrita por Nunes77. Nunes ED. Saúde Coletiva: uma história recente de um passado remoto. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Júnior MD, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 17–37. ao situar a adoção do termo saúde coletiva em nosso país. Embora San Martín cite referências clássicas sobre as origens da expressão medicina social, considera seu surgimento como uma resposta ao modelo de desenvolvimento:

No podría ser de otra manera, desde el momento que la mayoría de los problemas de salud y enfermedad han sido consecuencia de la organización social que el hombre se ha dado. En la práctica se ha producido un conflicto entre nuestra biología y la organización social…11. San Martín H. Salud y Enfermedad. 4ª ed. México: La Prensa Médica Mexicana; 1981.

Insistir sobre a importância do campo da ecologia e da antropologia para a compreensão dos fenômenos de saúde e doença foi central na trajetória de San Martín, mostrando o pioneirismo de seu referencial teórico e de suas propostas. Em 1979 publica o livro Ecologia Humana y salud defendendo a ideia:

Como unidad ecológica que es, el hombre debe ser comprendido y estudiado siempre en relación a su ambiente total. La ecología nos demuestra la estructura compleja, la variabilidad permanente y la dinámica de la unidad ser vivo-ambiente, así como la multicausalidad de todos los fenómenos biológicos88. San Martín H. Ecologia humana y salud. México: La Prensa Médica Mexicana; 1979..

A noção do indivíduo como um ser independente na Terra seria um perigoso mal entendido para nosso futuro como espécie. Significaria desconhecer o conjunto de ecossistemas existentes na natureza e seu extraordinário equilíbrio que, em constante variação, permite a vida de todos. Mas, nossa particularidade de homo sapiens fez com que a evolução do ser humano seja muito mais o resultado de processo histórico-cultural do que biológico. Este, embora permanente, se realizaria num ritmo muito mais lento do que o segundo. O referencial da ecologia seria indispensável: porque todo indica que estamos cerca de alcanzar los limites de nuestra capacidad de adaptación frente a um ambiente ecológico modificado y transformado en desmedro nuestro88. San Martín H. Ecologia humana y salud. México: La Prensa Médica Mexicana; 1979..

Ao retomar esse tema no âmbito do que denominou como Crisis Mundial de la Salud99. San Martín H. La crisis mundial de la salud. problemas actuales de epidemiologia social. Madrid: Editorial Karpos S.A.; 1982., intensifica o diálogo com a epidemiologia social latino-americana. Analisa as origens e o contexto dessa crise a partir de três eixos principais de determinação da saúde: a relação ecológica população e ambiente, o sistema social de produção e consumo e o sistema sociocultural. Alerta para o fato de que o uso de categorias analíticas como classe social, modo de produção e dependência econômica das populações deveriam demonstrar a correspondência biológica desses determinantes:

Es posible que esta correspondencia se produzca a través de las condiciones de vida de la población (nivel de vida y modos de vida) entendidas como la materialización de ellas en un individuo relacionado de una manera históricamente determinada y especifica a otros individuos y a una estructura social dada, materialización que se expresa en muchas y variadas formas (actitudes, ideologías, comportamientos, etc.)99. San Martín H. La crisis mundial de la salud. problemas actuales de epidemiologia social. Madrid: Editorial Karpos S.A.; 1982..

A noção de determinação social ao ampliar a de causalidade suscitou um amplo debate, permanecendo ainda questões não resolvidas acerca da mediação entre os processos sociais e aqueles de ordem biológica. Mas, é interessante assinalar que há coincidência de algumas de suas ideias com a bibliografia mais recente sobre a determinação social da saúde1010. Carvalho AI, Buss PM. Determinantes sociais na saúde, na doença e na intervenção In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 121–142.. Para San Martín era necessário considerar a enorme complexidade da combinação de fatores que incluem os socioeconômicos e o nível de vida, mas também aspectos como satisfação no trabalho, a saúde mental e os laços culturais1111. San Martín H. La crisis mundial de la salud. Problemas actuales de epidemiologia social. 2ª ed. Madrid: Editorial Ciencia 3; 1985..

Outro diálogo interessante de sua obra é com o campo da promoção da saúde. Ao inseri-lo na discussão dos limites de um modelo de desenvolvimento produtivista e antiecológico, irá tratar o tema de um modo distinto do conhecido relatório Lalonde1212. Lalonde M. A new perspective on the health of Canadians. A working document. Ottawa: Minister of Supply and Services of Canada; 1974. [documento na Internet]. 2008 [acessado 2015 set 10]. Disponível em: http://www.phacaspc.gc.ca/ph-sp/pdf/perspecteng. pdf
http://www.phacaspc.gc.ca/ph-sp/pdf/pers...
, publicado no Canadá em 1974. Segundo este Relatório, a melhoria do estado de saúde das populações estaria relacionada com quatro grandes fatores: biologia humana, estilos de vida, ambiente e organização dos serviços.

Embora tenha sido considerado um marco nas políticas de promoção ao defender o papel limitado dos serviços, foi alvo de críticas no cenário canadense por justificar uma diminuição importante dos recursos federais para os sistemas de saúde provinciais, além de desviar a responsabilidade pela manutenção da saúde para a esfera do comportamento individual1313. Conill EM. Les Implications de la Santé Communautaire en tant que Nouvelle Politique de Santé: Analyse du Cas du Québec [thèse]. Paris: Institut D'Étude du Développement Economique et Social, Université de Paris I-Sorbonne; 1982..

San Martín debate essa questão ao aprofundar a gênese e a modelagem do comportamento humano mostrando como ocorrem as influências do sistema sociocultural na saúde individual e coletiva:

… hay diferencias notables en el comportamiento de los animales según su grado de diferenciación. Pero las bases son siempre las mismas: genéticas, ecológicas, y adquiridas por aprendizaje. Lo que hace diferente al hombre de los demás animales es que se trata de un tipo de conducta muy variada, creadora, no siempre en relación con sus intereses de especie1111. San Martín H. La crisis mundial de la salud. Problemas actuales de epidemiologia social. 2ª ed. Madrid: Editorial Ciencia 3; 1985..

Um longo processo evolutivo nos permitiu desenvolver a palavra, a memória, a inteligência, a consciência e a abstração até chegarmos ao desenvolvimento da cultura. Antigos comportamentos de base genética y ecológica foram substituídos por outros aprendidos na relação com um ambiente cada vez menos natural e que se tornou sociocultural. Mas a conduta humana é um processo dinâmico, muda e se adapta a uma estrutura social também dinâmica. Por essa razão argumentava:

… la cadena de causalidad comienza en la estructura económica, social y cultural, continúa en las ofertas y riesgos que existen en el ambiente de vida como productos de la actividad económica, continúa en la condición socio profesional y cultural de cada individuo y de los grupos y, finalmente, la relación se produce a través de la respuesta conductual de cada grupo y de cada individuo. En esta secuencia se observa claramente el rol secundario, de factor influyente y no generador, que tienen los comportamientos humanos en salud1111. San Martín H. La crisis mundial de la salud. Problemas actuales de epidemiologia social. 2ª ed. Madrid: Editorial Ciencia 3; 1985..

Em um de seus últimos livros, publicado no final da década de 1980, continuará a insistir na importância do ambiente na análise do que denomina sistema socioecológico del proceso salud enfermedad en las sociedades humanas1414. San Martín H. Manual de Salud Pública y Medicina Preventiva. 2ª ed. Paris: Masson S.A.; 1989..

Algumas décadas se passaram e as questões referentes ao meio ambiente se tornaram objeto de importantes encontros internacionais, ocupam o meio acadêmico e a atenção da grande mídia. No entanto, como afirma Minayo1515. Minayo MC. Saúde e ambiente. Uma relação necessária. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Júnior MD, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 79–108., ainda é tênue a necessária relação entre o ambiente e a saúde.

Registros sobre a construção de sistemas públicos orientados pela atenção primária

Além de uma diversificada produção teórica e docente, San Martín teve um envolvimento direto na construção de novas práticas de organização dos serviços que se constituíram em referenciais para reformas sanitárias, incluindo a brasileira. São elas: a experiência de saúde comunitária desenvolvida em Concepción, Chile, de 1952 a 1973, participação na implementação do Servicio Nacional de Salud, interrompido pelo golpe militar em 1973, e a criação do Sistema Nacional de Salud espanhol, a partir da redemocratização desse país em 1982.

Os conteúdos e os componentes da experiência de Concepción correspondem a propostas que circularam em vários países nas décadas de 1960–1970. Trazem ideias de racionalização das práticas (comunidade como fundamento das necessidades de saúde, coordenação e integração do cuidado) associadas a uma maior democratização dos serviços (trabalho em equipes, agentes da comunidade, ampliação do acesso e participação)11. San Martín H. Salud y Enfermedad. 4ª ed. México: La Prensa Médica Mexicana; 1981.,99. San Martín H. La crisis mundial de la salud. problemas actuales de epidemiologia social. Madrid: Editorial Karpos S.A.; 1982.,1111. San Martín H. La crisis mundial de la salud. Problemas actuales de epidemiologia social. 2ª ed. Madrid: Editorial Ciencia 3; 1985.. Coincidem com o que o SUS se empenha em tornar realidade ao considerar a estratégia de saúde da família e a Atenção Primária à Saúde (APS) como uma política para mudança do modelo assistencial.

Incorporavam tradições do campo da saúde coletiva tão antigas quanto a polícia médica, a prestação integrada de serviços locais para populações pobres e a organização de cuidados coordenados e regionalizados contempladas no Relatório Dawson1616. Gran Bretaña. Ministerio de la Salud. Informe Dawson sobre el futuro de los servicios médicos y afines,1920. Washington: OPS/OMS; 1964. Publicación científica 93.. Foram reatualizadas por atividades extramuros de Departamentos de Medicina Preventiva norte-americanos informando uma diversidade de ações, desde projetos contrahegemônicos de saúde comunitária na América Latina até reformas sanitárias em países como o Canadá (Província do Québec) e Moçambique1717. Conill EM. Sobre a necessidade de legitimar as práticas de atenção primária. Saúde em debate 2012; 36(94):355–357..

O trabalho desenvolvido em Concepción visava implementar novas práticas para apoiar o projeto político de construção do Servicio Nacional de Salud. O SNS teve início em 1952 com uma reforma que unifica os serviços medicos-assistenciais com os de saúde pública. No entanto, não conseguiu modificar o padrão de financiamento nem universalizar o seguro social. O projeto liderado pelo médico Salvador Allende, senador e ex-Ministro da Saúde e Previdência, enfrentou forte oposição de setores mais conservadores e da corporação médica. Quando Allende assume a presidência do país tenta negociar a instituição de um sistema unificado de saúde. Mas a conjuntura se tornou cada vez mais adversa culminando com o golpe de Estado em 1973 e o início de uma reforma de tipo privatista. Essa reforma aprofunda a segmentação social e estimula o mercado criando um sistema dual, característica que acabará prevalecendo nas reformas realizadas na América Latina, ainda que por razões e caminhos distintos44. Labra ME. Política e saúde no Chile e no Brasil. Contribuições para uma comparação. Cien Saude Colet 2001; 6(2):361–376.,55. Conill EM. Sistemas Comparados de Saúde. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Júnior MD, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 623–631..

Foi o fato de ter participado no projeto de saúde comunitária Murialdo da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, uma das diversas iniciativas desta ordem realizadas no Brasil nesse momento, que me permitiu conviver e aprender com o professor San Martín. Fui procurá-lo porque integrava o corpo docente do Institut de Développement Économique et Social-IEDES da Université de Paris I, Sorbonne onde começava um Doutorado em 1978. Surpreendeu-me sua simplicidade que contrastava com o formalismo acadêmico francês daquele momento, e sua alegria quando expliquei-lhe onde havia trabalhado e o que queria investigar. Havia encontrado uma interlocução numa França que durante várias décadas se manteve alheia às propostas de atenção primária.

O projeto Murialdo foi um polo aglutinador para projetos semelhantes realizados em outros municípios brasileiros e para a criação da Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comunitária, atual Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. A descrição desse projeto e as ações para viabilizá-lo foram incorporadas ao livro La crisis mundial de la salud na parte referente às Estratégias y Tecnicas de Respuesta a los Problemas de Salud, sendo considerado como um projeto inovador que por su continuidad está permitiendo el desarrollo de um modelo operacional próprio de la realidad concreta del trabajo, cuyos componentes podrán ser útiles a otra experiencia de salud comunitária en otros países11. San Martín H. Salud y Enfermedad. 4ª ed. México: La Prensa Médica Mexicana; 1981.. E isto de fato ocorrerá, pois os trabalhos de San Martín passam a contribuir de um modo relevante no movimento para a criação do Sistema Nacional de Salud-SNS espanhol.

A Constituição de 1978 e a Ley General de Sanidad-LGS, promulgada em 1986, foram os pilares legais da organização desse sistema. No entanto, é interessante assinalar que a reforma da atenção primária foi anterior a este processo, conferindo uma marca importante à reforma sanitária espanhola. Em 1984, o Decreto de Estruturas Básicas de Saúde deu início ao estabelecimento de Centros de Saúde com um modelo influenciado por experiências nacionais e internacionais das décadas anteriores55. Conill EM. Sistemas Comparados de Saúde. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Júnior MD, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 623–631.. Neste contexto, a atividade de San Martín se intensifica publicando obras que pudessem apoiar este processo, como foi o caso do livro intitulado Salud Comunitária. Teoria y Practica1818. San Martin H, Pastor V. Salud comunitaria. Teoria y Practica. Madrid: Ediciones Diaz de Santos S.A; 1984..

A parte que finaliza a primeira e a segunda edição de sua obra sobre a crise mundial da saúde fornece um interessante registro da história da criação do SNS. Inclui depoimentos de três professores espanhóis1919. Yuste Grijalba FJ. La crisis de la salud en el mundo: España dos años después. In: San Martín H. La crisis mundial de la salud. Problemas actuales de epidemiologia social. 2ª ed. Madrid: Editorial Ciencia 3; 1985. p. 753–759.2121. Miguel JM. La crisis actual de la salud en España. In: San Martín H, organizador. La crisis mundial de la salud. Problemas actuales de epidemiologia social. 2ª ed. Madrid: Editorial Ciencia 3; 1985. p. 771–784. que analisam a situação sanitária e discutem as estratégias de mudanças. Esse material confirma o envolvimento de atores políticos e sociais importantes no movimento dessa reforma. Assim, afirmava Yuste Grijalba1919. Yuste Grijalba FJ. La crisis de la salud en el mundo: España dos años después. In: San Martín H. La crisis mundial de la salud. Problemas actuales de epidemiologia social. 2ª ed. Madrid: Editorial Ciencia 3; 1985. p. 753–759.:

En este sentido hemos trabajado desde hace tiempo, con la colaboración del propio Hernán San Martín en las plataformas brindadas por la Unión General de Trabajadores y algunos núcleos sanitarios del Partido Socialista Obrero Español; incluso las tesis que se generaron en estos trabajos se han presentado como tales a los Congresos de la Unión General y de su Federación de Sanidad y al XXIX Congreso del PSOE.

Quando em 1982 o PSOE chega ao poder, além da criação de um serviço de saúde integrado e universal, seu programa de governo contém detalhes operacionais específicos como: assistência sanitária concertada com critérios de complementaridade, reforma dos hospitais públicos com maior autonomia e controle de qualidade, trabalho em equipe em centros de saúde com profissionais em tempo integral2020. Pastor y Aldeguer V. La crisis mundial de la salud en España. In: San Martín H. La crisis mundial de la salud. Problemas actuales de epidemiologia social. 2ª ed. Madrid: Editorial Ciencia 3; 1985. p. 761–770.. Neste sentido, outro aspecto interessante a destacar na reforma espanhola foi a intensidade do processo de formação de médicos de família e comunidade que, num ritmo de 500 vagas por ano, favoreceu as mudanças nos serviços, aos quais se somaram os profissionais de saúde pública55. Conill EM. Sistemas Comparados de Saúde. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Júnior MD, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 623–631.. A implementação do SNS não foi evidentemente isenta de problemas, mas hoje se constitui num exemplo da viabilidade de sistemas públicos orientados pela atenção primária.

Considerações finais

Mesmo na adversidade de um exílio, San Martín manteve a esperança na construção de sociedades mais justas e saudáveis. Por ser um incansável trabalhador, fez frutificar sua produção sem abrir mão da coerência entre teoria e prática, pois ao contribuir para o Sistema Nacional de Salud espanhol deu continuidade ao que não pôde realizar em seu país.

A análise de sua obra constitui um material interessante para estudos comparados de reformas sanitárias. Alguns elementos se destacam no caso espanhol, entre eles, a adesão de atores sociais importantes (partidos políticos, grandes centrais sindicais, trabalhadores da saúde) e a priorização de mudanças efetivas no modelo assistencial. Esses elementos devem ser relembrados na condução de novos processos dessa ordem ou para fundamentar a manutenção de estratégias para melhoria do acesso e da qualidade no Sistema Único de Saúde brasileiro.

Salud y Enfermedad, certamente, representou uma referência importante para muitos dos construtores da saúde coletiva brasileira, por ser um dos principais livros da área nas décadas de 1960–1970. Mas, San Martín não teve uma atuação direta em nosso país, talvez por estar distante da América Latina em seu exílio ou por ter priorizado seu foco na reforma que ocorria na Espanha.

Eis uma dúvida que emerge da revisão realizada: quais razões poderiam explicar a difusão restrita no Brasil dos inúmeros livros que publicou na década de 1980? E mais especificamente do referencial socioecológico que soube defender de modo tão inovador? Além do que já referimos, outras hipóteses podem ser levantadas como, por exemplo, a publicação expressiva de livros em Editoras europeias com distribuição dirigida aos países de língua espanhola numa era pré-internet. Também, a discussão relativamente tardia desse enfoque num país onde o movimento sanitário, de 1980 até meados de 1990, concentrou seus esforços em avançar aspectos político-institucionais da reforma sanitária. Resgatar esses conteúdos em sua obra poderá enriquecer os trabalhos daqueles que se interessam pelo tema saúde e meio ambiente. Manter vivo o que não deve ser esquecido é uma contribuição importante desta nova seção.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2016

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2015
  • Revisado
    13 Nov 2015
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