Near miss materno e iniquidades em saúde: análise de determinantes contextuais no Rio Grande do Norte, Brasil

Maternal near misses and health inequalities: an analysis of contextual determinants in the State of Rio Grande do Norte, Brazil

Tatyana Maria Silva de Souza Rosendo Angelo Giuseppe Roncalli Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste estudo foi identificar os fatores contextuais socioeconômicos e de assistência à saúde na atenção básica associados ao near miss materno e a suas condições marcadoras. Trata-se de um estudo ecológico que utilizou como unidade de análise os dados agregados de 63 clusters formados pelos municípios do Rio Grande do Norte, Brasil, através do método Skater de regionalização de áreas. A razão de near miss materno e de suas condições marcadoras foram obtidas através do Sistema de Informação Hospitalar do Sistema Único de Saúde. Na análise de regressão linear múltipla, houve associação significativa entre o near miss materno e variáveis relacionadas à pobreza e à pior assistência na atenção básica. As doenças hipertensivas também associaram-se à pobreza e à pior assistência e a ocorrência de hemorragia associou-se à mortalidade infantil. Pôde-se constatar que a ocorrência de near miss materno está relacionada a condições socioeconômicas desfavoráveis e a uma assistência à saúde de pior qualidade que são reflexo de políticas públicas que reforçam a iniquidade em saúde.

Palavras-chave
Mortalidade materna; Morbidade; Complicações na gravidez; Registros hospitalares; Desigualdades em saúde

The scope of this study was to identify socioeconomic contextual and health care factors in primary care associated with maternal near misses and their marker conditions. This is an ecological study that used aggregated data of 63 clusters formed by the municipalities of State of Rio Grande do Norte, Brazil, using the Skater method of area regionalization, as the unit of analysis. The ratio of maternal near misses and their marker conditions were obtained from the Hospital Information System of the Brazilian Unified Health System. In multiple linear regression analysis, there was a significant association between maternal near misses and variables of poverty and poor primary health care. Hypertensive disorders were also associated with poverty and poor primary care and the occurrence of hemorrhaging was associated with infant mortality. It was observed that the occurrence of maternal near misses is linked to unfavorable socioeconomic conditions and poor quality health care that are a reflection of public policies that accentuate health inequalities.

Key words
Maternal mortality; Morbidity; Pregnancy complications; Hospital records; Health inequalities


Introdução

As iniquidades em saúde constituem as desigualdades que podem ser evitadas por ações e políticas públicas e que são consideradas socialmente injustas. Apesar de uma melhora global nos indicadores de saúde, as iniquidades em saúde têm aumentado e isso tem acontecido não só em países em desenvolvimento, mas também é possível percebê-las nos países desenvolvidos. Dessa forma, tanto para países ricos como para os pobres, a saúde e a doença possuem uma associação direta com a posição socioeconômica, onde, quanto pior ela for, piores serão as condições de saúde11. World Health Organization (WHO). Comission on Social Determinants of Health. Closing the gap in a generation. Health equity through action on the social determinants of health. Geneva: WHO; 2008..

No contexto da saúde da mulher, o debate acerca da saúde materna tem tido destaque nas últimas décadas, especialmente, as discussões voltadas para o estudo da mortalidade e morbidade materna pelo fato delas refletirem as iniquidades a que estão expostas. Assim como para a saúde infantil, as iniquidades relacionadas à saúde materna podem ser percebidas desde a análise das questões socioeconômicas, passando pelas discussões de gênero, de raça, até às questões de acesso aos serviços de saúde22. Graaf J, Steegers E, Bonsel G. Inequalities in perinatal and maternal health. Curr Opin Obstet Gynecol 2013; 25(2):98–108..

Em função da dificuldade de se trabalhar com a razão de mortalidade materna, seja por problemas de subregistro e subnotificação, comuns em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento33. AbouZahr C. Global burden of maternal death and disability. Br Med Bull 2003; 67: 1–11., seja pelo baixo número de eventos, situação atual dos países desenvolvidos, o estudo da morbidade materna grave, também denominada de near miss materno, tem se apresentado como estratégico nesses cenários44. Pattinson R. Near misses: a useful adjunct to maternal death enquiries. Br Med Bull 2003; 67(1):231–243.. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o near miss materno pode ser definido como uma mulher que quase morreu, mas sobreviveu a uma complicação ocorrida durante a gravidez, parto ou puerpério55. Say L, Souza JP, Pattinson RC. Maternal near miss-to-wards a standard tool for monitoring quality of maternal health care. Best Pract. Res. Clin. Obstet. Gynaecol. 2009; 23(3):287–296.. Essas complicações graves relacionadas ao período gravídico-puerperal são mais frequentes do que o óbito materno e compartilham muitos de seus determinantes. Além disso, o adequado enfrentamento dessas complicações tem sido colocado como importante para a melhoria da saúde materna44. Pattinson R. Near misses: a useful adjunct to maternal death enquiries. Br Med Bull 2003; 67(1):231–243..

No Brasil, na tentativa da produção de estimativas populacionais, alguns estudos analisaram as bases de dados do Sistema de Informação Hospitalar (SIH) e do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) do Sistema Único de Saúde (SUS) sugerindo formas de identificação dos casos, compatibilizando os critérios de Mantel et al.66. Mantel GD, Buchmann E, Rees H, Pattinson RC. Severe acute maternal morbidity: a pilot study of a definition of a near-miss. Br J Obstet Gynaecol 1998; 106(4):397., Waterstone et al.77. Waterstone M, Bewley S, Wolfe C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. BMJ 2001; 322(7294):1089–1093. e da OMS55. Say L, Souza JP, Pattinson RC. Maternal near miss-to-wards a standard tool for monitoring quality of maternal health care. Best Pract. Res. Clin. Obstet. Gynaecol. 2009; 23(3):287–296. com os códigos de procedimentos utilizados na assistência obstétrica e com os de diagnósticos baseados na Classificação Internacional das Doenças - CID-1088. Magalhães MC, Bustamante-Teixeira MT. Morbidade materna extremamente grave : uso do Sistema de Informação Hospitalar. Rev Saude Publica 2012; 46(3):472–478.1111. Sousa MH, Cecatti JG, Hardy EE, Serruya SJ. Severe maternal morbidity (near miss) as a sentinel event of maternal death. An attempt to use routine data for surveillance. Reprod Health 2008; 5: 6..

O emprego de dados secundários do SIH-SUS parece ser uma boa estratégia para o estudo do near miss materno, especialmente pela facilidade de acesso1212. Bittencourt SA, Camacho LAB, Leal MC. A qualidade da informação sobre o parto no Sistema de Informações Hospitalares no Município do Rio de Janeiro, Brasil , 1999 a 2001. Cad Saude Publica 2008; 24(6):1344–1354.. Iniciativas como essas podem ser vistas em países como o Canadá, que tem utilizado seus registros hospitalares, através do Instituto Canadense para a Informação em Saúde, como estratégia para o estabelecimento de uma rotina de vigilância e identificação de casos e de fatores associados ao near miss materno. A obtenção da razão de near miss materno a partir dessa base de dados para seus territórios tem possibilitado o estudo da variação regional da sua ocorrência e a associação com determinantes contextuais, bem como a observação de sua tendência temporal, por utilizar os dados de forma agregada1313. Joseph KS, Liu S, Rouleau J, Kirby RS, Kramer MS, Sauve R, Fraser WD, Young DC, Liston RM; Maternal Health Study Group of the Canadian Perinatal Surveillance System. Severe maternal morbidity in Canada, 2003 to 2007: surveillance using routine hospitalization data and ICD-10CA codes. J Obstet Gynaecol Can 2010; 32(9):837–846.,1414. Liu S, Joseph KS, Bartholomew S, Fahey J, Lee L, Allen AC, Kramer MS, Sauve R, Young DC, Liston RM; Maternal Health Study Group of the Canadian Perinatal Surveillance System. Temporal trends and regional variations in severe maternal morbidity in Canada, 2003 to 2007. J Obstet Gynaecol Can 2010; 32(9):847–55..

Diante da sua factibilidade e da importância que estudos com dados contextuais em saúde podem ter no campo da saúde materna1515. Souza JP, Souza MH de, Parpinelli MA, Amaral E, Cecatti JG. Self-reported maternal morbidity and associated factors among brasilian women. Rev Assoc Med Bras 2008; 54(3):249–255., este estudo teve como objetivo identificar os fatores contextuais socioeconômicos e de assistência à saúde na atenção básica associados ao near miss materno e a suas condições marcadoras a partir dos registros do SIH-SUS e das bases de dados nacionais que forneçam informações socioeconômicas e de assistência à saúde.

Método

Trata-se de um estudo ecológico que utilizou dados dos 167 municípios do estado do Rio Grande do Norte (RN), que fica localizado no Nordeste do Brasil, com uma população total de 3.228.198 habitantes1616. Departamento de Informática do SUS. DATASUS [Internet]. 2013 [acessado 2013 dez 15]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?ibge/cnv/zpoprn.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
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As informações para o cálculo da razão de near miss materno (RNM) de cada município foram obtidas a partir dos registros do SIH-SUS, de livre acesso, disponíveis no site do Datasus. Para cada um deles foi calculada a razão de near miss, dividindo-se os casos que aconteceram no período de 2008 a 2012 pelo total de mulheres internadas para procedimentos obstétricos do mesmo período, sendo, portanto, a razão de near miss materno igual a: (nº casos de near miss/total de mulheres internadas para procedimentos obstétricos) * 1.000. Foram excluídos do numerador os casos de óbitos maternos. A escolha do período de 2008 a 2012 para o cálculo da razão de near miss, ao invés do ano mais recente, se deu em função da sua baixa prevalência, principalmente em municípios de pequeno porte.

Para o cálculo da razão do near miss materno, inicialmente, foram selecionadas do banco de dados do SIH-SUS todas as mulheres de 15 a 49 anos residentes no RN e que foram internadas para a realização de procedimentos obstétricos em estabelecimentos de saúde públicos, conveniados ou contratados pelo SUS desse estado, no período de 2008 a 2012. A identificação dessas mulheres se deu através do campo do Diagnóstico Principal, que é preenchido com o código da Classificação Internacional das Doenças – 10ª revisão (CID-10), e do campo de Procedimento Realizados, que estão presentes no SIH-SUS. Dessa forma, todas as mulheres que foram internadas no período da gravidez, parto ou puerpério e que possuíam o diagnóstico do Capítulo XV ou grupo “O” (Causas relacionadas à gravidez, parto e puerpério) da CID-10 e/ou o campo de Procedimentos Realizados que foram preenchidos com códigos de procedimentos relacionados ao período gravídico-puerperal foram identificadas e compuseram o denominador da razão de near miss.

Em seguida, procedeu-se à seleção dos casos de near miss para serem incluídos no numerador. Essa seleção foi baseada nos critérios de Waterstone et al.77. Waterstone M, Bewley S, Wolfe C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. BMJ 2001; 322(7294):1089–1093., os quais incluem relato de pré-eclampsia grave, eclampsia, hemorragia, sepse e rotura uterina, consistindo em suas condições marcadoras. Para a identificação dos casos de near miss no SIH-SUS utilizou-se o campo do Diagnóstico Principal que é preenchido com o código da CID-10. Os códigos da CID-10 que estão relacionados ao near miss materno, segundo os critérios de Waterstone et al.77. Waterstone M, Bewley S, Wolfe C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. BMJ 2001; 322(7294):1089–1093., foram classificados por Sousa et al.1111. Sousa MH, Cecatti JG, Hardy EE, Serruya SJ. Severe maternal morbidity (near miss) as a sentinel event of maternal death. An attempt to use routine data for surveillance. Reprod Health 2008; 5: 6. e estão descritos no Quadro 1. Vale salientar que a condição de Síndrome HELLP – sigla usada para descrever a condição de paciente com pré-eclâmpsia grave que apresenta hemólise (H), níveis elevados de enzimas hepáticas (EL) e contagem baixa de plaquetas (LP) –, que também é um critério marcador de Waterstone et al.77. Waterstone M, Bewley S, Wolfe C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. BMJ 2001; 322(7294):1089–1093., não foi utilizada porque não há código da CID-10 correspondente a essa condição.

Quadro 1
Diagnósticos CID-10 usados para identificação dos casos de Near Miss materno de acordo com os critérios de Waterstone et al.77. Waterstone M, Bewley S, Wolfe C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. BMJ 2001; 322(7294):1089–1093. e segundo correlação proposta por Sousa et al.1111. Sousa MH, Cecatti JG, Hardy EE, Serruya SJ. Severe maternal morbidity (near miss) as a sentinel event of maternal death. An attempt to use routine data for surveillance. Reprod Health 2008; 5: 6.. Rio Grande do Norte, 2013.

Além disso, é importante esclarecer que os critérios da OMS55. Say L, Souza JP, Pattinson RC. Maternal near miss-to-wards a standard tool for monitoring quality of maternal health care. Best Pract. Res. Clin. Obstet. Gynaecol. 2009; 23(3):287–296., apesar de estarem sendo adotados atualmente nos estudos88. Magalhães MC, Bustamante-Teixeira MT. Morbidade materna extremamente grave : uso do Sistema de Informação Hospitalar. Rev Saude Publica 2012; 46(3):472–478.,1717. Lobato G, Nakamura-Pereira M, Mendes-Silva W, Dias MB, Reichenheim ME. Comparing different diagnostic approaches to severe maternal morbidity and near-miss: a pilot study in a Brazilian tertiary hospital. Eur. J. Obstet. Gynecol. Reprod. Biol. 2013; 167(1):24–28.,1818. Souza J P, Cecatti JG, Haddad SM, Parpinelli MA, Costa ML, Katz L et al. The WHO maternal near-miss approach and the maternal severity index model (MSI): tools for assessing the management of severe maternal morbidity. PLoS One 2012; 7(8)., não foram utilizados para identificação dos casos em virtude da dificuldade de correlação desses critérios com os diagnósticos da CID-10 e com os códigos dos procedimentos adotados pelo SIH-SUS. A escolha pelos critérios de Waterstone et al.77. Waterstone M, Bewley S, Wolfe C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. BMJ 2001; 322(7294):1089–1093. para identificação dos casos de near miss materno ao invés dos critérios da OMS55. Say L, Souza JP, Pattinson RC. Maternal near miss-to-wards a standard tool for monitoring quality of maternal health care. Best Pract. Res. Clin. Obstet. Gynaecol. 2009; 23(3):287–296. se deu em função da facilidade de correlação das condições clínicas com os códigos da CID-10, que constituem o campo do diagnóstico principal contido no SIH-SUS.

As variáveis dependentes foram: a razão de near miss materno (RNM), que incluiu no numerador todos os casos das condições marcadoras descritas acima; a razão de doenças hipertensivas (RDHIP), que considerou no numerador todos os casos de pré-eclampsia grave e de eclampsia e a razão de hemorragia (RH), que incluiu no numerador apenas os casos relacionados à hemorragia no período gravídico-puerperal. O denominador de todas as variáveis foi o total de mulheres internadas para procedimentos obstétricos no mesmo período.

As variáveis independentes estão relacionadas às condições socioeconômicas e de assistência dos municípios e foram coletadas nos bancos de dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Datasus, sendo todas referentes ao ano de 2010. A descrição das variáveis dependentes e independentes encontrase no Quadro 2.

Quadro 2
Descrição das variáveis dependentes e independentes, segundo suas dimensões. Rio Grande do Norte, 2013.

Após a composição do banco de dados com as variáveis dependentes e independentes para cada município, foi aplicado o método Skater, utilizando o software TerraView versão 4.2.2, que consiste numa ferramenta de regionalização de áreas, de forma que foi possível agrupar aquelas com características semelhantes, levando-se em conta sua localização espacial. As variáveis socioeconômicas utilizadas para a formação dos clusters foram: o IDH-M, o índice de GINI, a renda per capita, o percentual de domicílios com banheiro e água encanada e o percentual da população em domicílios com coleta de lixo. Dessa maneira, foram formados 65 clusters com características socioeconômicas semelhantes e cada um com no mínimo 1.000 internações para procedimentos obstétricos, que é o denominador da razão de near miss materno. Admitiu-se um mínimo de 1.000 internações de mulheres para procedimentos obstétricos por cluster como uma referência que seria capaz de produzir uma estimativa confiável, uma vez que um único evento a mais no numerador não provocaria grande alteração na razão de near miss.

A formação dos clusters não teve como objetivo utilizar o espaço como unidade de análise, mas sim de se obter resultados suavizados, especialmente os relacionados ao near miss materno, para evitar distorções em função da baixa prevalência em municípios menores. As razões dos desfechos e os valores das variáveis independentes para cada cluster foram calculados através da média ponderada, levando-se em conta a população de cada município componente do cluster.

A análise bivariada para cada variável dependente foi realizada através da correlação de Pearson com significância de 5%. As variáveis com p < 0,2 foram selecionadas para a análise múltipla, considerando-se o limite de significância de 5% e um intervalo de confiança de 95% (IC95%). Na análise múltipla foram construídos três modelos de regressão, um para cada desfecho. Além da RNM, decidiu-se por fazer associações com a RDHIP e a RH por entender sua importância, uma vez que são as condições marcadoras mais frequentes relatadas na literatura1919. Morse, ML, Fonseca SC, Gottgtroy CL, Gueller E. Morbidade Materna Grave e Near Misses em Hospital de Referência Regional. Rev Bras Epidemiol 2011; 14(2):310–322.2121. Moraes APP, Barreto SM, Passos VMA, Golino PS, Costa JE, Vasconcelos MX. Severe maternal morbidity: a case-control study in Maranhao, Brazil. Reprod Health 2013; 10: 11..

Esta pesquisa segue os critérios e exigências estabelecidos pela Resolução nº.466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e foi aprovada pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário Onofre Lopes (CEP-HUOL) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Resultados

Após a análise descritiva dos dados referentes às variáveis dependentes, dois clusters foram excluídos por apresentarem valores muito discrepantes (outliers) em relação aos dados encontrados. Portanto, as análises descritivas e de associação foram realizadas com 63 clusters.

A razão de near miss materno (RNM) média foi de 36,67/1.000 mulheres (DP: 17,90). Para as condições marcadoras, a maior média foi a de pré-eclampsia (24,66; DP: 15,14) seguida da hemorragia (4,55; DP: 3,90) e sepse (4,29; DP: 3,17). As doenças hipertensivas (pré-eclampsia e eclampsia) correspondem ao grupo de condições marcadoras com maior média (27,65; DP: 15,81) (Tabela 1).

Tabela 1
Média e desvio padrão do near miss materno e das suas condições marcadoras, das variáveis socioeconômicas e de assistência à saúde na atenção básica. Dados referentes a 63 clusters. Rio Grande do Norte, 2013.

Nas análises bivariadas, a RNM e a RDHIP tiveram correlação positiva significativa com variáveis socioeconômicas do bloco relacionado à pobreza e correlação negativa significativa com o percentual de famílias com perfil de saúde beneficiárias do Programa Bolsa Família, acompanhadas entre as cadastradas. A RH apresentou um comportamento um pouco diferente, pois se associou a cinco variáveis socioeconômicas, mas não com as da assistência à saúde na atenção básica. Para as demais condições marcadoras não houve correlação significativa com as variáveis independentes (Tabela 2).

Tabela 2
Coeficiente de correlação de Pearson (r) e significância estatística (p) entre as variáveis dependentes e as independentes. Rio Grande do Norte, 2013.

Na análise de regressão linear múltipla da RNM quatro variáveis permaneceram no modelo final, sendo três delas significativas: percentual da população em domicílios com densidade maior que 2 por dormitório, percentual de mães chefes de família sem ensino fundamental completo e com filhos menores de 15 anos, percentual de famílias com perfil de saúde beneficiárias do Programa Bolsa Família acompanhadas entre as cadastradas, tendo esta última uma associação negativa. Para o modelo da RDHIP, apenas as variáveis percentual da população em domicílios com densidade maior que 2 por dormitório e percentual de famílias com perfil de saúde beneficiárias do Programa Bolsa Família acompanhadas entre as cadastradas permaneceu com associação significativa. Em relação à RH, o modelo ficou composto por três variáveis, mas apenas a mortalidade infantil permaneceu com associação significativa (Tabela 3).

Tabela 3
Modelos de regressão linear múltipla para as três variáveis dependentes e para as variáveis independentes, com seus respectivos coeficientes brutos, coeficientes ajustados, Intervalo de Confiança 95% (IC95%) e valor de p. Rio Grande do Norte, 2013.

Discussão

A razão média de near miss materno (36,67/1.000) para os 63 clusters foi semelhante a estudos que utilizaram como fonte de dados o SIH-SUS88. Magalhães MC, Bustamante-Teixeira MT. Morbidade materna extremamente grave : uso do Sistema de Informação Hospitalar. Rev Saude Publica 2012; 46(3):472–478.,1010. Nakamura-Pereira M, Mendes-Silva W, Dias MAB, Reichenheim ME, Gustavo Lobato. Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS): uma avaliação do seu desempenho para a identificação do near miss materno. Cad Saude Publica 2013; 29(7):1333–1345.,1111. Sousa MH, Cecatti JG, Hardy EE, Serruya SJ. Severe maternal morbidity (near miss) as a sentinel event of maternal death. An attempt to use routine data for surveillance. Reprod Health 2008; 5: 6.. Sousa et al.1111. Sousa MH, Cecatti JG, Hardy EE, Serruya SJ. Severe maternal morbidity (near miss) as a sentinel event of maternal death. An attempt to use routine data for surveillance. Reprod Health 2008; 5: 6. realizaram uma análise por capitais e regiões do Brasil e encontraram uma razão de 44,3/1.000 NV para o Brasil e de 36,6/1.000 NV para Natal, capital do RN. Além disso, o perfil das condições marcadoras foi o mesmo encontrado em outros estudos1919. Morse, ML, Fonseca SC, Gottgtroy CL, Gueller E. Morbidade Materna Grave e Near Misses em Hospital de Referência Regional. Rev Bras Epidemiol 2011; 14(2):310–322.,2020. Souza JP, Cecatti JG, Parpinelli MA, Serruya SJ, Amaral E. Appropriate criteria for identification of near-miss maternal morbidity in tertiary care facilities: a cross sectional study. BMC Pregnancy Childbirth 2007; 7: 20. que utilizaram o critério de Waterstone et al.77. Waterstone M, Bewley S, Wolfe C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. BMJ 2001; 322(7294):1089–1093. para identificação dos casos.

É importante comentar sobre a escolha pelos critérios de Waterstone et al.77. Waterstone M, Bewley S, Wolfe C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. BMJ 2001; 322(7294):1089–1093. para identificação dos casos de near miss materno ao invés dos da OMS55. Say L, Souza JP, Pattinson RC. Maternal near miss-to-wards a standard tool for monitoring quality of maternal health care. Best Pract. Res. Clin. Obstet. Gynaecol. 2009; 23(3):287–296., uma vez que, a depender do critério, a razão de near miss materno pode variar1919. Morse, ML, Fonseca SC, Gottgtroy CL, Gueller E. Morbidade Materna Grave e Near Misses em Hospital de Referência Regional. Rev Bras Epidemiol 2011; 14(2):310–322.. Observa-se que, até 2011, ainda há na literatura uma considerável variação no critério utilizado e que apenas recentemente a OMS estabeleceu um conjunto de critérios clínicos, laboratoriais e de manejo para a identificação dos casos de near miss materno na tentativa de uniformização des-se indicador para diferentes contextos55. Say L, Souza JP, Pattinson RC. Maternal near miss-to-wards a standard tool for monitoring quality of maternal health care. Best Pract. Res. Clin. Obstet. Gynaecol. 2009; 23(3):287–296.,2222. Tunçalp O, Hindin MJ, Souza JP, Chou D, Say L. The prevalence of maternal near miss: a systematic review. BJOG 2012; 119(6):653–661..

No entanto, apesar do critério da OMS ser o mais atual e de estar sendo utilizado nos estudos1717. Lobato G, Nakamura-Pereira M, Mendes-Silva W, Dias MB, Reichenheim ME. Comparing different diagnostic approaches to severe maternal morbidity and near-miss: a pilot study in a Brazilian tertiary hospital. Eur. J. Obstet. Gynecol. Reprod. Biol. 2013; 167(1):24–28.,1818. Souza J P, Cecatti JG, Haddad SM, Parpinelli MA, Costa ML, Katz L et al. The WHO maternal near-miss approach and the maternal severity index model (MSI): tools for assessing the management of severe maternal morbidity. PLoS One 2012; 7(8)., é preciso destacar que ainda há necessidade de se discutir qual o mais adequado para auditorias de near miss materno, especialmente se pensarmos na perspectiva da vigilância epidemiológica e no uso rotineiro dos dados secundários do SIH-SUS. O critério de Waterstone et al.77. Waterstone M, Bewley S, Wolfe C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. BMJ 2001; 322(7294):1089–1093. apresenta maior facilidade para a identificação dos casos, por adotar marcadores baseados em condições clínicas1919. Morse, ML, Fonseca SC, Gottgtroy CL, Gueller E. Morbidade Materna Grave e Near Misses em Hospital de Referência Regional. Rev Bras Epidemiol 2011; 14(2):310–322., além de poder ser utilizado como uma primeira identificação ou triagem de casos de morbidade materna que requeiram maior atenção1717. Lobato G, Nakamura-Pereira M, Mendes-Silva W, Dias MB, Reichenheim ME. Comparing different diagnostic approaches to severe maternal morbidity and near-miss: a pilot study in a Brazilian tertiary hospital. Eur. J. Obstet. Gynecol. Reprod. Biol. 2013; 167(1):24–28.. Os da OMS55. Say L, Souza JP, Pattinson RC. Maternal near miss-to-wards a standard tool for monitoring quality of maternal health care. Best Pract. Res. Clin. Obstet. Gynaecol. 2009; 23(3):287–296., por sua vez, seriam mais específicos por utilizar muitos marcadores baseados na disfunção orgânica e no manejo do paciente1919. Morse, ML, Fonseca SC, Gottgtroy CL, Gueller E. Morbidade Materna Grave e Near Misses em Hospital de Referência Regional. Rev Bras Epidemiol 2011; 14(2):310–322., e identificariam realmente os casos mais graves, aproximando-se dos possíveis casos de morte materna1717. Lobato G, Nakamura-Pereira M, Mendes-Silva W, Dias MB, Reichenheim ME. Comparing different diagnostic approaches to severe maternal morbidity and near-miss: a pilot study in a Brazilian tertiary hospital. Eur. J. Obstet. Gynecol. Reprod. Biol. 2013; 167(1):24–28.,1818. Souza J P, Cecatti JG, Haddad SM, Parpinelli MA, Costa ML, Katz L et al. The WHO maternal near-miss approach and the maternal severity index model (MSI): tools for assessing the management of severe maternal morbidity. PLoS One 2012; 7(8)..

Nesse contexto, se o estudo do near miss materno apontar para a possibilidade de se implantar um sistema de vigilância materna, sendo este evento tratado como um sentinela que pode sofrer intervenções para prevenir o desfecho mais trágico que é a morte2323. Sousa MH, Cecatti JG, Hardy EE, Amaral E, Souza, JPD. Sistemas de informação em saúde e monitoramento de morbidade materna grave e mortalidade materna. Re v. Bras. Saúde Matern. Infant. 2006; 6(2):161–168., a utilização de critérios mais sensíveis pode ser útil44. Pattinson R. Near misses: a useful adjunct to maternal death enquiries. Br Med Bull 2003; 67(1):231–243.. Portanto, assim como a utilização de marcadores de condições potencialmente ameaçadoras para a vida materna55. Say L, Souza JP, Pattinson RC. Maternal near miss-to-wards a standard tool for monitoring quality of maternal health care. Best Pract. Res. Clin. Obstet. Gynaecol. 2009; 23(3):287–296., a identificação das condições clínicas, segundo Waterstone et al.77. Waterstone M, Bewley S, Wolfe C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. BMJ 2001; 322(7294):1089–1093., pode fortalecer a vigilância prospectiva desses casos.

Para a RNM duas variáveis relativas às condições socioeconômicas – percentual da população em domicílios com densidade maior que 2 por dormitório e percentual de mães chefes de família sem fundamental completo e com filhos com menos de 15 anos – as quais são pertencentes ao bloco da pobreza, permaneceram no modelo com uma correlação positiva e com significância estatística. Além disso, o percentual de famílias com perfil de saúde beneficiárias do Programa Bolsa Família acompanhadas entre as cadastradas, que mede o acompanhamento na atenção básica dos beneficiários de políticas públicas e aponta para o fortalecimento da atenção básica, também permaneceu no modelo com uma correlação negativa estatisticamente significativa. Em outras palavras, é possível afirmar que quanto piores as condições socioeconômicas e quanto pior a organização dos serviços de saúde na atenção básica, piores serão os desfechos relacionados à saúde materna, refletindo as iniquidades sociais em saúde. Assim como em nosso estudo, Souza et al.1515. Souza JP, Souza MH de, Parpinelli MA, Amaral E, Cecatti JG. Self-reported maternal morbidity and associated factors among brasilian women. Rev Assoc Med Bras 2008; 54(3):249–255. encontraram uma associação entre regiões que tinham piores condições socioeconômicas com o near miss materno.

A falta de educação, de apoio social e familiar, de recursos, a ausência de um cuidado no pré-natal e viver em áreas de privação social são grandes responsáveis por maiores ocorrências de morbidade grave e de mortalidade maternas, mesmo em regiões desenvolvidas, que a despeito do decréscimo da ocorrência de mortalidade materna, ainda apresentam iniquidades na saúde da mulher22. Graaf J, Steegers E, Bonsel G. Inequalities in perinatal and maternal health. Curr Opin Obstet Gynecol 2013; 25(2):98–108.. Além disso, a situação de vulnerabilidade social é refletida na procura pelos serviços de saúde para o início tardio do pré-natal, o que interfere no vínculo estabelecido entre as mulheres e os serviços de saúde durante o período gravídico-puerperal2424. Confidential Enquiry into maternal and Child Health (CEMACH). Saving Mothers' Lives: Reviewing maternal deaths to make motherhood safer - 2003–2005. London: CEMACH; 2007. The Seventh Report of the Confidential Enquiries into Maternal Deaths in the United Kingdom.. Nesse sentido, à semelhança de regiões mais desenvolvidas que também apresentam iniquidades em saúde, no Brasil, o gênero, a raça, o local de nascimento e a classe social ainda são determinantes das oportunidades futuras, com repercussões diretas para a saúde da mulher2525. Cecatti JG, Parpinelli MA. Saúde materna no Brasil : prioridades e desafios. Cad Saude Publica 2011; 27(7):1256..

O modelo de regressão múltipla para a RDHIP apresentou muitas semelhanças com o modelo da RNM até pelo fato de que este último é composto, em grande parte, pelas doenças hipertensivas. Porém, para a RDHIP, apenas duas variáveis permaneceram com correlação significativa – percentual da população em domicílios com densidade maior que 2 por dormitório e o percentual de famílias com perfil de saúde beneficiárias do Programa Bolsa Família acompanhadas entre as cadastradas. Diferentemente do modelo da RNM, o Índice de Gini, apresentou significância na correlação bivariada com a RDIHP. No entanto, essa significância foi perdida na análise múltipla. Portanto, é importante discutir dois aspectos: um é que a variável relacionada à assistência à saúde na atenção básica permanece associada às doenças hipertensivas, reforçando a necessidade de se ofertar às mulheres uma assistência básica de qualidade, uma vez que esses agravos são, na maioria das vezes, identificados no pré-natal e seu tratamento deve ser realizado o mais breve possível2121. Moraes APP, Barreto SM, Passos VMA, Golino PS, Costa JE, Vasconcelos MX. Severe maternal morbidity: a case-control study in Maranhao, Brazil. Reprod Health 2013; 10: 11.,2626. Duley L. Global impact of pre-eclampsia and eclampsia. Semin Perinatol. 2009; 33(3):130–137.. O outro é que o Índice de Gini, que representa a questão das iniquidades sociais, pode ter perdido a significância pelo fato de ser um indicador que é melhor aplicado a análises em grandes regiões, porque é utilizado como uma medida da escala de estratificação social que visualiza melhor as desigualdades numa análise que consiga captar políticas públicas macro estruturantes2727. Wilkinson RG, Pickett KE. Income inequality and population health: a review and explanation of the evidence. Soc Sci Med 2006; 62(7):1768–1784..

Para a RH, apenas a mortalidade infantil permaneceu associada significativamente com uma correlação positiva. Alguns aspectos podem ter contribuído para isso, como o fato de a hemorragia grave ser um desfecho mais específico que tem muita relação com a assistência terciária, especialmente no cuidado pós-parto, uma vez que a maioria dos casos acontece no puerpério e necessitam de uma assistência obstétrica de qualidade nesse momento2828. Bouvier-Colle MH, Ould El Joud D, Varnoux N, Goffinet F, Alexander S, Bayoumeu F, et al. Evaluation of the quality of care for severe obstetrical haemorrhage in three French regions. BJOG 2001; 108(9):898–903.. Além disso, no Brasil, a mortalidade infantil tem como principal responsável pela manutenção das suas elevadas taxas, a dificuldade de redução do componente neonatal que sofre consequências diretas da qualidade da assistência obstétrica durante e após o parto e que, por sua vez, tem estrita relação com a morbimortalidade materna2929. Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Situação mundial da infância 2008. Brasília: Unicef; 2008. Caderno Brasil.. Some-se a tudo isso o fato de que a mortalidade infantil neonatal compartilha os mesmo determinantes relacionados às iniquidades sociais que têm relação com a saúde materna22. Graaf J, Steegers E, Bonsel G. Inequalities in perinatal and maternal health. Curr Opin Obstet Gynecol 2013; 25(2):98–108..

Há que se considerar que, apesar dos dados relacionados à maioria das variáveis independentes serem robustos por serem provenientes do censo, a limitação deste estudo consiste na utilização de dados secundários do SIH-SUS para o cálculo das razões dos desfechos que utilizamos, visto que uma das principais críticas feitas a esse sistema de informação é a baixa confiabilidade das informações presentes nos campos de diagnósticos e de procedimentos88. Magalhães MC, Bustamante-Teixeira MT. Morbidade materna extremamente grave : uso do Sistema de Informação Hospitalar. Rev Saude Publica 2012; 46(3):472–478.,99. Magalhães MC, Bustamante-Teixeira MT. Morbidade materna extremamente grave a partir dos registros de internação hospitalar do Sistema Único de Saúde : algoritmo para identificação dos casos. Rev. Bras. Saúde Matern. Infant. 2013; 13(1):17–22.. Isso é reflexo da lógica de utilização desse sistema, que ainda é voltada para o pagamento da assistência às unidades de saúde e não à vigilância epidemiológica. Muitas vezes, os campos são preenchidos com códigos de procedimentos que possuam maior valor agregado a fim de aumentar a captação de recursos88. Magalhães MC, Bustamante-Teixeira MT. Morbidade materna extremamente grave : uso do Sistema de Informação Hospitalar. Rev Saude Publica 2012; 46(3):472–478.. Nesse sentido, o SIH-SUS não tem sido considerado adequado para o monitoramento de alguns agravos, dentre eles o near miss materno, por apresentar baixa acurácia1010. Nakamura-Pereira M, Mendes-Silva W, Dias MAB, Reichenheim ME, Gustavo Lobato. Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS): uma avaliação do seu desempenho para a identificação do near miss materno. Cad Saude Publica 2013; 29(7):1333–1345.. Finalmente, há limitações inerentes ao uso do SIH-SUS utilizando o critério de Waterstone et al.77. Waterstone M, Bewley S, Wolfe C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. BMJ 2001; 322(7294):1089–1093. adotado neste estudo, que é a não identificação dos casos de síndrome HELLP por falta de código do CID-10 que caracterize essa condição, além da não utilização de outros de procedimentos que também podem ser utilizados para a identificação de casos de near miss, o que pode ter causado uma subestimação da razão obtida.

No entanto, é importante ressaltar que os resultados deste estudo são semelhantes aos de anteriores que também utilizaram o SIH-SUS para identificação dos casos de near-miss materno88. Magalhães MC, Bustamante-Teixeira MT. Morbidade materna extremamente grave : uso do Sistema de Informação Hospitalar. Rev Saude Publica 2012; 46(3):472–478.,1111. Sousa MH, Cecatti JG, Hardy EE, Serruya SJ. Severe maternal morbidity (near miss) as a sentinel event of maternal death. An attempt to use routine data for surveillance. Reprod Health 2008; 5: 6.. Quanto à sua generalização, é preciso salientar que, apesar de ser um estudo que utilizou os dados de municípios do RN, os resultados encontrados apontam para questões relacionadas às iniquidades sociais que são refletidas nos serviços de saúde e que interferem na ocorrência de desfechos adversos da saúde materna, inclusive no near miss materno e, consequentemente, na morte materna. A ocorrência de iniquidades em saúde pode ser constatada não apenas em regiões pouco desenvolvidas, mas também em regiões desenvolvidas22. Graaf J, Steegers E, Bonsel G. Inequalities in perinatal and maternal health. Curr Opin Obstet Gynecol 2013; 25(2):98–108. e as intervenções para evitar tais desfechos, contemplam desde políticas públicas mais amplas, incluindo ações na área da educação, emprego, apoio social, até questões mais direcionadas à assistência materna, tanto na atenção básica, quanto na especializada.

Diante do exposto, é possível concluir que a ocorrência de near miss materno está relacionada a condições socioeconômicas desfavoráveis e a uma assistência na atenção básica de pior qualidade. Além disso, é preciso ressaltar que os determinantes socioeconômicos e a organização dos serviços, tanto na atenção básica, quanto nos níveis mais complexos de atenção, são reflexo das políticas públicas e interferem na saúde da mulher. Diante da possibilidade de utilização do near miss materno como um evento sentinela ao óbito materno, que deve ser utilizado na perspectiva da vigilância, é importante o fortalecimento dos sistemas de informação em saúde no SUS, especialmente o SIH-SUS, para a disseminação da cultura de sua utilização como uma ferramenta de aperfeiçoamento da assistência materna.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2016

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2014
  • Revisado
    09 Mar 2015
  • Aceito
    11 Mar 2015
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