Pesquisa qualitativa como vocação?

Qualitative research as a vocation?

Rodrigo Otávio Moretti-Pires Douglas Francisco Kovaleski Sobre os autores

No editorial “Artigo qualitativo em foco”11. Minayo MCS, Diniz D, Gomes R. O artigoqualitativo em foco. Cien Saude Colet 2016; 21(8):2326–2326. os autores defendem a abertura de “uma conversa franca” sobre publicações de artigos qualitativos. O grande problema de abrir uma conversa franca é o velho dilema entre a verdade e a perpetuação de convenções sociais para a manutenção de algumas estruturas, já que há certa tradição de se observar “[…] a ciência engendrando-se a si própria”, tal como apontado por Pierre Bourdieu22. Bourdieu P. Os usos sociais da ciência. São Paulo: Editora UNESP; 2004., para quem a ciência é capital simbólico particular e refere-se ao “fazer ver e a fazer valer uma determinada maneira de ver”. Bourdieu afirma que essas caracteristicas se manifestam, por exemplo, no financiamento e na predominância de publicações de determinados tipos de fazer ciência em detrimento de outros, defendendo que os conflitos científicos são lutas de e por poder, tratando-se de “[…] um jogo no qual as regras do jogo estão elas próprias postas em jogo”22. Bourdieu P. Os usos sociais da ciência. São Paulo: Editora UNESP; 2004..

Ao nos depararmos com o editorial, pensamos no risco de se privilegiar as instruções de “como fazer pesquisa” – especialmente no caso das Ciências Sociais em Saúde – sem discussão epistemológica de base, e pautada tão somente nos fatores de recusa de artigos em períodicos. Essa questão nos alertou para como é fundamental, ainda que tarde, uma revisão dos prossupostos até então utilizados na Saúde Coletiva, a começar pela divisão Quali/quanti. Podemos pensar no que alertam Adorno & Hokheimer33. Adorno T, Horkheimer M. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar; 1986. ao referir que o problemático não é “[…] apenas a atividade, mas o sentido da ciência”.

Trata-se também de uma questão de debater a origem do campo: a Saúde Coletiva constitui-se primordialmente de profissionais da saúde, formados hegemonicamente sob a égide do modelo biomédico, que é distante da complexidade da Saúde Coletiva, a qual demanda matrizes teóricas provenientes das Ciências Humanas e Sociais em diálogo com outros campos do saber. Não são os métodos que caracterizam essas matrizes teóricas. Os métodos as servem, não o contrário.

Há riscos a uma agenda de pesquisa em Saúde Coletiva pautada no pragmatismo biomédico do qual é herdeira, assim como no produtivismo neoliberal da academia, estimulado pelas agências de controle e fomento. Ou seja, um verdadeiro e perigoso afã produtivista e preocupado com a rápida resolução de problemas paira sobre a Saúde Coletiva. Há consequências nessa posição do pesquisador diante do objeto: a primeira é uma preocupação com o “fazer” extremada – responder, publicar sem refletir adequadamente e aprofundar-se teoricamente nos fenômenos sociais estudados, o que produz uma superficialidade gritante nas discussões e até mesmo nas respostas perseguidas; a outra, que é decorrente da primeira, é um direcionamento pragmático do método, que, na grande maioria das vezes, separado da teoria, destituído de uma compreensão comum às Ciências Sociais e Humanas.

Ao dividir dicotomicamente os métodos de pesquisa da Saúde Coletiva valoriza-se o fazer em detrimento do por que da pesquisa e acentua-se a compreensão do método como simples ferramenta, como prescrição. Não é o método que deve reger a pesquisa, mas os fenômenos sociais que ela analisa. Não publicar significa apenas não se enquadrar em receitas de como fazer? Entendemos que as rupturas (ou tentativas de) são necessárias para avanços do conhecimento. Dessa forma, assumimos o risco de colocar o que pensamos por mais que desagrade à “comunidade científica/acadêmica”, relembrando uma das mais célebres observações de Max Weber sobre a produção de conhecimento no mundo contemporâneo: a de que fazer ciência demanda “[…] intuição que não pode ser forçada. As ideias nos chegam quando lhes apraz, e não quando queremos”44. Weber M. A Ciência como vocação. In: Weber M. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1974. p.154–183..

Referências

  • 1
    Minayo MCS, Diniz D, Gomes R. O artigoqualitativo em foco. Cien Saude Colet 2016; 21(8):2326–2326.
  • 2
    Bourdieu P. Os usos sociais da ciência São Paulo: Editora UNESP; 2004.
  • 3
    Adorno T, Horkheimer M. A dialética do esclarecimento Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar; 1986.
  • 4
    Weber M. A Ciência como vocação. In: Weber M. Ensaios de Sociologia Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1974. p.154–183.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2017
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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