Percepções de gestores estaduais da saúde sobre o Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde no Ceará, Brasil

Neusa Goya Luiz Odorico Monteiro de Andrade Ricardo José Soares Pontes Fábio Solon Tajra Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto Sobre os autores

Resumo

O Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde (COAP), instrumento jurídico instituído pelo Decreto 7.508/2011, objetivou selar acordos sanitários entre os entes federados para uma gestão cooperada da Região de Saúde. Realizou-se uma pesquisa qualitativa com referencial hermenêutico para compreender as percepções de gestores estaduais da saúde do Ceará, Brasil, sobre a produção e efeitos do COAP na experiência do estado. Para isso, foram utilizadas entrevistas abertas e análise documental. Observou-se o fortalecimento da regionalização no âmbito do governo, além de ganhos institucionais com a implantação de Ouvidorias e Sistema Nacional de Gestão da Assistência Farmacêutica; informações da força de trabalho e transparência do recurso orçamentário-financeiro por ente federado. (Re)visitaram-se problemas como: baixa institucionalidade do funcionamento em rede e da capacidade do Estado de regulação e o subfinanciamento. A governança regional se fez restrita ao âmbito do governo, coordenada pelo ente estadual e em predomínio do tipo burocrático hierárquico. O COAP inaugurou uma Regionalização Contratual Interfederativa, mas revelando baixa institucionalidade no SUS e impotência para consecução de seus princípios, dado o não enfrentamento de problemas estruturais em cooperação trina.

Sistema Único de Saúde; Política pública de saúde; Regionalização

Introdução

O Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde (COAP), preconizado pelo Decreto 7.508/201111. Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei n. 8080/90, para dispor sobre a organização do SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 29 jun., trouxe a possibilidade jurídico-legal de uma gestão cooperada22. Santos L. Sistema Único de Saúde: os desafios da gestão interfederativa. Campinas: Saberes Editora; 2013.,33. Santos L, Andrade LOM. Rede Interfederativa de saúde. In: Silva SF, organizador. Redes de Atenção à Saúde: desafios da regionalização no SUS. Campinas: Saberes Editora; 2013. p. 35-74. do Sistema Único de Saúde (SUS), fortalecendo a lógica do sanitarismo federalista brasileiro44. Dourado DA, Elias PEM. Regionalização e dinâmica política do federalismo sanitário brasileiro. Rev. Saude Publ [periódico na Internet] 2011 fev [acessado 2014 Set 30];45(1):[cerca de 8 p.]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsp/v45n1/1944.pdf
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,55. Santos L, Campos GWS. SUS Brasil: A região de saúde como o caminho. Saude e Soc 2015; 24(2):438-446..

Constitui-se como instrumento de caráter plurilateral, com responsabilidades, competências e acordos sanitários entre os entes federados, definidos em planejamento integrado das ações e serviços de saúde, nas Regiões de Saúde (RS), expressando processos e fluxos de organização e funcionamento do Sistema, compromissos e metas das esferas de gestão do SUS quanto à garantia do direito à saúde11. Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei n. 8080/90, para dispor sobre a organização do SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 29 jun..

A aplicabilidade do COAP ao âmbito regional possibilitou a instrumentalização dos entes federados na gestão da RS, cuja territorialidade não dispõe de conformação governamental correspondente no federalismo brasileiro. Entre os gestores do SUS, é destacada a indefinição de papéis quanto à esfera responsável pela garantia do acesso à serviços de maior densidade tecnológica na Região66. Shimizu HE. Percepção dos gestores do Sistema Único de Saúde acerca dos desafios da formação das Redes de Atenção à Saúde no Brasil. Physis, [periódico na Internet] 2013 Out-Dez [acessado 2014 jun 10];23(4):[cerca de 22 p.]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v23n4/05.pdf
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. Alguns autores77. Mendes A, Louvison M. O debate da regionalização em tempos de turbulência no SUS. Saude e Soc 2015; 24(2):393-402.,88. Viana ALD, Miranda AS, Silva HP. Segmentos institucionais de gestão em saúde: Descrição, Tendências e Cenários Prospectivos. [Textos para discussão Saúde Amanhã na Internet] 2015 [acessado 2015 abr 04] 2:[cerca de 18 p.]. Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: https://saudeamanha.fiocruz.br/sites/saudeamanha.fiocruz.br/files/u35/2%20-%20PJSSaudeAmanha_Texto0002_final.pdf
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problematizam a ausência de uma autoridade sanitária regional, debatendo sobre qual institucionalidade deveria assumir a gestão de equipamentos regionais. Outros55. Santos L, Campos GWS. SUS Brasil: A região de saúde como o caminho. Saude e Soc 2015; 24(2):438-446., indicam possibilidades de superação deste limite em modelos de gestão regional, atrelando a eles o COAP.

A proposição do COAP põe em discussão a exigência de atualização do Pacto Federativo em torno da saúde, sob o exercício de uma gestão trina cooperada e regionalizada, em abertura às necessidades e dinâmicas locorregionais. A efetivação de acordos intergovernamentais impõe-se como estratégico à integralidade em saúde, dada a interdependência municipal e a complementariedade em rede de serviços33. Santos L, Andrade LOM. Rede Interfederativa de saúde. In: Silva SF, organizador. Redes de Atenção à Saúde: desafios da regionalização no SUS. Campinas: Saberes Editora; 2013. p. 35-74.,99. Fleury S, Ouverney AM. Gestão de Redes: a estratégia de regionalização da política de saúde. Rio de Janeiro: FGV; 2007.,1010. Santos L, Andrade LOM. SUS: O espaço da gestão inovada e dos consensos interfederativos - aspectos jurídicos, administrativos e financeiros. Campinas: Instituto de Direito Sanitário Aplicado; 2007..

No cenário nacional, o COAP foi implantado no Mato Grosso do Sul e no Ceará, perfazendo 6% das Regiões estruturadas no país. No Ceará, a adesão ao COAP foi de 100% de suas Regiões, destacando-o como solo fértil para estudos que problematizam e analisam a regionalização da saúde em diálogo com a instituição do COAP, no contexto do federalismo brasileiro. A regionalização da saúde no Ceará está em processualidade desde meados de 1990 até os dias atuais, situando-o como um estado de forte tradição na descentralização do SUS1111. Lima LD, Viana ALD. Descentralização, regionalização e instâncias intergovernamentais no Sistema Único de Saúde. In: Viana ALD, Lima LD organizadoras. Regionalização e relações federativas na política de saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 39-63..

Nessa perspectiva, este artigo objetiva compreender as percepções de gestores estaduais da saúde do Ceará sobre a implantação do COAP no Estado, analisando suas implicações na regionalização e na produção do direito à saúde, em diálogo com o federalismo brasileiro. Considera-se que o desenho de novos campos de visibilidade e dizibilidade da regionalização da saúde, à luz do COAP, é potente à discussão de pistas de como prosseguir na regionalização da saúde e produção do SUS constitucional.

Percurso Metodológico

Trata-se de um estudo qualitativo, desenvolvido de 2013 a junho de 2015, que adotou como cenário o Ceará constituído por cinco Macrorregiões de Saúde e 22 RS, das quais 20 assinaram o COAP em 2012 e as demais em 2014. A produção das informações se deu por análise documental dos COAP, além de entrevistas abertas1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2000. com gestores estaduais de saúde, sendo 5 do nível central da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (SESA) e 18 representantes das suas Coordenadorias Regionais de Saúde (CRES). Todos os entrevistados foram informados sobre os objetivos da pesquisa e convidados a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Garantiu-se o sigilo e o anonimato dos envolvidos.

A escolha dos gestores estaduais de saúde, como sujeitos participantes do estudo, considerou que a construção do COAP foi coordenada pela SESA, tendo as CRES como instâncias descentralizadas de comando, articulação e execução desse processo nas RS. Para inclusão dos sujeitos no estudo, adotou-se como critérios: sua participação e articulação direta na produção do COAP; suas funções exercidas na SESA, tanto no nível central como nas CRES, considerando que tais funções ampliavam ou não suas responsabilidades de produção do COAP; sua vinculação com o processo de regionalização da saúde do Ceará. Em relação aos gestores de saúde das CRES, acresceu-se o critério de inclusão dos que atuavam em uma das Regionais de Saúde, de modo a contemplar a representação de todas as macrorregiões do estado: Fortaleza, Sobral, Litoral Leste/Jaguaribe, Sertão Central e Cariri.

Uma das potências da abordagem qualitativa é o desvelamento compreensivo e interpretativo da experiência vivida1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2000.. Nesse sentido, foi pedido ao entrevistado a abordagem de sua trajetória profissional, traçando os caminhos percorridos até chegar à sua posição atual. A questão norteadora indagou sobre a regionalização da saúde e a adesão ao COAP, possibilitando ao entrevistado discorrer sobre o tema segundo seu olhar e experiência construída.

As entrevistas foram gravadas e transcritas, constituindo os textos narrativos da pesquisa, sendo destacados nos Resultados como Entrevistado 1 (E1) e assim sucessivamente. Não houve a identificação do nível, central ou regional, ocupado pelo entrevistado, considerando a condição de ambos como gestores estaduais de saúde.

Adotou-se para análise o método hermenêutico por considerá-lo adequado à abordagem qualitativa, à compreensão e à interpretação de fenômenos contextualizados na realidade e materializados na comunicação em seu núcleo central que é a linguagem, no caso, transcrita em texto1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2000.,1313. Ricouer P. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés; 1986.. A interpretação comporta uma multiplicidade de sentidos, articulada pela distanciação e apropriação. Pela distanciação, a palavra escrita ganha autonomia em relação às intenções de seu autor, objetivando-se para o exercício da interpretação, enquanto que pela apropriação, o leitor, uma vez distanciado das intenções do autor, apropria-se da “coisa do texto”, compreendendo não só o texto como também a si mesmo1313. Ricouer P. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés; 1986..

A análise das informações qualitativas se deu por meio da leitura das entrevistas em texto e narrativas documentais, permitindo a impregnação pelo sentido do todo desse conjunto, possibilitando o exercício explicativo, compreensivo e interpretativo de forma profunda e contextualizada, conforme recomenda a hermenêutica1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 2000.,1313. Ricouer P. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés; 1986..

O que se encarna, então, neste artigo, é a tecitura das conexões entre as coisas e os atos realizados na implantação do COAP e suas implicações, segundo as percepções de gestores estaduais de saúde, em diálogo com a regionalização e o federalismo brasileiro. Entre as dimensões trabalhadas, possibilitadas pela compreensão do texto analisado, destacam-se: governança regional; organização e funcionamento das redes de atenção à saúde e regulação assistencial.

Este artigo é um dos produtos vinculado à Pesquisa ‘Modelo de Governança, Regionalização e Redes de Atenção à Saúde no Estado do Ceará: Contexto, Condicionantes, Implementação e Resultados’, do Programa de Pesquisa para o SUS. Foi financiado pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP) e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Ceará.

Resultados

A adesão ao COAP, pelo estado do Ceará, foi uma decisão política que contou com a participação direta do ministro da saúde, do governador e dos prefeitos municipais, via Associação dos Prefeitos do Estado do Ceará (APRECE) e dos secretários municipais de saúde, por meio do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS). Para dar conta dessa decisão política, no ano de 2012, a prioridade de todas as ações da Secretária de Saúde, como demanda para as regionais (referindo às CRES), seria a construção dessa agenda do COAP (E2), conferindo aos coordenadores e suas equipes o exercício de funções políticas e técnicas no âmbito da RS.

Dois mil e doze foi um ano eleitoral, potencializando no calendário do COAP o atropelamento do tempo técnico pelo tempo político (E1). Entre os gestores, foi recorrente o sentido de que o COAP tinha aqui uma data X para a gente finalizar e aquela data X era menos de um ano (E15), configurando o sentido de vamos fazer porque o momento político é este, se não fizermos agora talvez não consigamos fazer amanhã, então, vamos fazer e depois a gente faz um aditivo e ajusta o que precisar (E14).

A supremacia do momento político sobre o momento técnico gerou problemas centrais ao COAP no tocante a sua dimensão organizativa. O primeiro referiu-se à manutenção e ao uso da Programação Pactuada e Integrada (PPI) em curso. Uma PPI que a gente tinha que reformular, tinha que fazer algumas alterações e não tinha dinheiro novo [...] e aí os municípios só alteraram poucas coisas (E8). Manteve-se a lógica da programação de procedimentos e capacidade de oferta irreal, substituindo o preconizado pelo Decreto 7.508, que era a utilização da Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES).

Outro problema, em diálogo com o primeiro, foi a falta de atualização do Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES). A impossibilidade de execução desses dois pilares básicos dificultou a identificação real dos vazios assistenciais e da capacidade de oferta do Sistema. E isso, mesmo com a utilização do Mapa da Saúde, que está muito longe de fornecer a análise, definida lá no Decreto do COAP como sendo uma análise da capacidade instalada dinâmica e essa análise envolve o conhecimento de rede privada e pública e esse conhecimento não está disponível (E14). Em consequência, o Sistema, mesmo regionalizado, não teria como dar vazão aos fluxos assistenciais programados e, muito menos, a operar sob a lógica das necessidades em saúde da população.

Apesar dos atropelos do tempo técnico pelo tempo político, a produção do COAP foi assegurada mediante a coesão político-técnica constituída no contexto de regionalização da saúde no estado. Coesão essa garantida por um quadro profissional estável da SESA, operando a regionalização desde meados de 1990, tanto no âmbito central como nas CRES. Especialmente, nas gestões de 2007 a 2014, sob a condução direta do governador nas pautas da saúde, além dos prefeitos municipais.

Entretanto, a coesão político-técnica não foi identificada em relação ao Ministério da Saúde. Segundo as narrativas, a condução do processo teria sido dada pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (SGEP). As demais Secretarias ministeriais teriam se engajado mais tardiamente (E1), dificultando a produção do documento-contrato como o enfrentamento cooperado trino de problemas estruturais do SUS, apontados na sequência.

A elaboração do COAP constituiu-se, assim, como um intenso e complexo processo coordenado pelos gestores estaduais de saúde, sob o reconhecimento de que a gente passou muito tempo estagnada e aí de repente vem a construção das redes de atenção, vem o COAP e dá uma reviravolta no SUS [...] porque estava avançando muito devagar (E9). O COAP se fez em “aprendizado tecido à luz de noites e noites de trabalho (E6). Uma vez finalizados, continham, em média, mais de 300 páginas, chegando até a 500 páginas, ou mais. Mas quais as implicações do COAP na produção da regionalização da saúde?

Um olhar para regionalização da saúde: o que o COAP mudou?

O COAP foi considerado um avanço em relação ao Pacto pela Saúde, destacando a positividade da responsabilização federativa trina pelo direito à saúde. Entretanto, a assunção cooperada das metas regionais soam, ainda, como desafio, em submissão aos interesses de cada ente federado e aos recursos financeiros insuficientes para dar conta do atendimento referenciado.

Diferentemente do Pacto pela Saúde, o COAP é reconhecido como um instrumento norteador no planejamento regional, em que a gente não está mais somente pactuando indicadores, está propondo ações, está propondo investimentos, está propondo outras situações, por isso que ele é um norte (E11). Acresce-se a isso o exercício do monitoramento e a avaliação, requerido pelo COAP para a (re)atualização dos pactos, metas e processos, dada sua natureza contratual. Segundo as narrativas, o COAP não estaria sendo igual ao Pacto pela Saúde, no qual muitas vezes você tinha aquele termo de compromisso que os prefeitos assinavam (Termo de Compromisso de Gestão), mas eles não tinham, eles assinavam e colocavam na gaveta (E18).

A transparência orçamentária dos recursos financeiros disponibilizados para a saúde foi outro aspecto ressaltado. Por outro lado, o registro das previsões orçamentário-financeiras não implicou, em alguns municípios, no manuseio autônomo da ‘caixa preta’ do orçamento e financiamento da saúde, mostrando-se como uma área, ainda, de não domínio por parte dos secretários, desfavorecendo o desenrolar do que foi planejado.

Entre as narrativas mais consensuais, houve o indicativo de fortalecimento institucional da Comissão Intergestores Regional (CIR) para discussão e negociação federativa. O COAP, em 2012, foi uma das suas principais pautas, tendo acontecido nesse espaço as pactuações para sua elaboração e implementação posterior. Houve, também, uma maior institucionalidade das suas Câmaras Técnicas, destacando-se a implantação de Câmaras de Auditoria e de Assistência Farmacêutica em algumas Regiões. Tratam-se de áreas estimuladas pelo COAP, seja em sua Parte 4, de Monitoramento, Avaliação de Desempenho e Auditoria ou nas metas relacionadas à Diretriz da Assistência Farmacêutica com a implantação do Sistema Nacional de Gestão da Assistência Farmacêutica – HÓRUS.

Foram registrados avanços organizacionais relacionados à implantação de Ouvidorias e HÓRUS municipais, além do registro da informação sobre a força de trabalho existente na rede, que possibilitou o conhecimento sobre quantos trabalhadores do estado nós tínhamos dentro das Regiões (E3), até então invisível no Sistema.

O estudo destacou a instituição dos Fóruns Regionais de Conselheiros, os quais permanecem em realização. Os Fóruns abrigaram discussões entre os conselheiros de saúde e gestores municipais e estaduais de sua respectiva Região, apontando para um grande avanço, depois do Decreto 7.508, porque até então, eu não tinha tido experiência de discussões nos Fóruns Regionais de Conselheiros Municipais de saúde sobre mapa da saúde, sobre as doenças da região e não só daquele município, sobre o COAP (E19). Mas, reiterou, também, a lacuna existente de uma instância de deliberação no âmbito regional e apontou a qualificação da participação dos conselheiros como um desafio na gestão do SUS e no exercício do controle social.

(Re)visitando os desafios da regionalização da saúde: o que o COAP não possibilitou?

O funcionamento do sistema em rede, a regulação assistencial, o financiamento e a educação permanente em saúde destacaram-se como os grandes desafios do Sistema e da implementação do COAP.

Conforme narrativa, a noção de regionalização, a gente aprende quando já está em um nível de coordenação (E9), limitando-se, portanto, mais ao exercício dos gestores, em que o profissional que está lá na ponta ele não tem muita noção disso. Ele está preocupado ali, com o território que ele trabalha e para ele ter conhecimento de onde ele vai referenciar, para quem ele vai referenciar, fica muito no âmbito do município, passou daí o problema é da Secretaria de Saúde (E9).

O distanciamento entre o planejado e o executado foi perceptível, apontando a perspectiva de que o problema não se centra no desenho da rede ou em sua concepção, mas no fazer depois, condicionado ao cumprimento das pactuações intermunicipais, à regulação e ao apoio logístico, além do necessário entendimento por parte dos profissionais que integram a rede.

A educação permanente em saúde foi explicitada como necessária para que todos tenham uma informação, que a gente chama base, para você garantir a comunicação horizontal e a formação das equipes multiprofissionais [...] porque a conduta ela tem que ser na totalidade da unidade (E1). Foi indicado, assim, que a organização e o funcionamento em rede requerem mais do que a planificação do desenho assistencial em si pela gestão. A resolutividade das redes temáticas inclui, também, o conhecimento e a prática específicos e especializados.

A regulação assistencial surgiu como outro grande desafio na regionalização, nos marcos de implementação do COAP e das Redes Temáticas, apontando para uma porta da informalidade muito mais efetiva no acesso do que a porta oficial e, assim, denotando a fragilidade real do papel regulador do Estado, uma fragilidade muito presente no Pacto, e ao longo desse processo, quando do Decreto 7.508 (E1).

Outro desafio posto, todos os secretários que pactuaram o COAP vão dizer a mesma coisa [...] o problema é financiamento (E10). A adesão ao COAP não trouxe novos recursos. A possibilidade de captura de novos recursos estava na organização das redes temáticas, mas, mesmo assim, com dificuldades.

No financiamento, outras questões surgiram (re)visitando pautas antigas como a revisão da Tabela SUS, em que a totalidade de procedimentos pactuados em PPI não tem como ser cumprida dada a defasagem de valor em relação ao praticado no mercado. Neste cenário, o estudou reiterou o já posto: como é que eu vou estar responsável por uma outra população, se eu não tenho como oferecer o serviço e meu financiamento continua o mesmo? (E9).

Discussão

Marcadores políticos da regionalização da saúde em produção do COAP: os caminhos da governança regional

O sentido e a materialidade da governança devem ser compreendidos e forjados em meio à capacidade dos atores integrantes da política de construir um quadro institucional estável que favoreça: i) a participação e a negociação de uma ampla gama de atores; ii) a administração de conflitos e o estabelecimento de relações cooperativas entre atores (governos, organizações e cidadãos); iii) o estabelecimento de uma ação coordenada, direção ou rumo voltado para a consecução de metas e objetivos definidos e acordados1111. Lima LD, Viana ALD. Descentralização, regionalização e instâncias intergovernamentais no Sistema Único de Saúde. In: Viana ALD, Lima LD organizadoras. Regionalização e relações federativas na política de saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 39-63..

Impõe-se, desse modo, a atenção sobre as conexões entre Estado, Sociedade e Mercado, em suas diferentes representações, estabelecendo a “governança como a ação de governar, incluindo o exercício de poder e a condução da política pública, em um processo que envolve relações entre múltiplos atores em contextos institucionais específicos”1414. Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG. Quem governa e como se governam as regiões e redes de atenção à saúde no Brasil? Contribuições para o estudo da governança regional na saúde. [material na Internet] 2016 [acessado 2016 maio 20]. Novos Caminhos, n.8. [cerca de 13 p.]. Disponível em: http://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2016/02/Novos-Caminhos-8.pdf
http://www.resbr.net.br/wp-content/uploa...
. Perspectiva reiterada por Andrade1515. Andrade LOM. Inteligência de Governança para apoio à Tomada de Decisão. Cien Saude Colet 2012; 17(4):829-832., em que a governança requer “mecanismos informais de caráter não governamental”.

Entretanto, a regionalização da saúde no Brasil tem se constituído mediante a institucionalização de uma governança que privilegia a participação e o diálogo entre os gestores federados do SUS. Entre outros aspectos, isso pode estar contribuindo para fragilizar a articulação do Sistema em rede, considerando a complexidade da produção da saúde e da prestação de serviços por uma multiplicidade de instituições e sujeitos, governamentais e não governamentais, públicos e privados.

No Ceará, marcadores políticos, tecidos ao longo da regionalização da saúde no estado, esboçam uma governança regional com centralidade nos propósitos e atuação governamentais, não tendo o movimento de adesão e produção do COAP se diferenciado deste regime, não por uma escolha local dos seus gestores, mas por um conjunto de normativas que induzem fortemente tal conformação discursiva e prática.

Destacam-se, portanto, marcadores políticos como: i) a participação decisória dos representantes formais dos governos estadual e municipais nas pautas da saúde, incluindo o governador e os prefeitos; ii) a coordenação do processo pela Secretaria Estadual da Saúde; iii) a forte institucionalização das Comissões Intergestores Regionais como espaço de pactuação e relação interfederativa; e, mais recentemente, iv) a constituição de Fóruns Regionais de Conselheiros.

O estudo apontou para o desenho de marcadores políticos que fortalecem uma “governança burocrática hierárquica”, marcada pela “autoridade pública para definir prioridades e fronteiras de direito”88. Viana ALD, Miranda AS, Silva HP. Segmentos institucionais de gestão em saúde: Descrição, Tendências e Cenários Prospectivos. [Textos para discussão Saúde Amanhã na Internet] 2015 [acessado 2015 abr 04] 2:[cerca de 18 p.]. Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: https://saudeamanha.fiocruz.br/sites/saudeamanha.fiocruz.br/files/u35/2%20-%20PJSSaudeAmanha_Texto0002_final.pdf
https://saudeamanha.fiocruz.br/sites/sau...
, frente à impotente institucionalidade do Estado na “governança de rede”, potencializando a “governança de mercado” nas relações de produção do SUS, fortalecendo a lógica empresarial.

Coloca-se, então, a urgência em discutir os padrões de governança em curso, fortalecido pelo campo discursivo-prático legal em desenvolvimento no SUS Regional. É preciso ampliar os sujeitos em diálogo e reconhecer a multiplicidade de atores no exercício da política de saúde, adotando, para isso, a governança em produção de “mecanismos – recursos, contratos e acordos – complementares à autoridade e às sanções da esfera pública”88. Viana ALD, Miranda AS, Silva HP. Segmentos institucionais de gestão em saúde: Descrição, Tendências e Cenários Prospectivos. [Textos para discussão Saúde Amanhã na Internet] 2015 [acessado 2015 abr 04] 2:[cerca de 18 p.]. Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: https://saudeamanha.fiocruz.br/sites/saudeamanha.fiocruz.br/files/u35/2%20-%20PJSSaudeAmanha_Texto0002_final.pdf
https://saudeamanha.fiocruz.br/sites/sau...
, potencializando seu exercício para auxiliar “na compreensão das múltiplas variáveis e multiníveis de ações que influenciam o desempenho de uma determinada política pública”88. Viana ALD, Miranda AS, Silva HP. Segmentos institucionais de gestão em saúde: Descrição, Tendências e Cenários Prospectivos. [Textos para discussão Saúde Amanhã na Internet] 2015 [acessado 2015 abr 04] 2:[cerca de 18 p.]. Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: https://saudeamanha.fiocruz.br/sites/saudeamanha.fiocruz.br/files/u35/2%20-%20PJSSaudeAmanha_Texto0002_final.pdf
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Nessa perspectiva, os marcadores políticos da governança regional do Ceará requerem reflexões. A participação ativa do governador e dos prefeitos municipais na instituição do COAP configurou uma governança regional do SUS, também alinhavada por acordos políticos ‘externos’ às instâncias de deliberação do Sistema, como os Conselhos de Saúde, e àquelas de pactuação, como às Comissões Intergestores. Outras pesquisas alertam para o fato de que “diversas questões e decisões estratégicas para a política de saúde não passam pela CIT (Comissão Intergestores Tripartite) ou são ali abordadas de forma periférica”1616. Lima, LD. A coordenação federativa do sistema público de saúde no Brasil. In: Fundação Oswaldo Cruz. A saúde no Brasil em 2030 - prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: organização e gestão do sistema de saúde [material na Internet]. 2013 [acessado 2015 abr 10];3: [cerca de 69 p.]. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Disponível em: http://books.scielo.org/id/98kjw/pdf/noronha-9788581100173-05.pdf http://books.scielo.org.
http://books.scielo.org...
.

No exercício da “governança burocrática hierárquica”, no Ceará, a centralidade para tomada de decisão estava na esfera estadual, à época sob o comando do governador, operacionalizada pela SESA e suas Regionais, que atuaram como atores estratégicos na coordenação e mobilização de prefeitos e secretários municipais de saúde, quando da elaboração do COAP.

Estudos sobre a regionalização da saúde1717. Ianni, AMZ, Monteiro, PHN, Alves, OSF, Morais, MLS, Barboza, R. Metrópole e região: dilemas da pactuação da saúde. O caso da Região Metropolitana da Baixada Santista, São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica, [periódico na Internet]. 2012 maio [acessado 2015 jun 10]; 28(5):[cerca de 10 p.]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v28n5/11.pdf
http://www.scielo.br/pdf/csp/v28n5/11.pd...

18. Silva, EC, Gomes, MHA. Regionalização da saúde na região do Grande ABC: os interesses em disputa. Saude Soc [periódico na Internet]. 2014 Out-Dez [acessado 2015 jun 10];23(4):[cerca de 14 p.]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v23n4/0104-1290-sausoc-23-4-1383.pdf
http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v23n4/01...
-1919. Kehrig RT, Martinelli NL, Spinelli MAS, Scatena JHG, Ono P, Silva MJV. Antecedentes históricos da regionalização da saúde em Mato Grosso. In: Scatena JHG Kehrig RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: Diversidade e processo de regionalização no Mato Grosso. São Paulo: Hucitec; 2014. p. 111-133., mesmo com variados enfoques, destacam a importância do papel de coordenação desse processo pela Secretaria Estadual de Saúde e suas respectivas instâncias regionais. Porém, outros autores99. Fleury S, Ouverney AM. Gestão de Redes: a estratégia de regionalização da política de saúde. Rio de Janeiro: FGV; 2007. alertam para o desafio decorrente do fato de competir aos gestores estaduais à coordenação da regionalização, considerando que o espaço regional, além de ser desprovido de uma representação política no federalismo brasileiro, é permeado pela maioria de atores e instituições municipais.

Estudo desenvolvido sobre governança regional2020. Santos MAS, Giovanella L. Governança regional: estratégias e disputas para gestão em saúde. Rev Saude Publica 2014; 48(4):622-631. discute a baixa autonomia dos gestores da saúde, em relação ao poder executivo municipal, como uma das barreiras para o fortalecimento das decisões colegiadas. Espera-se que o protagonismo dos prefeitos empodere a representação municipal nas pautas locorregionais, influenciando as relações interfederativas estabelecidas nas CIR.

Nesse sentido, considerou-se potente à regionalização a participação ativa dos prefeitos na agenda do COAP. E, isso, não só pela possibilidade de legitimação dos acordos assistenciais selados, mas, também, pela possibilidade formativa de uma cultura institucional compartilhada e cooperada.

A superação da ‘cultura individualista’, presente na elaboração e desenvolvimento do COAP, não compete apenas aos municípios. Ela é resultante de uma racionalidade federal que acabou produzindo um tipo de municipalismo autárquico por dentro de uma descentralização tutelada e controlada pelo governo central, principalmente pela via do financiamento, desvirtuando o ideal federalista brasileiro centrado na autonomia administrativa, política e cooperada entre os entes federados.

Há, assim, a necessidade do encontro entre o “federalismo formal” e o “federalismo real”22. Santos L. Sistema Único de Saúde: os desafios da gestão interfederativa. Campinas: Saberes Editora; 2013., ou ainda, a superação dos “dilemas relativos ao Pacto Federativo”1616. Lima, LD. A coordenação federativa do sistema público de saúde no Brasil. In: Fundação Oswaldo Cruz. A saúde no Brasil em 2030 - prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: organização e gestão do sistema de saúde [material na Internet]. 2013 [acessado 2015 abr 10];3: [cerca de 69 p.]. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Disponível em: http://books.scielo.org/id/98kjw/pdf/noronha-9788581100173-05.pdf http://books.scielo.org.
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. Autores2121. Arretche M, Vasquez D, Gomes S. As relações verticais na Federação: explorando o problema da descentralização. In: Arretche M, organizador. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, Editora Fiocruz; 2012. p. 145-202. destacam que a Constituição Federal de 1988 “não alterou a estrutura vertical de distribuição de autoridade das políticas sociais, herdada do regime militar”.

Nesse sentido, indaga-se como efetivar a autonomia federativa em cooperação, pelo COAP, quando grande parte dos recursos financeiros do SUS estão centralizados na esfera federal? Como operacionalizar o COAP e o funcionamento em rede sem a entrada de novos recursos para a consecução das pactuações intermunicipais?

Conflitos de baixa resolução e governança no âmbito regional, à exemplo do financiamento insuficiente e centralizado na esfera federal, permanecem nas relações federadas. A governança regionalizada pressupõe a democratização efetiva das decisões, não cabendo maiores poderes a nenhuma das esferas de gestão1111. Lima LD, Viana ALD. Descentralização, regionalização e instâncias intergovernamentais no Sistema Único de Saúde. In: Viana ALD, Lima LD organizadoras. Regionalização e relações federativas na política de saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 39-63.,1616. Lima, LD. A coordenação federativa do sistema público de saúde no Brasil. In: Fundação Oswaldo Cruz. A saúde no Brasil em 2030 - prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: organização e gestão do sistema de saúde [material na Internet]. 2013 [acessado 2015 abr 10];3: [cerca de 69 p.]. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Disponível em: http://books.scielo.org/id/98kjw/pdf/noronha-9788581100173-05.pdf http://books.scielo.org.
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Na produção e desenvolvimento do COAP, a CIR foi fortalecida como instância de negociação da organização e funcionamento de serviços regionais. Porém, muitos conflitos relacionados ao atendimento intermunicipal, em pauta na CIR, são de difícil resolução, colocando a rede de atenção como um dos grandes desafios para o desenvolvimento do COAP na regionalização da saúde.

Outro marcador político identificado na produção do COAP, que requer maior investigação, diz respeito ao Fórum Regional de Conselheiros, cujo funcionamento retoma uma questão estratégica da governança regionalizada, que é a participação de representantes vinculados às organizações da sociedade civil, reiterando a necessidade de sua ampliação para além do escopo governamental1515. Andrade LOM. Inteligência de Governança para apoio à Tomada de Decisão. Cien Saude Colet 2012; 17(4):829-832..

Atualizando os desafios da regulação em saúde e da organização em rede de atenção à saúde no COAP

O desenvolvimento do COAP acabou esbarrando em questões estruturais do Sistema, cujo enfrentamento real foi postergado em atropelamento do tempo técnico pelo tempo político, despontecializando intervenções para a superação da fragmentação das ações e serviços de saúde.

O estudo apontou para a fragilidade na ordenação e coordenação das redes temáticas, pela atenção básica, reforçando a perda de vínculo e responsabilização para com o usuário que requer um atendimento fora do município, comprometendo a perspectiva usuário-centrada e a integração do movimento em rede.

Portanto, é urgente que a formulação e a operacionalização do desenho em rede extrapole o campo da gestão, incluindo os profissionais e os usuários do SUS, para dar vazão e permeabilidade à regionalização em constituição de “redes de conversação”2222. Teixeira RR. O acolhimento num serviço de saúde entendido como uma rede de conversações. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Construção da Integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: IMS-UERJ/Abrasco; 2003. p. 89-111., em um exercício de microrregulação2323. Santos FP, Merhy EE. A regulação pública da saúde no Estado brasileiro – uma revisão. Interface (Botucatu) 2006; 10(19):25-41., que se faz em produção de “atos vivos de saúde”, permanecendo o desafio de investimento na “micropolítica do trabalho vivo em saúde”2424. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 4ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014..

Outro aspecto a destacar refere-se a não adoção dos dispositivos que deveriam estar associados ao COAP, como a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES) e a Programação Geral de Ações e Serviços de Saúde (PGASS) em substituição à PPI11. Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei n. 8080/90, para dispor sobre a organização do SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 29 jun..

A primeira RENASES, conforme Decreto 7.508, seria a somatória de todas as ações e serviços de saúde já ofertados pelo SUS, diretamente ou não11. Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei n. 8080/90, para dispor sobre a organização do SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 29 jun.. Trata-se de uma limitação às necessidades em saúde, considerando que historicamente o produzido não é suficiente para a garantia da atenção integral. Acresce-se a isso, o subfinanciamento da saúde e a desatualização dos valores da Tabela SUS, reiterados como problemas crônicos do SUS, principalmente no atendimento de serviços de média ou alta complexidade2020. Santos MAS, Giovanella L. Governança regional: estratégias e disputas para gestão em saúde. Rev Saude Publica 2014; 48(4):622-631..

O uso da PPI, enquanto instrumento de gestão, tem como escopo a assistência à saúde, de elaboração por ente federado, com abertura programática restrita à Tabela de Procedimentos e com uma lógica de funcionamento do Sistema centrado na oferta de procedimentos, passando ao largo das necessidades em saúde da população e acomodando-se ao limite do teto financeiro existente, portanto, com parâmetros de alocação de recursos e estabelecimento de meta física restritos a este teto.

Já a PGASS aponta, normativamente falando, para a constituição de um modelo de atenção à saúde ao incorporar a vigilância à saúde e a assistência farmacêutica, além da tradicional área assistencial, ultrapassando o escopo de um modelo assistencial. As necessidades devem ser identificadas em coerência com a regionalização e o desenho em rede, quando de sua formação; pressupõe o agrupamento de procedimentos, ampliando a perspectiva do cuidado em saúde que não se restringe ao procedimento, mas a um conjunto de ações e serviços agrupados com vistas à integralidade11. Brasil. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei n. 8080/90, para dispor sobre a organização do SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 29 jun..

Outro aspecto diferencial da PGASS refere-se à utilização de parâmetros para definição de metas físicas dissociados da alocação financeira, portanto, sem se restringir ao limite do teto financeiro existente, indicando a possibilidade de tensionamento para o aumento dos recursos financeiros frente às necessidades identificadas.

Nesse sentido, a manutenção do uso da PPI acabou fragilizando, no COAP, a pactuação dos fluxos de atendimento intermunicipal, a organização sistêmica e em rede, além de incapacitar, ainda mais, a efetiva regulação em saúde por parte dos gestores do SUS, conforme indicado nos resultados deste estudo.

A lógica da programação das ações e serviços de saúde, no âmbito regional, restringiu-se a área assistencial e centrou-se, mais uma vez, em uma ‘suboferta’ da capacidade instalada, dado o desconhecimento da capacidade real do setor complementar, reiterando a necessidade de uma regulação em saúde efetiva sobre o setor privado.

Nesse contexto, o cumprimento do direito à saúde integral põe-se refém da porta de informalidade, desnudando as fragilidades dos entes federados frente à responsabilidade de regulação do Sistema, indicando não se ter ainda um Estado regulador forte, necessário ao SUS que preconiza, a título complementar, a contratação da rede privada.

Considerações Finais

Na regionalização da saúde, o COAP deu visibilidade e dizibilidade à dimensão jurídico-legal em diálogo com a dimensão técnico-política, fortalecendo a governança regional em arranjos institucionais restritos ao governo para ampliar sua capacidade de gestão do SUS. Colocou, assim, em atualização um regime de governança que pode não estar ‘governando’, deixando lacunas para que outros agentes, atuantes no SUS, estejam em relação de poder, dado sua força política e assistencial, determinando regras com implicações na organização e prestação de serviços e na produção constitucional do direito à saúde.

Outros modos de governança regional devem, então, ser aportados. A experiência do Fórum Regional de Conselheiros, embora pautando-se na lógica de governança do Sistema, destaca-se em possibilidade de deslocamento e tecitura de outros sentidos e modos de governar, sendo fundamental novos estudos que aprofundem tal realização.

A atualização de pactos federativos, sob o signo do COAP, fortaleceu a perspectiva da regionalização da saúde nos governos subnacionais, institucionalizando a existência da Região de Saúde. Porém, apontou que não basta a efetivação contratual para fazer valer a colaboração interfederativa e a organização regional. O documento-contrato não é suficiente para isso, principalmente não havendo consenso político-técnico sobre seu uso, como indicou a experiência do Ceará quanto ao engajamento institucional do Ministério da Saúde.

Há, portanto, que se inventar o movimento-processo, que não só (re)visite os desafios do SUS, mas que desencadeie novas processualidades para o seu enfrentamento. Algumas, induzidas pelo COAP, representaram ganhos de desenvolvimento institucional, como a implantação do serviço de Ouvidoria e do Sistema HÓRUS nos municípios; o conhecimento de informações regionalizadas da força de trabalho estadual e a transparência dos recursos orçamentário-financeiros disponibilizados por cada ente federado. Porém, as incipientes institucionalidades do funcionamento em rede e da regulação assistencial permanecem comprometendo a potência conectiva entre Região e Rede, essencial para o enfrentamento da fragmentação das ações e serviços de saúde e garantia da integralidade.

Assim, põem-se em urgência a revisão do federalismo que permanece sendo mais formal do que real. Dos atropelamentos “do tempo técnico pelo político” nas relações de produção do SUS. Do regime de governança, cujas fronteiras são os próprios braços do Estado. Ou, ainda, das condições crônicas de subfinanciamento e mercantilização crescente das relações de produção da saúde e da prestação de serviços.

O aparecimento real de possíveis virtualidades, produzidas no entremeio do enlace entre Região e Redes, estão, ainda, a requerer processualidades do como fazer o funcionamento da rede, a gestão cooperada, a regulação e o financiamento dos serviços regionais. Isso é um desafio posto na conjugação do federalismo brasileiro com a regionalização da saúde.

Conclui-se que o COAP inaugurou uma Regionalização Contratual Interfederativa, positivando a discursividade da regionalização aliada ao federalismo, mas revelando uma baixa institucionalidade no SUS e impotência para a consecução de seus princípios, dado o não enfrentamento de problemas estruturais em cooperação trina.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2016
  • Revisado
    04 Ago 2016
  • Aceito
    28 Set 2016
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