Uma onda que vem e dá um caixote: representações e destinos da crise em adolescentes usuários de um CAPSi

Melissa de Oliveira Pereira Marilene de Castilho Sá Lilian Miranda Sobre os autores

Resumo

O artigo enfoca os aspectos intersubjetivos envolvidos na atenção à crise psicossocial de adolescentes, suas representações e desdobramentos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, desenvolvida através da perspectiva psicossociológica, através da construção de narrativas de vidas de adolescentes que se tratam num Centro de Atenção Psicossocial para Crianças e Adolescentes (CAPSi). Baseamo-nos nas contribuições teóricas de René Kaës sobre aspectos grupais e culturais da crise, assim como sua relação com a adolescência. As narrativas de vida, construídas através de entrevistas em profundidade com adolescentes, parentes próximos dos mesmos e profissionais do CAPSi, apresentam a crise como “surpresa”, violência e estranhamento, momento que precisa ser esquecido, negado, silenciado e medicalizado. Concluímos que a crise envolve forte sofrimento psíquico por parte do adolescente, pessoas próximas e também profissionais, o que coloca em questão as possibilidades e os limites do cuidado. Apontamos, assim, para a importância de espaços protegidos, na instituição e na rede de saúde, que possibilitem construção coletiva de novos sentidos, representações e destinos da crise, tanto por parte de usuários quanto de profissionais.

Palavras-chave
Adolescência; Crise; Atenção psicossocial; Narrativas de vida; Psicossociologia

Introdução

A atenção às situações de crise psicossocial é considerada um dos aspectos mais difíceis e, ao mesmo tempo, estratégicos da assistência pública em Saúde Mental11. Pitta AMF. Um balanço da reforma psiquiátrica brasileira: instituições, atores e políticas. Cien Saude Colet 2011; 16(12):4579-4589.,22. Dell'acqua G, Mezzina R. Resposta à crise. In: Delgado J. A loucura na sala de jantar. São Paulo: Resenha; 1991. p. 53-79.. A crise é uma experiência complexa, que envolve importante sofrimento psíquico, frequentemente associado a vivências de estranhamento, despersonalização, perda de referências identitárias, desorientação e descontrole, entre outras experiências dolorosas do ponto de vista psíquico e de difícil compreensão. Por isso, o sofrimento inerente à crise não se restringe ao sujeito que a vivencia diretamente, mas se estende a seus familiares, pessoas próximas e profissionais envolvidos na sua assistência, podendo, inclusive, gerar um circuito de internações ineficazes33. Pereira MO, Sá MC, Miranda L. Um olhar sobre a atenção psicossocial a partir do itinerário terapêutico de adolescentes em crise. Cad Saude Publica 2014; 30(10): 2145-2154.. O tema da crise psicossocial torna-se ainda mais relevante quando focalizamos a problemática dos adolescentes que vivem, além de mudanças e conflitos próprios a esse momento de vida, um quadro de transtorno mental grave, aspecto ainda pouco explorado em textos acadêmicos e documentos oficiais44. Braga CP, D'Oliveira AFLP. A continuidade das internações psiquiátricas de crianças e adolescentes no cenário da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Interface (Botucatu) 2015; 19(52):33-44.,55. Lauridsen-Ribeiro E, Tanaka OU, organizadores. Atenção em Saúde Mental para crianças e adolescentes no SUS. São Paulo: Hucitec; 2010..

Embora hegemônica, a concepção de crise da Psiquiatria tradicional66. Kaplan HI, Sadock BJ, Grebb JA. Compêndio de Psiquiatria. 7ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997. vem sendo criticada, desde a década de setenta, pelos diferentes movimentos da Reforma Psiquiátrica, tais como a Psiquiatria Democrática Italiana22. Dell'acqua G, Mezzina R. Resposta à crise. In: Delgado J. A loucura na sala de jantar. São Paulo: Resenha; 1991. p. 53-79. que propõe que a crise seja entendida como um momento existencial complexo. Assim, a intervenção sobre ela não deve separar o sujeito de sua história e do ambiente em que é vivida, ao contrário do que faz a internação psiquiátrica clássica com a urgência em remover sintomas antes de compreender seus sentidos para o sujeito que os experimenta22. Dell'acqua G, Mezzina R. Resposta à crise. In: Delgado J. A loucura na sala de jantar. São Paulo: Resenha; 1991. p. 53-79..

Neste trabalho, enfatizamos os aspectos intersubjetivos envolvidos na crise dos adolescentes, detendo-nos nas contribuições de René Kaës77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982.

8. Kaës R. O interesse da Psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição. In: Correa OBR. Vínculos e Instituições: uma escuta psicanalítica. São Paulo: Escuta; 2002. p.11-

9. Kaës R. Os espaços psíquicos comuns e partilhados. Transmissão e Negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005.
-1010. Kaës R. Um singular Plural. São Paulo: Edições Loyola; 2011., autor que propõe um alargamento do conceito de crise, assim como das relações entre esta, a adolescência e o cuidado. O ponto principal de suas contribuições consiste na contestação da redução da crise a um fenômeno individual e no reconhecimento de que elementos (inter)subjetivos, grupais e culturais concorrem simultaneamente em sua produção e elaboração.

Kaës1010. Kaës R. Um singular Plural. São Paulo: Edições Loyola; 2011. ressalta que a intersubjetividade não significa apenas: “[…] um regime de interações entre indivíduos que comunicam seus sentimentos por empatia, mas […] a estrutura dinâmica do espaço psíquico entre dois ou vários sujeitos. Esse espaço compreende processos, formações e experiências específicos […]. A intersubjetividade é, assim, o que esses sujeitos partilham, o que os constitui e o que os liga, através de mecanismos próprios do inconsciente, como os recalques, as negações em comum, as fantasias, os desejos inconscientes, os significantes partilhados.

Para Kaës77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982., a crise é a marca central da organização do aparato psíquico num constante jogo entre forças de destruição e criação, desorganização e criatividade. A crise é ao mesmo tempo inevitável e importante fonte de enriquecimento, experiência de rupturas e conflitos que, para sua elaboração, requer a manutenção de um enquadre, espaço possível de criação de um campo de ilusão77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982., compreendido como uma zona paradoxal, própria ao brincar e às experiências do campo cultural. Trata-se da condição para o estabelecimento de transições entre diferentes tipos de realidade, onde a tensão entre individual e coletivo se torna tolerável e a crise pode ser criativa e não apenas disruptiva.

É a partir dessa concepção que Kaës77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982.,88. Kaës R. O interesse da Psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição. In: Correa OBR. Vínculos e Instituições: uma escuta psicanalítica. São Paulo: Escuta; 2002. p.11- formula a noção de intermediário, um dos conceitos centrais em sua obra. O intermediário seria uma instância de comunicação entre o intrapsíquico e o grupal, o lugar de articulação, de simbolização e conflito. O fracasso dessa articulação seria justamente o que se entende como crise.

Importantes momentos da vida são sempre atravessados pela crise, como a adolescência, marcada pela passagem de um código social e de uma estrutura de relação a outros modos relacionais. Esta inevitável ruptura de laços e significações pode deflagrar, simultaneamente, a crise dos pais, familiares, assim como dos serviços de saúde, escola e demais instituições da sociedade, sempre em transformação. Dessa maneira, para Kaës77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982., a adolescência em si aparece não apenas como função intermediária, momento de perda de objetos internos e externos (isto é, referências e alvos de investimento afetivo/libidinal), mas de possibilidades.

Nesta perspectiva, consideramos como crise aquelas situações de urgência em saúde mental que trazem como central o “sofrimento psíquico grave”, um conjunto de afetos da ordem do insuportável que pode desestabilizar diversas dimensões da vida do adolescente, como as dimensões subjetiva, familiar, social33. Pereira MO, Sá MC, Miranda L. Um olhar sobre a atenção psicossocial a partir do itinerário terapêutico de adolescentes em crise. Cad Saude Publica 2014; 30(10): 2145-2154.,77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982.

8. Kaës R. O interesse da Psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição. In: Correa OBR. Vínculos e Instituições: uma escuta psicanalítica. São Paulo: Escuta; 2002. p.11-

9. Kaës R. Os espaços psíquicos comuns e partilhados. Transmissão e Negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005.

10. Kaës R. Um singular Plural. São Paulo: Edições Loyola; 2011.
-1111. Pereira MO, Sá MC, Miranda L. Adolescência, crise e atenção psicossocial: perspectivas a partir da obra de René Kaës. Saúde Debate 2013; 37(99):664-671..

Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa que se dedicou à reconstrução da trajetória de adolescentes e familiares na busca por cuidado em situações de crise psicossocial. Discutem-se aqui as representações da crise entre adolescentes, familiares e profissionais de saúde de um Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSi), bem como as “saídas” ou “destinos” construídos por esses sujeitos, ou seja, as estratégias para lidar com a loucura e o sofrimento psíquico33. Pereira MO, Sá MC, Miranda L. Um olhar sobre a atenção psicossocial a partir do itinerário terapêutico de adolescentes em crise. Cad Saude Publica 2014; 30(10): 2145-2154.,1111. Pereira MO, Sá MC, Miranda L. Adolescência, crise e atenção psicossocial: perspectivas a partir da obra de René Kaës. Saúde Debate 2013; 37(99):664-671..

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo, com abordagem clínica-psicossociológica, de base psicanalítica. Esta abordagem volta-se para o estudo dos grupos e organizações, destacando suas dimensões simbólica e imaginária e a problemática do sofrimento e da produção de sentido1212. Lévy A. Ciências Clínicas e organizações sociais-sentido e crise de sentido. Belo Horizonte: Autêntica, FUMEC; 2001.. Nesta perspectiva, embora reconheçamos que o conceito de representação remete a diversas tradições teóricas, compreendemo-lo como, simultaneamente, o processo e o resultado de uma atividade psíquica de tentativa de interpretação/domínio sobre o real. Tal processo e seus resultados não conformam um sistema homogêneo fechado, mas flutuante e contraditório, sobredeterminado por mitos e fantasias inconscientes e pelas condições concretas sociais e econômicas nas quais a atividade de representação se desenvolve. Assim, a concepção de representação aqui adotada não possui apenas uma dimensão consciente/cognitiva, mas também inconsciente e tem um duplo apoio: nos processos psíquicos e intersubjetivos, por um lado, e nos processos sociais, por outro1313. Giust-Desprairies F. Representação e Imaginário. In: Barus-Michel J, Enriquez E, Lévy A, organizadores. Dicionário de Psicossociologia. Lisboa: Climepsi Editores; 2005. p. 174-189..

Para ter acesso às representações sobre a crise, apoiamo-nos nas narrativas dos adolescentes e seus familiares sobre seus itinerários terapêuticos1414. Bellato R, Araújo LFS, Castro P. O itinerário terapêutico como uma tecnologia avaliativa da integralidade em saúde. In: Pinheiro R, Silva AGJ, Mattos RB, organizadores. Atenção Básica e Integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, Abrasco; 2008. p. 167-185. na busca por assistência. Bellato et al.1414. Bellato R, Araújo LFS, Castro P. O itinerário terapêutico como uma tecnologia avaliativa da integralidade em saúde. In: Pinheiro R, Silva AGJ, Mattos RB, organizadores. Atenção Básica e Integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, Abrasco; 2008. p. 167-185. identificam duas vertentes principais entre estudos que utilizam ITs (Itinerários Terapêuticos) em saúde. A primeira consiste na demonstração do trajeto de busca por cuidado, resultante de uma “escolha” feita pela pessoa dentre uma ampla gama de opções. A segunda vertente propõe o entendimento da condição de adoecimento através de uma trajetória biográfica, com base em estudos que entendem o meio cultural como determinante das escolhas do sujeito. No campo de tensionamento entre essas vertentes, o IT pode ser considerado como um recurso avaliativo em saúde1414. Bellato R, Araújo LFS, Castro P. O itinerário terapêutico como uma tecnologia avaliativa da integralidade em saúde. In: Pinheiro R, Silva AGJ, Mattos RB, organizadores. Atenção Básica e Integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, Abrasco; 2008. p. 167-185.,1515. Costa ALRC, Figueiredo DLB, Medeiros LHL, Mattos M, Maruyama SAT. O percurso na construção dos itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado. In: Pinheiro R, Martins PH. Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro, Recife, São Paulo: CEPESC/IMS-UERJ, Editora Universitária UFPE, Abrasco; 2011., bem como uma estratégia em pesquisa sobre as trajetórias compreendidas por esses usuários e familiares, assim como sobre os sentidos dados ao adoecimento e cuidado1515. Costa ALRC, Figueiredo DLB, Medeiros LHL, Mattos M, Maruyama SAT. O percurso na construção dos itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado. In: Pinheiro R, Martins PH. Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro, Recife, São Paulo: CEPESC/IMS-UERJ, Editora Universitária UFPE, Abrasco; 2011..

Quanto à metodologia para a construção do IT, destaca-se seu caráter complexo, interpretativo e dialógico1616. Pontes AL, Furtado S, Martins C, Matta GC, Morosini MVCG. Itinerários Terapêuticos e Estratégia de Saúde da Família: discursos sobre o processo saúde-doença e acesso aos serviços de saúde no trabalho do Agente Comunitário de Saúde. In: Pinheiro R, Silva AGJ, Mattos RB, organizadores. Atenção Básica e Integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, Abrasco; 2008. p. 197-214., sendo imprescindível contatos múltiplos que podem se desenvolver através de entrevistas com usuários, profissionais, gestores e familiares, complementadas com a análise de documentos ou prontuários1414. Bellato R, Araújo LFS, Castro P. O itinerário terapêutico como uma tecnologia avaliativa da integralidade em saúde. In: Pinheiro R, Silva AGJ, Mattos RB, organizadores. Atenção Básica e Integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, Abrasco; 2008. p. 167-185.

15. Costa ALRC, Figueiredo DLB, Medeiros LHL, Mattos M, Maruyama SAT. O percurso na construção dos itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado. In: Pinheiro R, Martins PH. Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro, Recife, São Paulo: CEPESC/IMS-UERJ, Editora Universitária UFPE, Abrasco; 2011.
-1616. Pontes AL, Furtado S, Martins C, Matta GC, Morosini MVCG. Itinerários Terapêuticos e Estratégia de Saúde da Família: discursos sobre o processo saúde-doença e acesso aos serviços de saúde no trabalho do Agente Comunitário de Saúde. In: Pinheiro R, Silva AGJ, Mattos RB, organizadores. Atenção Básica e Integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, Abrasco; 2008. p. 197-214..

Objetivando uma compreensão profunda das experiências de crise e de busca por cuidado, optamos pelo uso de narrativas ou histórias de vida como metodologia de uma abordagem autobiográfica de base para a construção dos ITs. A natureza metodológica e operacional da técnica de narrativas de vida é orientada para produzir relatos orais mediante lembranças de histórias pessoais e reflexões mais gerais sobre o tema pesquisado, sendo uma perspectiva que busca apreender “o coletivo pelo individual”1717. Schraiber LB. Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do relato oral e produção de narrativas em estudo sobre a profissão médica. Rev Saude Publica 1995; 29(1):63-74.,1818. Takeuti MN, Niewiadomski C, organizadores. Reinvenções do sujeito social: teorias e práticas biográficas. Porto Alegre: Sulina; 2009.. Assim, por esse intermédio, os âmbitos social e singular coexistem, na medida em que o individual se inscreve num contexto social e histórico específico que, por sua vez, se expressa nas falas individuais1818. Takeuti MN, Niewiadomski C, organizadores. Reinvenções do sujeito social: teorias e práticas biográficas. Porto Alegre: Sulina; 2009..

Deste modo, considerando a abordagem teórica de base psicanalítica aqui adotada, partimos de uma compreensão muito particular do conceito de itinerários33. Pereira MO, Sá MC, Miranda L. Um olhar sobre a atenção psicossocial a partir do itinerário terapêutico de adolescentes em crise. Cad Saude Publica 2014; 30(10): 2145-2154., não os restringindo aos aspectos factuais e objetivos, mas buscando nos remeter aos sentidos produzidos pelos sujeitos sobre suas experiências, tanto numa dimensão cognitiva quanto inconsciente e intersubjetiva1212. Lévy A. Ciências Clínicas e organizações sociais-sentido e crise de sentido. Belo Horizonte: Autêntica, FUMEC; 2001.,1313. Giust-Desprairies F. Representação e Imaginário. In: Barus-Michel J, Enriquez E, Lévy A, organizadores. Dicionário de Psicossociologia. Lisboa: Climepsi Editores; 2005. p. 174-189..

Participaram do estudo três adolescentes, seus familiares e cinco profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPSi). A escolha dos adolescentes se deu a partir da indicação da equipe do serviço, considerando-se, como critérios de inclusão, aqueles que já eram usuários do CAPSi em função de história de sofrimento psíquico grave, estando lá antes ou desde a crise e que se sentiam em condições de falar sobre suas experiências de vida. Os critérios de exclusão dos sujeitos foram: (i) adolescentes que estivessem vivenciando episódios de sofrimento psíquico mais acentuado durante a pesquisa; (ii) sujeitos cuja problemática psíquica estivesse relacionada com a dependência química. A opção pelo aprofundamento na singularidade das vivências nos levou a trabalhar com o número de três sujeitos33. Pereira MO, Sá MC, Miranda L. Um olhar sobre a atenção psicossocial a partir do itinerário terapêutico de adolescentes em crise. Cad Saude Publica 2014; 30(10): 2145-2154.,1717. Schraiber LB. Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do relato oral e produção de narrativas em estudo sobre a profissão médica. Rev Saude Publica 1995; 29(1):63-74.,1818. Takeuti MN, Niewiadomski C, organizadores. Reinvenções do sujeito social: teorias e práticas biográficas. Porto Alegre: Sulina; 2009..

Foram realizados dois encontros com cada adolescente e, complementarmente, entrevistados alguns familiares e cinco profissionais. Constituiu o material empírico da pesquisa: as transcrições das entrevistas e o diário de campo. Este último, por trazer o registro das impressões e sentimentos da pesquisadora durante o trabalho de campo, foi importante para a análise das narrativas, favorecendo analogias e interpretações, de acordo com a perspectiva clínica-psicossociológica adotada.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca e todos os sujeitos assinaram o termo de Consentimento Livre-esclarecido, de acordo com as Resoluções 196/96 e 251/97 do Conselho Nacional de Saúde.

Letícia, Thiago e Luciana são nomes fictícios atribuídos aos adolescentes entrevistados. Seus familiares também receberam nomes fictícios e os profissionais são referidos pelas respectivas categorias profissionais.

A análise se deu após leituras flutuantes das entrevistas e do diário de campo, incluindo considerações sobre as impressões e os sentimentos mobilizados na pesquisadora pela relação com os sujeitos da pesquisa e vivência das situações do campo. Dessas leituras, destacamos argumentos, imagens, representações, contradições e silêncios que nas narrativas dos sujeitos conformavam diferentes sentidos acerca do fenômeno estudado1717. Schraiber LB. Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do relato oral e produção de narrativas em estudo sobre a profissão médica. Rev Saude Publica 1995; 29(1):63-74.. A associação entre esses elementos, as questões de pesquisa e o referencial teórico de base permitiu a conformação de seis categorias emergentes, sendo uma delas dividida em quatro subcategorias, tal como apresentamos e discutimos abaixo.

Resultados e discussão: Representações e destinos da crise

Entre as categorias emergentes do processo de análise, apresentamos abaixo aquelas que remetem às representações da crise, incluindo o modo como se pensava seu tratamento ou sua resolução – o que aqui chamamos de “destinos”.

A crise como susto e surpresa

As primeiras crises dos adolescentes foram vividas como algo sem explicação, marcado pela estranheza, assim como nos conta Leticia:

Ah, as pessoas falavam comigo e eu não reconhecia, só queria saber de igreja, igreja. Imaginava que as pessoas não eram reais, umas coisas meio estranhas […]

Sua mãe também lembra do acontecido:

Ela foi levar uma colega para conhecer a praia e quando chegou em casa, de repente, começou a crise dela.

A mãe de Thiago faz comentários na mesma direção:

[…] mas quando chegou aos quinze pros dezesseis anos ficou mais diferente. Ficou mais estressado, mais nervoso e eu achando que fosse a adolescência, mas parece que era uma coisa que começou a atingir ele sem eu perceber. […] aí chegou um dia que veio uma surpresa dele, um susto […].

Na mesma direção, uma das profissionais observa:

[a crise] […] é uma certa perplexidade e é uma coisa de estar perdido. A sensação que eu tenho, sem querer cair num lugar comum, é de estar perdido mesmo. Como uma onda que vem e dá um caixote e eu não sei pra que lado eu vou.

Apesar das falas acima apontarem a vivência da crise como desorientação, disrupção, algo associado à experiência do descontrole e do inesperado, vale retomarmos Kaës99. Kaës R. Os espaços psíquicos comuns e partilhados. Transmissão e Negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005. que afirma que esta não se caracteriza, de fato, pela novidade. Ainda que apareça imprevistamente, sendo marcada por um caráter único e singular, suas causas e origens, assim como sua solução, estariam desenhadas na história passada e nas recordações dos sujeitos, mas também no grupal e cultural77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982.. Neste sentido, cabe também chamar atenção para a metáfora utilizada pelo profissional para representar a crise como “uma onda que vem e dá um caixote”. Trata-se de uma imagem bastante própria do universo adolescente, sugerindo a intensidade que pode assumir a identificação nos processos intersubjetivos33. Pereira MO, Sá MC, Miranda L. Um olhar sobre a atenção psicossocial a partir do itinerário terapêutico de adolescentes em crise. Cad Saude Publica 2014; 30(10): 2145-2154.,77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982.,99. Kaës R. Os espaços psíquicos comuns e partilhados. Transmissão e Negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005.,1010. Kaës R. Um singular Plural. São Paulo: Edições Loyola; 2011.. Disso decorre a vivência de imprevisibilidade – susto ou surpresa – que a crise da adolescente provocou não apenas nela mesma mas também nos profissionais do serviço, remetendo à compreensão de Kaës77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982. sobre a indissociabilidade entre as dimensões singulares e coletivas da crise.

A crise dos adolescentes como condensação de outras crises

Para os familiares a crise suscitou também um forte sofrimento:

A gente vendo ela sofrer, a gente vendo aquilo ali sem poder fazer nada. Ela sofria e a gente pior ainda (Graça, mãe de Leticia)

A técnica de referência de Thiago comenta a angústia da mãe e de dois irmãos, após sua primeira crise:

[…] todo mundo muito mexido, muito abalado, sem entender o que estava acontecendo com o garoto, sem rumo mesmo, sem direção.

Essas passagens corroboram a ideia de que a crise nunca é apenas individual, envolvendo elementos das realidades intrapsíquica, interpsíquica e material77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982.. Algumas histórias dos adolescentes ilustram este aspecto: após a primeira crise de Letícia, seu pai resolve sair de casa e voltar à cidade natal, em outra região do país, devido ao agravamento de sua “Síndrome do Pânico”. Já sua mãe decide pela mudança com sua filha para outra cidade onde moravam familiares. Esta mudança deu-se concomitantemente ao desencadeamento da segunda crise da adolescente, marcada por brigas com as novas colegas, que a teriam “descontrolado”. A terceira crise, anos depois, é atribuída por Letícia a problemas em casa e na escola, à ausência do pai e, principalmente, ao fato de sua mãe ter passado mal. Após essa crise o pai retornou da cidade natal para ajudar no cuidado da filha.

A inter-relação dos aspectos psíquicos, intersubjetivos e sociais/institucionais imposta pela experiência de crise77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982. também pode ser vislumbrada no caso de Luciana, cuja segunda crise fora associada à morte de sua mãe, a quem os profissionais pareciam fortemente vinculados. Segundo eles, por alguns anos ela vinha cumprindo importante papel no Grupo de Familiares, de modo que quando a equipe soube de seu falecimento “a casa caiu” (sic).

Supondo que metaforicamente foram diversas as “casas” que caíram, acreditamos que, em alguma medida, a mãe de Luciana exercia uma função intermediária99. Kaës R. Os espaços psíquicos comuns e partilhados. Transmissão e Negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005. junto à equipe, permitindo o trânsito entre posições rígidas, representadas pela casa e o serviço, a “normalidade” e a “doença”, a condição de quem cuida e de quem é cuidado, dentre outras1010. Kaës R. Um singular Plural. São Paulo: Edições Loyola; 2011.. Em parte, por isso, sua morte fora sentida como o desmoronamento do próprio serviço.

Uma semana após a morte da mãe, Luciana contou que estava grávida, o que provocou uma “crise” no pai e um “surto” no serviço, segundo a psicóloga. Algumas mudanças em seu Projeto Terapêutico Singular (PTS) foram pensadas e se mantiveram até a terceira crise, momento de nascimento de sua filha, quando “toda a família estava mexida”, segundo seu irmão. Uma das profissionais associa as diferentes experiências de desorganização numa suposição de causa para a terceira crise de Luciana:

Várias coisas foram se somando. A perda da mãe, essa gravidez… porque ela não queria engravidar, não teve suporte do pai, né? […] aconteceram várias coisas, o cuidado que a mãe tinha ela passou a não ter mais. Ela era o bibelô da casa, associado a essas questões… fez a Luciana pirar de vez, né?

Entendemos que a mãe de Luciana exercia a função de intermediário99. Kaës R. Os espaços psíquicos comuns e partilhados. Transmissão e Negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005. também para a filha, a quem atribuía esse lugar de “bibelô”, algo bonito, valioso, mas frágil ao mesmo tempo. Com a morte da mãe, Luciana fica “sem lugar” na casa, na família e na vida. Concomitantemente, a gravidez lhe impõe que deixe o lugar de filha para ocupar o de mãe, função que é associada a um novo momento de crise.

Através desses exemplos, esperamos ter mostrado que a crise, geralmente localizada em apenas um sujeito, é despertada por (e desperta) instabilidades, rupturas, insuficiências em instâncias psíquicas, sociais, institucionais e culturais77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982.. Estas instâncias são necessárias para que o sujeito elabore a crise e, paradoxalmente, nesse processo, acabam por ser transformadas.

A crise como violência e estranhamento

As narrativas sobre a crise, sejam de familiares ou adolescentes, trazem lembranças de difíceis momentos, marcados por violência, como lembra Graça, contando que Leticia chegou em casa e começou a “(…) ficar nervosa, e começou a bater pé, e falar coisas que ela nunca falou”, “tirar a roupa”. Letícia também ressalta a agressividade e o estranhamento:

Minha mãe vinha falar comigo e eu agredia ela. Ela falava: ‘Eu sou sua mãe’. E eu falava que não era.

Na mesma direção, Henrique lembra que em sua segunda crise, Luciana “gritava dentro de casa, quebrava tudo, jogou o computador novo no chão, que era o xodó dela”. Na terceira crise a adolescente não se reconheceria como mãe da filha que acabara de nascer e deixou de se alimentar e tomar banho, ficando com o corpo debilitado.

Para Kaës77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982., é inevitável que as perdas e movimentos inerentes à crise envolvam experiências de desorientação e violência. Nas histórias acompanhadas, notamos uma busca pelo controle perdido, tanto por parte dos pais, quanto do serviço, o que muitas vezes se traduziu em certa violência nas estratégias. O CAPSi, por exemplo, diante crise dos usuários, teve, em todos os casos, como primeira ação a transferência destes para um espaço associado à possibilidade de contenção e controle: o Hospital Geral (HG) do Município, com o qual o serviço tem dificuldade de comunicação, impossibilitando o acompanhamento dos adolescentes durante a internação.

Considerarmos a noção de enquadre proposta por Kaës77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982.,99. Kaës R. Os espaços psíquicos comuns e partilhados. Transmissão e Negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005.,1010. Kaës R. Um singular Plural. São Paulo: Edições Loyola; 2011. e entendemos que o acolhimento dos sujeitos em crise requer o trabalho psíquico dos próprios familiares e equipe, um trabalho de acesso às representações, sentidos, sentimentos que a crise neles produz. Para isto são necessárias instâncias de apoio nas instituições, que possibilitem outros destinos à crise.

Destinos da Crise

A crise como o que precisa ser esquecido

Entre os adolescentes apenas Leticia falou diretamente sobre a crise; Thiago e Luciana dizem não se lembrar dessa experiência. Apesar de entendermos a dificuldade de comentar sobre um momento difícil com uma pesquisadora com quem o vínculo ainda é inicial, também supomos que esses adolescentes não puderam encontrar, em suas trajetórias, espaços propícios para desenvolver algum tipo de elaboração, ou mesmo de rememoração da crise. Tal impossibilidade teria impedido que as experiências de crise fossem incorporadas nas narrativas de vida dos entrevistados, levando-os a significá-las apenas como “susto”, “surpresa”.

Mesmo Leticia, ao ouvir algumas falas de sua mãe, mostrava-se surpresa com os relatos sobre o período em que estivera internada. Em muitos momentos pareceu que era a primeira vez que ouvia aquela história, vivida por ela, mas pouco pensada. Consideramos, com Kaës77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982., a necessidade de espaços que possibilitem a rememoração como favorecedora de um sentido a esse vivido. No entanto, não identificamos a existência desse tipo de trabalho no CAPSi pesquisado. A nosso ver, a ausência desses espaços pode contribuir para a cristalização das representações da crise como susto ou surpresa negativa.

A negação da crise

Uma das consequências da ausência de espaços de compartilhamento de lembranças e significações das experiências de crise parece ser a negação desta. Esse fenômeno pode ser observado em Graça, mãe de Letícia, que descreve difíceis comportamentos de agitação e instabilidade da adolescente durante sua internação no HG, mas, ao mesmo tempo, afirma que a crise desta era “mais fraca” do que aquela expostas pelas outras moças internadas. Embora reconhecendo que Letícia estava “muito agitada”, “querendo tirar a roupa” e gritando, via os mesmos comportamentos nas demais moças com estranheza. Graça chega a sugerir que devessem existir alas diferentes no serviço, para que a filha não ficasse próxima a pessoas “em situação pior que a dela”.

A psiquiatra de Leticia também pontua que ela não é uma “paciente nevrálgica” e “não tem um quadro grave”. Vale ressaltar que a profissional, no momento da entrevista, afirmou ter esquecido que Letícia havia passado por uma internação recente. Isso sugere que o processo de negação da crise seja uma defesa não apenas dos adolescentes e familiares, mas também dos profissionais, frente à instabilidade e ao sofrimento que a mesma suscita77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982.,88. Kaës R. O interesse da Psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição. In: Correa OBR. Vínculos e Instituições: uma escuta psicanalítica. São Paulo: Escuta; 2002. p.11-.

A crise como externalidade: a expulsão da crise

A primeira crise como aquela para a qual não há explicação é também aquela que se caracteriza pela externalidade. É aquela que aconteceu “fora de casa”, longe. Para Thiago, a primeira crise começou na escola; para Leticia aconteceu na praia e para Luciana na rua. Para além do local onde acontece, a crise é associada pelos adolescentes e seus familiares a fatores “externos” ao sujeito e, dessa maneira, é justificada por questões espirituais, problemas da escola, medicações, etc.

Para o CAPSi parece que a crise, e não apenas a primeira, é aquela que também deve se dar “do lado de fora”, aquilo que deve ser “expulso”, não pode ser pensado, questionado ou vivido pela equipe. É o que percebemos ao notar que a atenção à crise dos adolescentes fora destinada exclusivamente ao Hospital Geral, havendo dificuldade na construção de estratégias de cuidado no próprio CAPSi ou ações articuladas com demais instituições. Movimento análogo é identificado quando os profissionais justificam a crise por questões da família (os pais não perceberam, não souberam falar, etc), deixando de questionar possíveis limites ou necessidades de mudança dos Projetos Terapêuticos Singulares dos adolescentes.

Buscando elaborar a crise

A despeito dos processos de negação das experiências de crise, os entrevistados puderam reconhecer alguns recursos que utilizaram para superá-la. Letícia, por exemplo, lembra do telefonema ao pai e da presença da mãe durante os dias de internação no HG como algo que a tranquilizava. Apresenta também os hinos da igreja como um recurso pessoal eficaz:

[…] eu ia muito na igreja, era missionária, aí quando eu fiquei em crise cantava muito hino da igreja evangélica. Aí quando ‘tava’ no hospital eu queria cantar esse hino, porque me acalmava.

Em um dos casos, o investimento do CAPSi também é identificado como suporte importante para a crise. O irmão de Luciana e uma profissional ressaltam que a melhora da adolescente fora resultado, principalmente, do aumento dos dias em que esta permanecia no serviço, da disponibilização de um carro para transportá-la e da intensificação dos contatos dos profissionais com a família.

Entendemos que esses recursos representaram, para Leticia e Luciana, uma função intermediária, ou seja, a possibilidade de trânsito entre a realidade interna, marcada pela desorganização, e a realidade externa, permitindo a (re)criação de laços com o outro. Vale ressaltar que o intermediário não é o objeto em si (hino, telefonema, etc.), mas a possibilidade do trânsito entre dimensões diferentes da realidade: entre mundo interno e externo, entre passado e futuro, entre o eu e o outro99. Kaës R. Os espaços psíquicos comuns e partilhados. Transmissão e Negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005..

A medicação como causa e solução da crise

As narrativas de adolescentes, familiares e profissionais indicam que a medicação encontra centralidade nas representações sobre as crises de Thiago e Leticia. Na primeira crise de Thiago, sua família buscou o HG como serviço de referência, que o medicou e o encaminhou ao CAPSi. Embora participe de um grupo e de atendimento psiquiátrico individual neste serviço, o adolescente ressalta: “Melhorei por causa do remédio. Foi o remédio, mas ainda tô vindo”.

Após alguns meses no serviço, Thiago experimentou nova crise, denominada por sua mãe de “crisezinha braba” e pela psicóloga de “recaída”. Ambas entendem que esse fenômeno fora consequência da ausência de medicação, não associando qualquer outro fator ao sofrimento do adolescente. A única estratégia para lidar com este episódio fora a mudança da medicação de comprimido para líquido, não havendo mudança em seu Projeto Terapêutico Singular ou nas ofertas do serviço.

No caso de Leticia, apenas a medicação foi oferecida pelo HG que a atendeu em sua primeira crise (ainda em outra cidade), não havendo encaminhamento para outro serviço ou apresentação de outras possibilidades. Além disso, a última crise da adolescente teria se dado, segundo sua mãe, devido à diminuição da medicação e possibilidade de erro do laboratório na manipulação da fórmula. Leticia, porém, embora aponte outros fatores, como problemas em casa e na escola, dá ênfase à medicação como o que a teria ajudado a sair da crise.

Para Graça, a explicação da psiquiatra de sua filha tem o sentido de alerta para a “prevenção” de outros momentos como esse:

A Doutora me explicou como começa a crise. […] ‘Se você notar que ela tá vestindo umas roupas muito escandalosas, principalmente a responder você, pode correr pro hospital que a medicação ficou fraca’.

Outros dispositivos do CAPSi como grupos, momentos de convivência ou acompanhamento de outros profissionais não médicos, apesar de serem apontados pelos entrevistados como importantes, não parecem ser reconhecidos como parte de uma “solução para a crise” ou, sequer, como espaços que podem ser habitados nos momentos de crise. Assim, diante da crise não há outras estratégias diversas da medicação: age-se como se a superação da crise pudesse prescindir da capacidade dos adolescentes de criar estratégias que levem em conta suas rotinas e modos de vida singulares. Sobre isto, vale observar também um elemento de negação, na medida em que, quando o remédio, ou a falta/inadequação dele, é colocado no lugar de causa da crise, vários conflitos podem ser desconsiderados e escamoteados77. Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal. Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982.,88. Kaës R. O interesse da Psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição. In: Correa OBR. Vínculos e Instituições: uma escuta psicanalítica. São Paulo: Escuta; 2002. p.11-.

A crise como perda

A crise representou importantes perdas na vida dos adolescentes. Thiago deixou de jogar futebol com os amigos, de ir à escola, “porque é melhor não” (sic). Diante desse quadro, sua profissional de referência pensava em estratégias como encaminhá-lo para a realização de um esporte para “adolescentes especiais”, o que, entretanto, não fora pensado junto a Thiago, nem, tampouco, envolvera algum esforço para ajudar o menino a voltar a conviver com pessoas com quem já tivera vínculos.

Leticia também deixou de frequentar a escola após a última crise e perdeu o interesse pelas atividades diárias que antes realizava. Sua mãe, ao mesmo tempo, não “confiava” mais que a adolescente pudesse ir ao centro de sua cidade sozinha, temendo que esta pudesse “se perder”:

Ela só gosta de dormir, você falou, Leticia? Só quer saber de dormir. Antes ela gostava de fazer as coisas, agora não gosta não. Não ajuda em casa, não faz nenhum trabalho, só dorme. […] Antes dela ter essa crise última ela vinha no centro pra mim, fazia as coisas. Mas agora ela anda tão desanimada que tenho medo de mandar ela fazer as coisas […] Acho que ela pode pensar que vai pra um lugar e vai pra outro, pegar o ônibus errado, não sei.

Letícia lamenta ainda por ter ficado “diferente das outras pessoas”, pois devido à crise, “precisava de tratamento”. Relatava também uma dificuldade em escrever e “copiar” a matéria, porque a medicação fazia sua mão tremer.

Os profissionais também foram unânimes em associar a crise a um momento de perda, apresentando uma visão pessimista sobre as possibilidades de criação a ser dela derivada:

[…] não vai ser igual nunca. Pelo menos eu nunca vi um adulto ou adolescente que surtam voltarem a ser como eram antes […] Porque eu acho que a psicose é isso, ne? Você perde algo do que você tinha e também perde a habilidade de adquirir novas aprendizagens, novos conhecimentos, ganhos afetivos, né? (Profissional do serviço)

Nas entrevistas, os profissionais consideram que a crise vivida durante a adolescência possui maior gravidade do que aquela ocorrida na vida adulta, porque envolve uma perda especial, não apenas do que já se tinha, mas também do futuro, daquilo que o adolescente não poderá mais viver ou aprender:

Aos 16 anos eles adquiriram pouca bagagem e pouco repertório, tão começando a vida, ainda tão no meio do ciclo acadêmico […] parece que a cada surto se perde um pouquinho. Vai se perdendo algo. É muito cedo, né? O prognóstico eu considero mais negativo na adolescência do que na fase adulta. (Profissional do serviço)

As particularidades do trabalho no momento de crise na adolescência, comparativamente à crise na vida adulta, são tomadas pelos profissionais de maneira especial, devido ao envolvimento com a família, que seria mais presente no primeiro caso:

Talvez eu ache que o surto do adolescente é muito mais florido. Impactante é a palavra. Mas eu acho que ele mexe muito mais do que o surto do adulto. É mais impactante, sim. Porque pega os pais numa situação de: Poxa, o cara tava na escola, tava andando, as coisas tão indo. E esse adolescente é ainda um pouco dependente e aí eu acho que a inserção da família é diferente da família do adulto. Porque o adulto já é dono de si, já tem um caminho andado, não sei, acho que é por aí. (Profissional do serviço)

Um profissional ressalta ainda que também é mais complicado para a família acompanhar uma crise na adolescência, do que na infância:

Porque quando é uma criança pequena esses pais já vão percebendo que: ‘Poxa vida, tem alguma coisa diferente com ele’. E mesmo que seja assim: ‘Ele foi normalzinho até dois anos é diferente dele ser normalzinho até dezesseis anos, até quinze anos. O que aconteceu com essa criatura que numa semana tá bem e na outra semana não? Que tira roupa na rua ou bate, ou que agride o pai’ […]. (Profissional do serviço)

As histórias narradas mostram que, apesar da crise aparecer como perda na vida e na rotina dos adolescentes, ela não figura como um marco para mudanças nas estratégias assistenciais do CAPSi. Vislumbramos o quão problemática é essa realidade ao lembrar que Kaës1010. Kaës R. Um singular Plural. São Paulo: Edições Loyola; 2011. defende que a possibilidade da crise se desenrolar como fonte de enriquecimento estaria na capacidade do sujeito criar, a partir dela, um projeto comum em um grupo. Para o autor, ao reger-se por regras de funcionamento e, ao mesmo tempo, constituirse como espaço de acolhida dos sujeitos, o grupo pode vir a se constituir como enquadre de emergência e de elaboração dos componentes de uma crise pessoal. O grupo apresenta-se, assim, como resultado de uma construção comum de todos os indivíduos que o compõem.

Entretanto, o CAPSi estudado pareceu não possuir espaços grupais continentes e profícuos para elaborações coletivas. Essa debilidade de dispositivos de elaboração impossibilita também o encontro da equipe com suas próprias perdas, com as desilusões e as sensações de fracasso despertadas pela violência da crise e pela precariedade dos recursos do próprio serviço (materiais, tecnológicos, de infraestrutura, entre outros). Tais experiências tendem a levar o serviço a vivenciar suas próprias crises, mas, sem uma estruturação grupal, essas crises tendem a ser negadas88. Kaës R. O interesse da Psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição. In: Correa OBR. Vínculos e Instituições: uma escuta psicanalítica. São Paulo: Escuta; 2002. p.11-.

A crise como crise da instituição

Reforçamos as afirmações de Kaës88. Kaës R. O interesse da Psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição. In: Correa OBR. Vínculos e Instituições: uma escuta psicanalítica. São Paulo: Escuta; 2002. p.11- sobre a crise do sujeito, e sua força em questionar a instituição como um todo, desagregando os contratos, pactos, consensos e acordos inconscientes. Isso acontece porque, para o autor, as alianças entre os diferentes sujeitos que compõem a organização estão apoiadas em mecanismos de defesa específicos de cada um; crenças e ideais comuns que fundam a identidade representacional da equipe, da instituição, do grupo.

Essa contribuição de Kaës88. Kaës R. O interesse da Psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição. In: Correa OBR. Vínculos e Instituições: uma escuta psicanalítica. São Paulo: Escuta; 2002. p.11- é central para compreendermos a relação entre profissionais, equipes e serviços na atenção psicossocial. No contexto estudado, a crise dos adolescentes pareceu desestabilizar o serviço que, para defender-se, tende a construir armaduras institucionais, seja transferindo-a para o Hospital Geral, seja considerando-a fraca, esquecendo-a, privando os sujeitos de dispositivos para falarem sobre ela, ou, ainda, criando uma organização de trabalho rígida e fragmentada, que afasta os profissionais do sofrimento despertado pelo contato com os usuários.

Soma-se a isso a observação de que a precariedade das condições materiais dos serviços de saúde contribui para a exacerbação de exigência de trabalho psíquico dos profissionais1919. Sá MC. A Fraternidade em Questão: um olhar psicossociológico sobre o cuidado em saúde. Interface (Botucatu) 2009; 13(Supl. 1):651-654.. Certamente, alguns dos problemas apontados pela equipe, tais como o fato do CAPSi não funcionar 24 horas, a difícil comunicação com o HG e a ausência de supervisão institucional limitam o cuidado à crise e produzem sofrimento nos profissionais.

Sendo assim, ao nos depararmos com a crise e com aquilo que foge ao controle e à previsibilidade, relembramos a necessidade de “se encontrar no espaço-tempo da instituição um lugar psíquico onde os conflitos intrapsíquicos e intersubjetivos possam ser atualizados e pensados”99. Kaës R. Os espaços psíquicos comuns e partilhados. Transmissão e Negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005.. Esses espaços podem aparecer no formato de reuniões, oficinas, estudos, supervisões clínico-institucionais ou diversos outros a serem criados, desde que se constituam como dispositivos de fala e construção do respeito à alteridade1919. Sá MC. A Fraternidade em Questão: um olhar psicossociológico sobre o cuidado em saúde. Interface (Botucatu) 2009; 13(Supl. 1):651-654..

Considerações Finais

Acreditamos que este trabalho contribuiu para um olhar ampliado sobre a crise a partir das marcas, impacto e possíveis sentidos que os sujeitos participantes foram chamados a (re)constituir através das suas narrativas de vida. Entre usuários e profissionais impera a abundância das representações da crise como estranheza e externalidade, assim como o intensivo uso da negação como uma das principais defesas psíquicas.

Os usuários do serviço não são envolvidos na elaboração de estratégias de enfrentamento das suas próprias crises e, tampouco, de seus projetos terapêuticos singulares. Todo o tratamento da crise tende a centralizar-se em elementos externos tanto aos adolescentes, como aos profissionais: medicação e internação no hospital geral.

Salientamos, porém, que sem oferecer continência à crise de seus usuários, a instituição priva-se de reconhecer e elaborar seus próprios conflitos. Consequentemente, a crise do usuário, dos familiares, dos profissionais e do serviço é vivida apenas em sua dimensão destrutiva.

Com as reflexões aqui desenvolvidas esperamos destacar a importância das representações que os sujeitos fazem sobre suas experiências bem como a urgência da construção de diferentes espaços coletivos para abordá-las. Há que se trabalhar para a criação de dispositivos diversos, destinados ao compartilhamento de sofrimento e conquistas dos profissionais, à elaboração dos conflitos da equipe, ao compartilhamento das experiências dos usuários e dos familiares e, é claro, à criação conjunta de suporte e de estratégias de resolução das crises dos indivíduos e da própria instituição. Reconhecendo a interdependência destes dois, ressaltamos que é através dos dispositivos de suporte à emergência da crise que esta poderá ser vivida também como movimentos de (re)invenções, de transformação e aquisição de novas possibilidades de viver,

Uma construção como essa não se faz possível sem um esforço da gestão para reavivar redes, oferecer recursos e suporte aos serviços, acompanhar as possibilidades de trabalho e seus desafios. Concluímos, com isso, que a atenção à crise exige um trabalho simultaneamente político, organizacional, técnico e psíquico.

Referências

  • 1
    Pitta AMF. Um balanço da reforma psiquiátrica brasileira: instituições, atores e políticas. Cien Saude Colet 2011; 16(12):4579-4589.
  • 2
    Dell'acqua G, Mezzina R. Resposta à crise. In: Delgado J. A loucura na sala de jantar São Paulo: Resenha; 1991. p. 53-79.
  • 3
    Pereira MO, Sá MC, Miranda L. Um olhar sobre a atenção psicossocial a partir do itinerário terapêutico de adolescentes em crise. Cad Saude Publica 2014; 30(10): 2145-2154.
  • 4
    Braga CP, D'Oliveira AFLP. A continuidade das internações psiquiátricas de crianças e adolescentes no cenário da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Interface (Botucatu) 2015; 19(52):33-44.
  • 5
    Lauridsen-Ribeiro E, Tanaka OU, organizadores. Atenção em Saúde Mental para crianças e adolescentes no SUS São Paulo: Hucitec; 2010.
  • 6
    Kaplan HI, Sadock BJ, Grebb JA. Compêndio de Psiquiatria 7ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997.
  • 7
    Kaës R. Crisis, ruptura y superación: análisis transicional en psicoanálisis individual y grupal Buenos Aires: Publicación Buenos Aires; 1982.
  • 8
    Kaës R. O interesse da Psicanálise para considerar a realidade psíquica da instituição. In: Correa OBR. Vínculos e Instituições: uma escuta psicanalítica São Paulo: Escuta; 2002. p.11-
  • 9
    Kaës R. Os espaços psíquicos comuns e partilhados. Transmissão e Negatividade São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005.
  • 10
    Kaës R. Um singular Plural São Paulo: Edições Loyola; 2011.
  • 11
    Pereira MO, Sá MC, Miranda L. Adolescência, crise e atenção psicossocial: perspectivas a partir da obra de René Kaës. Saúde Debate 2013; 37(99):664-671.
  • 12
    Lévy A. Ciências Clínicas e organizações sociais-sentido e crise de sentido Belo Horizonte: Autêntica, FUMEC; 2001.
  • 13
    Giust-Desprairies F. Representação e Imaginário. In: Barus-Michel J, Enriquez E, Lévy A, organizadores. Dicionário de Psicossociologia Lisboa: Climepsi Editores; 2005. p. 174-189.
  • 14
    Bellato R, Araújo LFS, Castro P. O itinerário terapêutico como uma tecnologia avaliativa da integralidade em saúde. In: Pinheiro R, Silva AGJ, Mattos RB, organizadores. Atenção Básica e Integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, Abrasco; 2008. p. 167-185.
  • 15
    Costa ALRC, Figueiredo DLB, Medeiros LHL, Mattos M, Maruyama SAT. O percurso na construção dos itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado. In: Pinheiro R, Martins PH. Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica Rio de Janeiro, Recife, São Paulo: CEPESC/IMS-UERJ, Editora Universitária UFPE, Abrasco; 2011.
  • 16
    Pontes AL, Furtado S, Martins C, Matta GC, Morosini MVCG. Itinerários Terapêuticos e Estratégia de Saúde da Família: discursos sobre o processo saúde-doença e acesso aos serviços de saúde no trabalho do Agente Comunitário de Saúde. In: Pinheiro R, Silva AGJ, Mattos RB, organizadores. Atenção Básica e Integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, Abrasco; 2008. p. 197-214.
  • 17
    Schraiber LB. Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do relato oral e produção de narrativas em estudo sobre a profissão médica. Rev Saude Publica 1995; 29(1):63-74.
  • 18
    Takeuti MN, Niewiadomski C, organizadores. Reinvenções do sujeito social: teorias e práticas biográficas Porto Alegre: Sulina; 2009.
  • 19
    Sá MC. A Fraternidade em Questão: um olhar psicossociológico sobre o cuidado em saúde. Interface (Botucatu) 2009; 13(Supl. 1):651-654.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2015
  • Revisado
    25 Mar 2016
  • Aceito
    27 Mar 2016
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br