Cronicidade: experiência de adoecimento e cuidado sob a ótica das ciências sociais

Maria das Graças de Mendonça Silva Calicchio Késia Marisla Rodrigues da Paz Patrícia de Lima Lemos Maycon Luiz Basilio Gênesis Vivianne Soares Ferreira Cruz Sobre os autores
2015

Os estudos de experiência sobre adoecimentos de longa duração intensificaram-se nas últimas décadas, em contraponto à perspectiva biomédica clínica. E ao valer-se de referenciais de experiência, privilegiam o ponto de vista das pessoas adoecidas11. Canesqui AM. Estudos Antropológicos sobre os Adoecidos Crônicos. In: Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 19-51.. Na vertente socioantropológica, no Brasil, destaca-se o pioneirismo de Canesqui11. Canesqui AM. Estudos Antropológicos sobre os Adoecidos Crônicos. In: Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 19-51.,22. Canesqui AM, organizadora. Adoecimentos e sofrimentos de longa duração. 2ᵃ ed. São Paulo: Hucitec; 2015. na publicação de coletâneas sobre “adoecimentos crônicos de longa duração”, somando- se à presente obra.

Nesse cenário, o conceito cronicidade relaciona-se intensamente com o sistema e os serviços de saúde para àquelas condições gerenciáveis, porém não curáveis, com sintomas contínuos ou periódicos, impactando e interferindo na vida dos adoecidos e familiares, por envolverem elementos culturais e subjetivos sensíveis ao contexto em que transcorre o adoecimento33. Organização Mundial da Saúde (OMS). Cuidados inovadores para condições crônicas: componentes estruturais de ação. Brasília: OMS; 2003., incluindo, também, as externalidades11. Canesqui AM. Estudos Antropológicos sobre os Adoecidos Crônicos. In: Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 19-51., como a organização dos serviços e os cuidados em saúde44. Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012., (re) orientando as práticas dos profissionais que neles atuam11. Canesqui AM. Estudos Antropológicos sobre os Adoecidos Crônicos. In: Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 19-51..

A coletânea Cronicidade: experiência de adoecimento e cuidado sob a ótica das ciências sociais foi organizada por Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos e Leny Alves Bomfim Trad, da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Maria Salete Bessa Jorge e Ilse Maria Tigre de Arruda Leitão, da Universidade Estadual do Ceará (UECE), trazendo contribuições na discussão teórico-metodológica das práticas profissionais nos serviços de saúde e experiência dos adoecidos e famílias em meio à cronicidade. Sua publicação em meio virtual garante o acesso livre aos leitores, favorecendo a democratização do conhecimento científico produzido sobre o tema.

A obra desdobra-se em três partes que abordam as reflexões teórico-metodológicas; as análises de narrativas e experiências de condições crônicas; e a interface da cronicidade no cuidado integral e os desafios da organização dos serviços de saúde às condições crônicas.

Os cinco capítulos da primeira parte, discutem, em suma, as bases teórico-metodológicas dos estudos sobre a experiência dos adoecimentos crônicos. Iniciam com o contexto teórico das Ciências Sociais que, ao dar voz às pessoas adoecidas, recupera suas trajetórias, histórias de vida e narrativas11. Canesqui AM. Estudos Antropológicos sobre os Adoecidos Crônicos. In: Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 19-51., sobretudo nas relações entre identidade, self e experiência.

Os demais capítulos desta parte apresentam uma análise de itinerários terapêuticos de indivíduos ou grupos sociais, contrapondo as dimensões simbólicas e materiais em relação à disponibilidade, oferta e acessibilidade aos recursos terapêuticos. Salientam a importância de pesquisas qualitativas, o uso de métodos qualiquantitativos e quantitativos nas investigações, articulações com a prática assistencial valorativa da perspectiva das crianças e adolescentes em condição crônica e, como desafio, procuram reconhecê-los como sujeitos do adoecimento, dignidade e respeito à condição humana.

Finalizam esta parte, com discussões teóricas reconhecidas como socioantropológicas, que se centram na categoria fundante de experiência de sofrimento, ao qual constitui o campo da sociologia da vida cotidiana na interface com o adoecimento crônico que, ao alinhar-se à fenomenologia sociológica, se encarrega em compreender a experiência do adoecimento inserida na realidade da vida cotidiana.

As narrativas de pessoas adoecidas são coerentes com a trajetória de vida, biografia, inserção específica em um presente particular e na relação com “outros” Nesse ponto, salienta-se a pertinência relacional entre as realidades subjetiva e objetiva, de modo que, a experiência representa o objetivamente representado em formações e sobreposições contínuas e ininterruptas de conhecimentos55. Alves PC. A teoria sociológica contemporânea. Da superdeterminação pela teria à historicidade. Rev Soc e Estado 2010; 25(1):15-31..

A segunda parte, organizada em seis capítulos, que valorizam as narrativas da experiência do adoecimento, em relevante base teórica e metodológica, principiam a análise dos modos peculiares de experienciar a leucemia mielóide crônica e as (re) significações intersubjetivas conferidas nas relações sociais. Na sequência, contempla-se o universo simbólico, envolto nas alimentações de gestantes de risco internadas por diabetes, e análises das repercussões materiais e imateriais de pessoas em idade adulta, com história pregressa de doença falciforme - suas infâncias e adolescências marcadas por experiências de intercorrências, limitações e privações.

Os autores trazem implicações individuais simbólicas e subjetivas do corpo adoecido e com dores crônicas, acompanhadas de mudanças nos hábitos e rotinas manifestos em conflitos cotidianos. As reconfigurações diante do processo de adoecimento fazem parte das discussões, e contrapõem-se à perspectiva biomédica preconizadora dos elementos objetivos envoltos na doença (disease), propriamente. Finalizam com discussões sobre a adesão dos medicamentos pelas pessoas com hipertensão arterial sistêmica, em seus aspectos individuais, coletivos (familiares), gerenciais públicos e dimensões micro e macrossociológicas presentes nessa situação.

Estudos com narrativas sobre a cronicidade tem sua importância teórico-metodológica por situar o sofrimento na trajetória de vida da pessoa adoecida, a partir da apresentação dos acontecimentos em ordem significativa, cuja experiência do adoecimento é (re)apresentada, (re)contada e comunicada pelos caminhos nos quais se dão as experiências de sofrimento, auxiliando os narradores a lidarem com estas experiências55. Alves PC. A teoria sociológica contemporânea. Da superdeterminação pela teria à historicidade. Rev Soc e Estado 2010; 25(1):15-31..

A cronicidade impõe relações com os serviços de saúde em intensidade e frequência variadas, enfoque da terceira parte. Consiste em oito capítulos que debatem temas específicos como: cuidado integral às pessoas com doença falciforme na perspectiva da gestão, usuários, familiares e profissionais envolvidos; organização do serviço na atenção ao paciente crônico, com ênfase nas relações proativas entre pacientes e equipes em centros de saúde da família; o enfoque hermenêutico nas experiências de cuidado às pessoas com transtorno mental, estratégias cotidianas e a continuidade do cuidado no âmbito da atenção primária à saúde; reflexões sobre o processo de cronicidade que atinge pessoas com transtorno mental em adolescentes; cronificação dos sofrimentos psíquicos/mentais, alicerçado em práticas de um modelo anterior à Reforma Psiquiátrica; internação hospitalar permanente por doença crônica e o acompanhamento educacional de crianças e adolescentes em condição crônica; vertentes sobre mensuração da adesão e não adesão ao tratamento diante da doença crônica e principais ações/estratégias e diretrizes nacionais e internacionais voltadas à prevenção e controle das Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNT), destacando-se as recomendações nutricionais.

Alguns capítulos têm maior densidade teórica, outros mais descritivos, sobre a prática assistencial e a experiência de (con)viver com o adoecimento crônico, trazem à tona reflexões acerca dos avanços, dificuldades latentes e novas possibilidades de se pensar o processo de saúde e adoecimento.

A obra enfatiza que as redes institucionais e sociais devem estar articuladas no processo de cuidado aos adoecidos crônicos, estando sensíveis às necessidades de saúde específicas do grupo em questão e de suas famílias. Reafirma-se a importância de privilegiar os elementos subjetivos e intersubjetivos ao lado dos objetivos com traços de controle, regulação e poder, proveniente da perspectiva biomédica, num processo de desconstrução desse modelo. Os capítulos expõem a necessidade de fortalecer o diálogo entre os serviços, profissionais, adoecidos e familiares.

Nos estudos qualitativos das Ciências Sociais, valorizam-se a subjetividade para reflexões sobre experiências do adoecimento crônico, portanto, acredita-se que a obra resenhada destina-se aos profissionais de saúde, pesquisadores e iniciantes no campo, interessados em conhecer e aprofundar conhecimentos conceituais, teórico-metodológicos e dilemas que perpassam os estudos sobre cronicidade no contexto nacional.

Cabe explicitar dois pontos principais para melhor compreensão das discussões propostas pelos autores: a relativa recusa da uniformização e da interdisciplinaridade entre as ciências naturais, humanas e filosofia; e a análise mais próxima dos atores sociais, na tentativa de ultrapassar a superdeterminação das teorias55. Alves PC. A teoria sociológica contemporânea. Da superdeterminação pela teria à historicidade. Rev Soc e Estado 2010; 25(1):15-31..

Nesse sentido, a experiência do adoecimento crônico é marcada por conflitos, recaídas, limitações, e privações decorrentes das (re)significações, negociações intersubjetivas e de olhares aprofundados do protagonismo das pessoas adoecidas e de seus familiares no processo de gerenciamento cotidiano. Destarte, necessitam-se estudos que explorem alternativas terapêuticas às condições crônicas, articuladas com as instituições envolvidas no gerenciamento dessa condição de saúde.

Por fim, a leitura da coletânea aproxima o leitor a uma condição que requer “dar atenção aos aspectos privados, à vida cotidiana, às rupturas das rotinas, ao gerenciamento da doença e à própria vida dos adoecidos, cujos cuidados não se restringem aos serviços de saúde e ao contato com os profissionais”11. Canesqui AM. Estudos Antropológicos sobre os Adoecidos Crônicos. In: Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 19-51., sem desconsiderar a importância de tal condição, face ao acelerado crescimento mundial da morbimortalidade populacional.

Referências

  • 1
    Canesqui AM. Estudos Antropológicos sobre os Adoecidos Crônicos. In: Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec; 2007. p. 19-51.
  • 2
    Canesqui AM, organizadora. Adoecimentos e sofrimentos de longa duração. 2ᵃ ed. São Paulo: Hucitec; 2015.
  • 3
    Organização Mundial da Saúde (OMS). Cuidados inovadores para condições crônicas: componentes estruturais de ação. Brasília: OMS; 2003.
  • 4
    Mendes EV. O cuidado das condições crônicas na atenção primária à saúde: o imperativo da consolidação da estratégia da saúde da família Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2012.
  • 5
    Alves PC. A teoria sociológica contemporânea. Da superdeterminação pela teria à historicidade. Rev Soc e Estado 2010; 25(1):15-31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Fev 2018
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