Laurindo-Teodorescu L, Teixeira PR. Histórias da aids no Brasil, 1983-2003. Brasília: Ministério da Saúde/Secretaria de Vigilância em Saúde/Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais; 2015.

Wilza Vieira Villela Sobre o autor
2015

A Resposta Brasileira ao HIV/Aids é conhecida como um exemplo de política pública democrática, construída a várias mãos. Inúmeros sujeitos, afetados pela epidemia de diferentes formas, participaram, cada qual a seu modo e dentro das suas possibilidades, do esforço de elaboração de estratégias e ações para o enfrentamento de algo desconhecido e que se apresentava ao mundo como uma ameaça à vida em escala global.

Esta conjugação de múltiplas e variadas iniciativas, orientadas por perspectivas muitas vezes distintas, mas que encontravam na solidariedade seu ponto de convergência, constituiu-se em modelo reconhecido internacionalmente e analisado por diferentes autores e pontos de vistas11. Greco DB. Trinta anos de enfrentamento à epidemia da Aids no Brasil, 1985-2015. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1553-1564.,22. Kadri MR, Schweickardt JC. As Organizações da Sociedade Civil no enfrentamento à AIDS no Amazonas, Brasil. Cien Saude Colet 2015; 20(5):1331-1339.. Apesar da sua diversidade, essas análises coincidem na constatação de que os fatores cruciais para o sucesso da resposta brasileira ao HIV/Aids, para além dos seus elementos formais – adotados inclusive em outros países sem resultados semelhantes33. Larson H J, Bertozzi S, Petin P. Redesigning the AIDS response for long-term impact. Bull WHO 2011; 89(11):846-851., estiveram diretamente relacionados ao contexto político brasileiro à época da eclosão da epidemia. O processo de redemocratização do país, a luta por eleições diretas e pela construção de um sistema de saúde universal, e a forte mobilização da sociedade civil em torno destas questões e de outras ligadas aos direitos de cidadania formavam o cenário sobre o qual a resposta brasileira ao HIV/aids começou a ser desenhada. Entretanto, a sua coloração vibrante foi dada pela paixão com que ativistas e demais atores sociais se dedicaram a esta construção.

É nas paixões e engajamentos situados histórica e politicamente e em sintonia com os avanços biotecnológicos e com a organização do Sistema Único de Saúde, que se inspira a publicação “Histórias da Aids no Brasil 1983-2003”, de autoria de Lindinalva Laurindo-Teodescu e Paulo Roberto Teixeira, publicada com o apoio do Ministério da Saúde e Unesco.

Organizado em dois volumes, um direcionado à construção da resposta do ponto de vista e das respostas governamentais e outro contemplando a organização da sociedade civil, o livro é composto pelas histórias narradas por mais de duzentos atores, de diversas partes do país e inserções sociais, ativistas, profissionais de saúde, políticos e gestores, que marcaram presença na construção da resposta brasileira ao HIV/Aids ao longo dos primeiros vinte anos de epidemia. Quando os recursos biomédicos ainda eram bastante limitados e a riqueza da resposta repousava no esforço de mobilização social para a criação de estratégias preventivas que garantissem o desfrute da sexualidade com o menor risco possível, para conscientização da população e redução do estigma e ainda para a garantia de acesso aos tratamentos disponíveis no momento.

Uma exaustiva busca bibliográfica e documental permite situar as narrativas nos respectivos contextos históricos e loco-regionais e fornece os elementos que articulam as diversas histórias. Esta opção e a exaustividade da pesquisa possibilita que o leitor tenha uma visão ampla da complexidade do processo: as particularidades culturais, políticas, epidemiológicas ou organizacionais de cada estado, cidade ou região exigiam modos específicos de construção de resposta, que ao mesmo tempo deveriam estar articulados às demais iniciativas locais ou regionais e serem compatíveis com as diretrizes nacionais.

A forma como os volumes são organizados facilita que os leitores possam ter esta visão simultânea das articulações locais ou regionais e sua reflexividade em termos da política nacional. Assim, o volume I, “respostas governamentais”, conta os primórdios da Aids no mundo e no Brasil, as iniciativas em São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais que contribuíram para a estruturação do Programa Nacional de DST/aids em 1986. Em seguida são apresentadas, com riqueza de detalhes sobre idas e vindas, acordos e alianças, as diferentes ações e políticas que concorreram para consolidar a resposta nacional. O volume que trata da organização da sociedade civil se organiza a partir de cada região do país, e tem uma seção sobre iniciativas exemplares da sociedade civil que marcaram a resposta brasileira, como as casas de apoio e a organização de setores específicos da sociedade civil, como os artistas, as comunidades religiosas e os núcleos acadêmicos de estudos sobre Aids. Especial atenção é dada à Associação Brasileira interdisciplinar da Aids, ABIA, que desde a sua fundação caracterizou-se por uma missão híbrida de ativismo, interlocução política e produção de conhecimento.

A organização por temas, seções e capítulos em cada volume não implica que cada narrador tenha seu depoimento restrito a um único tópico. Ao contrário, suas falas reverberam ao longo dos volumes e nos diferentes capítulos. Assim, se a resposta foi construída a várias mãos, a história desta construção também coaduna diferentes vozes e olhares.

Esta forma de articular os depoimentos permite que o livro possa ser lido de modo não sequencial. Cada capítulo ou seção trata de um tema, analisado sob diferentes olhares, e ao mesmo tempo alguns outros irão aparecer, com enfoques distintos, em mais de um tópico. Como num quebra cabeças, cada iniciativa, seja governamental, técnica ou da sociedade civil, com as suas especificidades históricas e regionais, vai se encaixando em outras para formar um conjunto que adquire harmonia, independente da forma que assume cada uma das suas partes e que, descontextualizada, parece não ter sentido.

As intervenções textuais de Lindinalva e Paulo Roberto são bastante econômicas. Desta forma, a presença dos autores se concretiza nas opções de organização do texto e da escolha das fontes e, principalmente, no rigor metodológico que permite construir um texto denso, embora de leitura extremamente fácil e agradável, no qual a relevância dada aos depoimentos não significa uma história em que “os dados falam por si”. A perspectiva analítica dos autores é dada na forma como os dados se organizam e se complementam. Segundo Lindinalva e Paulo, a ideia original de construir uma “História da Aids” no Brasil, foi sendo substituída pelo interesse de contar as histórias da Aids, e pela compreensão, cara aos historiadores contemporâneos, de que não há uma História, apenas histórias que em algum momento se entrecruzam e se potencializam44. Arruda JJ. A Linhagens historiográficas contemporâneas por uma nova síntese histórica. Economia e Sociedade 2016; 7(1):175-191..

Muito me emocionou reencontrar nas páginas do livro amigos, pessoas conhecidas e situações vivenciadas, sendo descritas e discutidas em perspectivas que muitas vezes surpreendeu a minha memória; muito me enriqueceu conhecer fatos que ocorreram próximos a mim, mas que não consegui ver ou dar a devida importância no momento. Também foi rico conhecer a visão de vários personagens da história da Aids no Brasil, sobre ela mesma e seu lugar nesta construção; poder pensar nestes sujeitos a partir das suas próprias análises sobre si mesmos e seus atos, assim como reviver alguns momentos sob nova perspectiva foi um aprendizado sensível e gratificante.

Entretanto, não se trata em absoluto de um livro para saudosistas. Ao lado da oportunidade que qualquer leitor terá de conhecer um dos capítulos mais ricos da história da saúde no Brasil, o livro também fornece ensinamentos valiosos para quem tem interessa no tema da construção de políticas públicas, além de propiciar uma aprendizagem de metodologia de pesquisa extremamente útil.

Estas já seriam razões suficientes para recomendar o livro “Histórias da Aids no Brasil”. Entretanto, sua leitura torna-se mais relevante ainda frente à brusca mudança na direção das políticas nacionais e globais de Aids nos últimos anos, com a hegemonia da estratégia de “Tratamento como Prevenção”, que privilegia as abordagens biomédicas em detrimento daquelas mais políticas e psicossociais, que marcaram as anteriores55. Seffner F, Parker R. The waste of experience and precariousness of life: contemporary political moment of the Brazilian response to aids. Interface (Botucatu) 2016; 20(57):293-304., reportadas nesta publicação.

Compreender as dimensões políticas e sociais da resposta brasileira ao HIV/Aids a tornaram exitosa e pode contribuir para uma análise crítica do modelo atual, no sentido de assegurar a melhor utilização dos recursos biotecnológicos atualmente disponíveis, sem, contudo, abrir mão das conquistas sociais e sanitárias acumuladas ao longo da epidemia, especialmente no período documentado por Lindinalva e Paulo Roberto.

O livro pode ser solicitado ao Ministério da Saúde, ou baixado gratuitamente pela internet. Vale a pena! Boa leitura.

Referências

  • 1
    Greco DB. Trinta anos de enfrentamento à epidemia da Aids no Brasil, 1985-2015. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1553-1564.
  • 2
    Kadri MR, Schweickardt JC. As Organizações da Sociedade Civil no enfrentamento à AIDS no Amazonas, Brasil. Cien Saude Colet 2015; 20(5):1331-1339.
  • 3
    Larson H J, Bertozzi S, Petin P. Redesigning the AIDS response for long-term impact. Bull WHO 2011; 89(11):846-851.
  • 4
    Arruda JJ. A Linhagens historiográficas contemporâneas por uma nova síntese histórica. Economia e Sociedade 2016; 7(1):175-191.
  • 5
    Seffner F, Parker R. The waste of experience and precariousness of life: contemporary political moment of the Brazilian response to aids. Interface (Botucatu) 2016; 20(57):293-304.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2018
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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